Coração Partido

[dropcap]C[/dropcap]oração partido – uma sensação de vazio no corpo de uma qualquer somatização e metáfora. O corpo fisiológico reage quando o amor, aquele conceito de pura abstracção, não era o que esperávamos. Diz a investigação que a dor de um desgosto amoroso activa a mesma área do cérebro da dor sentida, por exemplo, na pele. Por isso há quem recorra a analgésicos para aliviar dor do desamor (e parece que até resulta). Mas por mais que queiramos ter disponível uma resolução fácil para esta dor que tememos tanto, não é a solução ideal: os traumas sociais continuarão e o fígado ressentir-se-á se abusarmos desta medicação.

Terminar uma relação é difícil, mas acontece. O coração parte-se quando na nossa disponibilidade para a intimidade vemos que não há condições para (intimamente) nos relacionarmos. Quando a relação e a partilha deixam de fazer sentido (por tantas e variadas razões) teremos que passar por um processo de luto. O nosso ‘eu’ que era partilhado com aquela oxitocina e dopamina deixa de existir – há quem fale de abstinência, porque o amor é tão viciante como as drogas pesadas – e andamos a trepar paredes até que nos consigamos ‘refazer’.

Esta redescoberta de nós próprios na ausência do amor e de quem gostamos é dolorosa. O resultado deste processo de dor (que no pior dos cenários pode ser a depressão) depende de muita coisa. O mais importante é nunca subestimar a dor de um coração partido como dispensável ou fácil de gerir. A dor é essencial para que possamos renascer das cinzas como uma fénix. Simplesmente não é um processo fácil. Não será com um dia de analgésicos (aparentemente), álcool, gelado e séries sem parar que o coração conseguirá remendar-se.

Demora tempo e o tempo costuma ser sempre o nosso amigo quando precisamos de lidar com o desgosto. Temos que contar com a nossa capacidade reflexiva de nos permitirmos entristecer – para nos alegrarmos de novo.

O segredo também passa por reaprender a gostar de nós próprios e dos outros. Muitos convencem-se que nunca mais amarão, para evitar a intensidade deste desgosto (como se a intensidade da paixão e do amor não valessem a pena). Esquecemo-nos de como os outros nos trazem tanta alegria e prazer apesar de não parecer, no momento em que tudo termina. Não é por acaso que algumas criações artísticas são feitas em estado de coração partido, porque há muita dor e muita escuridão por resolver. A arte é uma de muitas formas de preencher os vazios que nos deixam. Importante reforçar, que do ponto de vista psicológico, é melhor resolver do que esconder: o que não quer dizer que a solução seja ruminar no assunto dias sem fim. A distância é importante para se arranjar espaço físico e emocional para lidar com a ausência. Mas é preciso aceitar o desconforto de um coração partido, aceitá-lo como normal para melhor geri-lo. A internet está cheia de sugestões para ultrapassar a dor de um coração partido, umas mais sensatas do que outras. A maioria das sugestões reforça o olhar cuidado para nós próprios, mesmo que não nos apeteça nada.

Claro que as sociedades não dão importância nenhuma à dor emocional, muito menos à amorosa. Parece que o amor é compreendido como uma característica dos fracos e os que se deixam sofrer pelo desconforto do desencontro amoroso mais fracos serão. Só que não. O amor não é a fragilidade da entrega, mas a coragem da entrega – e o desamor a coragem de nos reinventarmos quando o mundo parece não fazer sentido. O amor também não seria tão bom se não fosse, assim, arriscado.

25 Set 2019

Tratem-nos da saúde

[dropcap]H[/dropcap]á muito que se discute a questão da introdução de trabalhadores não residentes (TNR) em determinados sectores da economia. O Governo continua relutante em permitir uma contratação ponderada de pessoas ao exterior, não assumindo que, de facto, Macau não tem recursos humanos suficientes para que uma série de sectores fundamentais funcionem. Desta vez o debate surge em torno dos TNR na área da saúde. Houve uma ligeira abertura em relação à contratação de enfermeiros e terapeutas no sector privado, mas os Serviços de Saúde continuam a limitar o acesso de médicos estrangeiros a clínicas privadas.

Questiono-me, com os projectos de integração regional que aí vêm, se Macau tem de facto capacidade para aguentar com as consequências que este fluxo de pessoas implica. Também haverá mais pessoas nos hospitais, e ainda estamos à espera que o novo Complexo de Cuidados de Saúde das Ilhas seja construído.

Há ainda outro factor, que é o facto da primeira licenciatura em medicina ter aberto portas apenas este ano. Teremos de esperar bastante até que haja médicos locais formados em número suficiente para dar resposta à procura. O Governo não pode manter um sistema de financiamento público-privado na saúde e depois não garantir uma total flexibilização.

25 Set 2019

O rugido do leão (II)

[dropcap]O[/dropcap]s anos 70 foram marcados em Hong Kong pela canção “Under the Lion Rock”. Na década de 90, esse papel coube a uma outra canção, “In the Same Boat”, composta por Xu Guanjie. A canção apelava às pessoas para não sairem do território. Era preciso ficar e reunir esforços para reconstruir Hong Kong. A letra desta canção erguia bem alto o espírito de “Under the Lion Rock”. Aqui fica um excerto:

“Sigo convosco neste barco,
As vagas cruéis fustigam-no,
O vento sopra, o horizonte não se alcança,
Por todo o lado reina o caos.
Não sabemos o que nos espera.

Decidi seguir neste barco,
e com coragem evitar os danos,
Desafio-me e enfrento o perigo,
para que o navio nunca afunde.”

Nessa época, respirava-se em Hong Kong uma atmosfesra de pessimismo, toda a gente sentia que tinha um longo e árduo caminho a percorrer. A letra da canção representava metafóricamente “Hong Kong” como um barco. O vento e as vagas, as dificuldades que a cidade enfrentava na altura. Mas a canção encorajava as pessoas a enfrentar os problemas com bravura, para que o o navio/Hong Kong não se viesse a afundar.

E a seguir vinham palavras de esperança:

“O espelho quebrado vai voltar a reflectir-nos,
Tudo vai melhorar.
A luta será compensada ,
O navio nunca irá afundar.”

Desde que se mantenha acesa a luz da esperança, depois de ultrapassadas as maiores tormentas, o navio Hong Kong não afundará e há-de manter os seus passageiros confortáveis e em segurança.
As ideias que as canções “Under the Lion Rock” e “In the Same Boat” tentam passar são basicamente idênticas. Ambas encorajam os hongkongers a manter-se unidos, ter fé no futuro e a construirem Hong Kong em conjunto.

Em 2013, Hong Kong conheceu outro sucesso musical, “Love in the same boat”, que manteve a tradição das que a precederam. Apelava ao fim da discórdia e à manutenção da harmonia. A letra era mais ou menos assim:

“A vida reluz e fluta,
lá em baixo, junto ao porto,
O amor passeia nas ruelas da cidade antiga,
Depois das provações, o sofrimento foi esquecido
o que importa agora é estar aqui,
contigo ao meu lado”

Aqui o que ressalta é o sentimento de proximidade, o amor e o companheirismo. No entanto, nessa altura ainda havia muitos motivos de preocupação, porque Hong Kong tinha vários problemas. Por isso era preciso esquecer as mágoas para continuar a viver.

Estas canções épicas que marcaram várias décadas, exemplificavam de uma maneira ou de outra “o espírito of Lion Rock, Hong Kong”. Foram gradualmente mudando, com a mudança dos tempos. No entanto, preservaram o essencial. O sentimento de unidade, a luta contra o preconceito, o respeito mútuo, a solidariedade e a esperança, e a construção permanente de Hong Kong. Infelizmente, hoje em dia, o mesmo se poderá dizer daqueles que subiram a Lion Rock para se manifestarem? Poderão eles ignorar os preconceitos e respeitar os demais? E, sobretudo, estarão ainda esperançados e dispostos a continuar a construção de Hong Kong?

Estou em crer que ninguém pode ver na destruição de edifícios do Governo, nem na destruição de estações de metro, sinais da construção de Hong Kong. As pessoas acreditarão verdadeiramente que ao usarem cocktails molotov e lasers nas manifestações, estão a dar mostras de civismo e de respeito pelo próximo? “O espírito de Lion Rock, Hong Kong” busca a unidade e a tolerância. O que importa acima de tudo é não ser dogmático, aceitar as opiniões dos outros, tendo em vista o bem-estar geral. Ter esperança e trabalhar em conjunto, com os olhos postos no futuro. Fazer cordões humanos ao longo do monte Lion Rock, em protesto, e considerar essa acção uma manifestação do espírito de Lion Rock é um erro. Apenas mostra que estas pessoas não fazem ideia do verdadeiro significado do “espírito de Lion Rock”.

O que é realmente aterrador é pensar que as novas gerações nunca irão compreender o essencial do significado do “espírito de Lion Rock” e, por isso, não vão poder mantê-lo vivo. Desta forma , que futuro espera Hong Kong?

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
24 Set 2019

Micro-agressões

[dropcap]V[/dropcap]ivemos tempos de sensibilidades medíocres. Um mar de gente ofende-se com ninharias, enquanto fecha os olhos a monstruosidades. Incendeiam-se redes sociais por uma cantina banir carne de vaca da ementa, enquanto na Europa crescem, em silêncio, forças que são a antítese do humanismo, que se refastelam em regozijo sádico com corpos a boiar no mediterrâneo.

Revitalizam-se velhas paixões pelo fascismo, pela opressão, pelas fronteiras fechadas e pelo belicismo, mas a revolta vai para o Justin Trudeau ter pintado a cara de preto em sucessivos carnavais. Não interessa mesmo se é racista, ou os valores que o guiam, mas o “racismo” sub-reptício, inadvertido e sem consequências de uma banalidade sem importância.

Não interessa que o seu Governo tenha sido o mais diverso racialmente na história do Canadá. Muito menos interessam políticas verdadeiramente segregacionistas a sul. Vivemos a Era da micro-agressão, quando até um neonazi se sente ofendido por ser tratado como tal. Não, o menino é Alt-Right, as tatuagens da suástica e cara do Himmler foram uma brincadeira e ele só quer proteger a sua pele branca do holocausto pessoal com que fantasia, enquanto nega outros holocaustos bem documentados.

