3. A viúva

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão vale a pena gritares ou chorares ou pedires para que tenha piedade. Não se trata de isto ser lógico ou de ser o destino ou de haver possibilidade de mudança. Estás aqui neste momento sem te poderes mexer e eu sou a viúva. É assim o nome pela qual sou tratada. Está tudo pintado. Todas as paredes. Sim, todas as paredes e o tecto também. Está tudo branco e apenas as folhas das plantas em verde criam sombras. Esta é uma harmonia própria que quero que sintas antes de fazer aquilo que tenho que fazer. E o macio arredondado do sofá à tua frente com padrões de ondas do mar nunca o irás sentir. Esse sofá será para o meu cliente se sentar.
Não vai ser fácil, e vai demorar tempo. Mas percebe que isto te vai acontecer. Tudo o que tens a fazer é aceitar. Desta vez aquilo que sabes de ti vai desaparecer. E nenhuma cirurgia plástica te salvará. Nenhum novo nome. Nenhuma nova terra. Considera que este é o momento de redenção. Livrares-te de todas as tuas posses. De todo o teu passado. Não te vais tornar outra pessoa. Serás a mesma pessoa. Como sempre fostes em cada mudança de rosto. Em cada mudança de nome. Em cada mudança de terra. Mas claro que serás compensado. Quanto de descobrirem serás notícia e as pessoas irão falar de ti. Como nunca falaram antes. Eu serei responsável por tudo.
Como te disse antes não tens nada a perder. O teu trabalho. Os teus nomes. As tuas vidas. Todas as tuas esperanças. Nada disso significa algo agora. E o teu rosto não importa. Eu vou apenas trabalhar a parte de cima da cabeça. Vi-te estremecer. Sinto-te confuso. Sinto a energia do teu cérebro. Imagino que te perguntes se aquilo que te vai acontecer será uma mudança para melhor? É tudo o que quiseres. Lembra-te apenas neste momento que eu sou conhecida como a viúva. Lembra-te apenas que esta minha expressão sombria está de acordo com o desejo de alguém que quer que existas sem saberes quem és. Não me perguntes quem é. Nunca sei quem é que me contrata. Depois de fazer aquilo que te tenho que fazer irei-me embora e o cliente irá sentar-se nesse sofá com padrões de ondas do mar, e ficará contigo o tempo que quiser para confirmar que o meu trabalho foi bem feito. 050973_Couture_A Widow Thomas_couture
Por esta altura já deves saber porque estás aqui. Lembras-te da tua mulher? Lembras-te quando ela viu a plantação de chá naquelas férias no Japão? Uma tristeza infinita se esboçou na sua alma. Tu deste ideias de não notar, mas a verdade é que sabias que toda aquela melancolia tinha origem no coração. No que ela deixou para trás para cumprir o desejo dos pais. Mas tu já sabias da melancolia dela e foi para teres certeza que a levaste aos campos de chá. Era uma tarde de primavera e o sol ainda não estava muito brilhante. Viste os olhos dela apagarem-se quando lhe apertaste o pescoço. Ainda hoje te perguntas se poderias ter escapado o destino. Aquele romance que nunca conseguiste ter. Quantas vezes imaginaste as longas conversas na cama que ela e ele tiveram? Quantas vezes quiseste ser ele? Lembras-te dessa tarde onde, arredondados, os lábios dela empalideceram?
Ainda vamos demorar um pouco. Tens que perceber que ninguém te virá socorrer. Seria interessante se conseguisses esboçar um sorriso. Em condição de canto do cisne. Devo dizer-te que não vejo qualquer obstáculo em relação à cirurgia plástica. Mas neste caso não te vai ajudar. Se tivesses mantido o teu rosto original ainda poderia ser que alguém te reconhecesse e viesse ao teu encontro quando te encontrarem. Eu sei que o facto de teres feito cirurgia não foi por uma recusa de gosto em relação ao teu rosto. Eu pessoalmente nunca gostei do meu mas também nunca tive uma ideia concreta de que rosto gostaria. Mas, como te digo, não tenho nada contra o teu. Ou contra os teus rostos. Outra coisa que não tens que te preocupar é que não vai perder amigos. Afinal toda a gente pensa que morreste com a tua mulher no Japão. Simulaste bem o suicídio em conjunto. Mas eu sei a verdade. Aquele corpo do homem não era o teu.
Eu tenho muitas vidas passadas. Vidas das quais não sabes nada. Eu sou a viúva e ninguém pode mudar aquilo que é suposto eu fazer com casos como o teu.
Eu tive dois filhos. Um menino e uma menina. Ele era cinco anos mais jovem que ela. Ele desapareceu há já muito tempo. Em relação a ela falaremos mais tarde. Eu e o meu filho tivemos os nossos problemas mas tudo estava bem até ele vir a saber que a mulher que amava tinha morrido. Não me interpretes mal. Isto que te vai acontecer não é uma vingança pelo meu filho. Isto que te vai acontecer tem que acontecer porque alguém quer que aconteça.
Espero que neste momento já tenhas percebido. Isto vai beneficiar toda a gente incluindo tu. Claro que todos as cabeças das pessoas são diferentes até certo ponto. Qualquer coisa que não será contrário às leis da natureza. Estarás ciente de que apesar de tantas mudanças de rosto e de tantas formas diferentes na colocação das sobrancelhas houve coisas que não mudaram. As nossas cabeças não são produzidas numa fábrica, de acordo com normas estabelecidas, mas posso dizer-te que o cérebro ocupa uma zona específica. As diferenças, que foste alternando no teu rosto, foram muito além dos limites do senso comum. Mas não te preocupes. Esse desequilíbrio, óbvio para qualquer pessoa, não irá incomodar em nada naquilo que te irá acontecer.
Mas antes de passarmos à fase seguinte quero que prestes atenção ao que te vou mostrar. “Bem-vindo ao telejornal. Após o assassinato de um mulher grávida na zona da Areia Preta um caso semelhante veio à tona na Vila da Taipa. Uma mulher grávida de 32 anos foi morta e o seu feto foi lhe retirado do corpo. A polícia suspeita que os dois casos estão ligados. Na casa de banho da mesma casa, a polícia encontrou também um homem de 54 anos com queimaduras do quinto grau. O homem foi declarado morto à chegada ao hospital e ainda não se sabe se tinha alguma relação de parentesco com a mulher assassinada. Entretanto em relação à mulher encontrada ao redor da ponte não existem desenvolvimentos na investigação.”

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