Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPaisagem com vedação [dropcap]O[/dropcap] romance da alemã Christine Steinbrenner, «A Narradora» (1977), que tem a acção algures na Baviera de finais do século XIX, na casa de uma abastada família de agricultores, começa assim: «Quando os antepassados de Ulrike circunscreveram os seus terrenos com vedações, o medo da diferença assolava os campos.» É o início da história de Ulrike Rohm, uma menina que no início do romance tem 10 anos e que personifica a história do crescimento do nazismo na Alemanha. Steinbrenner leva-nos a ver o nacional-socialismo não apenas como uma consequência social e política, mas principalmente familiar. E família, aqui, é sempre visto como um ajustar os filhos às nossas convicções, às convicções dos educadores. Escreve, através da narradora – e a esta voltaremos mais tarde –, o que se passava na cabeça da mãe: «Ulrike era um prolongamento da família, por isso era necessário estar sempre a ajustar os seus comportamentos, como os vestidos à medida que ela crescia.» O nacional-socialismo é uma paisagem que se torna visível página a página, logo desde o início em que a narradora conta: «Esta família era como muitas famílias na Baviera, onde aparecia um novo modo de pensar o mundo, uma nova Alemanha, sobre os antigos alicerces dos preconceitos.» O pai de Ulrike, Heinrich, que parece estar em todo o lado sem nunca aparecer corporeamente, é uma espécie de sombra, de crença: «O seu pai não vai gostar nada de ver o seu cabelo desarranjado, Ulrike!» Ou quando a filha irrompe pela sala da casa a queixar-se que o pai tinha sido mau para ela, e a mãe lhe responde: «Não fique triste, filha, seu pai ralhou-lhe por amor. Ele não gosta de a ver a brincar com o filho do caseiro. A menina tem de aprender que as pessoas não são todas iguais. Lembra-se de quando caiu do cavalo e o pai lhe disse que tinha de voltar a montar, para não ter medo, e a menina julgou que ele estava a ser mau? Aqui é o mesmo, filha! Seu pai está apenas a ensinar-lhe como é a vida.» Aquilo que o leitor vai sentindo é que poderíamos fazer de nós outras pessoas, podíamos educar-nos para a aceitação da diferença e não para a negação da mesma. E talvez o momento mais caricato seja o do diálogo entre a mãe de Ulrike e a sua irmã, em que esta diz, a propósito do noivado de uma amiga comum com um judeu abastado de Berlim: «Qualquer dia já não há diferenças!» Outro dos pontos interessantes do livro é o modo como se vai desenvolvendo o papel do narrador ou da narradora. Até ao final do livro não sabemos quem está a narrar a história que estamos a ler. Vamos tendo suspeitas, que também vão mudando à medida que os acontecimentos vão sendo relatados. Quem é o narrador ou a narradora do livro, que nos conduz com maestria ao longo das 220 páginas, é a pergunta que o leitor vai fazendo a si mesmo como a que Ulrike fará à mãe, muito preocupada, a propósito da nova escola para onde irá: «Mas eu não vou saber quem é quem.» Mais do que o medo ao desconhecido é o medo a ficar desajustado em relação não só às regras, mas ao que é considerado certo pelo grupo a que pertencem. E o leitor também se sente desajustado em relação ao que lhe é habitual: saber quem o conduz pelo tempo de leitura. Ao longo do livro, o querer saber quem narra torna-se tão importante como saber o que está a ser narrado. Em alemão, o género fica indeterminado no título. «Erzähler» tanto pode ser «narrador» quanto «narradora». Em português, a tradução não teve como não desvendar parte do mistério, se bem que num universo predominantemente feminino dificilmente estivéssemos perante um narrador. Além das personagens de que já aqui se falou, há ainda a avó paterna de Ulrike, a amiga de infância da mãe, Ellen Heizmann, que a visita algumas vezes, e uma prima afastada do pai de Ulrike, que de cada vez que vai a casa dos Rohm causa desconforto no lar, devido ao seu comportamento excêntrico e beato. Esta prima, Johanna Drummer vivia reclusa em sua casa, nunca tendo casado, e devota de Santa Tecla de Icônio, a grande companheira de pregação de São Paulo. O primo, que se esforçava por educar a filha no protestante valor do trabalho, via esse seu ascetismo como um péssimo exemplo para Ulrike, arranjando contínuas desculpas para não a receber ou, não podendo evitar, que as suas visitas não pecassem pela demora. Trata-se de um romance duro, em que Steinebrenner nos leva por descrições, frases, pensamentos que nos incomodam, que tendem a nos fazer parar muitas vezes, como no primeiro exemplo, logo à página 14, em que Ulrike diz à mãe que matar pardais lhe dá muita paz e esta afaga os cabelos da filha com um sorriso terno e diz: «Não vá para longe.» É um livro difícil, não pela linguagem ou pelas reflexões, mas pelo quanto nos transtorna os nervos. Quase tudo nos melindra, como se a vida à nossa volta – e nós mesmos – o estado de coisas não fosse semelhante ao que nos é relatado, mais até do que na altura em Steinebrenner publicou o livro. Continuamos a ter dificuldade em aceitar a diferença e a educar-nos em grupos mais ou menos fechados. Escreve Steinbrenner, à página 147: «Aos 12 anos, Ulrike tinha já feito todas as amigas que seria preciso para atravessar a vida. A mãe sabia-o e isso dava-lhe tranquilidade.» Não apenas a família e o seu território, mas o humano visto como uma paisagem com vedação.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasStefan Zweig «Suavemente paira o decorrer das horas sobre os cabelos já grisalhos Pois que só ao esgotar da taça se torna bem nítido o seu fundo dourado…..» [dropcap]P[/dropcap]equeno excerto de um dos últimos poemas de Stefan Zweig um escritor maior que o seu tempo de vida, maior que todas as fugas, e surpreendente, ao terminar os seus dias tal como entrou, pela poesia: o seu primeiro livro “Silbert Saiton” relembra-nos isso. Mas são as suas memoráveis biografias no chamado Romance Histórico onde mais se evidenciou, nunca esquecendo o novelista, o contista, o ensaísta, num ritmo de trabalho constante e fecundo. Stefan foi um homem multicultural, judeu austríaco que se fora diluindo por países onde em crescendo e proporcionalmente também se ia torturando pelo destino das suas gentes. Nasceu em Viena em 1881, ainda capital do antigo Império Austro-Húngaro e muito cedo inicia a sua acção literária num jornal sionista vienense e em 1917 escreve então aquela que será a sua obra mais pungente «Jeremias», poema dramático, peça de teatro, num mergulhar até raízes profundas quando ele mesmo se via já braços com o seu próprio destino. É o começo do seu êxito literário. Mas este autor de biografias escreve a sua própria realidade de vida numa obra densa e de rara qualidade em «O Mundo de Ontem» autobiografasse por assim dizer, mas é bem mais do que isso, ele fala-nos sobretudo de um mundo anterior a 1914 e prossegue até aos anos quarenta enunciando os perigos de um tempo entre duas guerras e refletindo na facilidade que os regimes possuem de gerar monstros. Por isso, tem a matéria justa que serve de reflexão ao tempo presente e se foi de ontem em muitas formas de abordagem bem que podia ser de agora. Enquanto ensaio autobiográfico é de uma riqueza imensa resultado da sua memorável capacidade de limpidez de raciocínio e daquele encanto intraduzível… mas é sobretudo o seu desfiar de situações e inquietações que se formulam em interrogações a este humanista, pacifista, herdeiro dos medos, que ele ganha o contorno urgente de uma releitura. Zweig fora bibliotecário durante a guerra numa repartição de informações militares em 1915, já depois de ter visitado a Índia e a América onde assistiu à abertura do canal do Panamá. Porém, a sua ida à Polónia numa missão, deve-o ter deixado chocado – soldados do Czar e judeus polacos – tanto, que a peça inaugural onde convergem todos os seus horrores, morte, destruição, fá-lo mergulhar nas ruínas de Jerusalém e no desaparecimento do reino de Samaria – paralelismo traumático – e só quando em 1933 Hitler é nomeado chanceler a sua fuga da Europa se prepara. Naturaliza-se inglês, segue de novo para os Estados Unidos e vai para o Brasil, ele que escrevera já sobre Fernando de Magalhães numa das suas célebres biografias e apaixonado pelo país acrescenta ainda «Brasil, um País do Futuro» crendo mesmo, nós que daqui o contemplamos, que nunca se sentira tão bem e jamais tivera amor tão grande por outras terras. Tanto que este viajante por destino na sua última viagem arrebata juntamente com a carta de despedida uma iluminura com a estância 106 do Canto I de “Os Lusíadas”. E mesmo este seu amor não o sossegou. Ele, que tinha saudades da sua língua, que impaciente e com o espectro da perseguição fora escondendo de todos o seu drama e aos sessenta anos tivera a noção exacta de que não teria mais forças para encetar novas etapas da vida, estava cansado da perambulação e já não tinha nenhuma pátria – tinha saudades – saudades talvez marcantes da sua espiritual ideia de Europa. Chegado aqui, os seus fantasmas de expropriado, de perseguido, de possíveis e novas tormentas persecutórias mesmo já estando a salvo, foram mais fortes. Corria o ano de 1942, a Guerra, essa durava, e ele sofria pelo destino do seu povo e pelos seus livros terem agora de ser editados na Suécia fora da sua revisão pessoal. Sessenta anos! Ou a vida nos corre bem ou não há de facto mais tempo para recomeços, todas as vitórias ficaram registadas e foi-se feliz nas coisas que porventura se fizeram com talento e amor – que muita força para elas foram despendidas – soltar aí todos os nossos medos antecipará o fim da vida que já não poderá ser reinventada… (que para muitos faz parte intrínseca da sobrevivência) guardou então a dignidade intacta e a consciência de que a liberdade é um bem que se preserva. O resto do poema de despedida: Pressentir o anoitecer a aproximar-se/ não nos perturba, até nos alivia!/ o puro prazer da contemplação do mundo/ só o conhece aquele que já nada ambiciona/ e o que não se interroga sobre o que alcançou/ nem já se lamenta do que não conquistou/ e para o qual o envelhecer é apenas/ o leve começo do adeus. Jamais nos esqueceremos de uma rainha que o tempo condenara e que foi por ele reabilitada sem julgamento moral numa antecâmara de situações em que o turbilhão inflamou a sua imagem, relembrando que existem sempre situações que nos superam, e muito para além de sermos julgados, há o julgamento que se faz à nossa própria circunstância. Ninguém a conhecia. Apenas se sabia quem era. E quando a conhecemos por ele, ficamos graves, reconhecendo também o quão injusto é julgar alguém levianamente. Se foi um dotado, não fora menos delicado. E o «Desenvolvimento Histórico do Pensamento Europeu» devia soar-nos aos ouvidos cansados como uma terapia inteligente para um tempo que aos poucos obscurece. Crónicas como o «Segredo da Criação Artística» também nos dão ainda o tempo de luz antes do ocaso. Ou nele mesmo, ainda nos dão luz.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO “Concerto da Sapone” [dropcap]S[/dropcap]amuel Osmond Barber, nascido no dia 9 de Março de 1910 e considerado um menino prodígio, começou a tocar piano aos seis anos e a compor aos sete. Frequentou o Curtis Institute of Music de Filadélfia (1924-1932), onde estudou piano com Isabelle Vengerova, canto com Emilio de Gogorza e composição com Rosario Scalero. Alguns colegas destacados no Curtis foram os compositores Leonard Bernstein e Gian Carlo Menotti, sendo Menotti quem realizou o libreto da ópera mais famosa de Barber, Vanessa, estreada em 1958 no Metropolitan Opera House de Nova Iorque. Em 1935, Barber recebeu o prémio Pulitzer estudantil e o prémio da Academia Americana en Roma. Nesse mesmo ano ingressou na Academia Americana das Artes e das Letras. Durante o Inverno de 1938-1939, Samuel Fels – patrão dos sabonetes Fels-Naptha de Filadélfia, mecenas e administrador do Curtis Institute of Music – e a sua mulher, Jennie, resolvem contratar Barber para compor uma obra para o seu protegido, o violinista-prodígio Iso Briselli. O compositor e os patronos tinham-se conhecido por intermédio de Gama Gilbert, violinista e crítico de música que, pelo seu entusiasmo pela música de Barber e pela sua longa amizade, se tornou o intermediário natural desta encomenda. Em Maio de 1939, Barber, Briselli e os Fels encontraram-se e iniciam as negociações da nova obra, incluindo a duração, número de andamentos e crucialmente, o preço e os direitos de exclusividade para Briselli. Barber pede 1000 dólares mas Fels responde que por esse preço a obra terá que ser mais longa que originalmente discutido, e foi acordado que Barber comporia uma obra em três andamentos que ficaria pronta em Outubro de 1939, para Briselli estrear com a Orquestra de Filadélfia em Janeiro de 1940, ficando o violinista com os direitos exclusivos de execução da obra durante um ano. Barber recebe um adiantamento de 500 dólares e parte para Sils-Maria, na Suíça, no Verão de 39, para começar o trabalho. Os seus planos foram, no entanto, interrompidos em Agosto, quando todos os americanos foram convidados a deixar a Europa, vendo-se obrigado a planear o seu regresso a Filadélfia. Após algumas peripécias ligadas ao seu companheiro Gian Carlo Menotti, Barber deixa a Europa a bordo de um navio holandês e chega aos Estados Unidos, completando os dois primeiros andamentos no retiro familiar em Pocono Lake Preserve, na Pensilvânia, enviando-os a Briselli em meados de Outubro. É aqui que a versão antiga dos eventos difere do que se sabe agora que aconteceu, graças à nova correspondência desenterrada entre Fels, Barber e o professor de violino e formador de Briselli, Albert Meiff. A versão antiga diz que Briselli achou que os dois primeiros andamentos não eram suficientemente virtuosos, e que os rejeitou por serem fáceis demais, solicitando que o final excepcional fosse mais “brilhante”. Quando Barber concluiu o finale, aparentemente este foi condenado pelo violinista como não executável! Agora sabe-se que esta foi uma abreviação conveniente para uma série muito mais complicada de conversas, visões e opiniões. Afinal parece que Briselli gostou realmente dos dois primeiros andamentos quando os recebeu, embora tenha encorajado Barber a considerar um finale mais virtuoso, e que foi Albert Meiff que se intrometeu na nova composição, declarando o trabalho de Barber como “longe das exigências de um violinista moderno” e necessitando de uma “operação cirúrgica” por “um especialista”. Além disso, Meiff acreditava que se o violinista prosseguisse com a execução prejudicaria a sua reputação e futura carreira, e que ele próprio deveria reescrever a parte do violino. Também sugeriu que deveria aconselhar Barber sobre o andamento final. Quando Barber concluiu o finale no final de Novembro, Meiff teria já minado com sucesso o compositor preante Briselli e Fels. Permanecem questões sobre o que o professor de violino esperava obter com as suas ultrajantes afirmações críticas. No entanto as suas sugestões nunca foram consideradas por Barber, mas Meiff conseguiu o que queria, já que Briselli não estreou o concerto como planeado em Janeiro de 1940, embora tenha mantido o acordo original com Fels e não ofereceu o concerto a outro violinista até à cláusula de exclusividade de Briselli expirar, ocorrendo apenas a estreia em 1941, no dia 7 de Fevereiro, pelo violinista Albert Spalding e a Orquestra da Filadélfia dirigida por Eugene Ormandy, sendo posteriormente revisto pelo compositor entre 1948-49 e a versão final estreada em Janeiro de 1949 por Ruth Posselt e a Orquestra Sinfónica de Boston sob a direcção de Serge Koussevitsky e publicada no mesmo ano pelo editor Schirmer. Por seu lado, Fels não pediu a Barber o reembolso dos 500 dólares, e o compositor e Briselli continuaram amigos até ao final das suas vidas. Barber chamava ao concerto “Concerto da Sapone”, o concerto do sabão! A obra está entre as mais tocadas e gravadas do século XX. Sugestão de audição: Samuel Barber: Violin Concerto No. 1, Op. 14 Gil Shaham, violin, London Symphony Orchestra, André Previn – Deutsche Grammophon, 1993
