Breve inventário das coisas impossíveis

Take your cracked violin
Let the music begin
And sing like you’re Francis Hoboken
If your voice is all shot
It’s still the best one you’ve got
Paddy McAloon (Prefab Sprout)

 

[dropcap]U[/dropcap]ma das boas notícias parece-me ser esta: um tipo tem uma afeição musical que se transforma em interesse e na fronteira com a obsessão patológica. Um tipo – por conveniência da narrativa e do anonimato irei designá-lo por “eu” – acha, por exemplo e nesta lógica, que sabe tudo ou muito sobre, digamos, Sinatra ou Prefab Sprout. Mas se tudo correr bem acontece o que o agora desvairado profeta Morrissey lapidou em Cemetery Gates, canção de um disco perfeito dos The Smiths vinda à luz no cada vez mais distante 1986: “There’s always someone with a big nose who knows”. E há.

O leitor, como é sábio, percebe que aqui o tamanho do apêndice é metáfora para um apelo à humildade e à escuta antes de começar a perorar furiosamente e carregado de certezas. Se esta atitude parece estranha à corrente destes dias é porque é. E mais: faz falta.

Mas deixem que regresse ao que tenho para dizer. Tenho o privilégio de ter noites de amizade regulares que incluem descobertas e cumplicidades musicais. Por vezes – tantas vezes – fazemos de DJ de emoções, escolhendo canções conhecidas ou não mas destinadas a fazer explodir as emoções do outro. Assim uma espécie de drones dos afectos, só que mais devastadores e personalizados. Foi numa dessas noites que conheci a canção cujos versos estão em epígrafe. Isto não é coisa pouca para quem é fanático de Prefab Sprout. E como se não bastasse, para um auto-proclamado sinatrólogo pior ainda. Reparai: aquele Francis Hoboken é o mestre em pessoa, nado e criado em Hoboken, New Jersey. McAloon, um admirador inveterado do songbook americano e caso extraordinário na bruma pop dos anos 80, prestou-lhe mais uma homenagem explícita (oiçam Hey Manhattan para ter outra prova). Foi o “big nose” que precisava para estar caladinho e grato.

E o rastilho para estas palavras. Aquele título, só por si, é de uma beleza e abre possibilidades maravilhosas – até mesmo para não-utópicos como este vosso criado. Criar uma lista de coisas impossíveis está longe de registar os últimos desejos ou desejar a paz no mundo em cima de uma passerelle. Uma lista dessas pode ser algo belo porque inatingível. Por aí fui, com a noção de que os meus impossíveis valem o que valem. Mas a ambição destas crónicas é pelo menos inquietar. Ou fazer rir, o que vier primeiro. Enfim, aqui fica uma brevíssima lista de alguns dos meus impossíveis, sem ordem de importância:

Ser lido e amado por quem me lê.
Estar com gente de opiniões contrárias e discuti-las com argumentação, ideias e de preferência, rosto a rosto.

Erradicar de vez e selectivamente a influência francesa na nossa academia e legislação em geral.
Explicar a quem se julga com uma “missão” para nos salvar de alguma coisa (a “má literatura”, a “sociedade ideal”, a arte que deve ter sempre uma “mensagem”) que todos somos imperfeitos e que isso nunca irá resultar.

Tentar aceitar de bom grado e com sensatez a “banal democracia da morte”.
Considerar que Fernando Namora é um bom escritor.
Considerar que amar alguém é cómodo.
Achar que a história tem um sentido e é por ele que vamos.
Esperar que a gentileza – a mãe e filha de todas as boas maneiras – regule o mundo.
Nunca mais fazer listas de coisas impossíveis.
Erigir uma estátua a Sinatra no Campo Grande.

É a sua vez, leitor amigo. Lembre-se que esta lista do impossível não é mais do que uma espécie de lista de desejos e não um conto de fadas. Por isso, cuidado: se a realidade nos agraciar só teremos a nós para nos culpar.