Vivemos tempos de pequenas causas, banir as palhinhas de plástico é meramente simbólico, depois de décadas de passividade em pedir responsabilidades a governantes e de preguiça na mudança de hábitos. É como dar uma aspirina a um doente com um cancro terminal. Todas as acções parecem microscópicas, enquanto gigantescos problemas se avolumam à frente dos nossos olhos. Havia pano para as mangas desta coluna que já vai longa.

24 Set 2019

Verdade da mentira

[dropcap]É[/dropcap] sempre com perplexidade que vejo partilhas de “notícias” do China Daily, Xinhua, Global Times, e outros meios de propaganda do Partido Comunista Chinês, como coisas factuais. Esta profissão é ingrata, complicada, vive num equilíbrio do qual, por vezes, é difícil tirar a perspectiva ética da objectividade.

O jornalismo tem de ser imparcial, mas não pode ser neutro à factualidade, sob pena de se tornar presa fácil de “ângulos”, “posições oficiais” e dogmas. Mas existem mundos de diferença, universos, entre o frágil equilíbrio feito pelos jornais sérios e a propaganda. Não me lixem, isto não tem discussão!

A Reuters não está no mesmo campeonato do China Daily (que noticiou, por exemplo, que a manifestação em Hong Kong em que participaram mais de 2 milhões de pessoas era de apoio a Carrie Lam). No final da semana passada, foi noticiado que os media chineses vão ser alvos de testes de lealdade a Xi Jinping e ao partido. As suas credenciais ficam dependentes dos resultados. Mais uma vez, não me lixem!! Acham que o mesmo acontece na BBC ou na RTP?

Sejamos honestos, se continuam a papaguear propaganda, a última coisa que vos interessa é a verdade. Sou um adepto da fuga à realidade, mas por outros meios e por outras razões. Quando vejo alucinações ideológicas partilhadas como notícias, apetece-me sacar da KCNA, a agência norte-coreana, que, entre mil outras tristes realidades, não recusa a mitologia idiota de que Kim Jong-un nunca defecou na vida… por falar em expelir merda.

23 Set 2019

Custo mínimo, lucro máximo

[dropcap]A[/dropcap] imprensa da especialidade divulgou recentemente quanto ganharam em 2018 os presidentes – ou CEO, como se diz agora, eventualmente com mais rigor técnico mas certamente com menor zelo linguístico, pelo menos no que diz respeito à língua portuguesa – das grandes empresas mundiais do sector turístico. E que magníficos rendimentos auferiram estes soberbos gestores, alguns mesmo capazes de ultrapassar largamente os valores conseguidos em empresas de alto gabarito internacional, como a EDP, que ainda antes de tornar chinesa já se permitia pagar mais de 3 milhões de euros anuais ao seu máximo administrador.

O primeiro lugar é também expressão sintomática de uma tendência inequívoca das economias globais contemporâneas: a da vitória da distribuição sobre a produção, do conhecimento da dinâmica dos mercados sobre a dinâmica dos processos produtivos, da prioridade aos hábitos de consumo e canais comerciais em relação ao conhecimento das matérias primas e do seu processamento. Mais do que produzir conteúdos relevantes e de qualidade, interessa a eficácia com que possam transitar entre quem produz a quem consome. Não pode surpreender, por isso, que o mais bem pago gestor do sector turístico tenha sido o presidente de uma empresa cujos serviços assentam em plataformas digitais globais de reservas e distribuição de viagens e alojamento. Arrecadou mais de 5 milhões e meio de euros durante o ano passado.

As outras duas actividades a dominar esta tabela de fabulosos gestores são, naturalmente, os transportes (sobretudo aéreos) e o alojamento (hoteleiro) – ou mesmo empresas que diversificam e praticam as duas actividades, como é o exemplo da empresa alemã cujo gestor ocupa o segundo lugar da tabela, ultrapassando também os 5 milhões de euros de rendimento anual. Igualmente ilustrativo das dinâmicas contemporânea do capitalismo global, no caso dos transportes aéreos, é o aparecimento neste restrito grupo de dois dirigentes máximos de empresas de aviação de baixo custo – de resto bem conhecidas no mercado português. É sabido que os serviços tendem a ser mínimos, que a pontualidade é duvidosa e que os problemas são frequentes, ainda que na maior parte dos casos estas empresas operem com subsídios generosamente atribuídos por entidades públicas e privados dos destinos para onde dirigem os seus voos. Mais uma vez, conta a eficácia da distribuição: ligações directas e baratas entre origem e destino de grupos específicos de turistas com motivações identificadas, com serviços mínimos e lucros máximos. Cerca de 2 milhões de euros cada um, receberam em 2018 os fabulosos líderes máximos de duas destas empresas.

Particularmente curioso é o caso da hotelaria – e em particular o de uma empresa que por acaso utilizei este ano em dois continentes – cujo fantástico presidente auferiu mais de 4 milhões e meio de euros. A simpatia extrema com que fui tratado num desses hotéis, no sudoeste asiático, acabou por fazer com que tivesse uma interação muito maior que o habitual com quem lá trabalha. Fiquei a saber, por exemplo, que há pessoas (não sei se todas) que não têm sequer direito a um dia completo de descanso semanal – e nem valerá a pena comentar muito os níveis salariais. Certamente isso não acontecerá no segundo hotel do grupo que frequentei, em França, país onde os direitos laborais ainda beneficiam de muito razoável protecção. Ainda assim, era visível a falta de pessoal para os serviços necessários e a desproporção entre as 4 estrelas que classificam o estabelecimento e a qualidade do atendimento. Só um exemplo, que haveria muitos outros: várias vezes me dirigi ao bar para tomar um café antes de sair do hotel e quase nunca tinha alguém que me atendesse, ainda que o dito bar estivesse aberto; dirigia-me então à recepção, de onde telefonavam à pessoa que me deveria atender, entretanto ocupada noutra tarefa qualquer. Uma polivalência forçada numa equipa intencionalmente insuficiente, que contribui – tal como a ausência de descanso para quem trabalha no sudoeste da Ásia – para as poupanças necessárias ao magnânimo pagamento dos magníficos serviços do mais alto gestor da companhia.

É muito disto que se faz a dinâmica turística global contemporânea: custos mínimos, exploração máxima, lucros altos e remunerações aberrantes e injustas para os administradores de topo.

Também é assim que se constroem sociedades cada vez mais desiguais, exclusivas e injustas, como as que vamos observando na fase actual do capitalismo. Não é só no turismo, certamente – em muitos outros sectores se assiste a práticas semelhantes e a uma crescente desproporção entre os salários dos trabalhadores e dos gestores de topo. Mas não deixa de ser sintomático que a uma economia menos orientada para a incorporação de conhecimento e tecnologia e mais dependente de experiências turísticas de baixo custo e baixa incorporação de valor acrescentado corresponda também uma sociedade mais desigual e injusta.

20 Set 2019

A vida das escravas 

[dropcap]O[/dropcap] texto que publicamos hoje no jornal relativo ao relatório da ONG Global Policy Review assusta pelas conclusões que apresenta, por vários motivos. Em primeiro lugar, são conclusões que não são propriamente novas, mas que convém ser lembradas por existir muita coisa a mudar a nível governamental.

Estas mulheres são vistas todos os domingos nas ruas e todos sabem que levam vidas miseráveis, mas a verdade é que as autoridades continuam a fechar os olhos, fazendo de Macau e de Hong Kong dos lugares mais difíceis para os trabalhadores migrantes. Hong Kong vive uma espécie de revolução nas ruas por motivos políticos, mas há muito que estas mulheres estão nas ruas e ninguém dá por elas.

Foi necessário uma empregada doméstica da Indonésia ser brutalmente espancada para a sociedade civil começar a olhar de outra forma para esta questão, mas há ainda muito por fazer. Há muito a mudar para que Hong Kong seja um lugar melhor. Mudar o sistema político pode ser fundamental, mas há que olhar para os enormes problemas sociais existentes. Dessa forma, todos viverão melhor.

20 Set 2019

O gene gay não existe

[dropcap]A[/dropcap] comunidade científica chegou à conclusão que o gene gay não existe. Depois de décadas a ponderar se tal ligação genética existia – inspirados por um trabalho desenvolvido nos anos 90 – chegaram à conclusão contrária. De quem gostamos e quem nos atrai não é definido por um gene. A conclusão detalhada do estudo recentemente publicado na Science e que tem sido amplamente discutido pela imprensa internacional é que não há um único gene que preveja a homossexualidade – mas sim um conjunto de genes em combinação com factores ambientais, dos quais a nossa socialização e experiência fazem parte. Para os mais ignorantes, a ausência de um gene particular e o facto da homossexualidade não ser um fenómeno totalmente genético pode ser erradamente assumido que a homossexualidade é, então, uma escolha.

A ausência de uma explicação totalmente genética – e, especialmente, a forma como foi noticiada – não poderá servir de suporte para os que acreditam que direitos LGBTQ+ são meras ‘ideologias’ e não factos naturais. Principalmente para os que acreditam que a homossexualidade é uma opção de vida que pode ser arrancada à força com regimes de ‘conversão’ ou campos de ‘reabilitação’. Nestes casos um argumento exclusivamente genético teria dado muito jeito para calar os que julgam que o sexo e a vida são obras da imaginação e não factos da naturalidade da vida. Como se as coisas naturais nos fossem boas, e as ‘criadas’, más. Desta notícia ficou por enfatizar o papel de possíveis combinações de genes e do ambiente externo, que apesar de não existir o gene gay, existem predisposições genéticas fortes que fazem com que a homossexualidade exista, naturalmente (tal como a heterossexualidade existe, naturalmente).

Com as recentes tentativas de reduzir os fenómenos comportamentais a meros factos biológicos (neurológicos, genéticos, fisiológicos) é com alívio que também vemos desmistificar que o que somos possa ser determinado por aquelas moléculas que determinam algumas coisas, mas não todas. As etimologias da sexualidade não podem ser simplificadas. Mas os argumentos complexos levam a discussões difíceis. Em tempos onde vemos o crescer do conceito de ‘ideologia de género’ para falar de direitos humanos básicos sugere que temos que ter algum cuidado com a forma que escolhemos falar destes temas e como queremos divulgar os avanços científicos na área. As tensões e os problemas que existem assentam na visão de como nos tornamos pessoas.

Somos o resultado de genes ou somos o resultado de vivências? Nenhum dos dois consegue explicar o complexo processo de ser, mas os dois em conjunto oferecem uma visão mais completa, mais holística, se quiserem.

