Caso Ho Chio Meng – Afinal… em que ficamos?

* Por Mário Alves Cardoso, advogado

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]todos os títulos, é uma questão bem curiosa, jurídica e socialmente interessante, a que agora se levantou a propósito do julgamento do pedido de habeas corpus interposto pelo antigo Procurador do Ministério Público de Macau e actual Procurador-Adjunto, Ho Chio Meng.
Questão essa que, sucintamente, se traduz no seguinte: qual a posição, qual o estatuto de que o magistrado em causa gozava no momento em que interpôs o pedido de habeas corpus, alegando a ilegalidade da prisão preventiva decretada pelo TUI ?
Para ele, para a sua defesa, a fundamentação do pedido era simples, crê-se: o arguido, magistrado do Ministério Público, não podia ser nem detido nem preso preventivamente, tendo em conta o n.º 1 do art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados ( que é uma lei especial, sublinhe-se, e prevalece por isso sobre as leis gerais, nomeadamente sobre o Código de Processo Penal ), o qual estipula que « Os magistrados não podem ser detidos ou preventivamente presos antes de pronunciados ou de designado dia para a audiência, excepto em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 ( três ) anos.»
E, no entanto, o magistrado em causa foi detido e depois colocado em prisão preventiva, sem que estivesse pronunciado, sem que houvesse dia designado para a audiência de julgamento e, mesmo, sem que houvesse acusação por parte do Ministério Público.
Apresentado o arguido ao TUI, foi este órgão judicial supremo que tomou a decisão de o colocar em prisão preventiva. Ou seja, considerou-se competente para tal, face ao art.º 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária da RAEM, que determina, na alínea 8), a competência daquele tribunal para « julgar processos por crimes e contravenções cometidos pelos magistrados referidos na alínea anterior. » ( ou seja, por Juízes de Última Instância, pelo Procurador, por Juízes de Segunda Instância e por Procuradores-Adjuntos ).
Julgou-se, pois, o TUI competente para apreciar, quer tivesse considerado a categoria profissional do arguido à data dos alegados factos criminosos ( Procurador ) ou a categoria à data da decisão ( Procurador-Adjunto ). De resto, o arguido fora já ouvido no CCAC, em 4 de Fevereiro de 2015 — de acordo com a Comunicação Social de matriz portuguesa –, pouco antes de ter sido nomeado coordenador da Comissão de Estudos do Sistema Jurídico-Criminal.
Pois bem: de acordo igualmente com notícias da mesma Comunicação Social, em favor da decisão que indeferiu o pedido de habeas corpus militou a circunstância de o TUI considerar que não era aplicável ao caso a citada norma especial do art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados. Isto pelo facto – ainda de acordo com o noticiado nos jornais – de o arguido não estar actualmente a desempenhar funções de magistrado do MP mas outras estranhas à sua magistratura.
Dando como certo este ponto de vista, esta posição do TUI – que não conhecemos em pormenor por só ter sido publicitada pelo tribunal, até agora, a versão em língua chinesa do acórdão proferido –, levanta-se então uma importante questão, cremos, e salvo melhor e fundada opinião: a competência do Tribunal de Última Instância para o processo em causa.
Para isso, há que esclarecer: o que é que altera ( ou não ) o ponto de vista alegadamente adoptado pelo TUI no que respeita à sua competência para julgar o processo-crime relativo a um ex-Procurador e actual Procurador-Adjunto ? Será que o facto de considerar não aplicável in casu o art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados ao arguido, por não se encontrar na situação de exercício efectivo de funções judiciais, poderá levar a que se conclua também que, então, a sua condição, o seu « estatuto de magistrado » está suspenso ? E que, face a essa suspensão, não seria aplicável ao caso a regra da competência do TUI estabelecida na Lei de Bases da Organização Judiciária?
Afigura-se-nos — salvo melhor opinião –, no que respeita à competência para apreciar e julgar, que o TUI continua a ser o tribunal competente face ao disposto na Lei de Bases da Organização Judiciária, porque o arguido não deixou de ser magistrado com determinada categoria, no caso, Procurador-Adjunto.
Mas, se para este efeito o arguido continua a ser magistrado e com aquela categoria, e, por conseguinte, a competência do TUI se mantém – independentemente de o magistrado estar, ou não, no exercício efectivo de funções judiciais –, então a subordinação plena, total, do arguido ao Estatuto dos Magistrados ( aos deveres que ele impõe mas também ao benefício dos direitos que nele estão consignados ) parece-nos inevitável.