admin h | Artes, Letras e IdeiasO "Concerto da Sapone" [dropcap]S[/dropcap]amuel Osmond Barber, nascido no dia 9 de Março de 1910 e considerado um menino prodígio, começou a tocar piano aos seis anos e a compor aos sete. Frequentou o Curtis Institute of Music de Filadélfia (1924-1932), onde estudou piano com Isabelle Vengerova, canto com Emilio de Gogorza e composição com Rosario Scalero. Alguns colegas destacados no Curtis foram os compositores Leonard Bernstein e Gian Carlo Menotti, sendo Menotti quem realizou o libreto da ópera mais famosa de Barber, Vanessa, estreada em 1958 no Metropolitan Opera House de Nova Iorque. Em 1935, Barber recebeu o prémio Pulitzer estudantil e o prémio da Academia Americana en Roma. Nesse mesmo ano ingressou na Academia Americana das Artes e das Letras. Durante o Inverno de 1938-1939, Samuel Fels – patrão dos sabonetes Fels-Naptha de Filadélfia, mecenas e administrador do Curtis Institute of Music – e a sua mulher, Jennie, resolvem contratar Barber para compor uma obra para o seu protegido, o violinista-prodígio Iso Briselli. O compositor e os patronos tinham-se conhecido por intermédio de Gama Gilbert, violinista e crítico de música que, pelo seu entusiasmo pela música de Barber e pela sua longa amizade, se tornou o intermediário natural desta encomenda. Em Maio de 1939, Barber, Briselli e os Fels encontraram-se e iniciam as negociações da nova obra, incluindo a duração, número de andamentos e crucialmente, o preço e os direitos de exclusividade para Briselli. Barber pede 1000 dólares mas Fels responde que por esse preço a obra terá que ser mais longa que originalmente discutido, e foi acordado que Barber comporia uma obra em três andamentos que ficaria pronta em Outubro de 1939, para Briselli estrear com a Orquestra de Filadélfia em Janeiro de 1940, ficando o violinista com os direitos exclusivos de execução da obra durante um ano. Barber recebe um adiantamento de 500 dólares e parte para Sils-Maria, na Suíça, no Verão de 39, para começar o trabalho. Os seus planos foram, no entanto, interrompidos em Agosto, quando todos os americanos foram convidados a deixar a Europa, vendo-se obrigado a planear o seu regresso a Filadélfia. Após algumas peripécias ligadas ao seu companheiro Gian Carlo Menotti, Barber deixa a Europa a bordo de um navio holandês e chega aos Estados Unidos, completando os dois primeiros andamentos no retiro familiar em Pocono Lake Preserve, na Pensilvânia, enviando-os a Briselli em meados de Outubro. É aqui que a versão antiga dos eventos difere do que se sabe agora que aconteceu, graças à nova correspondência desenterrada entre Fels, Barber e o professor de violino e formador de Briselli, Albert Meiff. A versão antiga diz que Briselli achou que os dois primeiros andamentos não eram suficientemente virtuosos, e que os rejeitou por serem fáceis demais, solicitando que o final excepcional fosse mais “brilhante”. Quando Barber concluiu o finale, aparentemente este foi condenado pelo violinista como não executável! Agora sabe-se que esta foi uma abreviação conveniente para uma série muito mais complicada de conversas, visões e opiniões. Afinal parece que Briselli gostou realmente dos dois primeiros andamentos quando os recebeu, embora tenha encorajado Barber a considerar um finale mais virtuoso, e que foi Albert Meiff que se intrometeu na nova composição, declarando o trabalho de Barber como “longe das exigências de um violinista moderno” e necessitando de uma “operação cirúrgica” por “um especialista”. Além disso, Meiff acreditava que se o violinista prosseguisse com a execução prejudicaria a sua reputação e futura carreira, e que ele próprio deveria reescrever a parte do violino. Também sugeriu que deveria aconselhar Barber sobre o andamento final. Quando Barber concluiu o finale no final de Novembro, Meiff teria já minado com sucesso o compositor preante Briselli e Fels. Permanecem questões sobre o que o professor de violino esperava obter com as suas ultrajantes afirmações críticas. No entanto as suas sugestões nunca foram consideradas por Barber, mas Meiff conseguiu o que queria, já que Briselli não estreou o concerto como planeado em Janeiro de 1940, embora tenha mantido o acordo original com Fels e não ofereceu o concerto a outro violinista até à cláusula de exclusividade de Briselli expirar, ocorrendo apenas a estreia em 1941, no dia 7 de Fevereiro, pelo violinista Albert Spalding e a Orquestra da Filadélfia dirigida por Eugene Ormandy, sendo posteriormente revisto pelo compositor entre 1948-49 e a versão final estreada em Janeiro de 1949 por Ruth Posselt e a Orquestra Sinfónica de Boston sob a direcção de Serge Koussevitsky e publicada no mesmo ano pelo editor Schirmer. Por seu lado, Fels não pediu a Barber o reembolso dos 500 dólares, e o compositor e Briselli continuaram amigos até ao final das suas vidas. Barber chamava ao concerto “Concerto da Sapone”, o concerto do sabão! A obra está entre as mais tocadas e gravadas do século XX. Sugestão de audição: Samuel Barber: Violin Concerto No. 1, Op. 14 Gil Shaham, violin, London Symphony Orchestra, André Previn – Deutsche Grammophon, 1993
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasRoda dos Enjeitados [dropcap]E[/dropcap]m Macau há assuntos a merecer estudo, mas, fôssemos como os académicos da cidade nossa vizinha região administrativa, apenas interessaria investigar os que poderiam comprometer os adversários, para vangloriar os nossos. Quando a meio do estudo se apercebem estar os seus padres ainda mais enlameados que os nossos, desinteressam-se do tema, deixando-o cair no esquecimento. Essa era a nossa vontade se não achássemos relevante a história da Casa dos Expostos, também chamada Casa dos Enjeitados. Sendo os registos escassos sobre as fases da sua existência, onde falta muita documentação, socorremo-nos das informações compiladas por o médico José Caetano Soares (JCS) e complementamos com as do Boletim Oficial. Vulgarmente denominada Roda, pois era a maneira como os recém-nascidos entravam no hospício através de uma rotativa porta, sem ninguém ficar a saber quem ali os colocara, assim eram deixados ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia. Uma Regente tomava conta da Casa dos Expostos e “respondia por tudo, desde a admissão dos recém-nascidos, até ao recrutamento das amas, seu pagamento, etc., sem nenhuma entidade fiscalizadora”, refere JCS. Nos inícios de 1867, o Governador José Maria de Ponte e Horta assustou-se ao saber da morte no espaço de um mês de 38 das 46 crianças de leite recolhidas na Casa dos Expostos. Após aí serem abandonadas, a Regente entregara-as ao cuidado de amas, pagas a uma pataca por cada cria para delas cuidar e as amamentar. As falecidas, primeiro foram levadas à Casa dos Expostos e dali mandadas sepultar pela Regente, criando grande azáfama ao chinês que tratou de as enterrar. Assim, um a um dos 38 cadáveres foi transportado na caixa comum pelo chinês para o cemitério público, o qual abria naquela mesma ocasião uma pequena cova, com licença ampla do encarregado do cemitério. Sem cerimónias conduzidas pelo respectivo pároco, foram sucessivamente sepultadas, regressando o portador de volta com a caixa vazia para a Casa dos Expostos, onde a depositava para servir em idênticas ocasiões; e por isso levou o nome de caixa comum. Das oito crianças ainda sobreviventes, todas do sexo feminino, encontravam-se duas cachéticas (raquíticas, ou doentes de cachéxia, enfraquecimento geral do corpo humano) e cinco afectadas de doença de pele, falta de limpeza e em má nutrição. A outra estava num estado tão deplorável e repugnante que não se encontrava quem a quisesse amamentar. Inteirado do estado dessas criaturas, privadas de leite e colo materno para serem baptizadas e depois entregues a mercenárias que se denominavam amas, o Governador pediu à justiça de Macau para proceder sem detença contra os infractores e ao comandante da polícia, que fizesse entregar sem perda de tempo aos cuidados da SCM as restantes oito crianças, pois estas continuavam ainda com as suas sete amas. Mas antes disso, fossem as cinco inspeccionadas por o cirurgião-mor. À criança que ninguém queria amamentar foi-lhe dado leite de vaca e começou a recuperar. Assim, segundo Luiz Gonzaga Gomes, a 2 de Fevereiro de 1867 “o Governador José Maria de Ponte e Horta decretou, por prejudicial aos costumes da sociedade, a abolição da Roda dos Expostos da Santa Casa da Misericórdia de Macau e proibiu a esta instituição o recolhimento das raparigas abandonadas.” Refere Beatriz Basto da Silva, “O Decreto entrou em vigor a 8 do mesmo mês e ano, devendo no entanto a Santa Casa continuar a tratar dos enjeitados que tinha a seu cargo nessa data. Como a Portaria não conseguiu deter a prática, a ‘Roda’ deixou de existir, mas as crianças abandonadas à porta da Santa Casa continuaram a ser recebidas.” Os desamparados “O recém-nascido deposto em segredo, sem qualquer esboço de inquirição e até fora da vista, conforme muito assim facilitava a roda conventual, a coberto de usos e leis na aparência com fins benemerentes, mas que tragicamente repudiavam os mais elementares deveres maternais e não menos tolhiam ao filho o legítimo direito de sangue ou sequer do nome”, segundo JCS, que refere, “Para Macau e em tal matéria haveria só a esperar reforço quanto a números, desde que entre chineses a prerrogativa de garantir o nome continuador da família, foi sempre exclusiva ao elemento masculino, portanto, as filhas mais nas classes baixas ou de situação económica difícil, não contavam e podiam ser legalmente transaccionadas. Mas mesmo no nosso próprio meio, pelo convívio de numerosas escravas e com aquele trem de vida, bastante folgado ou ocioso, as condições não seriam as mais propícias a fortalecer os grandes atributos de virtude e castidade. Assim se engrossava, também, outro mal – o da mendicidade – como por volta de 1772-3 o Governador Salema de Saldanha expunha em carta ao Bispo D. Alexandre.” A data do início da Casa dos Expostos é impossível de apurar, mas já o compromisso de 1627, no Cap. XXIII , incluía a disposição: Em conjunto com os dois hospitais, esse hospício recebia um subsídio, que a ninguém repugnava, proveniente do 1% cobrado nos direitos de Cidade sobre as fazendas grossas. “Donativo idêntico, fixado mais tarde em 1%, também sobre as fazendas grossas entradas na Cidade, seria do mesmo modo atribuído às freiras de St.ª Clara, que por ajuste de 1692, em que interveio o Bispo D. João de Casal, o Provincial de S. Francisco e o Senado assentaram <dar-se, pontualmente, esse 1% estando as freiras obrigadas a receberem sem dote, cada cinco anos, uma filha de Morador>. De lembrar ter sido a Cidade do Nome de Deus na China criada por alevantados mercadores, que a trespassaram para mãos régias devido ao comércio com o Japão. Quando este ficou proibido, regressou Macau ao privado trato gerido pelo Senado e se cada viagem realizada valia ao dono da embarcação uma verdadeira fortuna, bastava um naufrágio para arruinar em dívidas o proprietário e afundar haveres e vidas, deixando viúvas e órfãos desamparados. A carta do Governador Salema de Saldanha refere: Enjeitados e raparigas órfãs receberam no século XVIII descuidada atenção e ínfimos recursos devido ao estado de decadência de Macau.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasOdor a mar [dropcap]E[/dropcap], ainda no momento em que distraidamente sinto o copo de chá a escaldar nas mãos, pela oscilação estranha de uma memória que me ultrapassa e afunda na enormidade do tempo, um abalo de terra sabe-se lá sob que impacto, lembro-me de como estou próxima das dunas do outro lado do agora mar. Recuo milhões de anos antes da deriva continental, penso em todas as derivas, e logo ali obliquamente a escassos graus de latitude sul nesta Pangeia ancestral, mergulho os pés nus nessas outras areias. Transpondo a distância, naquilo que é afinal um pequeno salto sobre o fio da navalha. Tenho que pensar neste fio. Mas isso será uma outra história para depois. Por agora são 21 graus a sul e a longitude, essa variável em milhões de anos. De ínfima a relevante. Desço lentamente com o dedo no mapa deste planeta solitário e lanço-o á esquerda sobre o mar como os olhos. Estendo ainda o olhar pelo deserto nesta ânsia de contemplação e mais para oeste saio pelo deserto de azul do oceano. Não estátua de sal, ou me desfaço e perco nesse olhar. Recuo uns graus a sul e não é o deserto, deserto, mas um olhar em plenitude. Talvez em busca de palavras ou de uma luz. E descendo mais um pouco começa a desenhar-se. É talvez um farol em Alagoas. Apontado ao mar. Há tantos. E de súbito coloco-me do outro lado. Seguindo essa imensidão como se ao longo do braço de luz. Caminho pela orla costeira da Ponta Verde, como em qualquer outra franja à beira-mar. Encontro Aurélio. Sim, aquele do dicionário das palavras difíceis. Ou fáceis. Sentado em bronze, com o seu amor à Língua portuguesa. E, noutro ponto, Graciliano Ramos. Um outro ser em bronze, que caminha de cigarro contemplativo e olhar baixo, como quem conta palavras nos passos. Como o realismo pode ser belo ao evocar a passada do caminhante. Eternizados ambos no seu olhar contemplativo para o mesmo longe, mesmo que de dentro. Em busca das palavras também eles e ambos. Porque pensariam achá-las perdidas na imensidão sem ruído. Como a do mar de palavras. Ou no fim dos raios de luz destino das noite do farol. Com um me apetece sentar e com o outro caminhar. No seu silêncio. E com o outro, chegar. Porque é um outro dos faróis de Alagoas – o mais bonito de todos – estranho fantasma de outro tempo e uma bela e envelhecida construção em bronze, também, o que me paralisou de espanto. Terá sido belo no seu tempo. E é diferente e belo neste tempo que parece pedir dramaticamente que pare. Deixando a sua luz apagada para que não demasiados olhos por aqui cheguem a mudar este paraíso de areia branca e águas finas de azuis e verdes. É a praia Foz Rio de São Francisco, um rio que barrado mais atrás, esmoreceu no encontro com o mar e o deixou subir mais acima. Uma foz é sempre um pouco revoltosa. Como certos encontros. A adaptação de águas diferentes. Como a espantar visitantes. E se muito o mar cobriu, o resto o fizeram as dunas ao sabor do vento. Também estas escondem segredos de quem viu submarinos pela calada da noite em busca de água doce. Armas debaixo de água e olhar de crocodilos em busca de farol que os guiasse. Este, inclinado como um velho campanário de Pisa, primos na música que lhes descrevia a alma. A um e a outro. Neste, em forma de luz. Distantes, mas hoje mais. Do que na longínqua Pangeia sem monumentos. O mar avançou deixando-o fantasmático, ensimesmado e inclinado, e mais que centenário guardião deste mistério de vidas antigas. É o farol discreto, crivado de ferrugens e oxidações várias. Feito de texturas de cores insólitas na pele de bronze com odor a mar, como rugas crestadas de cento e tal anos. Viu submarinos alemães na segunda guerra, abusarem da sua luz inocente. Mas a luz, quando toca, toca a todos. Pescadores como contrabandistas. Talvez por isso se apagou. Se inclinou cabisbaixo. E se corrói por dentro e por fora de mistérios que se teceram ante a sua luz. Como um anjo prestes a afundar, ou a levantar voo. Quantos graus de inclinação tem aquele olhar baixo, como de cílios introspectivos a furtar o olhar ao horizonte, para sempre? Narciso? Não. Não chega a inclinação a tanto, ficando-se antes pelas águas um pouco além como quem luta contra a ventania do tempo de través. Aspirar. Como uma exclamação de odor a mar. Oh…perfume a mar distante. Com uns graus de inclinação. Jubilado pelos astros. Ou não fossem eles, e porque se fez noite, seria bem escura a vasta abóbada. Invisível e belo fantasma, agora. Breu em redor. Acendo um cigarro. Mas preciso de um pouco mais de luz para lhe apreciar o fumo. Habituada a esta omnipresente luz artificial que de repente se apagou no bairro. Nestes quarteirões em volta. Acendo uma vela e penso vai voltar. Há sempre que ter velas em casa. Mesmo que seja preciso percorrer com um rápido pânico os corredores na mais completa escuridão. E, acesa, parece uma qualidade imensa de luz, necessária e no contraste com tudo o resto. Misterioso poder suave de iluminar. Chama. Como um farol as águas ao longe e saber onde se desenha terra. E depois, há sempre os astros.