Com a salvaguarda que o estudo não é perfeito, nem a conclusão irrefutável. A amostra de 470.000 participantes – a maior utilizada para estudos deste género – só inclui ‘ocidentais’. Já para não falar que a orientação sexual não é medida como identidade, mas como atracção – que, na minha opinião, oferece uma visão demasiado simplista (a fisiológica) para perceber a orientação sexual. Há também quem tivesse referido que este estudo genético provavelmente mostra melhor os preditores genéticos para participar em estudos, do que comportamento homossexual, já que – das grandes bases de dados – somente uma pequena percentagem se mostrou interessada em participar.

A ciência não é perfeita e a comunicação de ciência muito menos. Por isso é preciso oferecer plataformas onde estes temas possam ser discutidos – nesta complexidade que foge de respostas simplistas para os factos do mundo.

18 Set 2019

Duo do Ouro Negro

[dropcap]E[/dropcap]sta crónica não é sobre Raul Indipwo, mas “Vou Levar-te Comigo”, meu irmão. Este fim-de-semana, uma série de ataques de drones à maior refinaria de petróleo do mundo, na Arábia Saudita, fez soar os tambores da guerra.

Quando a vítima de um atentado é o ouro negro, Washington responde com ira e prontidão para começar uma guerra. Este episódio traz ao de cima, mais uma vez, uma das mais perversas e bizarras alianças geopolíticas dos últimos tempos, o Duo do Ouro Negro. Chamemos os bois pelos nomes.

A Arábia Saudita é o Estado Islâmico que conseguiu os seus intentos. Um país que, além de exportar petróleo, exporta wahhabismo, semente do terrorismo sunita que, inclusive, foi a força “espiritual” da Al-Qaeda. Um dos exemplos do enorme poder relativista do petróleo é o facto de que 15 dos 19 terroristas que desviaram os aviões que embateram contra o World Trade Center eram sauditas, assim como Osama Bin Laden.

Mas nada importa, pelo menos enquanto o petróleo xiita tiver a Rússia e a China como clientes. Há anos que a Arábia Saudita bombardeia o Iémen com armas norte-americanas, causando uma das maiores crises humanitárias da actualidade que ameaça limpar da superfície terrestre o que resta do país.

Agora que houve uma centelha de retaliação, explode o mais podre e hipócrita dos ultrajes. Vá lá, o desdém pela vida e direito internacional não era suposto ser assim tão óbvio, nem demonstrar tão claramente que petróleo vale mais que pessoas. Ao menos o preço do barril de crude subiu. Os mercados vivem, enquanto as pessoas morrem. Viva o Duo do Ouro Negro!

18 Set 2019

O rugido do leão (I)

[dropcap]N[/dropcap]a noite que marca o início do Festival de Outono, 13 de Setembro, centenas de pessoas envolvidas nos protestos contra a lei de extradição, responderam a uma convocatária online e fizeram uma cadeia humana no cimo do monte Lion Rock, em Hong Kong. Esta cadeia humana iluminou-se subitamente com a luz de telemóveis e de canetas laser. Alguns dos manifestantes, que usavam máscaras e lanternas, gritavam slogans como “Cinco reivindicações, já!”. A escolha do local foi determinada pela tradição. É precisamente no topo do monte Lion Rock que as pessoas costumam celebrar a chegada do Outono. Festejam e admiram a Lua, um ritual chinês muito antigo de boas vindas a esta estação do ano. Mas existiu outro motivo que presidiu à escolha dos manifestantes. Lion Rock é mais do que um miradouro sobre a cidade, é o símbolo da unidade e da identidade de Hong Kong.

Mas será Lion Rock apenas a materialização do espírito de Hong Kong?

Esta pergunta não tem resposta fácil. Por isso, vou recorrer às letras de canções muito famosas e que marcaram uma época para tentar explicar o significado do “espírito de Lion Rock e de Hong Kong”.

Os hongkongers têm desde sempre vivido no sopé do monte Lion Rock, por isso ele passou a ser o símbolo da sua identidade. Nos anos 70, os célebres compositores Huang Wei e Gu Jiahui criaram a canção, “Under the Lion Rock”. Desde essa altura, este tema tem sido o estandarte do “espírito de Lion Rock e de Hong Kong”.

Nos anos 60 e 70, Hong Kong estava mergulhada em corrupção, violência, pornografia, jogo e droga. A polícia tinha uma ligação com o sub-mundo. Era voz corrente que as autoridades controlavam indirectamente estes negócios. Não é difícil imaginar o descrédito em que tinham caído as forças da ordem. Nessa altura, Hong Kong era uma colónia britânica. Para dialogar com o Governo era necessário falar inglês. No entanto, na época, o ensino superior estava reservado às elites e poucas pessoas falavam inglês fluentemente.

A economia estava sub-desenvolvida e a vida das pessoas era muito difícil. Neste período, o Governo de Hong Kong homologou a “Lei do Trabalho” que garantia aos empregados uma certa protecção, o que era melhor que nada. A famosa canção “Workers”, de Xu Guanjie, falava do problema social e laboral da época.

Além da questão das relações sociais e laborais, as pessoas trabalhavam em espaços sem condições. Devido a um sistema de abastecimento deficitário, Hong Kong ficava frequentemente sem água. Numa determinada altura a cidade só tinha fornecimento de água um em cada quatro dias. Mais uma vez a música veio dar voz ao descontentamento popular. Desta feita foi através da canção “The Water Song”, de Xu Gongjie, que o desagrado se fez ouvir.

Foi um período de pobreza e de dificuldades em Hong Kong. As pessoas só podiam contar umas com as outras, porque todos estavam a passar um mau bocado. Havia pouco dinheiro, poucas condições, mas muita solidariedade. Foi precisamente nesta altura que Roman Tam, interpretou a emblemática canção “Under the Lion Rock”:

“A vida é muito dura,
tanta preocupação,
Sob a Lion Rock, navegamos juntos
e damos as mãos,
esquecemos as diferenças, buscamos a união.”

Como vemos, desde os primórdios, o espírito de Hong Kong, materializado em Lion Rock, é o espírito de união e de inter-ajuda. Ponhamos de parte o preconceito e tentemos compreender o ambiente social que se vivia na altura. Continuemos a escutar a canção:

“Esquece o que divide os nossos corações,
Lembra-te dos ideais que nos movem,
Navegamos no mesmo barco,
Seguimos juntos, sem medo”

Os hongkongers seguem no mesmo barco. Será que já avistam terra?

“Aqui, na curva do cabo,
Unam as mãos, enfrentem as altas vagas,
Eu sou cada um de vós,
Sofro para deixar escrito
o lema da imortal Xiangjiang (Hong Kong)”

É o espírito de união face à adversidade que aqui é louvado. Embora o caminho seja difícil, podemos imortalizar o nome de Hong Kong.

A intenção do poema “Under the Lion Rock” é muito clara. Apela à inter-ajuda, à superação das dificuldades e dos preconceitos e à construção conjunta de Hong Kong.
Continua na próxima semana.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

17 Set 2019

O mercado do Demónio

[dropcap]E[/dropcap]xistem muitos centros mercantis no mundo, onde se fazem diariamente grandes negócios. Mas, na verdade, o Mercado do Demónio é o maior de todos eles. É lá que as pessoas, em troca de poder, dinheiro, reputação e estatuto entregam tudo o que têm, inclusivamente a própria alma.

“Fausto” é um romance da autoria do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. Embora seja uma obra de ficção, foi desde sempre considerada um retrato da realidade. No mundo em que vivemos imperam a mentira e a manipulação. O Incêndio do Reichstag em 1933, que resultou de um ataque ao edifício do Reichstag (onde funcionava o Parlamento alemão) foi considerado o episódio que desencadeou o estabelecimento do Regime Nazi. A “Noite de Cristal”, que teve lugar em 1938, marcou inequivocamente o início do terror que se viria a abater sobre os Judeus. Em 2003 os Estados Unidos invadiram o Iraque, sob o pretexto de que este país possuía armas de destruição massiva. Os invasores fizeram cair o Governo do Iraque, mas não foram encontradas quaisquer armas deste tipo. O nebuloso incidente de tiroteio registado na véspera das presidenciais de Taiwan em 2004, teve como resultado a re-eleição de Chen Shui-bian.

Sabemos que ao longo da História se criaram muitos cenários falsos com o intuito de gerar o pânico nas populações, mas a verdade por trás de cada um deles acaba, mais cedo ou mais tarde, por ser revelada. No início da Guerra da Coreia, foi dito que os primeiros ataques partiram da Coreia do Sul. Mas hoje sabemos que foi a Coreia do Norte que tomou a iniciativa do ataque. Desta forma, os voluntários que se juntaram ao exército norte-coreano para combater os EUA e a Coreia do Sul, morreram vitímas de um logro. E de onde terá vindo este grande contingente de voluntários?

Todos os truques e estratagemas que acabei de descrever estão disponíveis e à venda no Mercado do Demónio. Os sucessivos conflitos entre a polícia e a população civil em Hong Kong mergulharam a cidade no caos. Notícias verdadeiras e notícias falsas bombardeavam a cidade todos os dias, e os motivos que as desencadearam eram da mais variada natureza. Os comunicados de imprensa emitidos pela Polícia às 16.00 h, tinham inicialmente por objectivo fazer um ponto da situação dia a dia. Mas acabaram por transformar-se em sessões de inquérito, onde a polícia era bombardeada por perguntas dos repórteres ávidos da verdade dos factos, e que acusavam as forças da ordem de mudar constantemente as regras do jogo. Será que neste momento, alguém sabe ao certo o que aconteceu verdadeiramente na estação de Metro Prince Edward? E quem era a senhora que ficou gravemente ferida numa vista e como é que se deu esse ferimento? Mas como o Governo de Hong Kong se recusa a criar uma comissão independente de inquérito, não vai haver maneira de encontrar uma solução para os conflitos e para o divisionismo.

A maioria da população de Hong Kong deseja que esta comissão seja criada, mas o Governo continua a ignorar este anseio. E que questões estariam em cima da mesa se a comissão de inquérito tivesse sido criada?