26 Fev 2020

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

[dropcap]A[/dropcap] pessoa exemplar é tolerante sem ser laxista; tem princípios sem ser opressora. Discute, mas não é belicosa; investiga com argúcia, mas não pretende causar espanto. É solitária sem ser superior e é forte sem ser violenta. É flexível e sabe ceder, mas tem escrúpulos. É respeitosa e cuidadosa, mas agradável. A isto se chama excelente boa forma. As Odes dizem, “Calorosa e respeitadora dos outros, a virtude é a sua única fundação.” Isto exprime o que quero dizer.

Quando a pessoa exemplar exalta as virtudes de outrem, ou elogia a excelência de outrem, tal não é nem lisonja nem bajulação. Quando aponta as falhas de outrem falando e acusando directamente, tal não é difamação nem calúnia. Quando explica como a sua excelência é similar à de Shun e Yu e forma uma tríade com o Céu e a Terra, tal não é gabarolice nem orgulho. Quando se dobra ou endireita segundo a ocasião, flexível como o junco, tal não é cobardia nem timidez. Quando mostra força inabalável e determinação feroz, sem ceder a nada, tal não é arrogância nem temperamento violento. Através de yi [justiça; propriedade], muda e se adapta com as circunstâncias, pois sabe quando é apropriado dobrar-se e endireitar-se. As Odes dizem:

À direita, à direita
A pessoa exemplar faz o que é apropriado.
À esquerda, à esquerda
A pessoa exemplar tem tudo controlado.

Isto diz-nos que, através de yi, a pessoa exemplar se dobra e endireita, mudando e adaptando-se com as circunstâncias.

A pessoa exemplar é o oposto do homem mesquinho. Se for grande o coração da pessoa exemplar, esta reverencia o Céu e segue o Caminho. Se o seu coração for “pequeno”, atém-se cautelosamente a yi e a si própria se regula. Se for inteligente, agirá com iluminada compreensão segundo as categorias apropriadas das coisas. Se não for culta, seguirá com escrupulosa honestidade o modelo apropriado. Se for escutada, será reverente e reservada. Se passar despercebida, será respeitadora e reservada. Se for feliz, será harmoniosa e bem organizada. Se for inquieta, saberá aplicar a calma. Se for bem-sucedida, será refinada e iluminada. Se for mal-sucedida, será controlada e circunspecta.

Não assim o homem mesquinho. Se for grande o seu coração, será arrogante e violento. Se o seu coração for “pequeno”, será perverso e dissoluto. Se for inteligente, será um ávido ladrão e trabalhará enganosamente.

Se não for culto, criará o caos como um vilão venenoso. Se for escutado, será avarento e arrogante. Se passar desapercebido, será ressentido e perigoso. Ser for feliz, será fútil e caprichoso. Se for inquieto, será frustrado e cobarde. Se for bem-sucedido, será altivo e parcial. Se for mal-sucedido, ficará deprimido e desesperado. Há um ditado que afirma: “Em ambos os casos, a pessoa exemplar avança. Em ambos os casos, o homem mesquinho falha.” Isto exprime o que quero dizer.

A pessoa exemplar põe em ordem aquilo que é ordenado. Não põe em ordem aquilo que é caótico. Que quer isto dizer? Assim o vejo: ritual e yi são coisas ordenadas. Aquilo que não é nem ritual nem yi é caótico. Assim, a pessoa exemplar é aquela que põe em boa ordem a prática de ritual e yi. Não põe em ordem aquilo que não é nem ritual nem yi. Sendo assim, se o estado se encontrar no caos, não o colocará em boa ordem a pessoa exemplar? Eis o que digo: colocar um estado caótico em boa ordem não significa recorrer ao caos para restaurar a ordem. Do caos nos livramos e o substituímos por ordem. Cultivar uma pessoa corrupta não significa recorrer à corrupção para o fazer. Da corrupção nos livramos e a suplantamos com cultura. Assim, a pessoa exemplar livra-se do caos em vez de pôr o caos em boa ordem. Livra-se da corrupção não a cultivando. O uso próprio da expressão “colocar em boa ordem” está no dizer que a pessoa exemplar “faz aquilo que é ordenado e não faz aquilo que é caótico; faz aquilo que é culto e não aquilo que é corrupto.”

