Sobre a criação e as formas pictóricas. Tem a palavra K.S. Malévitch

(tradução de Emanuel Cameira / colagem de Paulo da Costa Domingos)

 

[dropcap]O[/dropcap] espaço é o receptáculo adimensional onde
a razão deposita a sua criação. Possa
também eu depositar a minha força criativa.

Toda a pintura do passado e presente antes do suprematismo (escultura, arte verbal, música) foi escravizada pela forma da natureza e aguarda a sua libertação para falar na sua própria língua e não depender da razão, do sentido, da lógica, da filosofia, da psicologia, das diferentes leis de causalidade e das mudanças técnicas da vida.

Foi então o momento da confusão babélica na arte.
Até à data, a arte da pintura, da escultura, a arte verbal foram um camelo albardado com um monte de odaliscas, de imperadores egípcios e persas, de Salomões, de Salomés, de príncipes, de princesas com os seus queridos lulus, de caçadas e de Vénus luxuriantes.

Até à data, não houve tentativas pictóricas enquanto tal, sem todos os tipos de atributos da vida real.
A pintura foi uma gravata na camisa engomada de um cavalheiro e o espartilho rosa comprimindo a barriga inchada de uma mulher gorda.

A pintura era o lado estético do objecto, mas nunca foi original, nunca teve um objectivo próprio. Os pintores foram magistrados, graduados da polícia que elaboravam diferentes actas sobre produtos deteriorados, roubos, assassinatos e vagabundos.

Os pintores foram também advogados, alegres contadores de anedotas, psicólogos, botânicos, zoólogos, arqueólogos, engenheiros, mas não havia pintores criativos.

O nosso movimento «itinerante» coloria vasos nas paliçadas da Pequena Rússia e tentava apresentar uma filosofia de banalidades.

Na mesma altura, a juventude entregou-se à pornografia e transformou a pintura numa miscelânea sensual, lasciva.

Não havia realismo pictural estabelecendo um objectivo próprio, não havia criação. Ainda não se pode considerar como criação uma composição com belas meretrizes nos quadros.

Também não se pode considerar a idealização das estátuas gregas dessa maneira, pois só havia aí o desejo de aperfeiçoar o seu Eu subjectivo.

Não se pode mais considerar desse modo as pinturas onde há excesso de formas reais: a pintura de ícones de Giotto, de Gauguin, etc…, não mais são que cópias da natureza.

Só há criação nas pinturas onde aparece a forma que nada toma do que foi criado na natureza, mas que resulta das massas pictóricas, sem repetir e modificar as formas primárias dos objectos da natureza.

O futurismo, ao proibir a pintura de pernas femininas, a cópia retratista, também afastava a perspectiva.
Mas ele introduziu essa proibição, não em nome de uma pintura livre dos mencionados princípios do Renascimento, dos Antigos, etc…, mas sob o efeito da mudança do lado técnico da existência.

A nova vida das máquinas e do ferro, o rugido dos automóveis, o brilho dos projectores, o ruído das hélices, despertaram a alma que roncava e se esvaía na cave dos erros listados. A dinâmica do movimento foi mote para destacar também a dinâmica da plástica pictórica.

Mas o esforço do futurismo para fornecer uma plástica pictórica pura não foi, per se, coroado de sucesso: não pôde afastar-se do lado figurativo, em geral, e apenas destruiu os objectos em nome da obtenção de dinâmica.

E essa última coisa foi obtida logo que metade da razão foi caçada, tal qual a velha trompa perante o hábito de ver os objectos por inteiro e de os comparar, incessantemente, com a natureza.

Mas o que distancia ainda mais o futurismo do seu desígnio em alcançar uma plástica pictórica pura é o facto de, no quadro, a construção de objectos que passam velozmente dar a impressão do estado de movimento da natureza.

Tratando-se de uma tarefa avançada, é indispensável operar com formas reais para obter essa impressão.
Seja como for, no cubo-futurismo estamos diante de um ataque à integridade dos objectos, da sua fractura, da sua partição, o que nos aproxima da aniquilação do figurativo na arte da criação.

Os cubo-futuristas reuniram todos os objectos na praça pública, quebraram-nos mas não os queimaram. Que pena!
Arrancaram a pintura às casas de moda, às retrosarias, às lojas de artesanato e perfumarias, e o nosso século de máquinas e de betão armado vestiu-a.

Os futuristas deixaram-se impressionar pela extraordinária força dos objectos que passavam a grande velocidade, pela sua sucessão rápida, e começaram a procurar maneiras de descrever a vida no seu estado contemporâneo.

Quanto à construção do quadro, surgiu da descoberta, na sua superfície, de pontos em que a posição de objectos reais, aquando da sua ruptura ou encontro, permitia alcançar a velocidade máxima. A descoberta desses pontos pode ser feita arbitrariamente, independentemente da lei natural da física e da perspectiva.