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA multiplicação do ruído [dropcap]A[/dropcap] forma como as redes sociais têm moldado a nossa compreensão e consequente intervenção no mundo tem sido tão profunda e tão rápida que não raramente parecemos adolescentes em confronto com um mundo para o qual não estamos ainda preparados. Ao revés do que ingenuamente pensávamos, o acesso generalizado à informação não aportou clareza ou definição. Pelo contrário; a multiplicação de perspectivas acrescentou, para além de ruído, desordem e uma crescente incapacidade de destrinçar verdade da mentira, factos de opiniões desinformadas. Um estudo da universidade de Princeton e da universidade de Nova Iorque concluiu que os adultos com mais de sessenta e cinco anos – norte-americanos – têm uma tendência sete vezes superior de partilhar notícias que sabem ser falsas ou equívocas do que adultos com menos de trinta anos, por exemplo. Pondo de parte a avaliação da intencionalidade de quem faz esse tipo de partilhas, o que me parece bastante evidente é que a iliteracia digital – sobretudo nos mais velhos, habituados a confiar na informação porque adequam exposição pública e veracidade – é a grande responsável pela profusão de ruído nas redes sociais. E se muitas vezes as partilhas são perfeitamente inofensivas, nem sempre é esse o caso. Partilhar uma notícia não é nunca um acto neutro. Quando alguém decide tomar uma posição relativamente a um determinado assunto, está implicitamente a revelar coisas sobre si próprio. Sobre as suas posições políticas, as suas crenças e sobre a consciência que tem do acto da partilha. Mesmo partindo do princípio auto-evidente segundo o qual um perfil numa rede social corresponde a um avatar, a uma persona, não é menos evidente que estes radicam num substrato de convicções e crenças que se alimenta de e alimenta a rede onde se exprime. Há muitas coisas que as pessoas partilham de um modo absolutamente desinformado que são apenas tontas e cujo efeito na sociedade não chega nunca a ser o da bola de neve que eventualmente molda a opinião pública acerca de um determinado assunto. São por exemplo epifenómenos de pseudociência a quererem passar por ciência, como é o caso dos efeitos das novas redes 5G nos humanos ou o açúcar enquanto veneno e vício. As pessoas acreditam nessas coisas e partilham-nas porque já têm uma inclinação cognoscitiva relativamente a esses assuntos – e apenas lêem artigos que justificam as suas convicções e nunca o contrário – ou porque acabam por equivaler indevidamente a sensação de estranheza relativamente ao mundo que os rodeia a uma teoria da conspiração acerca desse mesmo mundo que resolve de uma vez só o problema – por exemplo, a “teoria” da terra plana, segundo a qual vivemos numa mentira orquestrada pela NASA, resolve automaticamente a sensação de inadequação e de pequenez, se um sujeito decidir embarcar nela. Há porém coisas mais graves, como os movimentos anti-vacinação ou anticientíficos em geral. Estes podem causar mossas permanentes que não se limitam ao sujeito que adere a eles. Este período de medo colectivo que vivemos por via da pandemia em curso de COVID-19 deveria nos obrigar a uma reflexão sobre o nosso uso das redes sociais. A imediatez sem custos do acto de partilhar faz com que multipliquemos o ruído. Não paramos para pensar “mas isto é mesmo assim? mas isto é verdade?” porque não existem consequências para a partilha. Acrescentamos confusão à confusão. A maior parte das pessoas lê notícias via redes sociais. A maior parte das pessoas vai tomar decisões importantes para todos nós com base nos artigos partilhados pelas pessoas de quem são amigos. Deveríamos talvez pensar que a nossa grande contribuição para a clareza pudesse ser o silêncio. A responsabilidade de não ceder ao impulso afectivo – que não equivale de todo a qualquer certeza cognoscitiva – de partilhar aquilo que numa primeira leitura nos parece certo. Deveríamos hesitar. Deveríamos confiar nos especialistas e falar muito menos que eles. O silêncio pode ser o único meio pelo qual a mensagem certa chega onde devia chegar.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDoença mental [dropcap]D[/dropcap]a profusão da catalogação da doença mental no virar do século XIX para o século XX, há duas tipificações importantes que Emil Kraeplin esboça: a doença maníaco-depressiva (doença bipolar) e demência precoce (esquizofrenia). A psicopatologia geral acentua o anómalo e o anormal relativamente ao estado normal mais ou menos controlável não doentio em que a pessoa consegue funcionar. Há assim limites aquém e além da funcionalidade. Embora o núcleo do diagnóstico seja a mente, há um envolvimento somático: fisiológico, morfológico, biológico do indivíduo, mas também ambiental e social, sincrónico e diacrónico. O diagnóstico é holístico de tal forma que os sintomas não se limitam a estudar uma interioridade do mundo próprio pessoal com a psicologia do indivíduo mas a totalidade da vida com todas as suas consequências que a vida mental ou psíquica tem para a existência. A causa e consequência é a vida no seu todo. “Anómalo” quer dizer em grego irregular, superfície acidentada, carácter inconsistente. É diferente do “anormal” que sai para fora da regra, da norma estatística do primariamente e o mais das vezes. O modelo de Kraepelin consolidou a maioria dos principais transtornos afectivos numa única categoria, devido à semelhança dos sintomas nucleares, o histórico familiar de doença e, principalmente, o padrão de recorrência ao longo da vida dos pacientes, com períodos de remissão e exacerbação e um resultado comparativamente benigno, sem deterioração significativa. Mas fundamentalmente considerou a mania (hipomania e euforia) como uma manifestação da depressão, não como um sinal distintivo de um transtorno bipolar separado, como o é na prática de diagnóstico norte americano de hoje. A leitura do sintoma maníaco, hipomania e euforia, é historicamente decisiva. Nos hipocráticos ainda a melancolia e a euforia ou mania são sintomas diferentes de doenças diferentes. Lemos ainda no Fedro de Platão a quadrupla raiz da loucura como mania: Transe divinatório, transe de consolação, transe poético, transe erótico. A melancolia é um estado de dysthymia ou depressão sentido no quotidiano que pode alterar o estado da consciência como o vinho. Tem consequências positivas também porque permite a manifestação do génio em alguns homens extraordinários na acção e na teoria. A ligação entre estes dois estados diferentes do ânimo, como manifestações de uma mesma doença, em etapas ou épocas diferentes, é uma descoberta ulterior e implica claramente um diagnóstico lento feito diacronicamente, longitudinalmente. A integração de episódios heterogéneos com sintomas diferentes numa mesma etologia e terapêuticas idênticas implica uma revolução na hermenêutica do diagnóstico e consequente prognóstico. O diagnóstico diferenciado, a sua integração no meio familiar, história clínica de pais e parentes próximos antepassados e descendentes, interacções com amigos e colegas, relação com o meio social: profissional, classe, alargamento holístico é já uma consequência de uma interpretação da doença que tem como plano de fundo uma ontologia desenvolvida ao longo de séculos. A própria concepção da filosofia como terapêutica, homeopatia, relação íntima de uma doença para a morte, etc., etc., resulta do convívio existencial ôntico senão teórico e ontológico com a doença estudada pela medicina. A interpretação do ser da doença e da sua relação com a saúde, a interpretação do elemento saudável, do poder, afirmação, da vida resulta de uma cosmovisão filosófica da existência. A presença avassaladora nas nossas vidas de Healthclubs, SPAs, a indústria omnipresente do bem estar, SNSs, até a doença mental como doença do século, etc., etc.. são “objectos”, manifestações, fenómenos a ser interpretados numa vida que se compreende assim doente, mortal, decadente, com riscos de remissão, recaída, regresso a velhos hábitos, à má vida?
Luís Carmelo h | Artes, Letras e Ideias“Já cansado de viver, mas nunca de desejar” [dropcap]H[/dropcap]á quinhentos anos, Garcia de Resende reuniu num cancioneiro poético o que tinha sido escrito em obras de vários autores, “passados e presentes”. Este sentido antológico andava na moda, sobretudo em Espanha. E foi em pleno momento de viagens e de proto-império, corria o ano de 1516, que o Cancioneiro Geral saiu a público. Para além de compilador desta imensa publicação e de cronista, Garcia de Resende foi secretário particular dos reis do século de ouro, D. João II e D. Manuel I. Um verdadeiro Maquiavel ao serviço do seu príncipe (até pelas destacadas responsabilidades que assumiu na famosa viagem a Roma de 1514, quando o rei português brindou o papa Leão X com um elefante). O “prólogo” que Garcia de Resende redigiu para o Cancioneiro Geral fala por si. Na parte final, ao ilustrar as intenções da obra, o autor revela o seu devir ferozmente maquiavélico: “E porque, Senhor, as outras coisas sam em si tam grandes que por sua grandeza e meu fraco entender nem devo de tocar nelas, nesta que é a somenos, por em algua parte satisfazer ao desejo que nem sempre tive de fazer algua coisa em que Vossa Alteza fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar alguas obras que pude haver dalguns passados e presentes e ordenar este livro, nam pêra por elas mostrar quais foram e sam, mas para os que mais sabem s´espertarem a folgar d´escrever e trazer à memória os outros grandes feitos, nos quais sam dino de meter a mão”. É interessante o facto de Garcia de Resende se colocar numa posição algo platónica de quem nada sabe acerca do concerto das “cousas” que têm “grandeza”, dirigindo-se ao rei como o bom e fiel servidor que visou, com esta sua volumosa compilação, apenas contribuir para o seu “desenfadamento”. Por outro lado, para Garcia de Resende, não interessaria realmente que obras fossem (“nam pêra por elas mostrar quais foram e sam”), sendo bem mais importante o estímulo que viessem a suscitar em quem se dignasse escrever sobre os chamados “feitos portugueses”. Aliás, é esse precisamente o tom do ‘incipit’ e de toda a primeira parte do texto: “Porque a natural condiçam dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam, sendo dinas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e vertudes, e ciência, manhas e gentileza sam esquecidos”. Depois de ilustrar esta grande carência ‘comunicacional’ – como hoje se diria –, Garcia de Resende conclui do seguinte modo, no antepenúltimo parágrafo do “Prólogo ao Príncipe”: “Todos estes feitos e outros muitos doutras sustâncias nam sam devulgados como foram, se gente doutra naçam os fizera”. Faltara-lhe, de facto, esperar por Camões, João de Barros ou Fernão Mendes Pinto. Contudo, o Cancioneiro Geral acaba por ser mais uma recolha de poesia lírica e de “cousas de folgar”, do que de narrativa de teor épico ou até evocatório. Os temas do Cancioneiro reatam o século XIII trovadoresco (Rodrigues Lapa salienta “a súplica triste e apaixonada” ou “a coita de amor, em que o pobre poeta se revolve com sofrimento e com delicia”, caso de Duarte Brito: “Quanto mais vejo prazer/ tanto mais sinto o pesar/ já cansado de viver/ mas nunca de desejar…”) e acabam por estabelecer um contraponto interessante entre os chamados “espírito velho” e “espírito novo”. Na abrupta passagem entre meados de quatrocentos e o alvor de quinhentos, sente-se a transição entre a verve bucólica que ‘salvaria o espírito’ e o escarnecer irónico que parece invadir o ambiente cosmopolita do Paço, tão bem expresso por Jorge de Aguiar: “Nam te mates cruamente/ por quem fez tam grande errada,/ que quem de si se nam sente,/ por ti nam lhe dará nada./ Vive, lançando pregam/ por u fores e vieres,/ que sam molheres, molheres!”. Hoje em dia, a incorrecção do “género” permite-nos ler estes versos com renovada sensação de “folgar”. Seja como for, no seu todo, o Cancioneiro Geral é uma obra seminal que situa diversas matrizes da poesia escrita em Português. Para além da função de “desenfadamento”, a obra é também, ao mesmo tempo, um alerta e um serviço prestados pelo Maquiavel lusitano a D. Manuel I. Raramente na história a literatura teve funções que apenas a si mesma servissem. Como diria o Abade de Rilhafoles “tem dias”. Citações a partir de Florilégio do Cancioneiro de Resende, Selecção prefácio e notas de Rodrigues Lapa, Textos Literários, Lisboa, 1960, pp. 9,10, 42, 43 e 44.