De resto, é o próprio Estatuto dos Magistrados que decide, que expressamente consigna, a única excepção a esta regra de subordinação dos profissionais do foro abrangidos, ao estipular, no n.º 6 do artº 72.º, que « A pena de demissão importa a perda do estatuto de magistrado conferido pelo presente diploma e dos correspondentes direitos. »
Face ao ponto de vista alegadamente expresso pelo TUI na decisão que indeferiu o habeas corpus requerido – ou seja, a impossibilidade de o arguido se socorrer da norma constante do art.º 33.º, que lhe confere o direito a não ser detido nem preso preventivamente quando não se verificam as situações ali referidas, decorrente do facto de estar a desempenhar outras funções que não as judiciais –, posição radical ( polémica, certamente ) poderia então equacionar-se, concretamente a seguinte: o magistrado que deixe de exercer, temporariamente, as funções judiciais inerentes ao seu cargo e categoria passa, automaticamente, a deixar de estar abrangido pelas regras do Estatuto dos Magistrados.
Ou seja, a sua condição de magistrado passa a estar suspensa, não produzindo ela quaisquer efeitos enquanto se mantiver a situação de não exercício das funções judiciais. Assim sendo, não seriam aplicáveis ao magistrado com essa condição suspensa, e por causa disso, quaisquer regras jurídicas que se reportem à condição de magistrado.
Forçoso seria, então, de concluir, por exemplo, que os tribunais de última e de segunda instância – competentes, como se viu, para apreciarem processos e decidirem acções que envolvam magistrados – deixariam, nessa circunstância, de o ser, dada a ausência, temporária, da condição de magistrados dos arguidos. Passando, então, a competência para apreciar os crimes e contravenções, alegadamente praticados por aqueles magistrados « suspensos », para os tribunais de base, de primeira instância.
É um facto que o comunicado emitido pelo TUI na sua página oficial electrónica apenas refere não ter admitido o pedido o pedido de habeas corpus porque este « só pode ser pedido e concedido nos termos prescritos na lei, fundamentando-se, obrigatoriamente, nas situações enumeradas nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 206.º do Código do Processo Penal. Outros tipos de eventual prisão ilegal não podem servir de fundamento do pedido de habeas corpus. » Não há, pois, no comunicado qualquer referência ao alegado « ponto de vista do tribunal » quanto à não aplicabilidade do referido art.º 33.º do Estatuto dos Magistrados à situação concreta do arguido, o não exercício efectivo, no momento, de funções judiciais.
Repita-se: não conhecemos o texto exacto ( em língua portuguesa ) do acórdão proferido. Mas, conhecemos o comunicado oficial em Português divulgado pelo tribunal. E, perante ele, é forçoso concluir: o indeferimento do pedido de habeas corpus nada tem a ver com a aplicabilidade, ou não, do art.º 33 do Estatuto dos Magistrados.
Tem a ver, sim – e, pelos vistos, exclusivamente –, com o facto de o tribunal ter considerado não estar preenchido nenhum dos pressupostos exigidos pelo art.º 206.º do Código de Processo Penal para o deferimento de um tal pedido de libertação de arguido preso. Ou seja, que: a ) a prisão foi ordenada por entidade incompetente; b ) foi motivada a prisão por facto pelo qual a lei a não permite; e c ) que a prisão se manteve para além dos prazos fixados pela ou por decisão judicial.
Todavia, escreveu-se num jornal: « O juiz Sam Hou Fai acrescentou ainda que , para inverter a situação de prisão preventiva, Ho Chio Meng teria de interpor um recurso e não fazer um pedido de habeas corpus. » ( « Hoje Macau », 2 de Março ). Permita-se-nos que perguntemos: o meritíssimo juiz-presidente do TUI afirmou, na audiência de julgamento do pedido, aquilo mesmo que atrás está referido? Que o arguido em causa teria que interpor um recurso da decisão que ordenou a sua prisão preventiva ? Um recurso ? Mas para quem ?
Com todo o respeito que o tribunal, as pessoas e a matéria nos merecem, isto demonstra claramente a incongruência do sistema jurídico quando se trata de decisões do TUI tomadas em primeira instância, pois que, como é sabido, é jurisprudência daquele tribunal delas não ser admissível recurso.
Ao arrepio da justiça e do bom-senso, como o reconhece a maioria da comunidade jurídica da RAEM. E, provavelmente, como o sente o próprio Tribunal de Última Instância.

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