É por isso que vemos nas pinturas futuristas o aparecimento de fumo, de nuvens, do céu, de cavalos, de automóveis e de outros objectos em posições que não correspondem à natureza.

E o estado dos objectos tornou-se mais importante que a sua essência e os seus sentidos.
Vimos uma pintura fora do comum, uma nova ordem de objectos forçou a razão a vibrar, os críticos lançaram-se sobre a pintura como cães saltando de um portão.

Deviam ter vergonha!
Foi necessária uma enorme força de vontade para destruir todas as regras e arrancar a casca grossa da alma do academismo e cuspir na cara do bom senso.

Honra lhes seja feita!
Rejeitando a razão e propondo a intuição como subconsciente, os cubo-futuristas empregam ao mesmo tempo nos seus quadros, para seu próprio uso, formas criadas pela razão.

A intuição não podia exprimir todo o subconsciente no plano real das formas particulares.
Na arte dos futuristas, vemos todas as formas da vida real e, se elas são colocadas em lugares indevidos, tal não é feito inconscientemente, mas com uma justificação legítima e consciente, a de provocar a impressão do movimento caótico da vida contemporânea. A intuição só pôde encontrar novas belezas nos objectos já criados (cubismo).

A razão, a intenção, a consciência são superiores à intuição. A razão cria uma forma completamente nova a partir do nada ou aperfeiçoa a forma primária. Da carroça à locomotiva, ao automóvel, ao avião.
E, no entanto, atribuímos ao sentimento intuitivo uma superioridade, uma faculdade de prever e antecipar o tempo.

Esse sentimento extrai as coisas sempre novas de uma certa vacuidade inconsciente para as fazer entrar na vida real.
Na arte, não há evidências disso. A intuição procurou e encontrou o novo, o que é estético, apenas em objectos já criados.

O objectivo precede a criação racional e a autoconsciência é um meio. A criação intuitiva, por seu turno, é inconsciente e não possui objectivo nem resposta precisa.

As pinturas futuristas não justificam isso, o que é comprovado pela construção do quadro, pelo estabelecimento de uma ordem e pela questão da disposição dos objectos.
Se considerarmos um qualquer ponto do quadro, encontraremos nele um objecto que se afasta ou aproxima, ou um espaço colorido incluído.

Mas não encontraremos o essencial – a forma pictórica enquanto tal.
O elemento pictórico não é aqui outra coisa senão a veste do objecto em questão. E a quantidade pictórica foi dada, a necessidade de grandeza da forma, para a sua própria finalidade, e não o contrário.

Ao destacar nos quadros a dinâmica da plástica pictórica, como algo novo e sem destruir a figuração, a pintura futurista pode ser reduzida para a escala 1:20 sem perder a sua força de expressão.
Parece-me que o movimento deve ser puramente colorido, de modo a que o quadro não perca nenhuma das suas cores.

O movimento, a corrida do cavalo, da locomotiva, podem ser representados por um desenho num só tom de lápis, mas não é possível apresentar o movimento das massas vermelhas, verdes, azuis.
É por isso que é necessário recorrer directamente às massas pictóricas enquanto tais e buscar nelas as formas que lhes são próprias.

Vemos que o futurismo volta-se sobretudo para os objectos e opera com eles, o que é preciso recusar em nome da criação pictórica pura de novas formas criativas.

O dinamismo da pintura é tão-só uma revolta que transmuta as massas pictóricas do objecto para formas autárcicas que nada designam, isto é, para a hegemonia em relação às formas racionais; formas pictóricas que constituem o seu próprio fim para o Suprematismo, como novo realismo pictórico.

Resumo: o Futurismo, através do academismo das formas, aponta para o dinamismo da pintura.
O Cubismo, através da destruição do objecto, aponta para a pintura pura. E esses dois esforços, na sua essência, tendem para o suprematismo da pintura, para a vitória sobre as formas conformes ao propósito da razão criativa. Ao examinar-se a arte cubista, coloca-se a questão de saber por que energia dos objectos se tornou o sentimento intuitivo interessante e activo?

Veremos que a energia pictórica era secundária, não sendo a pintura o lado estético da construção que sai das relações mútuas das massas coloridas. Quanto ao objecto em si, quanto à sua essência e destino, quanto ao significado e à vontade de o representar de maneira mais completa (como o pensam muitos cubistas), tudo isso foi também uma preocupação inútil.

O sentimento intuitivo descobriu uma nova beleza nos objectos – a energia da dissonância que resulta do encontro de duas formas.
Os objectos contêm uma infinidade de momentos temporais, o seu aspecto é variado e, por conseguinte, a sua pintura também é variada. Todos esses aspectos temporais dos objectos e a sua anatomia (camada de madeira, etc…) tornaram-se mais importantes que a essência e foram tomados pela intuição como meio para construir a pintura; graças a isso, esses meios foram construídos de tal forma que a natureza inesperada do encontro de duas estruturas anatómicas resultaria numa dissonância de extrema força tensional, o que justifica o aparecimento de partes de objectos reais em locais que não correspondem à natureza.