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasContra os panhonhas! [dropcap]A[/dropcap]ssim que eu for primeiro-ministro despeço-me – de panhonhas estou farto! Este tempo promove os panhonhas e o seu reverso: os objectores-da-consciência. Como Trump e Bolsonaro e o inefável presidente indiano, Narendra Modi, que incitou o integrismo hindu e incendiou o país (cf. a carta de Arundhati Roy, aqui ). Todos eles seguem o modelo do conselheiro de Trump, Roger Stone, que no documentário do Netflix, Get me Roger Stone, dá os mandamentos para chegar ao poder e mantê-lo e que se sintetizam numa pergunta: se é preciso ser infame, qual é a sua dúvida? O problema dos panhonhas é que nunca ousam acreditar na extensão do Mal. Já o problema com o Mal, que se expande com descaro e ganas, é que sob a sua filigrana já não respira ninguém, um outro. Não que, à semelhança de outras épocas, ele não “pareça” agressivo, implacável, corrosivo. Mas de tanto ter sido transformado em reality-show não traz já o pavor indescritível de outrora. Já não conseguimos imaginar o Mal para além da medida que consentimos, supondo que ao deixá-lo exprimir-se um pouco estamos a retirar-lhe o gás. Descrentes da realidade, ficamos reféns das imagens, achando que o vidro do plasma nos separa e protege e que a acção dos diabretes é mensurável, como os selos que se colam nas cartas endereçadas ao bem-que-nos-pariu. Eis-nos abarrotados até ao infinito, de cabidela, de vampiros, de zombies e de espelhos que se vingam retroactivamente, de ogres & aliens, de políticos que mentem ruidosamente – com a rede de saberem que toda a gente admira um bom vigarista -, de tiranos que florescem sob o bolor dos Hannibals desta vida, de putaria baixa & escarninha – esperem, veio-me um arroto. Ora, o problema é mais fundo – meu caro panhonha, meu hipócrita, meu igual: desapropriam-nos. Hoje, ser sacanita, mesquinho, malicioso, espertalhão, oportuno na pequena perversão, iniciar os anjos na pederastia, engessados ou não… que raio de prazer isso agora nos traz neste clima em que os massacres se sucedem em directo, em Chicago, em Nova Deli, em Cabo Delgado e se escalpar bebés é o novo divertimento? Lady Macbeth boceja e nós, depois de todo o bem-cariado, chegámos ao Mal sem sombra, ao mal como turismo de massas – ao império da opinião a todo o transe. No oposto disto, em carta a um amigo japonês, Kuniich Uno, escreveu Deleuze, sobre como se sucedia a sua colaboração com Guattari: «Pouco a pouco, um conceito tomava uma existência autónoma, de modo que por vezes nós continuávamos a compreendê-lo de maneira diferente – por exemplo, nunca compreendemos da mesma maneira o “corpo sem órgãos”. Nunca o trabalho a dois tendeu a uma uniformização, sendo mais uma proliferação, uma acumulação de bifurcações, um rizoma». Raramente vimos manifesta uma liberdade tão grande quanto à própria opinião. Os dois pensadores colaboravam para poderem convergir e divergir, numa pulsação contínua, sem receio de se contradizer e sem apararem as linhas de fuga. Pelo gosto de multiplicar. Nunca lhes passou pela cabeça a disputa ou a necessidade de domínio na relação; sem reservas, numa porosidade em acto, a aventura de penetrarem em espaços desconhecidos (os que “a resistência” do outro abria na escuta de cada um) tornou-se prioritária. Simplificavam: a colaboração prescindia de negociações, porque o conflito estava de antemão desactivado, não havia confronto entre forças/opiniões polarizadas, não se tratava de uma disputa dialéctica, mas de estar aberto a um fluxo que faz das suas sombras matéria para fazer engrenar o pensamento na virtualização do múltiplo. Eis um verdadeiro “encontro”: cada um deles superou um pensamento condicionado pela inércia das representações. O que acontece quando seguimos as linhas da água e à manifestação da “vontade” preferimos incarnar o “impoder”. Nos antípodas do que defende Bertrand de Jouvenel, no seu livro basilar sobre o Poder, para quem “um homem sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento da sua vontade”, atitude que voltou a ser a única disseminada. O “impoder” não é um signo de impotência mas um reforço da potência que nasce da liberdade a si mesmo. O que talvez explique que Michel Serres tenha dito de Deleuze que era o único caso que conhecia de um filósofo a quem o pensamento trouxera felicidade. É desta grandeza humana que estamos necessitados, da qualidade de gente que se dispõe à luta para “não ter poder”. Porém, para isso, precisamos de agir, de confiar de novo na astúcia que o outro nos traz, em vez de o vermos como estorvo. O que começa por simplificarmos. Ontem, por exemplo, depois de uma boa sesta, acordei para a delicadeza da Sónia, que (quase com recato) me batia uma sarapitola (- ah, alegria dos esses!). A Sónia tem seis dedos em cada mão, como os teve el-rei dom Sebastião, e é vão querer saber se isso lhe dá uma tactibilidade especial ou se será da fantasia que a sua anomalia provoca em nós, o certo é que depois de confiarmos na Sónia ficamos menos tolerantes aos homens infames. Tinha convidado a Sónia para almoçar, preparando-a para a sessão de nus que iríamos fazer no estúdio à tarde. E perguntou-me ela, como me vais pagar isso? Na brincadeira, olhando-lhe as mãos, respondi, E que tal uma pívia? Para surpresa minha, isso provocou-lhe um sorriso mais aberto que a calvície do Yul Brynner. Adoro mostrar os meus dons, justificou. Nunca lhe serei suficientemente grato, ela foi buscar o ouro a cinquenta metros de profundidade – sabe simplificar, é o que é. À saída disse-me: Gostei, julgava que eras um panhonha! Era, mas panhonha nunca mais, antes primeiro-ministro! A quem não acreditar na bondade das coisas simples, lembro o aviso de Jim Harrison: (também) a morte tem para nós a inverosimilhança que terá a realidade da nossa viagem à lua para uma zebra.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasRegresso ao silêncio Maybe it’s what we don’t say that saves us. Enough Music, Dorianne Laux [dropcap]P[/dropcap]ermitam que vos inflija uma pequena e raríssima história pessoal para início de conversa. Há cerca de uma década senti que a minha vida estava num lugar escuro e sem saída. Ao princípio atribuí esse sentimento à mítica “crise de meia-idade”. Só que enquanto noutros homens os sintomas manifestam-se no casamento com mulheres muito mais jovens ou na compra de veículos descapotáveis a mim deu-me para tentar ingressar na Ordem da Cartuxa. Se agora brinco é porque posso. Na altura, sem trabalho nem qualquer perspectiva de futuro próximo e sobretudo com um pronunciado asco ao mundo, pareceu-me a única forma de me salvar. Através de uma amiga-anjo consegui o contacto do Prior do Mosteiro Scala Coeli em Évora e uma permissão de visita e conversa. Para quem não sabe, a Ordem da Cartuxa é uma ordem contemplativa, que em vez de falar de Deus aos homens fala dos homens a Deus, através da oração. Quando cheguei ao mosteiro as minhas certezas estavam inexpugnáveis. Visitei as celas dos monges de branco, onde a única mobília era formada por uma cama, uma mesa de trabalho e estantes com livros. As janelas – que se fechavam quando em recolhimento – rodeavam um claustro belíssimo. Havia um silêncio doce no ar e não existe outra palavra para o descrever: religioso. Fiquei entusiasmado e fui falar com o Prior, o fantástico padre Antão, homem sábio e bonacheirão. Explicou-me com calma que mesmo que quisesse não reunia as condições de idade ou de vida para ingressar em noviciado. E perguntou-me: «Mas o que mais te atrai nesta vida, para além do serviço que prestamos?». Respondi de imediato: «O silêncio». Ao que o padre Antão retorquiu: «Percebo-te bem, mas este silêncio não o irias suportar. O teu silêncio está noutro lado». Tinha razão e só agora o percebi por inteiro. O silêncio. Por instantes abandonei-o, deixei-me convencer por comodidade e estupidez que se tratava apenas de um modismo literário porque assim alguém insistia. “Ah, outra vez a história do indizível”. E eu, que tantas vezes sofri e proclamei o facto de as palavras na literatura e na vida serem apenas a mediação da alma interrompi a minha crença que é no silêncio que tudo está. Fiz mal. A vida tem esta mania de nos atirar por vezes para lugares que nos foram queridos mas que abandonámos à pressa. E ali voltei, a uma casa desarrumada mas familiar, as crenças antigas intactas apesar de tudo. Quando assim é há pouco a fazer: ou se arruma ou se abandona. Neste caso, valeu a pena regressar. Voltei a acreditar nas entrelinhas. Senti-me à vontade nessa constatação de que as palavras são a mais bonita das impossibilidades, que nunca servirão nem chegarão para dizer o que sentimos, por mais à flor da pele que as utilizemos. Se eu escrever ou disser “eu amo” será a mesma coisa do que sentir que eu amo? Não me parece. As palavras, por serem convenções e sujeitas a regras estão maculadas logo por definição. Exigem trabalho, atenção, análise. E tudo isso fere o que se sente. Será mau? Não, é o que há e o que há é bom. Toda a literatura parte do desafio dessa superação, dessa suspensão da descrença. Há legionários célebres e ferozes que sempre viram a palavra como um inevitável entulho: Cioran, que proclamou a mais terrível sentença: “Todas as palavras me incomodam”; Beckett com a sua obsessão pela depuração extrema (“Todas as palavras são uma mancha desnecessária no silêncio e no nada”); Rilke, que defendia que a nossa tarefa seria escutar as notícias que nos chegam do silêncio. Por causa deste reencontro voltei a ler essa belíssima elegia ao silêncio que é Água Viva, de Clarice Lispector. “Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio”, escreve ela a dada altura. E é nesta paisagem familiar que me comprazo, nesses instantes mudos em que entre os que amamos partilhamos o que não conseguimos dizer, o que mesmo agora me estou a esforçar inutilmente por dizer. Não por acaso chega-me às mãos uma entrevista do meu amigo e magnífico escritor Rui Cardoso Martins, em que ele afirma que as palavras servem para sobrevivermos. Concordo. Mas o silêncio serve para nos protegermos da vida.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasAtropelamento e fuga Horta Seca, Lisboa, 23 Janeiro [dropcap]V[/dropcap]em impregnado com o perfume do embuste, mas teimamos em coser as cicatrizes dos dias com o relâmpago do sentido. No exacto dia em que sou aconselhado com veemência a regular os meus dias através de um medidor automático da pressão arterial, para marcar em caderno as cadências sistólica e diastólica, o pulsar das paredes do músculo maior, chega-me o laptop, um Lenovo T495, na intenção de me tornar menos assente, mais ágil. Horta Seca, Lisboa, 24 Janeiro Embalados pela mudança nos calendários, pelo arredondar dos algarismos na marcação do fugidio, do etéreo e líquido, ainda que nos marque a pele com a lâmina cortante de um aparente destino, tentámos recuperar atrasos. Retirar, portanto, pastas daquela que mais espaço ocupa no meu computador, e que se chama «agora». Alguns títulos desenvolvem-se em estranha urgência, alimentam-se da sua energia e impõem-se ao planeado com o fulgor do inevitável, com a simplicidade do encaixe de uma perna em tampo para dar mesa. Outros tropeçam a cada passo na absoluta irregularidade, encontrando no liso a íngreme montanha. São os pequenos nadas a quererem erguer-se engrenagem. Mais tarde, podemos ler nisto vantagens, maturação que se ganha, uma coincidência que se aproveita, mas não resolve o óbvio incumprimento. Cada vez mais: editar faz-se contra todas as probabilidades. Começando pela de encontrar leitores na selva mediática. E os atrasos perturbam o esforço da busca pelos leitores, agravando a invisibilidade habitual. Quem notará que saiu novo volume das obras completas De Fernanda Botelho, no caso, «Lourenço é nome de jogral»? Um romance insubmisso onde as personagens afirmam que «a literatura não é instrumento, a literatura é a livre expressão do homem (…). A literatura é o homem isolado no acto de escrever, sem liames, sem governantes, sem escravos, sem ‘por encomenda’, sem ‘ao serviço de ‘.» IPO, Lisboa, 30 Janeiro A realidade chegou e sussurrou-me: «és um homem doente». Deu-me a mão, espreitou a medula, internou-me e tornou-a condição. «Quando nos sentamos à borda da cama somos presidiários a reflectir sobre a sua condenação». As greguerías de Ramón costumam ser mais animadas. Palhavã, Lisboa, 31 Janeiro Livros há que se dão tal importância, que não se limitam a não correr bem, inventam novas formas de correr mal. Há umas décadas que, de um modo ou outro, os livros me passam pelas mãos. Nunca por nunca me haviam guilhotinado uma lombada, transfigurando álbum em colecção de posters. O sempre solene momento de ter nas mãos o objecto ansiado, resultou aqui em pedrada, enorme e certeira. Soltei lágrimas, feito menino, sem lhes conhecer a origem. Registo apenas um fragmento solto do colar de peripécias, que se revelou jibóia de abraço caloroso. Palhavã, Lisboa, 5 Fevereiro O Rui [Garrido] chega-me com a capa impressa do «Saudades de Portugal», do «meu» Ramón [Gómez de la Serna], outro dos filhos da delonga. E que bela está (algures na aqui página)! Um retrato com as marcas de quem passa, um olhar a intensificar-se sob sinais de arrastamento, uma lentidão a sobressair da aparente velocidade. Nada mais no rosto do livro além da face do autor enquanto jovem. Agora que vivo em pleno domingo, a companhia que não me fará. «Tristeza dos vidros ao domingo, tristeza irrevogável. Tristeza dos bocejos das varandas abertas atrás das sacadas. Os quartos, a casa toda, têm um bocejo de comprida serpente, que é a que tem mais feita a boca para bocejar. (…) Uma variante há que agrava e dá originalidade a esse sol de domingo, e é quando o encontramos sobre a fachada de uma casa vermelha. Isso que é triste todos os dias, sangrentamente triste, ao domingo é sufocantemente triste.» Quem dará por este olhar tão sabiamente recolhido por Antonio Saez Delgado e Pablo Javier Pérez López? A cada página, a delícia. «Portugal tem um peculiar voo de borboletas, e é possível argumentar que pela sua atmosfera passam peixes-voadores. Está orientado para outros pontos cardeais que não os nossos e a sua rosa-dos-ventos é diferente e tem mais pontas que as rosas-dos-ventos.» Palhavã, Lisboa, 6 Fevereiro Ramón sabia: «O lápis só escreve as sombras das palavras.» Sentado à borda da cama, tenho na mão a edição que o mano Luís [Carmelo] resolveu acolher na colecção Crateras, da sua Nova Mymosa. «Navalha no olho» faz-se de atrevimento e celebração da imagem e do corpo. Irónico, o momento. «a desajeitada e regular forma como acontece/ no calendário o domingo/ sabe-me a azeda/ luz repousa sobre cada objecto/ indiferentes, uma e outros». Palhavã, Lisboa, 10 Fevereiro Nunca o silêncio mora em quarto de hospital. Nem escuridão. Chamemos-lhe sossego. O mano José [Anjos] rompe um e outra com a leitura, na sua semanal incursão pelo «Indiegente», do Nuno Calado, com a leitura dos versos a rasgar do pequeno livro amarelo. Santa Bárbara, Lisboa, 19 Fevereiro Esta é a estação do inventário, outro dos momentos em que a crueza da realidade acelera para nos apanhar. Os livros estão espalhados por centenas de lugares, sem sabermos bem se vivos se mortos. Dezenas escapam aos controlos e acabam sem se saber como nas bancas de saldos, os coveiros do circuito, que compram ao quilo para vender ao litro. As tiragens baixam, em resposta à rarefacção do gesto leitor, para alimentar a droga da novidade, por isto e aquilo. Ainda assim, não se evita o enorme desperdício de ofertas e convenções que alimentam voragem de um sistema a liquefazer-se. Para que lado escapar, construindo? Santa Bárbara, Lisboa, 22 Fevereiro Chegam-me ecos das Correntes d’ Escritas, onde lançámos quatro obras, cada um com episódios por contar. Por exemplo, a relação com a canção de italiana do «Adius», do Vasco [Gato]; o atribulado apuramento do romance-deriva do Paulo [José Miranda], «Aaron Klein»; por oposição à presteza com que o Luís [Carmelo] resolveu enfrentar fantasmas a partir de conversa na Mymosa; ou a origem folhetinesca de «A Grande Dama do Chá», do Fernando [Sobral] (ed. Arranha-céus). Concentro-me por hora, nas capas e ilustrações, orquestradas a alta velocidade, dos três volumes de ficção da abysmo. E, portanto, de novos logótipos. Cada um, e por ordem, a Carolina Moscoso, o Rui Rasquinho e a Susa Monteiro tornaram transparente a atmosfera que as palavras criaram. Temos ausências, evocações, indícios. Temos esboços de personagens, rostos, memórias, momentos. Metáforas. E abysmos no coração do monte. E o y como lugar de reunião. E ossos que fazem caracteres. Santa Bárbara, Lisboa, 23 Fevereiro Ramón: «o termómetro é a esferográfica da febre.”