Segundo a Bíblia, Judas Iscariotes foi o apóstolo de Jesus que o traiu por 30 moedas de prata. Mas, curiosamente, Judas entregou as 30 moedas aos sacerdotes e aos anciãos depois de Jesus ter sido condenado. Terá sido este acto resultado do seu arrependimento?
Judas era Zelote e responsável pelos assuntos financeiros. Teria havido outros interesses por trás da sua traição a Jesus? Ao fazer com que Jesus fosse preso, quereria Judas conduzi-lo à revolta? Jesus sabia de antemão do plano de traição de Judas, mas não o expôs, não ofereceu resistência.

A aceitação da prisão por parte de Jesus terá levado Judas a entregar as moedas e, posteriormente, a suicidar-se como forma de reparação pela sua traição?

Quem pela espada mata, pela espada morre. Quem recorre à intriga para destruir os seus inimigos, por ela será destruído. O que se passa actualmente em Hong Kong pode servir de lição a Macau. Quem negociar com o Demónio acabará inevitavelmente por ir ao encontro da perdição!

15 Set 2019

Democracia. HK style…

[dropcap]D[/dropcap]igamos que se chama Joyce. É indonésia e veio para Hong Kong trabalhar como criada porque no seu país não é fácil levantar cabeça. Os patrões chineses da ex-colónia britânica permitem-lhe tirar uma folga de quinze em quinze dias. Aos domingos. Mas não pensem que se trata de um dia. Não: apenas 12 horas, das 7:30 às 19:30.

Ora no outro domingo, por causa das manifestações, dos protestos e da violência, Joyce atrasou-se meia-hora. É que o metro estava parado e os autocarros não funcionavam. Ao chegar a casa foi confrontada com uma berraria. “Nunca mais isto pode acontecer! Ai de ti que te voltes a atrasar”, ameaçando mesmo alguma brutalidade física.

Estes fantásticos patrões pagam a Joyce 4500 dólares de HK (+ ou – 450 euros), dos quais 2000 vão para a agência que lhe arranjou o emprego. Entretanto, pouco depois de ter chegado a casa, o filhinho da família, estudante universitário, entrou e pediu para que lhe lavasse a “camisa preta”. Cheirava a esturro e a uma luta intensa pela democracia. A que lhes interessa. Sem dó nem piedade.

É verdade: Hong Kong precisa de uma revolução.

15 Set 2019

Atão e os amaricanos?

[dropcap]A[/dropcap]tão os amaricanos?!” é a morte da argumentação, a resposta imediata de quem não tem resposta e quer desviar a conversa para outro assunto. A avaliar pela quantidade de vezes que se vê esta pérola de relativismo, até parece que está cientificamente provado que quem critica o Governo chinês é, por inerência, um ianque defensor do império norte-americano.

Só pode, não é? Quem se insurge contra violações dos direitos humanos contra os uigures tem, obrigatoriamente, um busto do Nixon na mesa de cabeceira, sonha com o sorriso torto do Dick Cheney, idolatra o Pinochet, defende todas as guerras, é peão do Pentágono e da CIA, por aí fora. Com sentido de humor e ironia, proponho aplicar este absurdo a situações quotidianas. Sei lá, alguém queixa-se que a cerveja não está suficientemente fresca. “Ai não está fresca, então e os ataques de drones no Afeganistão?!”, e pronto, a temperatura da cerveja passa a ser irrelevante.

Um amigo revela que tem o pé dormente. “Ai está dormente?! Então e o regime de tortura permanente de Guantánamo e os black sites da CIA, ãh?!” Resolvido. Vemos este tipo de lógica também aplicado à dicotomia Hitler vs Estaline. Se alguém menciona os horrores do Holocausto só pode ser fã das depurações estalinistas. Um mundo a preto e branco, facebookiano, onde o “whataboutism” impera. Um mundo que pertence às trincheiras da doutrina, à fé fervorosa num determinado quadrante político, ao fundamentalismo.

15 Set 2019

Modern Love

[dropcap]V[/dropcap]ivemos em tempos que privilegiam a vontade individual. Certamente já se confrontaram com o individualismo que co-existe com a tentativa de vivermos em paz e harmonia social. Somos egoístas, competitivos, invejosos (talvez porque nos é exigido) e ainda é suposto sabermos relacionarmo-nos com o(s) outro(s). Este individualismo exacerbado que coloca a meritocracia num pedestal (todos são capazes de tudo) peca em dar conta das fragilidades individuais e de como precisamos dos outros para ultrapassá-las. O grande segredo para a felicidade são os outros – e a partilha e conforto que nos possibilitamos nessas relações.

Nas relações amorosas em particular, que pressupõe uma partilha de fragilidades, um sobrepor de existências, de alegrias e de medos, vemos a fórmula 1+1=3 para dar conta da complexidade de uma relação íntima. O sucesso de uma relação depende de uma combinação entre eu, tu e nós como entidades que existem e co-existem, com limites às vezes mais claros, outras vezes menos. A complicação desta fórmula assenta precisamente na tensão entre ser individual e colectivo e de perceber que limites precisamos de estabelecer. Ninguém ainda definiu um equilíbrio saudável entre o que é a gestão emocional individual e dar conta das dificuldades em conjunto. Ao que damos prioridade? A nós próprios ou ao outro?

O amor como literatura bem que enfatiza a entrega completa. A entrega que nos faz dissolver com o outro e onde os limites do que nós somos e por onde vamos ficam completamente confusos. Ficamos à mercê das nossas emoções e dos nossos apetites, esquecemo-nos de nos individualizarmos e isso não precisa de ser mau. Mas não fica para sempre assim. Isso seria consumirmo-nos e deixarmos de existir por completo. A possibilidade de individualizarmo-nos nem aparece na literatura porque talvez não seja romântico. A gestão emocional que pressupõe continuar a ser quem somos, não totalmente como éramos, mas uma nova versão de nós próprios, é o grande segredo do amor. Um segredo que não é desvendado com uma solução perfeita. É daqueles segredos que é explorado por tentativa e erro, em todas as relações que temos, e com todas as partilhas que deixamos que aconteçam. Talvez os mais românticos sejam os que se atiram de cabeça sem olhar para os seus umbigos, talvez os mais práticos sejam mais exigentes com os seus limites. Há muitas formas de amar. Só que a coisa relacional funciona se o amor próprio e o amor pelo outro constituírem sistemas de alimentação interligados, mas não dependentes um do outro. Onde o cuidado é co-partilhado e co-responsabilizado e não é de exclusiva responsabilidade de qualquer das partes.

As sociedades ditas individualistas e colectivistas provavelmente apresentam expectativas muito distintas de amor romântico e do significado de ‘nós’. Como um jogo de necessidades, sociedades que pressupõem ligações mais próximas ou distantes devem alterar as expectativas do amor romântico também. Não saberemos bem como, porque a natureza do amor romântico continua a ser um segredo, um mistério que por mais reflexão literária e investigação científica continua a ser absurdamente incompreendido. Em tempos de exaltação do auto-cuidado, do mindfulness e da gestão individual das nossas emoções e dificuldades num ocidente neoliberal, corremos o risco de não ver para além de nós próprios. Podemos até chegar a extremos onde o outro deixa de existir por completo. Só que o amor não é uma seta de cupido num vácuo social.

O amor fazemo-lo sempre acompanhados.

11 Set 2019

A resposta que faltava 

[dropcap]A[/dropcap]ssistimos esta segunda-feira a uma reacção rara por parte do Comissariado de Auditoria (CA) após a publicação de um relatório, no sentido em que voltou a responder a fracas justificações dadas pelos membros do Governo.

A situação foi tão caricata que os Serviços de Administração e Função Pública tiveram a ousadia de dizer que sim, que concordavam com o relatório, para depois vir publicamente negar as suas conclusões. Ho Veng On, comissário da Auditoria, demonstrou profissionalismo e transparência ao responder a Kou Peng Kuan, que mais não fez do que dar respostas vagas e pouco compreensíveis aos media.

Não se compreende, à luz das conclusões do relatório do Comissariado, que se tenham feito tantas revisões legislativas para ficar tudo na mesma. Não se compreende como é que há pouco mais de uma dezena de trabalhadores nos SAFP para coordenar o processo de recrutamento centralizado.

Não se percebe porque é que Kou Peng Kuan nega evidências que foram confirmadas pelos próprios serviços públicos. Fazem falta mais respostas por parte não apenas do CA, mas também do Comissariado contra a Corrupção (CCAC), para existir um debate de ideias sobre aquilo que é publicado. Quantas vezes ficamos com a sensação de que sai um relatório e nada acontece, aceitando-se este tipo de reacções vagas por parte dos visados nos documentos?

Veremos o que verdadeiramente muda nos SAFP, que já em 2018 tinha sido visado num outro relatório do CA relativamente à implementação do Governo Electrónico. O que mudou, nesta área, desde então?

11 Set 2019

Oficialmente afastada

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 4, Carrie Lam, Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Hong Kong, anunciou oficialmente que a proposta de emenda à Lei de Extradição de Condenados em Fuga seria retirada. O afastamento da proposta será apresentado pelo secretário da Segurança no Conselho Legislativo, assim que os trabalhos do plenário sejam retomados. O afastamento da revisão da lei de extradição não está dependente da votação dos deputados. A proposta de emenda à lei foi apresentada e elaborada pelo Governo. De acordo com a lógica do processo legislativo, o anúncio do afastamento da proposta de emenda à lei, a ser feito pelo secretário da Segurança, em nome do Governo, é o suficiente para que se venha a dar o assunto por encerrado.

Tendo em conta a situação que se vive actualmente em Hong Kong, este anúncio representa um passo muito positivo. Em primeiro lugar, vai dissipar as dúvidas da maioria dos manifestantes. A partir do momento em que o secretário da Segurança declare a retirada oficial da proposta de lei, deixará de existir o perigo de ela vir a ser debatida no Conselho Legislativo. Desta forma, a situação fica mais clara do que quando existia apenas a “suspensão da revisão da lei”.

Em segundo lugar, esta decisão vem ao encontro das reivindicações que os manifestantes têm vindo a fazer ao longo dos últimos dois ou três meses. Uma vez satisfeita esta condição, a agitação irá diminuir. Se com esta decisão se conseguir acabar com os protestos em Hong Hong, será efectivamente algo fantástico.

Esta decisão já provocou diversos comentários positivos e negativos. Em geral, as pessoas congratulam-se com esta medida, no entanto criticam-na por ter sido tomada demasiado tarde, só depois de ter havido imensas manifestações e protestos violentos. Se esta resolução tivesse sido apresentada antes de todos estes distúrbios, muitos dos problemas teriam sido evitados.

