O Eutanázio excelentíssimo

[dropcap]D[/dropcap]e um momento para o outro, o combustível foi derramado e não houve quem não se pronunciasse. Chama-se a isto respeitinho pela santa “agenda”. Se não é uma doença ou um acidente de monta, é um escândalo de corrupção, um deslize de um político, a localização do aeroporto ou um tema dito quente “quentinho”. As pessoas adoram aquecer-se à lareira das indigestões comestíveis e aí, bem sentadas, começar a procurar verdades, muitas verdades. Como se fosse o jogo do raspa ou uma máquina de ‘vending’ cheia de avarias e intermitências. Desta vez foi a eutanásia.

No tempo dos guarda-chuvas, havia ideologias que serviam as verdades de graça e o pessoal cansava-se menos. Nas eras dominadas pelas sombrinhas teológicas ainda era mais fácil, mesmo quando os deuses e os estalines se drogavam ou matavam quem lhes apetecia. Nada melhor do que uma boa cobertura com varetas sólidas. Facilita realmente a transpiração das ideias e o dia-a-dia de todos nós, pobres mortais.

Estilando as franjas do meu pobre córtex, a questão ter-se-ia resumido a isto: se assino um papel agora – parece que ainda estou lustroso e refulgente! -, não sei o que irei desejar mais tarde no chamado momento X (em que a cabecinha pode já não responder lá muito bem). Por outro lado, se adiar a assinatura do papel para um momento posterior dito crucial, o que poderei eu então vir a decidir, se, pelo caminho, a máquina ficar toda KO? O melhor é mesmo não assinar. A eutanásia só servirá, portanto, para quem está particularmente lúcido no momento em que desejar pôr termo à vida. E essa lucidez existirá? Mistério. Antero de Quental explicaria melhor. Rendo-me, pois, ao lado de fora das grandes verdades. É lá é que eu estou bem: ao luar e a ler.

A propósito de leituras, o escritor brasileiro Dalcídio Jurandir deu à estampa em 1941, ano do grande ciclone em Portugal, o romance ‘Chove Nos Campos de Cachoeira’. Na narrativa, o protagonista chama-se Eutanázio.

É um ser sofredor, claro está. A primeira referência que lhe é feita (coisa pensada na cabeça do seu irmão Alfredo), faria logo babar Schopenhauer: “Voltar para o chalé era, muitas vezes, ter de olhar na saleta o vulto de Eutanázio sozinho com aquela cara amarrada. Era tentar compreender por que motivo Dª. Amélia não lhe explicava a doença de Eutanázio, misteriosa moléstia essa que parecia invadir todo o chalé”.

Na realidade, o pobre do Eutanázio pensava – cito – “que tinha a doença toda do mundo na sua alma. Vinha sofrendo desde menino. Desde menino? Quem sabe se sua mãe não botou ele no mundo como se bota um excremento? Sim, um excremento” (…) “Ele saltou de dentro dela como um excremento “(…) “A gravidez fora uma prisão de ventre”.

Esta fina plasticidade literária recheada por astutas metáforas conduz-nos, já se vê, ao cerne das grandes questões da humanidade: de onde vimos e para onde vamos? Eutanázio medrou do bolo fecal e a sua escolha escatológica, ou seja, a que recai nos fins últimos, bem teria carecido da erudição que grassou nos recentes debates em Portugal sobre a eutanásia. Eu aconselharia o romance ‘Chove Nos Campos de Cachoeira’ do escritor paraense para o programa nacional de leitura. Os defensores de um possível futuro referendo idolatrá-lo-iam como se fosse ginja de Óbidos.

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