Assim, em benefício das dissonâncias dos objectos, privamo-nos de ter uma representação da totalidade do objecto. Podemos dizer, com alívio, que deixámos de ser camelos de duas bossas, carregados com a confusão acima mencionada.

O objecto pintado de acordo com o princípio do cubismo pode ser considerado acabado quando a sua dissonância se esgota. Todas as partes repetidas podem ser omitidas pelo pintor. Mas se o pintor encontra pouca tensão na pintura, é livre de retirá-la de outro objecto.

No princípio do cubismo existe ainda uma tarefa preciosa, a de não restituir os objectos, mas de pintar o quadro.
Mas, no cubismo, ainda não se justifica a posição segundo a qual toda a forma real que não é criada pela força da necessidade da pintura é um acto de violência sobre esta última.

Se nos últimos milénios o pintor buscou o objecto, o seu significado essencial, se tentou justificar a sua aplicação, na nossa era cubista o pintor destruiu o objecto enquanto tal, com o seu significado, sua essência e sua finalidade.

Os objectos, as coisas do mundo real desapareceram como fumo para uma nova cultura da arte.
E os meus olhos podem ser vistos num museu de curiosidades, como atributos medievais, para passar em revista o mundo dos objectos.

O cubismo e o futurismo criaram o quadro a partir de detritos e fragmentos de objectos em prol das dissonâncias e do movimento.

A intuição foi esmagada pela energia dos objectos e não alcançou o objectivo autónomo da pintura.
Os quadros cubo-futuristas foram criados de acordo com vários princípios:
O princípio da escultura pictórica artificial (modelagem das formas).
O da escultura real (colagem), do relevo e do contra-relevo.
O da palavra.

No cubismo a pintura era expressa principalmente na superfície plana; antes dele a superfície plana era como um meio de iluminação!
No que diz respeito às superfícies pictóricas planas no cubismo, elas não constituíam um fim em si mesmo, mas serviam, pela sua forma pictórica, para a dissonância. E a sua própria forma era tal que podia proporcionar uma forte dissonância com as linhas rectas, curvas, etc… que se dirigiam para ela.

Cada superfície pictórica plana transformada num relevo pictórico proeminente é uma escultura artificial, e qualquer relevo saliente transformado numa superfície plana é pintura.
Assim, na arte pictórica, a intuição não criou formas que derivam da massa da matéria pictórica; de um bloco de mármore não se derivou a forma que é própria do cubo, do quadrado, da esfera, etc…

Encontramos a exaltação da intuição pelas combinações no quadro. Mas a intuição também foi exaltada pela pintura de um vaso sobre uma paliçada, por um girassol pintado… Os horrores representados nas pinturas do corpo humano e de outras formas provêm de a vontade criativa estar em desacordo com essas formas, encabeçando a luta do pintor para poder sair do objecto.

Até agora, a vontade criativa fez parte das formas reais da vida. E a fealdade é o combate da força criativa devido à tristeza do encarceramento. Em arte, chamarei a essa força criativa, a essa vontade, A.B., Abismo, como meio de proteger a autonomia de toda a arte, cujas formas serão uma nova revelação do realismo pictórico das massas, dos materiais, da pedra, do ferro e de outros.

Assim, por exemplo, ao bloco de mármore não é adequada a forma humana. Miguel Ângelo, ao esculpir David, violentou o mármore, mutilou um pedaço de pedra magnífica. Não havia mármore, havia David.

E ele estava profundamente enganado se dissesse que fez sair David do mármore. O mármore estragado foi contaminado desde início pelo pensamento de Miguel Ângelo sobre David, pensamento que ele inscreveu na pedra e que depois soltou como uma lasca de um corpo estranho. É preciso deduzir do mármore as formas que decorreriam do seu próprio corpo, e um cubo esculpido ou uma outra forma é mais precioso do que qualquer David.

O mesmo se passa na pintura, na literatura, na música.
A aspiração das forças artísticas em conduzir a arte na direcção da razão levou ao momento zero da criação. Mesmo entre os indivíduos mais expressivos, as formas reais têm a aparência da fealdade.
A fealdade foi empurrada entre os mais expressivos quase até ao ponto do seu quase desaparecimento, sem sair do âmbito do zero.

Mas eu transfigurei-me no zero das formas e fui além do 0-1. Considerando que o cubo-futurismo cumpriu as suas tarefas, passo para o suprematismo, para o novo realismo pictórico, para a criação não-figurativa.
A seu tempo, falarei do Suprematismo, da pintura, da escultura e da dinâmica das massas musicais.

Junho de 1915.
Moscovo.

tradução de:
“Du Cubisme au Suprématisme en Art, au Nouveau Réalisme de la Peinture en tant que Création Absolue”
K. S. Malévitch
De Cézanne au Suprématisme (premier tome des écrits), Éditions L’Âge d’Homme, Lausanne, 1974, pp. 37-43

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