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

Tradução de Rui Cascais

26 Fev 2020

A paródia religiosa

[dropcap]A[/dropcap]inda que tenha deixado o seu último romance inacabado, Angel Jesus Tornado pintou uma das maiores reflexões acerca de São Paulo no seu “Ninguém em Damasco”. Foi sempre visível ao longo da sua obra a obsessão pelas figuras marcantes da história e por um tom reflexivo na sua escrita. Apenas como exemplo, lembremos estes três livros: “Um Homem É Uma Ilha”, centrada na figura de Napoleão; “Existência”, cuja narrativa percorre o ano em que Kierkegaard rompe o seu noivado com Regine Olsen; e “Queimar o Mundo”, onde Jesus Tornado explora as tentações de ódio que assaltam o humano na sua relação com o mundo através da figura de Nero.

Mas em “Ninguém em Damasco”, Jesus Tornado transfigura-se e transfigura a sua própria ideia de prosa. Talvez a proximidade da morte seja a responsável pelo tom mais metafísico do livro ou, então, seja o próprio tema, a conversão, que assim o exija. Pois toda a conversão é metafísica. “Ninguém se torna outro sem um pé no além”, escreve Juan Mantero, historiador que é o narrador do livro. O salto para o desconhecido implica necessariamente fé, seja ela religiosa ou de outra dimensão. Em “Existência”, Jesus Tornado já havia tocado na questão do salto, imagem tão querida a Kierkegaard, mas o tom do livro mantinha-se junto às sebes, rente ao muro, sem pé no além. No decorrer do romance, Mantero descobre uma pequena passagem de São Paulo, apócrifa, que talvez nos coloque na pista certa: “A morte não é ninguém; quem um dia foi não pode deixar de ser. Morrer é apenas deixar o corpo, pois a morte não passa de tudo o que nunca foi.” Esta descrição de poder morrer e nunca atingir a morte, deixa profundas marcas no narrador do livro, ao ponto de se converter ao cristianismo. Até aí, o seu interesse por São Paulo e pela religião era estritamente “científico”. Mas no romance ficamos a saber que, mais do que o teor da passagem, a responsabilidade da conversão de Mantero se deve à sorte de ter encontrado esses pergaminhos, a que ele chama “Confissões de São Paulo”. Essa descoberta pareceu-lhe um sinal divino, como se São Paulo lhe falasse directamente, como se o tivesse escolhido. Através deste episódio de Mantero, Jesus Tornado tece longas reflexões acerca da necessidade de transformarmos coincidências em sinais, de conferir sentido ao que não tem. “O contrário da morte é Deus e morrer é encontrá-Lo.”

Muitos têm visto em Juan Mantero um alter-ego de Angel Jesus Tornado, intuindo assim uma conversão tardia por parte do autor. Talvez fosse isso mesmo que ele pretendeu que nós disséssemos. Talvez tenha entrado na morte nos enganando, ou tentando nos enganar a todos, fazendo-nos confundi-lo com Juan Mantero. Mas não acredito que contrariamente a Saulo e Mantero que se convertem ao cristianismo, Tornado tenha convertido o seu coração ao além. Mais do que ler “Ninguém em Damasco” como se um romance autobiográfico se tratasse, devemos lê-lo como uma acusação, como uma paródia religiosa. Juan Mantero é já ele mesmo uma paródia de São Paulo, e os pergaminhos encontrados, “Confissões de São Paulo”, uma paródia das Epístolas. No fundo, talvez todo o livro seja, não apenas uma paródia à religião, mas uma paródia à humanidade, na sua contínua busca de pergaminhos, de textos antigos, de palavras que nos iluminem a vida. Mas ainda assim, seria sempre uma paródia à religião. Pois a procura de sentido para a vida nas palavras é um acto religioso por excelência. Angel Jesus Tornado deixa o seu livro inacabado com a seguinte frase, escrita por Mantero: “No aeroporto de Roma, percebi que a minha vida ganhava finalmente sentido. Só quem alcança este estádio percebe que nunca esteve realmente vivo.” Tornado depois morre, não Mantero.