Michel Reis h | Artes, Letras e Ideias200 anos de Vieuxtemps [dropcap]H[/dropcap]enri Vieuxtemps passou os dois últimos anos da sua vida em Mustapha, na Argélia, para onde se tinha mudado em 1879, e onde estavam instalados a sua irmã e cunhado, dando continuidade ao seu trabalho criativo, e compondo, pese embora frustrado pela sua incapacidade de tocar o que escrevia, os seus dois últimos concertos para violino,: o Concerto para Violino n.º 6 em Sol Maior, Op. 47 e, logo a seguir, o Concerto para Violino n.º 7 em Lá menor, Op. 49. A decisão de se instalar na Argélia prendeu-se com o facto da primeira apoplexia que sofreu em Setembro de 1873, em Bruxelas, que paralisou o seu braço direito, ter comprometido o seu cargo de professor no Conservatório dessa cidade, que seria assumido por Henryk Wieniawski em 1875, tendo o compositor perdido qualquer esperança de retomar a sua carreira em Bruxelas. Vieuxtemps mudou-se então para Paris, continuando a compor e conseguindo voltar a tocar música de câmara em privado, mas as suas tentativas de voltar a dar aulas no Conservatório dessa cidade não deram resultado. O Concerto para Violino Nº 6 em Sol maior, Op. 47, e o Concerto para Violino em Sol menor, Op. 49, foram ambos compostos no último ano da vida de Vieuxtemps, que atribuiu grande importância às obras, apesar de não ter conseguido fazer as revisões finais que poderiam ter sido possíveis caso tivesse conseguido ouvir a prometida interpretação do seu compatriota e aluno Eugène Ysaÿe. Dedicou o sexto concerto à violinista checa Wilhelmine Normand-Neruda e o sétimo a Jeno Hubay, ambos contando-se entre os seus visitantes na Argélia. O primeiro dos dois faz uso de uma forma incomum de quatro andamentos. Começa com um andamento em forma-sonata integral, com uma exposição para a orquestra e para o solista, este último encarregado do material lírico esperado. O segundo andamento é um suave Pastorale, seguido de um intermezzo, no qual o ritmo siciliano característico é dado ao solista num compasso composto de 12/8, enquanto a orquestra toca num simples compasso quaternário, uma experiência invulgar em ritmos contrastantes. O concerto termina com um Rondo final, sendo a sua encantadora melodia principal quase como algo do repertório operático leve. O sétimo concerto para violino, composto entre 1879 e 1881, o ano da morte do compositor, faz exigências ligeiramente maiores de virtuosismo que o sexto. O primeiro andamento, apresentado brevemente pela orquestra, oferece os dois temas na tradicional forma-sonata, que retornam em recapitulação em Mi menor e Lá maior, respectivamente, levando a uma coda brilhante. O andamento lento, intitulado Melancolie, é em Lá menor. Conduz a um andamento final com um tema de Tarantella de abertura, seguido de um tema de implicação espanhola, ecoado no seu acompanhamento orquestral. Vieuxtemps permaneceu um compositor activo quase até à sua morte, que ocorreu no dia 6 de Junho de 1881. O seu corpo foi transladado para a Bélgica onde foi recebido como um herói nacional e enterrado em Verviers, a sua cidade natal. Foi sem dúvida um dos maiores violinistas do seu tempo, combinando um comando técnico soberbo com uma compreensão musical muito profunda. Pode ser visto como o representante da escola franco-belga de violinistas, o sucessor de De Beriot, enquanto aqueles que foram ensinados por ele ou estiveram sob a sua influência directa incluem Eugène Ysaÿe, Jeno Hubay e Leopold Auer. Sugestão de audição: Henri Vieuxtemps: Violin Concerto No. 6/ Violin Concerto No. 7 Misha Keylin, violin, Slovak Radio Symphony Orchestra, Andrew Mogrelia – Naxos, 2004
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCinco da tarde [dropcap]A[/dropcap] Hora grave! E no entanto ainda pode acontecer uma súbita felicidade vinda de recôndito sentir quando estamos em pausa para um chá ou a escutar uma ovação ao nosso ser tão carente. Pode ser que se fale na vida imediata, dos encontros, das promessas, e até pode ser que nada aconteça e estejamos normalmente trabalhando. Faenas pela tarde podem ser associadas a mortes violentas, mas a nível mais institucional foram as da alba as mais letais: todos os condenados estavam marcados para as madrugadas altas, talvez por que a noite alta é uma cortina de ferro que não deixa ver o fatídico instante, e, a noite é como a morte, negra, já a levantar a sua alvíssima cortina de luz na fronteira com o dia. Nesta interpretação rigorosa a «viagem» era um prenúncio de aurora. Mas estranhos desígnios marcam o jovem Ano, e tudo vai dar ao mesmo discurso e situação: vírus, eutanásia, infectados, infectos, uma macabra manobra que suscita a nossa indagação mais profunda acerca do significado da vida. Andamos tão acorrentados nos dias que não se nos ocorre morrer, e se em outras versões estivermos agindo, é certo que o seu espectro também deverá andar longe, e nisto, sem que o saibamos, há manobras várias que nos indicam o provável destino breve. Por ora, Eros deve vencer Thánatos que não tarda aí a Primavera. São sequenciais estas ilações vistas pela perspectiva dos vivos que assim se crêem por manobras várias, dos mortos adiados, e até dos mortos vivos, que não superam a dúvida de um querer que se deseja distante, e quando próximo, que não fale da sobra, resquício de vida consentida. É grave a matéria de facto, e mais gravosa parece soletrada ao som desta recente epidemia, ou pandemia, ou peste… seja lá o que for no domínio da expansão, nós os vivos, pensamos sempre que se vira para cada um. Os mais alienados acham que é obra postiça para derrubar impérios e verter cálices sujos de teorias conspiratórias, mas, sendo lá o que for, a consequência é o que nos deve importar. Aos quase mortos que desesperam por se fazer passar daqui para fora a solução pode estar por um fio, tão frágil quanto o sopro de entregar a alma (caso a alma esteja ainda anexada ao seu servidor e a não tenha vendido no altar dos benefícios). É sempre prudente averiguar o grau de resistência e o que ela indica ao seu portador, não vá um milagre acontecer e nos vejamos privados de uma tão apoteótica visão, não é revertível o grau de derrocada que a falência orgânica contém, é certo, mas, nas sobras da vida há coisas que nem ela sabe contar. E soando o nosso último desejo, saibamos para tal que é ilusão, tal como a vida, não raro, também é sonho. Nesta desconfortável matéria de que a morte tão inefavelmente se reveste não há condições para abordagens fáceis nem os critérios que aqui são trazidos aumentam ou diminuem a sua força de ser. De certa maneira a nossa vida é uma escolha de morte – e quantos não pactuando, ainda endureceram posições sabendo do resultado delas? – Aqueles combatentes de causas…! E se mais não fosse, a volúpia dos desportos radicais que têm dentro o risco a todo o momento contornando esferas que pensamos quase impossíveis de lidar: são os riscos sadios dos condenados, uma estreita intimidade com a sua permanência, olhando o fim como um último grande desafio. Há ainda os que vão sem rede, preferindo jogarem-se com olímpica demonstração de lealdade. Vivemos muito? Não. Vivemos mais. Muito é uma medida artificial para designar a vida, quando ela se solta não sabemos mesurá-la nem estamos interessados nisso, e contudo, os revezes dos viventes fazem muitas vezes com que se procure morrer pondo um fim a isto tudo nessa tão dura aprendizagem na carne. Os suicidas são quase sempre insuspeitos e nunca formalizam tal questão, dentro de si travam a batalha, e são gigantes. Talvez que a morte seja mesmo uma questão de pudor, como o sexo e os mistérios, e só em harmonia com o vínculo galáctico nos possamos aproximar dela com respeito. Ao longo da civilização os poetas falaram destas coisas com os utensílios que faltavam, acrescentaram na nossa humanidade uma maravilha alada que só eles podem e sabem fazê-lo, aprendemos a escutá-los como se despertassem em nós os vínculos universais oprimidos ainda pelo grau da sobrevivência, deram-nos algo que não podemos esquecer nesta marcha suicida para um naufrágio consumado. Nem sempre foram os mais audazes defensores de si mesmos, nem tão pouco os mais bem ajustados à vida, a morte aparecia-lhes quase sempre cedo demais… as suas competências, porém, não vacilariam no dom imenso de uma vocação de quase perfeitos intérpretes. Nunca a vida lhes terá provavelmente parecido um gozo, e à sua maneira estranha conseguiram uma dignidade que não vem nos mapas. Gostaríamos de passar para o outro lado desta realidade tão severa e ameaçadora, mas, quando tudo se conjuga, o dever é estar atento. Até porque, já escolhemos a via, e deixamos para o imprevisto as suas faculdades, e também as nossas, ao lidar com ele. A finitude tem também um caminho longo, e esse caminhar é a nossa vida quotidiana, o tempo que passa, as cargas que vamos deixando, os prazeres que já não são prioritários, e essa melodia talvez nos toque melancolicamente ou com urgências entendíveis. Pensamos que soçobramos mais rápido, e é verdade, pensamos que a voragem das coisas é mais forte que o nosso entendimento, e se houver destino, que é muito diferente de biografia, reconheço que não se soçobra sem uma consciente dignidade. A liberdade está mais ampliada nas vidas que não tiveram intenções de julgar, pois que julgar é matéria estreita e conduz a erros ilusórios: o caso humano é muito vasto e devemos entendê-lo até na sua máxima baixeza para não ficarmos presos a soluções personalizadas. Nada se sabe desta matéria que se julgue ser entendível por transferes de ideias onde estão projectados os filtros dos nossos valores. Não é um tema, é uma escalada obsidional que transporta um coro. É tudo fantástico neste tempo, com aspectos de terror fantástico, pois que nem preparados estamos para o futuro, aquela marcha, que se entende melhor na voz de José Gomes Ferreira «viver sempre também cansa» que é diferente de viver para sempre, mas talvez por criogenia ou uma picada no dedo possamos ficar parados esperando um outro renascer. E também a frase de Pessoa «se te queres matar, por que não te queres matar?» que é diferente de: por que não te matas. Há esta subtil transferência de efeito que nos elucida mais que todos os discursos e promete alternativas tão vastas que ficamos esmagados no meio destas crenças várias.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasComo encontrei o amor em 10 dias [dropcap]N[/dropcap]o seu mais recente romance, Andrew Neill leva a sua técnica preferida, a ironia, à perfeição, a começar logo pelo título: «Como Encontrei o Amor em 10 Dias». O leitor mais distraído será levado a pensar tratar-se de um livro de auto-ajuda, que pretende ajudar-nos a encontrar eficazmente o amor, e num curto espaço de tempo. Mas o Amor é um Golden Retriever que fugiu do narrador do livro, John Walmsley, durante uma viagem que fizeram juntos numa carrinha a Pasadena, Califórnia, desde Denver, no Colorado. Numa das paragens que John faz numa Estação de Serviço, perde o Amor. O narrador conta-nos essa história de um modo simultaneamente divertido e reflexivo. «Tivemos sempre problemas em público, Amor e eu. Sempre que o chamava, com um tom mais severo – Amor, vem cá; ou Amor, senta –, caiam sobre mim olhares reprovativos, e nesse dia em que o perdi não foi diferente. Estava a pagar, dentro da Estação de Serviço, quando vejo o Amor sair a correr atrás de algum animal que viu. Deixei de imediato a carteira sobre o balcão, e virei-me a gritar “Amor, volta; Amor, volta”, para espanto das pessoas que estavam na fila, não se coibindo de fazerem comentários.» As reacções dos outros, não à relação entre John e Amor, mas entre John e quem eles julgam que possa ser, é uma constante no livro e sublinha o nosso ponto de vista usual na condenação pronta que fazemos aos outros ou, como Neill escreve: «Antes de tentar compreender, estamos já a condenar. Falar é sempre mais rápido do que reflectir, e muito mais distrativo também. Falar não custa nada e distrai-nos de nós mesmos. Há algum remédio mais eficaz para não pensarmos na merda de vida que temos do que falar mal de alguém ou de alguma coisa?» Evidentemente, Amor é um cão e não é um cão. É, porque se trata do Golden Retriever de John, e não é, porque ao longo do livro é sempre descrito como metáfora do próprio amor que todos nós perdemos na vida. Não só pessoalmente, cada um de nós a perder outro, mas a humanidade, ao entregar-se à fala, a um contínuo e imparável falatório, que tem como motor o mal. Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias», o mal é a fala e esta representa a distração, a falta de reflexão, no fundo, a falta de amor, pois este quer atenção, como a leitura ou a aprendizagem. Assim, o livro pode também ser lido como forma de aprendermos ou reaprendermos o amor, de como voltarmos à atenção perdida, como abandonarmos o mundo do falatório e começarmos a trilhar o caminho do amor. E, neste sentido é também um livro de auto-ajuda, ainda que num sentido mais alargado e talvez menos eficaz do ponto de vista comercial. De qualquer modo, o escritor consegue manter uma tensão contínua ao longo do livro entre realidade e simulacro, no tocante ao género Andrew Neill é conhecido pelas posições polémicas e assuntos delicados que trata nos livros que escreve e este romance não é diferente. Se estais lembrados, já em o «Não Conheço Esse Senhor», que provocou uma enorme celeuma nos EUA, Neill contava de modo irónico a história de um político desde a sua terra Natal, Gillette, pequena cidade em Wyoming, até Washington DC. Ian Bolden, o político, vai subindo na carreira através de situações e pessoas obscuras, e sempre que era confrontado pelos jornalistas acerca dessas ligações respondia «Não conheço esse senhor», apesar de haver fotos que o desmentiam. Ian Bolden mentia sem pudor, compulsivamente, adiantando as mais bizarras desculpas. A sua táctica mais arrojada, que era usada apenas quando já nada mais restava fazer para acreditarem nele, era a de que estavam a tentar destruí-lo. Diz num programa de televisão a uma jornalista que o entrevista, com um semblante entristecido: «Ellen, eu sei que parece que estou a mentir, que tenho culpa de tudo o que me acusam. Sei muito bem disso. Mas sabe porquê, Ellen, sabe porque todos pensam isso? Porque a teia de intriga que montaram foi muito bem feita. Aqueles que me querem destruir são muito poderosos. E eles sabem bem que eu sou uma pedra nos seus sapatos. Sabem que sou um obstáculo aos seus planos de subjugar o nosso país aos interesses das multi-nacionais.» Neste livro, o aproveitamento dos bens públicos para benefício próprio está tão ligado à prática comum da política, que não deixa de ser incómodo para toda a sociedade, para todo o eleitor, como quando Neill escreve, através de um cartaz que aparece nas mãos de Sherry Smith: «Votar é escolher aquele que te rouba». Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias» o tom é igualmente reflexivo, se bem que mais divertido. A ironia é levada ao extremo do seu rigor, da sua duplicidade. Para não estragar o fim àqueles que ainda não leram o livro, não poderei adiantar muito mais. Termino apenas por dizer que essa viagem de 10 dias no Oeste dos EUA em busca do Amor – e a do dia em que o perdeu – é uma viagem ao nosso quotidiano, ao nosso modo de vida mais próximo. Talvez mais do que «como encontrei o amor em 10 dias», o livro mostre «como acabei de me dar conta de que perdi o amor, em 10 dias». Seja como for, é um livro a ser lido, do melhor de Andrew Neill.