Uma fotografia

[dropcap]A[/dropcap] fotografia enquanto objecto mudou irremediavelmente desde a aparição dos telemóveis com câmara. Deixou de ter custos. Deixou de ser uma actividade que exige equipamento ou disposição específicos. Transformou-se num acto trivial radicado num dispositivo cada vez mais presente.

Toda a gente tem um telemóvel com câmara, toda a gente tira selfies, toda a gente regista – com mais ou menos frequência – os seus dias. Existem até pessoas cuja profissão é documentar fotograficamente as suas vidas, numa espécie de matrioska auto-referencial em que se perde o norte magnético do que é real e do que é encenado, ficando o sujeito do registo inadvertidamente reduzido a actor de si mesmo na maior parte do tempo. Daqui a uns anos, quando o foco da atenção recair noutro epifenómeno mediático qualquer e as criaturas influenciadoras deixarem de ter palco suficiente para acomodar os seus egos, teremos pelo menos como consequência catita a ampliação do manual de diagnóstico de doenças psiquiátricas.

A consequência deste fenómeno de sublimação do objecto fotográfico é a de já ninguém ou praticamente ninguém tirar fotografias analógicas (exceptuando porventura alguns fotógrafos apostados em provar que o filme não esgotou as suas potencialidades e hipsters de toda a sorte dispostos a fazer tudo pela medalha do vintage). Além disso, e embora não faltem impressoras fotográficas, muito pouca gente imprime as fotos que tirou com o telemóvel, pelo que a arte de aborrecer pessoas ao jantar com as fotos ou os diapositivos de férias se perdeu definitivamente algures a meio da segunda década deste século.

Há uns dias descobri em arrumações umas fotos antigas do meu filho, de quando ele devia ter uns três ou quatro anos de idade. Para mim, que tenho uma memória de peixinho de aquário, encontrar fortuitamente uma fotografia em papel equivale a abrir uma fresta arqueológica sobre a vida. Aquela criança é o meu filho, não tenho dúvidas; mas é também outra coisa: é a evocação de um nexo de possibilidades que a vida se encarregou – bem ou mal – de afunilar.

O meu filho é autista. Naquela fotografia o autismo era ainda um diagnóstico a prazo. Com intervenção precoce, suplementos de toda a espécie e dedicação monástica, tudo se resolveria a tempo de ele entrar para a escola e de ser apenas mais uma criança estupidamente irritante ao lado das outras. Era nisso que eu, a mãe e a maior parte dos médicos e terapeutas acreditávamos. O autismo era um percalço desafortunado que poderíamos converter numa monótona normalidade.

O meu filho continua a ser autista. Tem dezasseis anos e está praticamente da minha altura. O autismo nele nota-se mais, luz mais. Quando ele tinha três anos o autismo era apenas uma nota de rodapé de uma criança que ainda podia ser tudo. Agora as pessoas vêem primeiro o autismo e só depois, a virar a esquina, o adolescente. Pelo que quando olho para aquela foto do Gui, a sorrir um sorriso que o futuro ainda não desbotara, a custo contenho as lágrimas. Entre o meu filho aqui e agora e aquela criança pluripotencial há um mundo de batalhas e de derrotas. Um mundo que só eu conheço na sua imensidão de percalços e de caminho às escuras, um mundo que se impõe repentinamente e que, cabendo dentro daquela fotografia, o transcende como a paisagem transcende a janela. Um mundo que já não existe e do qual sou portador para todo o sempre.

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