O tom metafísico da prosa deste seu último livro revela-se então, ele mesmo, uma paródia. O tom metafísico é a formalidade perfeita desta paródia. Sem esse tom, poderíamos ser levados a ver o livro como uma crítica, como uma reflexão séria e condenatória à religião. Assim, não. Angel Jesus Tornado entrou na morte a rir-se dela e de nós, fazendo-nos acreditar numa pseudo-conversão. Não procurou imortalizar a alma, mas imortalizou a sua gargalhada.

25 Fev 2020

O favorito de Vieuxtemps

Henri Vieuxtemps (1820-1881): Concerto para Violino e Orquestra N.o 4 em Ré menor, Op. 31

 

Henri François Vieuxtemps, talvez o maior representante da escola violinística franco-belga, e cujo bicentenário se assinalou no passado dia 17, compôs sete concertos para violino, entre várias outras obras para o instrumento.  

O favorito de Vieuxtemps de entre os seus sete concertos era o quarto, que compôs e estreou durante a sua estadia na corte imperial russa em São Petersburgo, na qualidade de violinista do czar Nicolau I e dos Teatros Imperiais, entre 1846 e 1852. O Concerto para Violino N.° 4 em Ré menor, Op. 31, um trabalho heróico e de escala substancial, foi descrito por Berlioz – que talvez o comparasse com o seu próprio Harold em Itália para viola e orquestra – como uma sinfonia com solo de violino. De facto, a escrita de Vieuxtemps para a orquestra é tão segura e engenhosa e, às vezes, tão imaginativa quanto o tratamento do violino, embora não haja dúvida de que o instrumento solo continua a ser o actor principal do drama.

A escrita orquestral da obra é sensível e faz um uso particularmente bom das madeiras. Mas, além da introdução substancial e de várias passagens tutti, o violinista é claramente o centro das atenções. O primeiro andamento, Andante, começa com uma introdução tranquila e quase mística na forma de um coral que aumenta gradualmente de velocidade, volume e intensidade, com os metais e os timbales a proporcionar peso adicional. À medida que tudo isto se esbate, uma figura em turbilhão descendente nas cordas sugere água a fluir na obscuridade. O solista entra finalmente com uma frase declamatória, tocando notas em cordas duplas, mas que quase imediatamente se funde em material mais lírico, mas ainda ardente. Este material recitativo parece uma segunda introdução, mas é de facto a substância temática principal do andamento. Uma cadência longa e tempestuosa acaba por se render a uma passagem orquestral severa que, por sua vez, se funde numa nota de trompa sustida e que serve como uma ponte para o segundo andamento. Este, Adagio religioso, inicia-se com um coral tocado pelas madeiras; o violino entra sem demora, trilando serenamente acima da orquestra e cantando uma oração longa e ardente que gradualmente se eleva a um estado de êxtase. Quando a música se acalma, arpejos de harpa adornam outra passagem de trilos de violino. Alguns ouvintes contemporâneos podem achar inibidora ​​a bonita religiosidade deste andamento, mas o sentimentalismo religioso foi um elemento importante de muita música franco-belga de meados do século XIX, e este andamento lento de Vieuxtemps é um exemplo importante do estilo.

O breve Scherzo, marcado Vivace, e que pode ser omitido segundo indicação do compositor, traz um bem-vindo ímpeto ao concerto e tem muito em comum com as vibrantes e assertivas obras de violino de Saint-Saëns. A secção central trio do andamento abranda e alonga-se com um grandioso e abrangente apoio orquestral ao fraseado palpitante e feliz do violino. Após a reprise do scherzo, uma coda cintilante conduz este brilhante andamento à sua conclusão.