Agora, depois de toda esta explosão de violência, será esta decisão suficiente para acalmar os ânimos? Esta questão tem suscitado muitas reservas.

Mas, independentemente de todas as reticências, podemos ter a certeza que a declaração de que a proposta de lei não vai avançar, vai ajudar a aliviar a atmosfera de tensão que se respira em Hong Kong. Algum impacto positivo terá.

Além do anúncio do cancelamento da proposta de revisão, o Governo de Hong Kong também propôs que não fosse criada nenhuma comissão independente para averiguar os incidentes sociais. Essa medida será substituída, pelo ingresso de mais dois membros no IPCC (Conselho Independente de Reclamações Policiais). O IPCC vai contratar cinco peritos estrangeiros na qualidade de conselheiros. Esta decisão já provocou algum descontentamento na cidade. É do conhecimento geral que o IPCC só tem capacidade para investigar a acção da polícia no decurso dos incidentes. Os motivos que desencadearam os conflitos, o seu impacto, a sua evolução e os efeitos que provocaram na comunidade, não podem ser averiguadas pelo IPCC, porque este organismo não tem autoridade para conduzir esse tipo de investigação. Assim sendo, o IPCC não pode substituir uma comissão de inquérito independente.

A terceira proposta do Governo visa promover a compreensão das necessidades da população, através do diálogo directo entre os responsáveis governamentais e o povo, para que, em futuras acções administrativas, se possa agir de forma mais adequada e que vá mais ao encontro dos anseios populares.

A última proposta centra-se na contratação de peritos para ajudarem a estudar os diversos aspectos da sociedade de Hong Kong. Por agora, é impossível saber ao certo que assuntos específicos vão ser analisados, nem que recomendações esses peritos irão fazer. À partida, se estes estudos forem bem sucedidos, irão ajudar a encontrar formas de aliviar os antagonismos que se vivem em Hong Kong. Pelo menos, a disparidade que existe entre pobres e ricos é um problema que deveria ser resolvido imediatamente.

Embora as decisões do Governo de Hong Kong possam não vir a corresponder às reivindicações de todas as pessoas envolvidas nos protestos, vão sem dúvida ajudar a aliviar as tensões actuais e, além disso, algumas das exigências foram efectivamente satisfeitas.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
10 Set 2019

RAEM é RAEM

[dropcap]A[/dropcap] pretexto dos tumultos em Hong Kong, em que só se pode ter uma opinião preta ou branca, sem nuance ou racionalidade, tenho ouvido/lido muitas vezes “Macau é China” ou “Hong Kong é China” vindo de portugueses e macaenses. Permitam-me beliscar a vossa bolha de privilégio e o conforto de ter um passaporte português na algibeira. Macau e Hong Kong são Regiões Administrativas Especiais da República Popular da China, não são Fujian, Guangdong ou Yunnan. Pelo menos, por enquanto.

Macau e Hong Kong acordaram com Pequim um período de transição durante o qual mantêm as suas jurisdições, um elevado grau de autonomia, governo constituído pelas suas gentes e um segundo sistema que blinda os territórios e os seus ordenamentos jurídicos da selvajaria legal do interior. A RAEM é a RAEM da China, mas é, fundamentalmente, a RAEM. Não é um bairro de Zhuhai.

Não abdiquem de algo que durante séculos tornou Macau numa cidade única, com características vantajosas para as suas gentes. Também se ouve muito o “se não gosta, vá para a sua terra”, um argumento tão convincente como a emanação QI dois dígitos “Atão e os amaricanos, ãh?!”.

Curiosamente, a lógica mantém-se. Se não gostam da RAEM e o amor à pátria é assim tão grande que a libertinagem do segundo sistema vos magoa, há uma solução para isso: Vão para Fujian, Sichuan ou Yunnan, onde a realidade em muito suplanta o idílico paraíso descrito pelo China Daily. Não têm de esperar até 2049. Ou então calem-se e respeitem os tratados assinados e a Lei Básica. Aliás, por favor, não se calem enquanto podem falar. Usem dessa magnífica capacidade que o sistema em que cospem vos permite. Irónico, não é?

10 Set 2019

Haverá um direito à verdade?

[dropcap]P[/dropcap]onderei se valeria a pena comentar as afirmações produzidas pelo Senhor Secretário para Segurança, na conferência de imprensa que promoveu em 3 de Setembro pp., quando a memória ainda está bem fresca. Depois, avaliando aquele que é o interesse dos residentes de Macau e a gravidade do que foi dito por tão alto responsável, acabei por condescender em que poderia haver interesse em escrever alguma coisa. Pouca, apenas para registo histórico sobre o que interessa.

Começarei, todavia, por resumidamente (isto é um texto jornalístico, não é um parecer jurídico) reafirmar que o exercício do direito de reunião e manifestação não precisa de qualquer autorização para poder ser exercido. Nunca precisou. É isso que está no artigo 1.º da Lei 2/93/M, de 18 de Maio, não obstante as diversas alterações que foram introduzidas ao longo dos anos:

“1. Todos os residentes de Macau têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, em lugares públicos, abertos ao público ou particulares, sem necessidade de qualquer autorização.
2. Os residentes de Macau gozam do direito de manifestação.
3. O exercício dos direitos de reunião ou manifestação apenas pode ser restringido, limitado ou condicionado nos casos previstos na lei.”

Este é o princípio geral. Foi isto que foi aprovado pela Assembleia Legislativa. Se fosse outra a intenção do legislador teria lá ficado escrito que “todos os residentes têm o direito de se reunir (…), desde que obtida previamente a respectiva autorização”. Não foi o que lá ficou.

Como o deputado Rui Afonso também elucidou: “O reconhecimento do direito é, no fundo, a defesa contra o poder de intervenção na minha área específica. Eu tenho o direito de me manifestar e de me reunir, o Estado que não interfira nesse meu direito. Isso é uma liberdade.” (p. 242)
Esse era também o entendimento do ex-deputado Leong Heng Teng: “De acordo com a minha interpretação a expressão «tem direito» não carece de autorização, e é uma forma de garantir, ou reconhecer (…)” (cfr. ob. cit. p. 249).

O próprio Secretário para a Administração e Justiça quando participou na discussão e aprovação da lei referiu: “E também no Direito Internacional tornado, recentemente, extensivo a Macau, no seu artigo 21.º, se reconhece, também, como na Constituição Portuguesa, o direito de reunião pacífica. Não se trata apenas de uma questão gramatical, mas sim de um caso de conteúdo e de distinção entre uma questão que o Estado deve garantir através de prestação social e um direito a que quase se chamaria natural, que não precisa de ser outorgado pelo Estado a qualquer cidadão. Nasce com o cidadão, nos seus direitos individuais perante o Estado. (p. 246, 247)

Aliás, ainda na discussão que ocorreu em plenário, em 27/04/1993, o então deputado Neto Valente teve oportunidade de referir, em esclarecimento ao deputado Ng Kuok Cheong, que “[n]ão é necessário pedir ao Leal Senado que dispense lugares para a manifestação. Se a pessoa quiser fazer uma manifestação na via pública, comunica ao Leal Senado, não precisa pedir licença para lhe reservarem espaço para fazer a manifestação” (cfr. Direito de Reunião e Manifestação – Colectânea de Leis Regulamentadoras de Direitos Fundamentais, 2.ª edição, p. 283). Comunicar não é o mesmo que pedir autorização. Pelo menos não era, até há bem pouco tempo.

Portanto, aquilo que o Secretário para a Segurança disse a este propósito, salvo o devido respeito, está profundamente errado e induz os cidadãos em erro, o que é inadmissível. Se o objectivo do Secretário for o de alterar a lei, para ficar mais ao seu gosto, então que se promova a alteração e logo se verá o que daí resulta.

Depois, a lei também esclarece que o direito de reunião e manifestação apenas pode ser restringido ou condicionado nos casos previstos na lei. Esta é uma excepção ao princípio geral. Por isso lá está o apenas.

E quais são os casos em que é admissível a restrição ou condicionamento? A lei refere que são aqueles em que se visem fins contrários à lei. À lei de Macau, evidentemente. Não em relação à lei da RPC ou de Hong Kong, sendo certo que tal avaliação terá de ser feita em função dos dados disponíveis, e não da imaginação, dos temores ou das convicções políticas de quem analisa.

Por outro lado, a lei prevê que seja enviado um aviso prévio às autoridades (cfr. art.º 5.º), não para que estas autorizem a manifestação, mas para que tomem boa nota do evento e possam desencadear as medidas de segurança pública indispensáveis à manutenção da ordem e tranquilidade pública, designadamente verificando se tem finalidade ilegal, conhecerem o horário e o trajecto, impondo se necessário algumas restrições, se for o caso, e estiverem devidamente fundamentas, e também evitarem a realização de outras manifestações ou contramanifestações que interferissem e pudessem perturbar o livre exercício dos direitos dos participantes, podendo, para tanto, destacar agentes seus nos locais adequados para garantir a segurança dos manifestantes (cfr. art.º 10.º).

Importa ainda esclarecer a opinião pública de que mesmo que se tratasse de uma manifestação espontânea, “feita em reacção imediata a qualquer evento, sem qualquer convocação ou preparação” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, vol. I, p. 640), continuaria a merecer de protecção constitucional e legal na RAEM, só podendo ser interrompida se verificados os pressupostos do art.º 11.º do diploma citado.

Na ocasião, a Presidente da AL disse que: “[a]s manifestações espontâneas, na sequência de qualquer evento, foram sempre permitidas sem convocação ou preparação, desde que sejam pacíficas, não armadas, e mesmo sem pré-aviso. O pré-aviso não é considerado um requisito obrigatório para essas situações”. E a isto acrescentou Rui Afonso: “É preciso é que seja mesmo espontânea. Ou seja, se houver uma prévia convocação da manifestação, mesmo do género «quando sairmos daqui vamos para ali», isso não será permitido. Portanto, desde que haja elementos indiciários de que quem convoca a reunião, já se preparava para promover uma manifestação, deixa de haver espontaneidade, e usa-se de um recurso para escamotear um processo de prévias intenções. Quando as manifestações são passíveis de convocação, ou se sucedem a reuniões, a espontaneidade não existe, logo, estão sujeitas aos condicionalismos que a lei determina. A lei não pode ser defraudada com o argumento falacioso da espontaneidade, quando se torna notório que esta não existiu, e que a manifestação foi planeada.” (cfr. ob. citada, p. 275)

Posto isto, importa sublinhar que a tal manifestação (vigília), cuja realização foi impedida pela PSP no final da tarde do dia 8 de Agosto, para ter sido proibida devê-lo-ia ter sido com base em fundamentos legais, e não com base em suposições e considerações que, se já eram descabidas ao tempo, com a conferência de imprensa do passado dia 3 de Agosto se tornaram ainda mais evidentes.