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasMacau e a sua população em 1867 [dropcap]E[/dropcap]m 1810 residiam em Macau 3018 portugueses ou luso-descendentes (1172 homens e 1846 mulheres), 1025 escravos (425 homens e 600 mulheres), sem incluir padres e militares, segundo Almerindo Lessa, que refere, para 1822 haver 4215 cristãos (977 homens, dos quais apenas 604 maiores de 14 anos, 2701 mulheres e 537 escravos) e 8000 chineses, alguns vivendo já à europeia. Em 1825, os chineses eram 18 mil, número que em 1829 aumentou para 40 mil, dos quais 6090 já cristãos. No ano seguinte os chineses convertidos dobraram, apesar de terem diminuído em número e sem incluir a tropa, em Macau viviam 3351 europeus ou descendentes (1202 homens e 2149 mulheres), 1129 escravos (350 homens e 779 mulheres) e 148 de outras raças (30 homens e 118 mulheres). Em 1834, Macau contava apenas 90 pessoas nascidas em Portugal, sendo 1530 o número de mestiços, 2700 mulheres cristãs de várias raças e cores, 180 soldados canarins e 18 mil chineses, que pouco aumentaram em 1841, havendo 4788 europeus (portugueses, ingleses, holandeses, alemães, franceses, belgas, escandinavos e norte americanos) entre eles 580 homens, 2151 mulheres e 157 escravos. Existiam então 1770 fogos. De década para década na cidade os chineses dobravam em número e em 1860 chegavam aos 80 mil, numa população de 85.470 habitantes, composta também de parses, mouros e cristãos novos. Portugueses e macaenses eram 5239 almas, concentradas na cidade intramuros, onde a zona do Bazar já aí estava inserida. Hong Kong, que desde 1841 tinha sido entregue aos britânicos como paga da derrota chinesa na Guerra do Ópio, foi-se desenvolvendo rapidamente como cidade mercantil devido ao seu excelente porto de águas profundas, levando muitos dos residentes de Macau, atraídos por factores económicos, a mudarem-se para lá. Assim, chegados a 1867, a população de Macau contava, segundo Almerindo Lessa, “com cinco mil portugueses, 56.252 habitantes chineses, sendo 48.617 da província de Kuangtung, 5723 de Macau e 1797 de Fukien e aí viviam ainda sessenta famílias inglesas (17)” [estes 17 refere-se aos número de fogos], espanholas (29), italianas (3), francesas (4), peruanas (4), americanas (3), prussianas (3), holandesas (1) e chilenas (1). Nesse ano, na cidade existiam 762 fogos (casas) de portugueses, dos quais, 419 na freguesia da Sé, 263 na de S. Lourenço e 80 em Santo António. Havia ainda 8819 fogos chineses e o número de almas que neles habitava, somando com os criados chineses que se achavam servindo e pernoitando em casas de moradores portugueses e de diversos estrangeiros residentes, bem como os colonos e empregados nos estabelecimentos de emigração chinesa que, por vários motivos, não foram incluídos nos fogos, elevava o total da população chinesa a 56.252 pessoas, segundo o recenseamento de 1867. Fogos e vias públicas Na cidade cristã, nas 2672 casas chinesas habitavam 20.177 (do sexo masculino 11.781 e do feminino 8396 e desses, 948 eram menores de 12 anos); no Bazar, nas 2639 casas chinesas viviam 14.573 (masculinos 11.259 e femininos 3314 e desses, 264 menores); na povoação do Patane, em 1387 fogos residiam 8481 (3563 masculinos e 4918 femininos e entre esses 304 eram menores); na povoação de Mongh’a, existente antes de os portugueses chegarem a Macau, havia 353 habitações com 8182 chineses, (2391 masculinos e 5791 femininos e desses 1466 menores); na povoação de S. Lázaro, com 568 fogos viviam 2590 chineses (1113 masculinos e 1477 femininos e entre eles 195 menores), sendo onde habitava a maioria dos chineses convertidos ao Catolicismo; na Serra da Penha e sítio denominado Tanque Mainato estavam construídas 84 habitações onde se encontravam 533 chineses (313 masculinos e 220 femininos e desses 48 eram menores); na povoação da Barra para os 1716 chineses (1029 masculinos e 687 femininos e entre esses, 162 menores de 12 anos) havia 330 casas. Segundo Manuel de Castro Sampaio, chefe da Repartição de Estatística de Macau, as multidões de chineses que diariamente se viam pelas ruas, sobretudo do Bazar [nessa altura aí se ultimava a construção das suas cem vias públicas], podiam suscitar a ideia de uma maior população que os 56.252 chineses a aqui residir. Porém, grande parte dessas multidões era de chineses das ilhas circunvizinhas, pois naturais de Macau eram apenas 5723, sendo os restantes de Hong Kong 13, de Xangai 39, da província de Guangdong 48.617, da província de Guangxi 63 e da província de Fujian 1797. A exiguidade do número de chineses de Macau devia-se a estes se acharem principalmente em Cantão, nas colónias britânicas de Hong Kong e Singapura e em algumas ilhas da Malásia. De admirar era a tão grande desproporção entre os chineses de Guangdong e os de Guangxi, já que desde o reinado do Imperador Kang Xi ambas eram administradas e governadas pelo mesmo vice-rei, mas tal se devia a grande parte serem cantonenses provenientes da ilha de Heungshan, ligada pelo istmo a Macau. Os de Fujian, a maioria eram de Chincheu, uma das mais importantes cidades daquela província e onde os portugueses tiveram um estabelecimento comercial arrasado pelos chineses em 1549, oito anos antes da fundação de Macau. Também muitos dos chineses que percorriam a cidade, 15.590 habitavam a bordo das 2471 tancás, lorchas, taumões e outras embarcações pertencentes a Macau e estacionavam no Rio do Oeste e no mar, em frente à Baía da Praia Grande. Diariamente vinham à cidade para tratar de negócios e retiravam-se ordinariamente logo que os tivessem concluído. Quanto a haver maior número de habitantes chineses na cidade cristã do que no Bazar, em ambas a população masculina era semelhante, estando a diferença no sexo feminino. Tal devia-se, como acima foi referido, a serem eles criados que serviam e pernoitavam em casas de portugueses e de estrangeiros, bem como colonos e empregados nos estabelecimentos de emigração chinesa. O Bazar era quase exclusivamente habitado pelo sexo masculino e exemplo disso a Rua Nova d’ El-Rei, a mais populosa do Bazar, que tinha 1184 habitantes do sexo masculino e apenas 26 do feminino. No entanto, no Patane, em Mongh’a e em S. Lázaro havia mais mulheres do que homens. Das 180 vias públicas da cidade cristã, apenas em 16 não existiam inquilinos chineses, sendo muitas das outras habitadas somente por eles, que em grande parte viviam quase tão aglomerados como no Bazar. Em 1867, Macau contava com 526 vias públicas, havendo três praças, 18 largos, 105 ruas, 28 calçadas, 23 vielas, 112 travessas, oito escadas, 149 becos, 76 pátios, quatro praias [duas na cidade cristã, uma no Tanque do Mainato (na freguesia de S. Lourenço) e outra em Mong Há], duas ribeiras, a do Patane e a da Barra, para além de várzeas, campos e hortas, existindo ainda aterros, não fosse a península de Macau formada por sedimentação das areias do Rio Oeste (Xijiang) e do Rio das Pérolas (Zhujiang) trazidas pelo Mar do Sul da China.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasCaminho de Sahel [dropcap]L[/dropcap]onga estrada. Quantos anos têm estas palavras novas, já irisadas de dunas? Forma-se uma bolha, no tempo. Como uma erupção dermatológica que vai passar ou deixar marca. Na pele. Do deserto. Uma ruga nas areias assestadas ao vento. Como ombro defensivo. O dia mais pleno e a paisagem mais longa. A ociosidade que evolui nas dunas como as rugas do tempo a lavrar o rosto e com a lentidão inexorável que só ele sabe. Lembrar tantas coisas não vistas e não vividas. Tantas, que nelas nos encontramos. Que liberdade imensa só assim. Bem vês, estamos ali, mais longe do que o imaginado simplesmente nos dias iguais. Vou. E sei que nos encontramos lá. Para um chá perfumado de menta e um sol tórrido. A fugir. Lento. O toldo em franjas. Mas nada importa porque se coa a luz e o tempo pára. Em coisa escuras “para ser amadas entre a sombra e a alma”, como dizia Neruda. Ou lugares possíveis que dizias, estendendo a mão mapa. Tiravas da carteira esses catões de visita que sigo, a vir dar aqui. Onde haveria que voltar e sempre. É talvez por isso ou porque que não há dia maior do que o do deserto. Nem lugar que menos sombras ocultem. À luz, sem que tudo se faça visível, sem cantos sombrios e estátuas a encobrir a face que conta. Em segredo nas luzes da cidade. Olho para dentro deste copo de chá, que tenho entre as mãos. É preciso que na transparência do líquido não veja um chá deserto. Não me apanhes pela noite, viajante. Enquanto o chá me arrefece sem emenda nas mãos. E, pontual, chegou, como outras vezes, em sua vez a ausência. Há desertos de viagem, como objectos portáteis que trazemos connosco. E há os desertos grandes que se estendem ao olhar e, na comparação, os reduzem a ínfimas partículas de um punhado de areia, no enorme continente. Espraiamos os olhos como quem os atira ao mar. Refrescam a alma sedenta de correr como só o faz um chá quente. E quantas vezes – outras – à beira do deserto. Deserto do tórrido esplendor a sós. O ar do deserto. Move-se. Cedo ao perfume e à linguagem do chá no copo de vidro, a escaldar e a espalhar um aroma de menta. Das folhas sóbrias a acabar vida na beira do desvão do copo e um oásis. Abismar as pupilas mínimas e os lábios nessa fronteira do líquido transparente. E doce, sempre demasiado doce. Para lá, não há esquinas nem ângulos abruptos. Só esse mar. Em drapeados que não parecem temer nem acabar. O Sahel. Esta faixa quase árida de savana seca, com um verão chuvoso mas pouco. Lacrimal. Sahel é quase nome de anjo. Uma longa asa estendida à cintura de África, como quem dissesse, daqui para cima o deserto. Porque quando atraca a um território, revira-se a terra em alguns graus no eixo de rotação diário e cria desertos de longitude indeterminável. Mas agora as penas um muro. Uma barreira de árvores contra a vastidão crescente. Onde mais te poderia encontrar? Neste terraço ressequido sobre o mar de luz. Nem precisava de me virar porque pressenti sem equívoco a enormidade que quase alteraria o eixo de rotação da terra de novo em mais uns graus. Não fora assim antes e seria bem outra a paisagem. Que a mudar, seria como a minha num minuto determinante. E mesmo se mais um grau apenas, da rotação, a mudar, muitos quilómetros de deserto novo sobre as terras limítrofes. Que deserto é tudo o resto. O que se instala. Sentes o poder? Veio, chegou antes de se anunciar. À beira do nada, a orla do estéril. Em contrição pelo aperto inclemente e do sol. Se alguns reconhecem a linguagem do deserto. Se ouvem as vagas como senão sentido, ouvido e amado. Secreto rumorejar de areias sob os pés, porque o restolhar é indiscreto, o sentir. Sair daquele ponto apontado no mapa. Nas entrelinhas de um mapa, encontramos por vezes quem voou sem destino e amarou em dunas. Uma trepidação lânguida do ar, como se toda a realidade a rescender do deserto da terra logo ali aos pés, num fumegar a respirar o calor intenso. Como se acabada de sair das trevas frias e ainda fumegante. Sahel, como outra franja de deserto qualquer. Percorrida de caravanas, de alforges repletos de coisas essenciais. Segredos. Armas. Coisas que o comum mortal não coloca na lista do necessário. Mas cada um sabe de si e do que transporta. Descalço-me. Os pés, a alma exaustos de caminhar. Os oásis existem, afinal. E depois, mais além não interessa mais do que o teu olhar indizível. Então estás aqui finalmente no meio deste nada. Nada mais carece de sentido nenhum. Porque cheguei, porque me sentei, descalcei as botas doridas e simplesmente rejeitei a possibilidade dessa dor menor entre o meu olhar e tu. Ali. Na minha frente e longe de tudo. Uma camada de tempo e abstracção. Mais que não seja desta dor insistente. No deserto, onde acampar senão na voz de uma voz amiga. No semáforo inclemente desse sol sem-abrigo nem destino. São vozes, as do deserto que nos toma. E quentes. Sobejantes ao sol que ilumina. A importância ou o esquecimento. Olho mais além. Ali está ele, parado, extático em espera. Ao apelo na atmosfera densa e tórrida, a inundar pulmões e alma de caminho, volta-se de frente e reconheço-o inconfundível. Cruzamentos nas linhas do mapa, da mão estendida. O relógio parado sem prazo a extinguir, fecho as folhas amareladas do sol a esta escrita. As palavras não crescem no deserto. A plenitude. Talvez. Longe da selva, urbana. Demasiado urbana. Onde cada pessoa é demasiado humana. E só ele, anjo. Mas as árvores crescem. Lentamente. A grande muralha verde contra o avanço do deserto. A verdade é chegar. Ninguém vem tão longe senão para se encontrar, ou um amor. O chá aromático, de folhas, no copo que rolo nos dedos e ainda a escaldar, o dirá. Senão o tempo.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasO Buda Dourado de Camilo Pessanha [dropcap]D[/dropcap]izem que foi o primeiro funcionário público português a pedir transferência para um território onde ninguém queria viver. Mas Alberto Osório de Castro vivia há já largos anos em Timor, para onde se havia trasladado de Moçâmedes. Era primo direito e amigo de Camilo Pessanha e, tal como este, juiz e poeta, além de arqueólogo e botânico amador. No verão de 1912, Osório de Castro passou por Macau e assistiu ao ritual matinal do despertar do poeta, como deixou escrito na página de memórias «Camilo Pessanha em Macau», publicada em 1942 na revista Atlântico. Aí descreve uma visita ao confrade na sua tebaida, isto é, a casa de Camilo à Praia Grande, onde hoje se acha um insípido hotel chinês, mais ou menos frente à chuchumeca da Solmar. Fechado no seu quarto, Camilo demorava a despertar, numa descrição do opiómano que se tornou famosa: “Diante da janela toda aberta, um Buda doirado de bronze, cujo rosto extático vagamente sorria, numa expressão de transcendente serenidade. Dois pivetes ardiam devagar ante a luz, em homenagem da terra e das almas, como depois me disse Camilo, ao Desconhecido. […] O Camilo fumava a longos haustos caladamente, e reanimava-se pouco a pouco como se o tocara vara de condão”. Por conta da legenda, é fácil prestar atenção ao ópio, e ficar por aí. Mas mais do que o causador de tantos dissabores para China, parecem-me bem mais interessantes as referências religiosas: a São Paulo e sobretudo ao curioso Buda doirado, a modos que a evidência de uma suposta adesão ao budismo. Na verdade, é uma «citação» indireta e até jocosa de Arthur Schopenhauer, que também era proprietário de uma estátua doirada de Buda, e que, de modo a alimentar o seu pensamento pessimista, fez amplo uso da versão distorcida e europeizada do Budismo que circulava à época. Junto com os pivetes ardendo em homenagem «ao [Deus] Desconhecido», são apropriações distanciadas, irónicas (tristes até, na sua descrença desolada), de elementos chineses e budistas, junto com o Deus Desconhecido, de que Paulo se fizera emissário em Atenas (Atos dos Apóstolos, 17.23). Houve quem, iludido por estes sinais inequívocos de descrença, quisesse ver em Pessanha um budista. Não entendendo a ironia, ignorando a China e ainda mais o Budismo, enredaram-se no folclore. E há mais deste budismo irónico em Camilo. Veja-se uma carta enviada a um amigo, de 1896, escrita de Mirandela após breve regresso a Portugal: “Continuo fatigadíssimo desta série de deslocações em que ando há dois meses — e que só virá a terminar daqui por cinco ou seis, outra vez no mesmo cabo do mundo. Um horror para quem está acostumado a dois anos e meio de quietação búdica.” Ironia, mais uma vez, e por vezes dolorosa, como nestoutra, de março de 1912: “Não sei se eu disse alguma vez ao Carlos Amaro que há no inferno chinês um terraço, — a torre da Amargura, — onde o condenado é levado ao cabo de cada ciclo de tormentos e de onde vê tudo o que se está passando no mundo distante e pode interessar-lhe o coração”. Para quem muito entendia da China e dos seus mundos, quer a quietação búdica quer a Torre da Amargura, às quais junto o Buda doirado, são pequenos e amargos jogos, não tanto com a China em sim, mas com uma certa visão dela. Por um lado, Camilo Pessanha sabia que o buda schopenhauriano ou o budismo quietista-niilista eram distorções europeias de realidades asiáticas; por outro, sabia também que o seu olhar seria sempre o de um europeu descrente, de algum modo e por isso mesmo, sempre condenado às distorções.