No início do Finale marziale, cordas e madeiras revisitam o material do início do concerto, proporcionando ao solista um muito merecido descanso. Desta feita, a introdução Andante é sucinta e a orquestra completa apresenta sem demora uma marcha festiva, lembrando novamente o estilo de Saint-Saëns. O solista entra finalmente, primeiro com um recitativo e depois com a melodia principal da marcha. Passagens rápidas e pungentes de cordas duplas impedem o andamento de cair na pomposidade; a certo ponto, o violino toca uma melodia ardente e decididamente não militar. Mais à frente, o solista confere até à melodia da marcha um tratamento notavelmente lírico. Mais para o final do andamento, a música entra no modo maior e o concerto termina em impetuosa bravura.

25 Fev 2020

O Fok Tak Chi da Avenida António Sérgio

[dropcap]H[/dropcap]oje, dia 2 da 2.ª Lua celebra-se o aniversário de Tou Tei.
Em Macau encontram-se nichos com o Tou Tei em toda a parte, uns pequenos colocados ao nível do chão na entrada de lojas e habitações, que actualmente tem vindo rapidamente a desaparecer, e outros em pequenos pavilhões, muitos estranhamente situados pois fora do alinhamento das ruas. Há ainda pequenos edifícios feitos para albergar o deus da terra (Tou Tei) em quase todos os bairros de Macau e o único que não tem creio ser S. Lázaro. Dois dos mais interessantes pequenos templos na península de Macau situam-se na Rua da Barca da Lenha e na Rua do Patane.

Já os três principais templos são, o Tou Tei miu do Largo do Pagode do Patane, o Fok Tak Chi na Rua de Tomás da Rosa, no bairro da Horta da Mitra e o Templo da Felicidade e da Virtude da Avenida do Almirante Sérgio, entre os prédios 131 e 133. É sobre este último que aqui vamos escrever, através do que lemos da folha entregue pela senhora Va, que dele toma conta.

Sendo o maior templo a Fok Tak em Macau, foi construído em 1868, sétimo ano do reinado Tong Zhi (1862-1874), após o governo português, por Portaria Provincial de 8/2/1867, ordenar que fossem ultimados os aterros que iam das Portas do Cerco até à Barra. Dava-se preferência aos proprietários locais, anteriores residentes nessa margem do Rio Oeste, que os quisessem aproveitar, retirando-lhes se os não ultimassem, ou exigissem um prazo excessivo para o fazer. Nesse local existira já um pequeno templo, como se constata no Edital de 29/10/1828, quando o mandarim de Heong-San proibia ao português Miguel Benvindo continuar as obras efectuadas à esquerda dum pequeno templo e à direita duma misteriosa pedra, denominada de Manduco, assim chamada devido a uma rocha aí existente e que pelo bater das águas parecia o coaxar das rãs, ou manducos, como são conhecidas em Macau as rãs grandes de água doce.

Segundo o Boletim da Província de Macau e Timor de 24/2/1869: “Em Macau o aterro do rio, para o lado da Barra, acha-se já unido ao terreno do Pagode chinês, de sorte que hoje as povoações da Barra e Patane se acham em comunicação pela estrada marginal.”

A zona da Praia do Manduco, sendo de grande actividade comercial, estava já toda ocupada com estabelecimentos e casas de habitação. Arranjou-se então um pequeno espaço (que pela localização acima referida era a do anterior templo) e aí os locais decidiram mandar construir o templo a Fok Tak. Por isso, o geomante que decidiu sobre a sua construção teve pouco espaço de manobra, pois os habitantes queriam rapidamente o templo para os ajudar a fazer bons negócios.