O argumento quanto à ocupação da Praça do Leal Senado também não colhe porque à hora prevista há normalmente poucos turistas nesse local. A essa hora os excursionistas já recolheram.

E, de acordo com os horários chineses das refeições, ou já comeram ou estão a comer.
Referir a colocação de arranjos decorativos é um argumento que não lembraria a ninguém. Então as obras de decoração na praça são mais importantes do que assegurar o exercício de direitos fundamentais, de “direitos de máximo escalão que beneficiam, ou assim deve suceder, de estatuto e tutela especialmente reforçados?” (cfr. Cardinal, Estudos de Direitos Fundamentais, 2015, FRC, p. 554).

De igual modo, dizer que os Tribunais de Hong Kong já decidiram é mais um argumento inqualificável para impedir o exercício do direito de manifestação, mais a mais vindo de um magistrado. Então as decisões dos tribunais de Hong Kong têm aplicação directa em Macau? Fazemos parte da mesma ordem jurídica? E um magistrado atreve-se a dizer isso numa conferência de imprensa?

Já quanto à alta possibilidade de vir a ocorrer um crime, gostaria de perguntar se estava em causa o “crime de solidariedade contra a violência policial”? Onde está tipificado? Se este argumento valesse, então o simples facto de os tribunais da RPC condenarem o exercício do direito de opinião seria suficiente para em Macau se proibir o direito de manifestação? No segundo sistema, a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião e de manifestação não são crime, e só o poderão ser havendo violação da lei. Ninguém vai preso (ou não devia ir), nem é ostracizado (ou não devia ser) por pensar de maneira diferente.

E se for manifestada solidariedade contra a violência policial isso tem “natureza difamatória grave”? Porque se parte do pressuposto de que houve “violência policial”? E não houve? Há milhares de imagens sobre a violência em HK, tanto por parte de manifestantes como por parte dos polícias. É porque os tribunais de HK condenaram alguns manifestantes pela prática de actos ilegais que se vai deixar de condenar a violência policial? Pela mesma lógica, como na RPC nenhum tribunal confirmou até hoje o número de mortes em Tiananmen, nem houve qualquer condenação oficial da violência, isso quer dizer que não aconteceu nada em 4 de Junho de 1989? O comunicado do Comité dos Direitos Humanos da ONU sobre o que agora aconteceu em HK também tem “natureza difamatória grave”?

Por outro lado, para se dizer que a população de Macau tem pontos de vista contrários aos dos residentes de Hong Kong é preciso fundamentá-lo. Perguntou isso à população de Macau? Quando? Foi por sondagem?

Finalmente, o argumento a meu ver mais grave é o que faz apelo à nacionalidade para justificar a arbitrariedade. Dizer que o “amigo Neto valente” tem nacionalidade portuguesa, sendo público que também tem a chinesa, a qual lhe terá sido oferecida (cfr. Público, Macau é mais seguro que Portugal, 18/12/2009), levanta a questão de se saber o Secretário para a Segurança vem invocar uma nacionalidade que não merece protecção na China por quem possua a nacionalidade chinesa. Será que a RPC passou a reconhecer o direito à dupla nacionalidade dos seus cidadãos? Essa seria uma novidade.

Quanto ao mais, a fiar-me no que li e ouvi, não há qualquer interesse em perder tempo a comentar as infelicidades alheias. Já bastam as nossas.

Sim, também tenho os meus momentos maus. Sou o primeiro a reconhecê-lo. E não suportaria que pelo meu silêncio, como vejo fazerem a outros, me julgassem por desonestidade intelectual.

Eu não disponho, nem quero dispor, das liberdades, da segurança e da vida dos outros. Procuro antes defendê-las. Faço-o pelos outros, também por mim. Porque eu próprio tenho medo de as perder definitivamente. E não gosto de sentir que estão a querer enganar-me. A mim e aos que ficam calados. Daí estas linhas, abertas à vossa crítica, mas pelas quais desde já me penitencio, agradecendo a paciência e a compreensão de quem me leu até aqui.

P.S. Aproveito para dar os meus parabéns ao HojeMacau, ao CMJ e a toda a equipa pelo 18.º aniversário do jornal. Aos poucos vamos todos atingindo a maioridade.

9 Set 2019

Mundo estranho

[dropcap]N[/dropcap]o âmbito das comemorações do 70.º aniversário da criação da República Popular da China está a ser organizada uma exposição sobre Mao Tsé-Tung. Sobre o líder chinês pouco tenho a dizer, tem tanto de marcante como de polémico, mas é sem dúvida a grande figura da Histórica recente chinesa e é uma individualidade incontornável da História mundial.

Lançou as bases ideológicas para a emergência da China como potência moderna. No entanto, a exposição permite-nos viver uma daquelas realidades paralelas. Um dos traços que sempre marcou o pensamento de Mao foi o combate ao capitalismo. Na visão de Mao, o capital corrompia o proletariado e era por isso um inimigo natural.

É neste contexto, pelo menos ao nível ideológico, que surge a Revolução Cultural. Claro que a história avança, mas Mao manteve-se sempre muito persistente na oposição ao capital. Todavia o que me deixa mesmo perplexo é que mais de 40 anos depois da morte do fundador a sua criação seja celebrada com visitas organizadas por empresas que exploram o jogo.

Todos percebemos que as visitas são políticas e que a vontade é mostrar que se é patriótico e se apoia o regime. Muito bem, é compreensível. Mas mesmo assim não posso deixar de me questionar: O que pensaria Mao se soubesse que está a ser celebrado por pessoas que vivem daquilo que ele sempre condenou e combateu? É mesmo caso para dizer que a vida dá muitas voltas e o mundo é um lugar muito estranho…

9 Set 2019

Teremos sempre Paris

[dropcap]A[/dropcap]gora é na Europa que passo menos do meu tempo, em visitas ocasionais, geralmente combinando afazeres profissionais com lazeres diversos. Desta vez a visita começou em Lyon, depois de fugaz passagem por um dos aeroportos de Paris, não mais que o suficiente para entrar no comboio de alta velocidade que me levaria a Lyon, a cidade do Rhone e do Saone, os dois rios que percorrem a cidade e convergem para “La Confluence”, uma renovada zona urbana que acolhe o magnífico museu onde se cruzam culturas de tempos e geografias diversas num edifício de arrojada e espetacular arquitetura contemporânea.

Detenho-me nas estações e aeroportos, no entanto, que esses espaços de confluência de modos diversos de transporte e multidões mais ou menos aceleradas são também um espelho do nosso comportamento colectivo. Impressionam-me – porque já não estava habituado a este singular espetáculo – as formidáveis metralhadoras que ostentam os diligentes agentes da autoridade, esses que detém o monopólio do exercício da violência nas sociedades democráticas avançadas, em permanente demonstração de que, quando chegar a hora, estão prontos para matar. Olham com desconfiança quem passa, talvez para matar o tédio de quem transporta tão magnífico instrumento de avançada tecnologia para matanças generalizadas sem lhe dar o apropriado uso.

Nas raras vezes em que os vejo em acção, dirigem-se a adolescentes transportando mochilas, provavelmente escolares. São negros, invariavelmente. Não vi nenhum a ser detido, nem nada que se parecesse. Mas é assim a França contemporânea, o país dos sonhos de Liberdade.

Também as saídas das principais estações ferroviárias para as praças públicas nos revelam muito da Europa contemporânea, neste caso na versão de economia avançada e desenvolvida que a França representa. É muito diversa a composição etária ou a origem geográfica das muitas pessoas que recorrem à mendicidade, os excluídos entre os excluídos, os muito pobres que se arrastam pelas ruas sem conseguir dissimular a vergonha e a humilhação, os jovens e velhos, casais e solitários, africanos ou europeus, por vezes sentados no chão, em colchões encardidos, ou até em tendas de campismo. É também assim a França actual, o país dos sonhos de Igualdade, que foram morrendo perante uma indiferença mais ou menos generalizada: afinal a pobreza não toca a todos, não toca sequer a essa maioria que afinal ainda beneficia de uma vida cómoda e agradável. É a França, país dos sonhos de Fraternidade.

Saído da estação a um domingo de manhã dirijo-me para o eléctrico, compro o bilhete e espero, ao sol, por falta de protecção adequada. Espero demasiado, com o desconforto de quem fez durante toda a noite uma longa viagem e agora suporta o confronto diretco com a exposição solar a mais de 30 graus. Resolvo que mais de 15 minutos é um despropósito e dirijo-me aos vários painéis informativos afixados na paragem. Lá está: num pequeno papel precariamente afixado informa-se, em francês, que o eléctrico não está a funcionar. Paciência. E paciência também para quem comprou o bilhete, que a máquina de venda, essa sim, continua a funcionar.

Sempre vou informando as restantes pessoas que vieram ao mesmo engano e que não sabem ler francês. Afinal, seria só o primeiro de vários incidentes com a falta de informação durante a minha estadia entre Lyon e Paris.

Falha a informação mas sobram as obras: pó e ruído por todo o lado, cidades em permanente arranjo – nada de grandes obras visíveis mas um grande número de pequenas intervenções que acabam por fazer do espaço público um improvisado estaleiro, mais ou menos desagradável consoante a nossa disposição para conviver com o barulho e as estruturas temporárias que ocupam um espaço público que até parecia desenhado para proporcionar agradáveis momentos de lazer, ou pelo menos garantir uma agradável circulação e mobilidade nas cidades. Também é generalizadamente precária a prestação dos mais variados serviços, incluindo naturalmente os da hotelaria, com os quais convivo mais regularmente durante a estadia: são muitos menos do que os que deveriam ser os trabalhadores envolvidos, é visível o esforço que fazem para que tudo funcione, mas falta gente, a avidez do lucro e a evidente exploração do trabalho estão também aqui, em todo o lado, em toda a evidência, para quem visita a França, uma das mais desenvolvidas economias europeias.