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAbóbada tubular [dropcap]E[/dropcap]xistir num corpo não é estar dentro de uma anatomia. Somos estendidos num túnel, num tubo temporal. Há uma enorme dificuldade em comunicar a experiência do estender temporal que põe o corpo a ser tubular. Olho pela janela e encontro o mesmo céu de há 30 anos. Há uma ligação imediata entre o céu de agora e o céu de há trinta anos. Os trinta anos são um abcesso que não aparece. O mesmo se passou com o dicionário que vejo sobre a minha secretária. vi-o numa Livraria em Freiburg e depois em casa. O transporte do livro trouxe-o e ao mesmo tempo deslocou-o. Como penso a desmaterialização? Penso sempre que nunca há desmaterialização, que o que há é a matéria e contudo a maior parte do tempo as pessoas não existem, antes de terem nascido e depois de terem morrido, as coisas não têm realidade antes de terem realidade e depois de se terem desintegrado. O meu corpo desrrealiza-se, desmaterializa-se. Entre continuamente num túnel, num tubo que mantem a sua realidade metafísica e lhe permite telecinética e telepatia e o transporte de um sítio para o outro mas está continuamente a deixar de estar no sítio em que está e se está no mesmo sítio está continuamente a deixar de ser no tempo em que era para ser no tempo em que é agora e no sítio em que existe agora ou onde for. O corpo que chega de uma viagem é um corpo diferente do corpo que inicia a viagem, desmaterializou-se, desrealizou-se, passou para um domínio do onírico e não apenas por está mais cansado ou diferente, mas porque não é recuperado, não está no mesmo sítio, nas mesmas coordenadas do GPS, na mesma situação existencial, o carro em que se encontra é irrecuperável e se compararmos com a memória nítida que temos dos momentos iniciais da partida, sabemos que são momentos irrepetíveis, não podemos entrar nesse carro, esse carro é o mesmo carro, mas já não podemos entrar nele, já não existe, já se desmaterializou, agora é o carro que acabamos de arrumar, de onde saímos, fechamos e trancamos a porta, está continuamente a ser trancado e podemos acelerar o processo de blindagem ao percebermos que a cada instante a secção circular ou global de cada tubo temporal fica irreversivelmente inacessível ao portal da realidade, do tempo da realidade, ao tempo e ao espaço da realidade. Fica acessível ao portal virtual do tempo e do espaço da realidade virtual, onde podemos navegar e ir com o nosso corpo ou os nossos corpos de que nos armamos e com que forramos as nossas existências reais com que nos transmutamos e metamorfoseamos, sem dúvida, mas só para perceber que há uma diferença entre transpor esse portal e não o transpor. Mas percebemos que há continuamente barreiras que estão a ser erigidas ou portas temporais, cascatas temporais, que não permitem aceder às galerias abobadais que estavam presentes justamente há pouco, mesmo agora, no lugar exacto onde estávamos, quase no mesmo preciso instante do mesmo agora. O ser é o ir, o ir é o deixar de ser que desmaterializa e continuamente concretiza ou materializa mas existe no arco tenso de que não nos apercebemos. Somos o portal onde se abre e fecha, onde se dá a materialização e a desmaterialização do ser ainda a devir. O nosso percurso no túnel existencial, no globo universal na sua deslocação temporal tubular é uma nave, uma nau como os antigos bem viram como quando olhamos o céu e vemos as nuvens passar e pensamos que estão paradas e somos nós que nos deslocamos ou então que estamos parados algures na Terra, e que é ela no seu todo que se desloca errando vagabunda pelo vasto cosmos. Somos portadores da totalidade complexa da cápsula em que estamos submersos, o espaço estrutural que está continuamente a fazer-se e a desfazer-se, a refazer-se o projecto é o lance que de antemão está a antecipar no seu todo o sentido do momento seguinte.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUma fotografia [dropcap]A[/dropcap] fotografia enquanto objecto mudou irremediavelmente desde a aparição dos telemóveis com câmara. Deixou de ter custos. Deixou de ser uma actividade que exige equipamento ou disposição específicos. Transformou-se num acto trivial radicado num dispositivo cada vez mais presente. Toda a gente tem um telemóvel com câmara, toda a gente tira selfies, toda a gente regista – com mais ou menos frequência – os seus dias. Existem até pessoas cuja profissão é documentar fotograficamente as suas vidas, numa espécie de matrioska auto-referencial em que se perde o norte magnético do que é real e do que é encenado, ficando o sujeito do registo inadvertidamente reduzido a actor de si mesmo na maior parte do tempo. Daqui a uns anos, quando o foco da atenção recair noutro epifenómeno mediático qualquer e as criaturas influenciadoras deixarem de ter palco suficiente para acomodar os seus egos, teremos pelo menos como consequência catita a ampliação do manual de diagnóstico de doenças psiquiátricas. A consequência deste fenómeno de sublimação do objecto fotográfico é a de já ninguém ou praticamente ninguém tirar fotografias analógicas (exceptuando porventura alguns fotógrafos apostados em provar que o filme não esgotou as suas potencialidades e hipsters de toda a sorte dispostos a fazer tudo pela medalha do vintage). Além disso, e embora não faltem impressoras fotográficas, muito pouca gente imprime as fotos que tirou com o telemóvel, pelo que a arte de aborrecer pessoas ao jantar com as fotos ou os diapositivos de férias se perdeu definitivamente algures a meio da segunda década deste século. Há uns dias descobri em arrumações umas fotos antigas do meu filho, de quando ele devia ter uns três ou quatro anos de idade. Para mim, que tenho uma memória de peixinho de aquário, encontrar fortuitamente uma fotografia em papel equivale a abrir uma fresta arqueológica sobre a vida. Aquela criança é o meu filho, não tenho dúvidas; mas é também outra coisa: é a evocação de um nexo de possibilidades que a vida se encarregou – bem ou mal – de afunilar. O meu filho é autista. Naquela fotografia o autismo era ainda um diagnóstico a prazo. Com intervenção precoce, suplementos de toda a espécie e dedicação monástica, tudo se resolveria a tempo de ele entrar para a escola e de ser apenas mais uma criança estupidamente irritante ao lado das outras. Era nisso que eu, a mãe e a maior parte dos médicos e terapeutas acreditávamos. O autismo era um percalço desafortunado que poderíamos converter numa monótona normalidade. O meu filho continua a ser autista. Tem dezasseis anos e está praticamente da minha altura. O autismo nele nota-se mais, luz mais. Quando ele tinha três anos o autismo era apenas uma nota de rodapé de uma criança que ainda podia ser tudo. Agora as pessoas vêem primeiro o autismo e só depois, a virar a esquina, o adolescente. Pelo que quando olho para aquela foto do Gui, a sorrir um sorriso que o futuro ainda não desbotara, a custo contenho as lágrimas. Entre o meu filho aqui e agora e aquela criança pluripotencial há um mundo de batalhas e de derrotas. Um mundo que só eu conheço na sua imensidão de percalços e de caminho às escuras, um mundo que se impõe repentinamente e que, cabendo dentro daquela fotografia, o transcende como a paisagem transcende a janela. Um mundo que já não existe e do qual sou portador para todo o sempre.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasO Eutanázio excelentíssimo [dropcap]D[/dropcap]e um momento para o outro, o combustível foi derramado e não houve quem não se pronunciasse. Chama-se a isto respeitinho pela santa “agenda”. Se não é uma doença ou um acidente de monta, é um escândalo de corrupção, um deslize de um político, a localização do aeroporto ou um tema dito quente “quentinho”. As pessoas adoram aquecer-se à lareira das indigestões comestíveis e aí, bem sentadas, começar a procurar verdades, muitas verdades. Como se fosse o jogo do raspa ou uma máquina de ‘vending’ cheia de avarias e intermitências. Desta vez foi a eutanásia. No tempo dos guarda-chuvas, havia ideologias que serviam as verdades de graça e o pessoal cansava-se menos. Nas eras dominadas pelas sombrinhas teológicas ainda era mais fácil, mesmo quando os deuses e os estalines se drogavam ou matavam quem lhes apetecia. Nada melhor do que uma boa cobertura com varetas sólidas. Facilita realmente a transpiração das ideias e o dia-a-dia de todos nós, pobres mortais. Estilando as franjas do meu pobre córtex, a questão ter-se-ia resumido a isto: se assino um papel agora – parece que ainda estou lustroso e refulgente! -, não sei o que irei desejar mais tarde no chamado momento X (em que a cabecinha pode já não responder lá muito bem). Por outro lado, se adiar a assinatura do papel para um momento posterior dito crucial, o que poderei eu então vir a decidir, se, pelo caminho, a máquina ficar toda KO? O melhor é mesmo não assinar. A eutanásia só servirá, portanto, para quem está particularmente lúcido no momento em que desejar pôr termo à vida. E essa lucidez existirá? Mistério. Antero de Quental explicaria melhor. Rendo-me, pois, ao lado de fora das grandes verdades. É lá é que eu estou bem: ao luar e a ler. A propósito de leituras, o escritor brasileiro Dalcídio Jurandir deu à estampa em 1941, ano do grande ciclone em Portugal, o romance ‘Chove Nos Campos de Cachoeira’. Na narrativa, o protagonista chama-se Eutanázio. É um ser sofredor, claro está. A primeira referência que lhe é feita (coisa pensada na cabeça do seu irmão Alfredo), faria logo babar Schopenhauer: “Voltar para o chalé era, muitas vezes, ter de olhar na saleta o vulto de Eutanázio sozinho com aquela cara amarrada. Era tentar compreender por que motivo Dª. Amélia não lhe explicava a doença de Eutanázio, misteriosa moléstia essa que parecia invadir todo o chalé”. Na realidade, o pobre do Eutanázio pensava – cito – “que tinha a doença toda do mundo na sua alma. Vinha sofrendo desde menino. Desde menino? Quem sabe se sua mãe não botou ele no mundo como se bota um excremento? Sim, um excremento” (…) “Ele saltou de dentro dela como um excremento “(…) “A gravidez fora uma prisão de ventre”. Esta fina plasticidade literária recheada por astutas metáforas conduz-nos, já se vê, ao cerne das grandes questões da humanidade: de onde vimos e para onde vamos? Eutanázio medrou do bolo fecal e a sua escolha escatológica, ou seja, a que recai nos fins últimos, bem teria carecido da erudição que grassou nos recentes debates em Portugal sobre a eutanásia. Eu aconselharia o romance ‘Chove Nos Campos de Cachoeira’ do escritor paraense para o programa nacional de leitura. Os defensores de um possível futuro referendo idolatrá-lo-iam como se fosse ginja de Óbidos.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO pacto [dropcap]N[/dropcap]ada do que é inumano nos é estranho! – Como é? – Ao contrário do que dizia Terêncio, a humanidade é uma raridade… e tem de ser provocada. Nós navegamos no inumano. – Triste. – Sobre isso não conjecturo. Apenas constato. – E como chegaste a essa ideia? – Nem é sequer uma ideia, é uma evidência. Chegou-me da odisseia pífia do americano Michael Hughes, que morreu na semana passada durante uma tentativa de demonstrar que a Terra é plana. Hughes, conhecido como “Mad Mike”, construiu um foguete movido a vapor, no seu jardim, com a ajuda de um amigo. E contou à imprensa que o seu objetivo era subir 1.500 metros acima do nível do mar para provar que a Terra não é redonda, mas tem “a forma de um disco voador”. Só que o foguetão explodiu-lhe nos braços… Bom, começo por discordar do Mad Mike no formato da Terra, apostaria no da pera-rocha, ou no das orelhas do defunto Vasco Pulido Valente, esse pensador sempre alerta… – Deixa-te de sarcasmos! – Bizarro que o Mad Max confiasse nos conhecimentos tecnológicos do amigo, que se apoiava em informações extraídas da net, mas não confiasse nas fotografias tiradas por satélite: vês congruência nisto? A pobre criatura era acometida por dois males: o de má-fé quanto à plausibilidade do conhecimento que o mundo lhe poderia oferecer, só aceitando a “prova” que ele mesmo engendrasse; e duma enorme incapacidade de aprendizagem, dado que contrapunha às evidências o “modelo abstracto” que a cultura dos terraplanistas lhe implantou no cérebro. O Mike fugia da realidade como o diabo foge da cruz. – Mas isso é estupidez, não é inumanidade… – Olha que sim, as feridas que provocam aqueles que denegam a realidade e a deixam exangue, exilando-a, são incicatrizáveis. Esta crueldade é inumana… Não há crime maior do que negar à realidade o coração e o lume… É como pôr um recém-nascido a “chutar” absinto… – Queres dizer que estamos rodeados de junkies? – Duvidas? Quem nega com tamanha sanha a realidade torna-se junkie, terraplanista, fanático-abstracto… – Os platónicos não negam a realidade? – Não, estabelecem que esta esfera cá em baixo é menos perfeita que a ideal, mas não negam a esfericidade. É uma questão de sobre-significação, de foco e detalhe… Já o Mad Mike escamava viciosamente qualquer mínima parcela da realidade para a classificar como um peixe. Se de uma pedra não obtinha escamas, jurava que era um peixe congelado há oito mil anos e chegado da Antártida, novo território de todos os delírios… Digo-te, negar a realidade é o mecanismo entranhado de quem não se quer comprometer… E não só politicamente, a cobardia entrou em força nas artérias dos inumanos… Olha as igrejas… – Não sei se te acompanho. – Vai à Universal, a fé, neles, é o simulacro que permite o voyeurismo do demónio alheio. Ah, assistir ao demónio do outro a ser caçado! E nesta barretada, cobarde, o dízimo é o engendramento capitalista da dizimação da fé… – Estás a fazer trocadilhos. – É mais do que isso… Hoje a única subversão política que se mantém de pé encontramo-la no mito do Fausto… – Tens cada uma! – Olha que não! Depois do Marx só o Fausto. Ao pobre o que resta, se as narrativas da emancipação derrocaram como castelos de cartas? O que resta ao empreendedor com boas ideias, mas sem financiamento? Qual a hipótese para o talentoso, mas nascido na periferia da grande finança? Que melhor saída para o tipo que estudou e tem rasgo mas não tem cheta? – És um hermético, sabias? Desembucha… – A única coisa que lhes resta é vender a alma ao Diabo. O rico tem por si a herança e as leis que o protegem. Vender a alma é o expediente do corajoso contra a venda a conta-gotas do capitalismo. Por cada pobre que avance para o Pacto abate-se um operário explorado… Para quê passar por mais dificuldades? Sabes qual é a mensagem mais frequente dos anjos na Bíblia? – Vais dizer-me… – Levanta-te e apressa-te! – Queres tirar o negócio a Deus!? – Quero descapitalizá-lo, devolver-lhe a gratuidade! Hoje, a única missão é divulgar a disposição de Mefistófeles para nos restituir a dignidade… – A alma contra a dignidade? – Chega do quase-etéreo ideológico… Antes o carácter que a virtude. E ao fazeres o Pacto provas ao menos que és humano, é algo que já não te tiram: apegas-te ao real e a cada momento da tua finitude, antes da morte, a faceta mais áspera da realidade, ta tirar… – Hum, conheces quem o tenha feito? – O Brecht. Repara nesta tirada de 1926, tinha ele vinte e oito anos: «No dia em que já não restar mais nada para procurar na literatura, abandoná-la-ei. Quando queremos fazer um túnel, é preciso primeiro fazer a montanha. E se a tarefa de fazer a montanha é difícil, no fazer o túnel é que está o génio…», esta intuição não ocorre aos vinte e oito anos se não se fez o Pacto… – O que é que tu fazias se, para além de te borrares, te aparecesse esta noite o Mefistófeles propondo-te a assinatura do contrato? – Primeiro contratava o Iago e mandava-o entregar o mais belo casaco de vison do mundo à Melania Trump, em nome de um anónimo; para além de o pôr a forjar umas cartas de amor incandescentes da Melania para mafarrico, só para armar a confusão… o cornuto havia de deixar o mundo em paz por uns tempos… E depois comprava o Hoje Macau e aumentava cinco vezes o ordenado dos seus trabalhadores e o do seu director, para poderem finalmente montar um casino… – E para a tua mulher nada? – Ah, seria a croupier do casino e embutia-lha a alma no corpo, para que não pudesse vendê-la…