Num artigo anterior referimos ser Fok Tak (Fu De) o nome dado em algumas províncias da China aos locais deuses da terra, que se tornou também o Deus da Riqueza devido a propiciar prosperidade a quem homenageava o falecido Zhang Fu De (张福德, 1044-973), cujo nome de cortesia era LianHui (濂辉). Oficial cobrador de impostos durante a dinastia Zhou do Oeste foi muito querido da população pela sua honestidade e bondade e por isso, após a sua morte espalhou-se a fama de proporcionar prosperidade a quem lhe oferecia sacrifícios.

Nos três primeiros anos, as pessoas, que ofereceram dinheiro para a construção do templo, foram muito ajudadas pela divindade Fok Tak, correndo muito bem os negócios, levando muita gente a aí se dirigir para lhe pedir ajuda. Mas depois começaram os problemas devido ao fong-soi (Feng Shui) do templo. Um tufão ao passar por Macau em 2 de Setembro de 1871 levou-lhe todo o telhado, mas as casas ao lado não sofreram nada; algo muito estranho. Então as pessoas facilmente deram dinheiro para a sua reconstrução.

O Templo da Felicidade e da Virtude da Avenida do Almirante Sérgio têm o ancião Weiling como o deus local da terra, cuja estátua no nicho principal é a única em Macau do Tou Tei com o tamanho de uma pessoa, sendo mesmo a maior existente na cidade; está sentada e é feita de madeira, que foi dourada.

Outras são as divindades aqui adoradas, onde não poderia faltar Tin Hau, não estivesse o templo outrora junto à água de um dos ramais do Xijiang.

Apresenta também um incensório em cobre de 1827, sétimo ano do reinado do Imperador Daoguang da dinastia Qing, sobre uma mesa de sacrifício do ano de 1868, uma das vinte mesas que no templo existiram. Já na última visita, encontramos na parede um papel encaixilhado onde o Instituto Cultural referia ter dali levado cinco peças do espólio, uma mesa, um carimbo em madeira, duas caixas onde os deuses Ziwei e Guan Yi se encontravam protegidos, assim como um tchim t’ông, recipiente cilíndrico de bambu onde são colocados dezenas de pauzinhos numerados, os tchôk tchim.

Festa de Panchong Grande

No B.O. de 1867 há uma pequena referência à Festa do Panchão Grande realizada no largo da Fonte do Lilau, mas uma das primeiras descrições sobre a festividade aparece num jornal de 1873. Ocorrida em Macau no dia 2 da segunda Lua, era então o deus da terra chamado deus penate, numa alusão ao Deus romano do Lar e da Família.

Celebrada pelos chineses em vários quarteirões da cidade, era-lhe então dada o nome popular de Festa de Panchong Grande, talvez devido à longa tira de cartuchos de pólvora, o panchão grande, que aceso, interminavelmente vai estourando e provoca um imenso estardalhaço com uma intensa fumarada.

A crónica referia: “Houve este ano grande emulação entre os festeiros, que se esmeraram principalmente em fazer longas e pomposas procissões, acompanhadas de muitas bandas de música, grandes bandeiras, lindos quadros e bailéus, em cima dos quais apareciam meninos e meninas representando vários episódios da mitologia chinesa, sendo o mais notável deles em que uma menina parecia estar de pé sobre um leque aberto, pois o ferro que sustentava a criança estava tão bem escondido, que fazia uma completa ilusão aos espectadores.

Os chineses levam a origem desta festa aos tempos imemoriais, e não há casa nem família alguma que não tenha o seu deus penate, em honra do qual queima em certos dias da lua pivete e velas de cebo.
Deu-se em Macau a esta festa o nome de panchong grande por queimarem por essa ocasião grandes petardos e muitos foguetes.

Os chineses entusiasmam-se e dão muito dinheiro para as despesas da festa, porque julgam que quanto maior for a pompa e mais estrondosa for a festa, mais felizes serão os festeiros, os quais além disto se esforçam à porfia para apanharem o resto dos foguetes depois da explosão, porque encontram nisso um bom agouro.

Cada quarteirão da cidade faz a sua festa em separado; as diversas comissões dos festeiros esforçam-se para sobressaírem uns aos outros, e com isso gasta-se uma grande quantidade de dinheiro.