Há, no entanto, muito que ainda funciona, eventualmente pior do que seria desejável, mas ainda assim com suficiente eficácia para que se possa disfrutar da magnífica arquitectura e estrutura urbana das cidades, da importância cultural dos museus ou do prazer dos cafés, das esplanadas e da vida na rua. E da comida, certamente da comida, sempre excelente, frequentemente inovadora, à procura de novas recombinações, a fusão de culturas que a Europa devia representar manifesta-se, pelo menos, à mesa. Entre deliciosas misturas de ingredientes e técnicas da América Latina, da Ásia, do Médio Oriente, da África ou de várias zonas da Europa, a comida em França continua a ser tratada como a arte que deve ser. Mas não para usufruto de todos, evidentemente.

Os restaurantes estão sistematicamente cheios e há uma imensa maioria de residentes locais e turistas ocasionais que os frequenta. Mas logo ao lado estão os sem-abrigo, os mendigos, os pobres os excluídos da rica civilização europeia, os que têm direito a pouco mais do que nada.

Mais do que nunca, os tempos que correm parecem mostrar que teremos sempre Paris, para nos lembrar como a selvajaria do capitalismo contemporâneo destruiu as utopias perdidas da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, para recuperar a repressão, a estratificação e a indiferença.

6 Set 2019

Guarda-chuvas em 2019?

[dropcap]C[/dropcap]arrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, retirou finalmente do Conselho Legislativo a proposta de lei da extradição que gerou o caos político em que a região actualmente vive.

A governante já disse que a decisão não foi de Pequim e sim dela mas, independentemente disso, resta saber como fica o território depois da retirada da proposta. No que diz respeito à relação do Governo com a população, fica como aqueles relacionamentos que já se iniciaram e terminaram uma série de vezes: gastos, cansativos, sem qualquer ponta de credibilidade.

Carrie Lam pode ter retirado a proposta de lei, mas a relação com os residentes, que já era má, ficou ainda pior. Quanto ao movimento cívico, os activistas já vieram dizer que é importante a retirada da proposta de lei, mas que não chega. Quais serão os próximos capítulos desta novela política em busca de mais democracia para Hong Kong?

Poderemos ver um novo movimento de guarda-chuvas em 2019, mas sem os guarda-chuvas? Até onde vai a mobilização das pessoas e a definição de uma estratégia que falhou em 2014? Aguardemos.

6 Set 2019

As alterações climáticas e as extinções em massa

[dropcap]A[/dropcap]s alterações climáticas, desde há cerca de duas dezenas de anos, têm vindo a ser assunto tratado quase diariamente nos meios de comunicação social. Na realidade, alterações do clima sempre ocorreram através dos tempos. A grande diferença é que, no passado longínquo, essas variações se processavam lentamente durante milhares ou mesmo milhões de anos, enquanto que desde o início da era industrial, há menos de 200 anos, as consequências das alterações climáticas, atribuídas a causas antropogénicas, têm vindo a acontecer em ritmo acelerado.

Vejamos então como o clima, ou seja o comportamento médio das condições atmosféricas, influenciou a vida na Terra.

Passaram cerca de 13,8 mil milhões de anos desde do Big Bang, altura em que se formou o universo, e cerca de 4,5 mil milhões de anos que a Terra se formou como resultado de agregação de matéria resultante dessa explosão inicial. A nossa Terra, então incandescente, foi arrefecendo pouco a pouco, durante milhões de anos. Vários gases ficaram retidos pela força da gravidade, formando uma atmosfera onde sobressaíam o hidrogénio, o hélio, o metano e o azoto. À medida que a camada exterior do globo terrestre (crosta) arrefecia e solidificava, as camadas mais interiores mantinham-se em grande parte em fusão. A crosta ainda hoje é perfurada por matéria fundida que é expulsa através dos vulcões que injetam na atmosfera diferentes gases, entre eles o dióxido de carbono. Este gás, à medida que a sua concentração aumentava, contribuiu para que tivesse surgido vida na Terra, na medida em que faz com que as amplitudes térmicas não tenham valores exagerados, como se a atmosfera se comportasse como uma estufa. As suas características permitem que absorva a radiação solar, em grande parte de pequeno comprimento de onda, e emitam radiação de grande comprimento de onda, sob a forma de calor, tal como as estufas.

É provável que a água, na forma de gelo, tenha surgido no nosso planeta trazida por corpos celestes (cometas e asteroides) que com ele chocaram. Também é aceite que parte da água existente tenha sido aprisionada no interior do globo, e mais tarde expelida pelos vulcões, sob a forma de vapor. À medida que a atmosfera e a crosta terrestre arrefeciam, o vapor de água condensou dando origem a nuvens e a chuva que, juntamente com a água trazida pelos corpos celeste, deram origem aos oceanos, mares e lagos. O arrefecimento gradual da crosta terrestre permitiu o surgimento de formas primárias de vida constituídas por organismos anaeróbicos, para a sobrevivência dos quais não era necessário a existência de oxigénio. Milhões de anos passaram e muitos destes organismos, expostos à radiação solar, estiveram na base do surgimento de vegetais, cuja clorofila permitiu a fotossíntese, ou seja, a libertação do oxigénio do dióxido de carbono por ação da radiação solar, que, gradualmente, foi fazendo parte de uma atmosfera cada vez mais estável. A existência do oxigénio permitiu o aparecimento de organismos aeróbicos que foram evoluindo ao longo de milhões de anos, tornando-se cada vez mais complexos e transformando-se nas diferentes formas de vida que atualmente existem, e muitas outras já extintas.

A pouco e pouco a atmosfera foi adquirindo a composição que hoje apresenta, com intervalos mais ou menos longos em que havia maior ou menor concentração de dióxido de carbono. E foi esta maior ou menor concentração que, devido ao efeito de estufa, esteve na base das grandes extinções de espécies animais e vegetais, não de todas, mas pelo menos de algumas, de acordo com a interpretação de eminentes paleontologistas e paleoclimatologistas. É geralmente aceite que variações do clima tiveram grande influência nas cinco grandes extinções em massa que ocorreram nos últimos 450 milhões de anos, talvez com a exceção da extinção dos dinossauros e de outras espécies da megafauna que habitavam o globo no fim da era Mesozoica, mais especificamente no período Cretácico.

Adotamos aqui a interpretação dada ao conceito de “extinção em massa” pelos paleontólogos britânicos Anthony Hallam e Paul Wignall, que caracterizam este tipo de extinções como sendo eventos que eliminam uma proporção significativa do conjunto da fauna e flora do mundo (biota) num período de tempo geologicamente insignificante.

Com base nesta interpretação considera-se que houve cinco extinções em massa nos últimos 450 milhões de anos, com a seguinte ordem cronológica: Final do Ordovícico; Devónico Tardio; Final de Pérmico; Final do Triássico; Final de Cretácico.

Primeira extinção – Extinção em Massa do Final do Ordovícico (há cerca de 445 milhões de anos)
Calcula-se que a extinção do final do Ordovícico ocorreu há quase 450 milhões de anos e obliterou mais de 85% da vida animal no globo terrestre. Há várias interpretações sobre as causas desta extinção, sendo uma das mais credíveis a levantada pela equipa do paleontólogo Seth Finnegan e pelo geólogo Francis Mac Donald, segundo a qual a extinção está relacionada com alterações climáticas. De acordo com o registo fóssil, a vida marinha tropical sofreu grande devastação devido ao arrefecimento do oceano de cerca de 5 graus Celsius. Tudo leva a crer que este arrefecimento foi devido à diminuição drástica da concentração do dióxido de carbono na atmosfera que está relacionada com a formação da região montanhosa que abrange os montes Apalaches, e que se estendia da Gronelândia ao Alabama, devido a ilhas vulcânicas que, impulsionadas por movimentos tectónicos, pressionaram a costa leste da América do Norte, fazendo com que a crosta terrestre se elevasse. Estas montanhas recém formadas sofreram intensos processos físicos, químicos e biológicos (intemperismo) que fizeram com que se desagregassem parcialmente, de modo que os carbonatos que as formavam foram arrastados para o mar. A precipitação, ligeiramente ácida devido ao dióxido de carbono atmosférico, teve grande importância neste processo de “roubo” do carbono do dióxido de carbono da atmosfera para o fundo do mar. Consequentemente houve forte diminuição da concentração do dióxido de carbono na atmosfera, o que enfraqueceu o efeito de estufa, provocando o arrefecimento que esteve na base da breve glaciação do final do Ordovícico, o que fez soçobrar quase tudo o que era vida existente no nosso planeta.

Segunda extinção – Extinção em Massa do Devónico Tardio (há cerca de 374 milhões de anos)
Várias teorias têm sido levantadas para explicar a extinção em massa do Devónico Tardio. Uma delas, relacionada com o dióxido do carbono, recorre à diminuição da concentração deste gás na atmosfera para explicar o que se passou. Segundo ela, o surgimento de vastas zonas de florestas fez com que a concentração do dióxido de carbono diminuísse drasticamente devido à fotossíntese, o que provocou uma descida de temperatura (da ordem de seis ou sete graus), o que esteve na base de períodos glaciais que provocaram o desaparecimento de cerca de 70 a 83% das espécies marinhas. Entre os animais extintos sobressaem os placodermos, peixes cuja principal característica era a de possuírem coberturas da cabeça e tórax por uma espécie de armadura constituída por placas dérmicas. Alguns paleontólogos são da opinião de que os placodermos estão para o Devónico assim como os dinossauros para o Jurássico e o Cretácico.

Terceira extinção – Extinção em Massa do Final do Pérmico (há cerca de 252 milhões de anos)
Cerca de 100 milhões de anos após o Devónico ocorreu a terceira extinção em massa que, comparada com as anteriores, foi muito mais avassaladora, causando a quase destruição total da vida na Terra.

De acordo com vários paleontologistas, as alterações climáticas que ocorreram no final do período Pérmico foram a causa da maior extinção em massa da história do nosso planeta. Também designada por extinção do Pérmico-Triássico, foi devida essencialmente ao aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, proveniente de intensa atividade vulcânica, o que implicou aquecimento do ar e dos oceanos, os quais perderam a quase totalidade do oxigénio neles dissolvido. Perante esta situação houve uma extinção da vida marítima quase total.