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasSobre a criação e as formas pictóricas. Tem a palavra K.S. Malévitch (tradução de Emanuel Cameira / colagem de Paulo da Costa Domingos) [dropcap]O[/dropcap] espaço é o receptáculo adimensional onde a razão deposita a sua criação. Possa também eu depositar a minha força criativa. Toda a pintura do passado e presente antes do suprematismo (escultura, arte verbal, música) foi escravizada pela forma da natureza e aguarda a sua libertação para falar na sua própria língua e não depender da razão, do sentido, da lógica, da filosofia, da psicologia, das diferentes leis de causalidade e das mudanças técnicas da vida. Foi então o momento da confusão babélica na arte. Até à data, a arte da pintura, da escultura, a arte verbal foram um camelo albardado com um monte de odaliscas, de imperadores egípcios e persas, de Salomões, de Salomés, de príncipes, de princesas com os seus queridos lulus, de caçadas e de Vénus luxuriantes. Até à data, não houve tentativas pictóricas enquanto tal, sem todos os tipos de atributos da vida real. A pintura foi uma gravata na camisa engomada de um cavalheiro e o espartilho rosa comprimindo a barriga inchada de uma mulher gorda. A pintura era o lado estético do objecto, mas nunca foi original, nunca teve um objectivo próprio. Os pintores foram magistrados, graduados da polícia que elaboravam diferentes actas sobre produtos deteriorados, roubos, assassinatos e vagabundos. Os pintores foram também advogados, alegres contadores de anedotas, psicólogos, botânicos, zoólogos, arqueólogos, engenheiros, mas não havia pintores criativos. O nosso movimento «itinerante» coloria vasos nas paliçadas da Pequena Rússia e tentava apresentar uma filosofia de banalidades. Na mesma altura, a juventude entregou-se à pornografia e transformou a pintura numa miscelânea sensual, lasciva. Não havia realismo pictural estabelecendo um objectivo próprio, não havia criação. Ainda não se pode considerar como criação uma composição com belas meretrizes nos quadros. Também não se pode considerar a idealização das estátuas gregas dessa maneira, pois só havia aí o desejo de aperfeiçoar o seu Eu subjectivo. Não se pode mais considerar desse modo as pinturas onde há excesso de formas reais: a pintura de ícones de Giotto, de Gauguin, etc…, não mais são que cópias da natureza. Só há criação nas pinturas onde aparece a forma que nada toma do que foi criado na natureza, mas que resulta das massas pictóricas, sem repetir e modificar as formas primárias dos objectos da natureza. O futurismo, ao proibir a pintura de pernas femininas, a cópia retratista, também afastava a perspectiva. Mas ele introduziu essa proibição, não em nome de uma pintura livre dos mencionados princípios do Renascimento, dos Antigos, etc…, mas sob o efeito da mudança do lado técnico da existência. A nova vida das máquinas e do ferro, o rugido dos automóveis, o brilho dos projectores, o ruído das hélices, despertaram a alma que roncava e se esvaía na cave dos erros listados. A dinâmica do movimento foi mote para destacar também a dinâmica da plástica pictórica. Mas o esforço do futurismo para fornecer uma plástica pictórica pura não foi, per se, coroado de sucesso: não pôde afastar-se do lado figurativo, em geral, e apenas destruiu os objectos em nome da obtenção de dinâmica. E essa última coisa foi obtida logo que metade da razão foi caçada, tal qual a velha trompa perante o hábito de ver os objectos por inteiro e de os comparar, incessantemente, com a natureza. Mas o que distancia ainda mais o futurismo do seu desígnio em alcançar uma plástica pictórica pura é o facto de, no quadro, a construção de objectos que passam velozmente dar a impressão do estado de movimento da natureza. Tratando-se de uma tarefa avançada, é indispensável operar com formas reais para obter essa impressão. Seja como for, no cubo-futurismo estamos diante de um ataque à integridade dos objectos, da sua fractura, da sua partição, o que nos aproxima da aniquilação do figurativo na arte da criação. Os cubo-futuristas reuniram todos os objectos na praça pública, quebraram-nos mas não os queimaram. Que pena! Arrancaram a pintura às casas de moda, às retrosarias, às lojas de artesanato e perfumarias, e o nosso século de máquinas e de betão armado vestiu-a. Os futuristas deixaram-se impressionar pela extraordinária força dos objectos que passavam a grande velocidade, pela sua sucessão rápida, e começaram a procurar maneiras de descrever a vida no seu estado contemporâneo. Quanto à construção do quadro, surgiu da descoberta, na sua superfície, de pontos em que a posição de objectos reais, aquando da sua ruptura ou encontro, permitia alcançar a velocidade máxima. A descoberta desses pontos pode ser feita arbitrariamente, independentemente da lei natural da física e da perspectiva. É por isso que vemos nas pinturas futuristas o aparecimento de fumo, de nuvens, do céu, de cavalos, de automóveis e de outros objectos em posições que não correspondem à natureza. E o estado dos objectos tornou-se mais importante que a sua essência e os seus sentidos. Vimos uma pintura fora do comum, uma nova ordem de objectos forçou a razão a vibrar, os críticos lançaram-se sobre a pintura como cães saltando de um portão. Deviam ter vergonha! Foi necessária uma enorme força de vontade para destruir todas as regras e arrancar a casca grossa da alma do academismo e cuspir na cara do bom senso. Honra lhes seja feita! Rejeitando a razão e propondo a intuição como subconsciente, os cubo-futuristas empregam ao mesmo tempo nos seus quadros, para seu próprio uso, formas criadas pela razão. A intuição não podia exprimir todo o subconsciente no plano real das formas particulares. Na arte dos futuristas, vemos todas as formas da vida real e, se elas são colocadas em lugares indevidos, tal não é feito inconscientemente, mas com uma justificação legítima e consciente, a de provocar a impressão do movimento caótico da vida contemporânea. A intuição só pôde encontrar novas belezas nos objectos já criados (cubismo). A razão, a intenção, a consciência são superiores à intuição. A razão cria uma forma completamente nova a partir do nada ou aperfeiçoa a forma primária. Da carroça à locomotiva, ao automóvel, ao avião. E, no entanto, atribuímos ao sentimento intuitivo uma superioridade, uma faculdade de prever e antecipar o tempo. Esse sentimento extrai as coisas sempre novas de uma certa vacuidade inconsciente para as fazer entrar na vida real. Na arte, não há evidências disso. A intuição procurou e encontrou o novo, o que é estético, apenas em objectos já criados. O objectivo precede a criação racional e a autoconsciência é um meio. A criação intuitiva, por seu turno, é inconsciente e não possui objectivo nem resposta precisa. As pinturas futuristas não justificam isso, o que é comprovado pela construção do quadro, pelo estabelecimento de uma ordem e pela questão da disposição dos objectos. Se considerarmos um qualquer ponto do quadro, encontraremos nele um objecto que se afasta ou aproxima, ou um espaço colorido incluído. Mas não encontraremos o essencial – a forma pictórica enquanto tal. O elemento pictórico não é aqui outra coisa senão a veste do objecto em questão. E a quantidade pictórica foi dada, a necessidade de grandeza da forma, para a sua própria finalidade, e não o contrário. Ao destacar nos quadros a dinâmica da plástica pictórica, como algo novo e sem destruir a figuração, a pintura futurista pode ser reduzida para a escala 1:20 sem perder a sua força de expressão. Parece-me que o movimento deve ser puramente colorido, de modo a que o quadro não perca nenhuma das suas cores. O movimento, a corrida do cavalo, da locomotiva, podem ser representados por um desenho num só tom de lápis, mas não é possível apresentar o movimento das massas vermelhas, verdes, azuis. É por isso que é necessário recorrer directamente às massas pictóricas enquanto tais e buscar nelas as formas que lhes são próprias. Vemos que o futurismo volta-se sobretudo para os objectos e opera com eles, o que é preciso recusar em nome da criação pictórica pura de novas formas criativas. O dinamismo da pintura é tão-só uma revolta que transmuta as massas pictóricas do objecto para formas autárcicas que nada designam, isto é, para a hegemonia em relação às formas racionais; formas pictóricas que constituem o seu próprio fim para o Suprematismo, como novo realismo pictórico. Resumo: o Futurismo, através do academismo das formas, aponta para o dinamismo da pintura. O Cubismo, através da destruição do objecto, aponta para a pintura pura. E esses dois esforços, na sua essência, tendem para o suprematismo da pintura, para a vitória sobre as formas conformes ao propósito da razão criativa. Ao examinar-se a arte cubista, coloca-se a questão de saber por que energia dos objectos se tornou o sentimento intuitivo interessante e activo? Veremos que a energia pictórica era secundária, não sendo a pintura o lado estético da construção que sai das relações mútuas das massas coloridas. Quanto ao objecto em si, quanto à sua essência e destino, quanto ao significado e à vontade de o representar de maneira mais completa (como o pensam muitos cubistas), tudo isso foi também uma preocupação inútil. O sentimento intuitivo descobriu uma nova beleza nos objectos – a energia da dissonância que resulta do encontro de duas formas. Os objectos contêm uma infinidade de momentos temporais, o seu aspecto é variado e, por conseguinte, a sua pintura também é variada. Todos esses aspectos temporais dos objectos e a sua anatomia (camada de madeira, etc…) tornaram-se mais importantes que a essência e foram tomados pela intuição como meio para construir a pintura; graças a isso, esses meios foram construídos de tal forma que a natureza inesperada do encontro de duas estruturas anatómicas resultaria numa dissonância de extrema força tensional, o que justifica o aparecimento de partes de objectos reais em locais que não correspondem à natureza. Assim, em benefício das dissonâncias dos objectos, privamo-nos de ter uma representação da totalidade do objecto. Podemos dizer, com alívio, que deixámos de ser camelos de duas bossas, carregados com a confusão acima mencionada. O objecto pintado de acordo com o princípio do cubismo pode ser considerado acabado quando a sua dissonância se esgota. Todas as partes repetidas podem ser omitidas pelo pintor. Mas se o pintor encontra pouca tensão na pintura, é livre de retirá-la de outro objecto. No princípio do cubismo existe ainda uma tarefa preciosa, a de não restituir os objectos, mas de pintar o quadro. Mas, no cubismo, ainda não se justifica a posição segundo a qual toda a forma real que não é criada pela força da necessidade da pintura é um acto de violência sobre esta última. Se nos últimos milénios o pintor buscou o objecto, o seu significado essencial, se tentou justificar a sua aplicação, na nossa era cubista o pintor destruiu o objecto enquanto tal, com o seu significado, sua essência e sua finalidade. Os objectos, as coisas do mundo real desapareceram como fumo para uma nova cultura da arte. E os meus olhos podem ser vistos num museu de curiosidades, como atributos medievais, para passar em revista o mundo dos objectos. O cubismo e o futurismo criaram o quadro a partir de detritos e fragmentos de objectos em prol das dissonâncias e do movimento. A intuição foi esmagada pela energia dos objectos e não alcançou o objectivo autónomo da pintura. Os quadros cubo-futuristas foram criados de acordo com vários princípios: O princípio da escultura pictórica artificial (modelagem das formas). O da escultura real (colagem), do relevo e do contra-relevo. O da palavra. No cubismo a pintura era expressa principalmente na superfície plana; antes dele a superfície plana era como um meio de iluminação! No que diz respeito às superfícies pictóricas planas no cubismo, elas não constituíam um fim em si mesmo, mas serviam, pela sua forma pictórica, para a dissonância. E a sua própria forma era tal que podia proporcionar uma forte dissonância com as linhas rectas, curvas, etc… que se dirigiam para ela. Cada superfície pictórica plana transformada num relevo pictórico proeminente é uma escultura artificial, e qualquer relevo saliente transformado numa superfície plana é pintura. Assim, na arte pictórica, a intuição não criou formas que derivam da massa da matéria pictórica; de um bloco de mármore não se derivou a forma que é própria do cubo, do quadrado, da esfera, etc… Encontramos a exaltação da intuição pelas combinações no quadro. Mas a intuição também foi exaltada pela pintura de um vaso sobre uma paliçada, por um girassol pintado… Os horrores representados nas pinturas do corpo humano e de outras formas provêm de a vontade criativa estar em desacordo com essas formas, encabeçando a luta do pintor para poder sair do objecto. Até agora, a vontade criativa fez parte das formas reais da vida. E a fealdade é o combate da força criativa devido à tristeza do encarceramento. Em arte, chamarei a essa força criativa, a essa vontade, A.B., Abismo, como meio de proteger a autonomia de toda a arte, cujas formas serão uma nova revelação do realismo pictórico das massas, dos materiais, da pedra, do ferro e de outros. Assim, por exemplo, ao bloco de mármore não é adequada a forma humana. Miguel Ângelo, ao esculpir David, violentou o mármore, mutilou um pedaço de pedra magnífica. Não havia mármore, havia David. E ele estava profundamente enganado se dissesse que fez sair David do mármore. O mármore estragado foi contaminado desde início pelo pensamento de Miguel Ângelo sobre David, pensamento que ele inscreveu na pedra e que depois soltou como uma lasca de um corpo estranho. É preciso deduzir do mármore as formas que decorreriam do seu próprio corpo, e um cubo esculpido ou uma outra forma é mais precioso do que qualquer David. O mesmo se passa na pintura, na literatura, na música. A aspiração das forças artísticas em conduzir a arte na direcção da razão levou ao momento zero da criação. Mesmo entre os indivíduos mais expressivos, as formas reais têm a aparência da fealdade. A fealdade foi empurrada entre os mais expressivos quase até ao ponto do seu quase desaparecimento, sem sair do âmbito do zero. Mas eu transfigurei-me no zero das formas e fui além do 0-1. Considerando que o cubo-futurismo cumpriu as suas tarefas, passo para o suprematismo, para o novo realismo pictórico, para a criação não-figurativa. A seu tempo, falarei do Suprematismo, da pintura, da escultura e da dinâmica das massas musicais. Junho de 1915. Moscovo. tradução de: “Du Cubisme au Suprématisme en Art, au Nouveau Réalisme de la Peinture en tant que Création Absolue” K. S. Malévitch De Cézanne au Suprématisme (premier tome des écrits), Éditions L’Âge d’Homme, Lausanne, 1974, pp. 37-43
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasBreve inventário das coisas impossíveis Take your cracked violin Let the music begin And sing like you’re Francis Hoboken If your voice is all shot It’s still the best one you’ve got Paddy McAloon (Prefab Sprout) [dropcap]U[/dropcap]ma das boas notícias parece-me ser esta: um tipo tem uma afeição musical que se transforma em interesse e na fronteira com a obsessão patológica. Um tipo – por conveniência da narrativa e do anonimato irei designá-lo por “eu” – acha, por exemplo e nesta lógica, que sabe tudo ou muito sobre, digamos, Sinatra ou Prefab Sprout. Mas se tudo correr bem acontece o que o agora desvairado profeta Morrissey lapidou em Cemetery Gates, canção de um disco perfeito dos The Smiths vinda à luz no cada vez mais distante 1986: “There’s always someone with a big nose who knows”. E há. O leitor, como é sábio, percebe que aqui o tamanho do apêndice é metáfora para um apelo à humildade e à escuta antes de começar a perorar furiosamente e carregado de certezas. Se esta atitude parece estranha à corrente destes dias é porque é. E mais: faz falta. Mas deixem que regresse ao que tenho para dizer. Tenho o privilégio de ter noites de amizade regulares que incluem descobertas e cumplicidades musicais. Por vezes – tantas vezes – fazemos de DJ de emoções, escolhendo canções conhecidas ou não mas destinadas a fazer explodir as emoções do outro. Assim uma espécie de drones dos afectos, só que mais devastadores e personalizados. Foi numa dessas noites que conheci a canção cujos versos estão em epígrafe. Isto não é coisa pouca para quem é fanático de Prefab Sprout. E como se não bastasse, para um auto-proclamado sinatrólogo pior ainda. Reparai: aquele Francis Hoboken é o mestre em pessoa, nado e criado em Hoboken, New Jersey. McAloon, um admirador inveterado do songbook americano e caso extraordinário na bruma pop dos anos 80, prestou-lhe mais uma homenagem explícita (oiçam Hey Manhattan para ter outra prova). Foi o “big nose” que precisava para estar caladinho e grato. E o rastilho para estas palavras. Aquele título, só por si, é de uma beleza e abre possibilidades maravilhosas – até mesmo para não-utópicos como este vosso criado. Criar uma lista de coisas impossíveis está longe de registar os últimos desejos ou desejar a paz no mundo em cima de uma passerelle. Uma lista dessas pode ser algo belo porque inatingível. Por aí fui, com a noção de que os meus impossíveis valem o que valem. Mas a ambição destas crónicas é pelo menos inquietar. Ou fazer rir, o que vier primeiro. Enfim, aqui fica uma brevíssima lista de alguns dos meus impossíveis, sem ordem de importância: Ser lido e amado por quem me lê. Estar com gente de opiniões contrárias e discuti-las com argumentação, ideias e de preferência, rosto a rosto. Erradicar de vez e selectivamente a influência francesa na nossa academia e legislação em geral. Explicar a quem se julga com uma “missão” para nos salvar de alguma coisa (a “má literatura”, a “sociedade ideal”, a arte que deve ter sempre uma “mensagem”) que todos somos imperfeitos e que isso nunca irá resultar. Tentar aceitar de bom grado e com sensatez a “banal democracia da morte”. Considerar que Fernando Namora é um bom escritor. Considerar que amar alguém é cómodo. Achar que a história tem um sentido e é por ele que vamos. Esperar que a gentileza – a mãe e filha de todas as boas maneiras – regule o mundo. Nunca mais fazer listas de coisas impossíveis. Erigir uma estátua a Sinatra no Campo Grande. É a sua vez, leitor amigo. Lembre-se que esta lista do impossível não é mais do que uma espécie de lista de desejos e não um conto de fadas. Por isso, cuidado: se a realidade nos agraciar só teremos a nós para nos culpar.