Até as trilobites, que tinham sobrevivido às extinções anteriores, desapareceram para sempre. Toda esta destruição decorreu durante os quase 50 milhões de anos que durou o Pérmico, continuando ainda pelo período a seguir, o Triássico. Um artigo da revista científica americana Science, de 7 de dezembro de 2018, da autoria, entre outros, de Justin L. Penn, investigador da Escola de Oceanografia da Universidade de Washingtoni, estima que foram extintas 96% das espécies marítimas e 70% das espécies terrestres.

Estes resultados são como que um aviso sobre o risco futuro de extinção decorrente de uma diminuição da capacidade aeróbica dos oceanos, o que já está em andamento.

Quarta extinção – Extinção em Massa do Final do Triássico (há cerca de 201 milhões de anos)
Apesar de a extinção em massa do final do Pérmico ter acabado quase com a vida na Terra, algumas espécies resistiram e a vida refloresceu durante alguns milhões de anos. Foram criadas as condições para o aparecimento dos primeiros dinossauros e a proliferação de grandes répteis.

As massas continentais estavam unidas formando um supercontinente, a Pangeia, o que fazia com que a atmosfera fosse muito seca e, consequentemente, houvesse fraca pluviosidade. A quase ausência de chuva impediu o intemperismo, ou seja, a desagregação e decomposição das rochas, o que contribuiu para que a concentração do dióxido de carbono na atmosfera não diminuísse. Pelo contrário a concentração aumentou devido à intensa atividade vulcânica que, além de dióxido de carbono, injetava grandes quantidades de outros gases de efeito de estufa.

Agravando a situação, a ausência de florestas, que desapareceram quase completamente nos cerca de 10 milhões de anos que se seguiram à extinção do final do Pérmico, contribuiu para que o Triássico Inferior fosse exageradamente quente.

Milhões de anos passaram e as florestas reapareceram, assim como a chuva com grande intensidade, e a Terra voltou a arrefecer. Porém, no final do Triássico, a tragédia voltou a assediar a Terra. Uma extinção em massa ocorreu, tendo sido aventada a hipótese de um asteroide ter atingido a Terra, o que não se confirmou. É mais aceite a teoria, baseada no registo fóssil, de que o final do Triássico foi perturbado por uma atividade vulcânica muito intensa, à escala global, o que implicou injeção na atmosfera de grandes quantidades de dióxido de carbono e de outros gases de efeito de estufa, o que provocou aquecimento da atmosfera e dos oceanos. Estima-se que cerca de 76% das espécies marinhas e terrestres foram aniquiladas.

Quinta extinção – Extinção em Massa do Final do Cretácico (há cerca de 66 milhões de anos)
É aceite que há cerca de 66 milhões de anos um asteroide com cerca de 10 a 15 Km de diâmetro chocou com a Terra, provocando uma cratera com aproximadamente 150 km de diâmetro, designada por Cratera de Chicxulub, por o seu centro se encontrar próximo da atual cidade com o mesmo nome. A cratera encontra-se soterrada por sedimentos com quase 1 km de espessura, sob a Península de Iucatão e o fundo do mar, no Golfo do México.

As águas pouco profundas potenciaram os estragos fazendo com que a energia que se calcula equivalente a cerca de 100 milhões de megatoneladas de TNT causasse fragmentação e pulverização de extensas formações rochosas que foram projetadas, descrevendo trajetórias que atingiram as zonas mais longínquas do globo, caindo em parte sob a forma de meteoritos, e outra parte menos densa ficando em suspensão na atmosfera. Rochas de calcário foram vaporizadas provocando um aumento significativo de dióxido de carbono na atmosfera. Durante um longo período a luz solar esteve impedida de ultrapassar as densas nuvens de poeira misturada com gases tóxico, e a chuva ácida ajudou a aniquilar grande parte da biosfera. A existência de fósseis de peixes com areia vitrificada nas guelras, a muitos quilómetros de distância do impacto, como os que foram encontrados na formação rochosa Hell Greek, nos Estados Unidos da América, levaram os paleontólogos a deduzirem que o impacto gerou um tsunami gigantesco que invadiu vastas áreas continentais. Os dinossauros e outros espécimes da megafauna que não soçobraram aquando do impacto acabaram por sucumbir por falta de alimento. Calcula-se que cerca 75% das espécies animais e vegetais foram aniquiladas.

Este impacto é por vezes designado por evento K-T, que originou a extinção K-T, por ter ocorrido no fim do período geológico Cretácico e começo do Terciário (a letra K foi atribuída ao período Cretácico). Mais modernamente é designado por evento Cretácico-Paleogénico (K-Pg), por ter ocorrido no fim do Cretácico e princípio do Paleogénico.

Todas estas extinções decorreram ao longo de milhões de anos, na medida em que uma das suas causas, a maior ou menor concentração de dióxido de carbono, teve uma evolução em geral muito lenta. Acontece, porém, que o aumento de concentração deste gás duplicou praticamente no curto período desde o início da era industrial, o que na escala geológica é praticamente um instante. Isto leva-nos a pensar que o conhecimento da história do nosso planeta nos pode alertar para o que poderá acontecer nas próximas décadas se não se tomarem as medidas preconizadas no Acordo de Paris. As perspetivas, porém, não são animadoras.

A história da Terra ensina-nos que o excesso de dióxido de carbono na atmosfera pode levar a consequências drásticas. Compreender os eventos do passado serve para prevenir o futuro.

Justin L. Penn, no seu artigo da revista Science, sobre a extinção em massa do final do Pérmico, alertava “Because similar environmental alterations are predicted outcomes of current climate change, we would be wise to take note”

5 Set 2019

Hong Kong e o Corpo do Protesto

[dropcap]H[/dropcap]ong Kong passa um Verão de profundo descontentamento. Para além dos argumentos pró-democracia e as tensões associadas a um plano (aparentemente simples) de um país, dois sistemas, outras tensões têm surgido. As tensões do sexo e do género são invariavelmente transversais a tudo. A 28 de Agosto dezenas de milhar de protestantes juntaram-se em Hong Kong para reivindicar direitos humanos básicos que o uso do corpo no protesto parece não pressupor. Dois casos de violência sexual foram divulgados no contexto do descontentamento popular pelo regime. A vulnerabilidade dos corpos tidos como femininos tem sido amplamente discutida num lugar onde as mulheres (jovens) são tidas como materialistas e dependentes, mas que agora têm mostrado novas formas de feminilidade.

Um dos acontecimentos que despoletou esta discussão foi a da alegada violência sexual pela polícia, por terem avançado com a busca completa a uma mulher que tinha sido detida.

Despiram-na e exigiram avaliar todos os seus recantos à procura de… não se sabe bem de quê. O caso veio a público por ela, que se quis esconder no anonimato. Este episódio tão particularizado mostra a humilhação a que os corpos e as mentes estão sujeitos quando nos vemos confrontados com a autoridade. Não se sabe se haverá outros casos assim – de abuso de poder e de completo desrespeito pela dignidade do corpo e do sexo do outro.

Momentos de crise, e este em particular, vêem o materializar de representações que subtilmente existiam, de ideias liberais, democráticas – e do género, de como este é performado e contestado.

Não é por acaso que este episódio tenha gerado tanta insatisfação. As protestantes estavam sedentas por pôr na agenda a preocupação que é a normalização da violência sexual contra as mulheres. Que não se cinge à arena do protesto citadino e policial, mas também nas redes sociais, onde mulheres têm sido atacadas pelos chamados ‘trolls pró-Beijing’. O nível de discussão digital atinge níveis patéticos, com a constante humilhação sobre o significado de mulher e uma total ausência de discussão ideológica (que as ideias pró-democracia em conflito com o socialismo com características chinesas poderiam supor).

O movimento global recente do #metoo serviu de inspiração para o novo movimento de igualdade de género em protesto – #protestoo. Tal como se estão a importar os valores democráticos, este é só mais um pacote de ideias. Mais um sintoma de como certos ideais se estão a universalizar e a serem homogeneizados. Só que exportar ideais liberais e até direitos humanos como máximas universais pode induzir à falsa crença que estes são de ‘um tamanho e que cabem a todos’. O que pode não ser verdade. Acho que a história do imperialismo americano tem sido muito esclarecedora de como a homogeneização ideológica global só pode acabar mal.

Talvez toda esta situação de Hong Kong seja demasiado complexa e não haja uma solução milagrosa para resolver o descontentamento popular – seja na luta do género ou no estabelecimento de ideais democráticos (que bem sabemos que pelo mundo fora, estão pela hora da morte). Receio que estejamos perante uma tentativa de exaltação de ideais (neo)liberais de forma acrítica e assimiladora, mesmo que mascarados por valores incontornáveis como os dos direitos humanos. A luta popular é sempre admirável e não acredito que o progresso possa existir sem discussão ou confronto. Fica para sempre a questão de como a revolução política e social pode ser eficaz em tempos de globalização e homogeneização.

5 Set 2019

Lições de amor

[dropcap]N[/dropcap]a terça-feira tivemos mais uma confirmação de que a escola não é lugar para política, a menos que seja propaganda política ministrada em amorosas doses oficiais. Isto foi dito, preto no branco, por directores de escolas de Macau, quase de certeza, com a bênção da DSEJ.

Na escola não se forma, formata-se! O foco do primeiro dia de aulas foi conter qualquer vestígio de crítica ou envolvimento no que se passa aqui ao lado, porque o bom estudante fecha-se ao mundo em prol da pátria. Macau está a abdicar, de livre vontade, de ter um ambiente de ensino onde o pensamento crítico possa florescer, onde se debatem ideias, onde os alunos crescem para ser homens e mulheres independentes, com confiança para tomar o mundo. Para o sistema de educação de Macau só existe o mundo interior, o isolamento mental que quanto muito se expande ao longo da Grande Baía.

A boa escola é aquela que se assemelha a um templo de conformismo onde se aprende a regurgitar mantras, onde a resignação é recompensada e a liberdade de pensamento condenada.

E depois ainda se queixam que as empresas internacionais queiram quadros estrangeiros, em detrimento dos talentos locais que nunca ouviram falar no Hitler, Putin, Shakespeare, Mandela, Aristóteles, Elvis Presley, Salvador Allende, Picasso, Mao Zedong (fora do endeusamento propagandista). Há quase dois mil anos um filósofo grego (Epiteto) defendia que “só a educação liberta”. No século passado o brasileiro Paulo Freire completou a máxima acrescentando que “quando a educação não liberta, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Obviamente, influências externas.

5 Set 2019