Há em Macau dois pagodes especialmente destinados aos deuses penates, um em Sankio, e outro na Praia do Manduco, e por isso são muito concorridos nestes dias, tanto por homens como por mulheres.
Festa onde não entram os bonzos, porque não têm ligação com as religiões de Fo [Budismo] e Tau.”

24 Fev 2020

Um semáforo na Etiópia

[dropcap]L[/dropcap]uzes coloridas. Vermelho, verde. As acções doseadas no fluir do tráfego por cores. Sempre para uns uma e para os outros a de sinal contrário. Quem conduz adora as ondas verdes de semáforos a mudar à sua passagem sem interrupção. Chegar cedo. Mas para cada onda verde, existe transversalmente uma enorme onda vermelha a barrar a pressa de outras vidas. Num avanço interrompido e sincopado como a subida ao castelo. A atenção aos sinais nos pequenos capítulos do dia. E haver sempre um sinal escondido. Amarelo intermitente. Um peão que pode passar com sinal vermelho se não vem carro, um automóvel a virar a curva quando não vê peão.

Os dias de episódios anódinos que perfazem o quotidiano. Em tudo insignificantes e idênticos aos de outros dias. Mas que ficam a macerar lentamente, desesperantemente, muito depois. Como a ânsia de resolução de uma equação simples e determinante que invade a consciência sem aviso. Nesta construção invisível em que se manipulam irreversíveis conjuntos concorrentes e aleatórios de circunstâncias, de que se é alvo e de cujos efeitos se fica pendente, na ignorância do que poderia ter sido. Se de outro modo.

Virar num cruzamento e à curva parar o carro para deixar passar um homem, por acaso idoso, por acaso de uma cor qualquer, que começa a atravessar, com o semáforo vermelho dos peões a dizer-lhe para não o fazer e eu a fazê-lo hesitar. Deixar passar. Porque era uma pessoa. Porque era um idoso. Porque tinha uma cor qualquer, e por uma razão qualquer. Porque ele não tinha razão e eu não tinha pressa. Por nada de especial que simplesmente me parou. Ele. Como poderia não ter sido assim, ele não estava em risco, eu nunca tenho tempo. Coisas sem importância. E não batalhas para ganhar uma guerra qualquer.

Perder quinze segundos na corrida da manhã e logo um pouco mais à frente parar num sinal vermelho. Uma sequência com uma moderada dose de consequência. Nada de especial. Mas foi aí que sem o pensar, sei agora, algo se imiscuiu no anódino do episódio como se dissesse para comigo que ali é que a porca torce o rabo. Não que eu tenha olhado para o sinal a mudar como quem olha para a arrogância de que quem exerce um daqueles pequenos poderes que dão satisfação a alguns egos. Mas dei comigo a revirar as possibilidades de todos os ângulos como se daí adviesse como resposta, o sentido da vida. Que mente a minha. A precisar de respostas.

Mas não, o sinal vermelho não foi claro na arrogância apressada de cair naquele momento, para parecer determinante o ínfimo pedaço de tempo que tinha despendido a parar e deixar passar, a meter uma nova mudança e avançar. Estava simplesmente lá porque mudou ao seu ritmo. Podia pensar que os céus não recompensaram a escolha feita, com um sinal verde. Mas também que confirmam que mais minuto menos minuto perdido a deixar passar o homem, não alterara relevantemente o curso do dia. O sinal vermelho fez parar de uma maneira ou de outra. Perder trinta segundos. E depois pensar que, se não tivesse deixado passar o homem, poderia ler o inevitável sinal vermelho como a condenação do gesto mesquinho. Ou como a confirmação de que deixá-lo passar em nada teria atrasado o meu caminho. E se caísse o sinal verde?

Pensaria que tinha valido a pena o gesto egoísta, caso não tivesse passado o homem, ou que era a recompensa por tê-lo deixado passar se assim fosse? Duas hipóteses: deixar ou não deixar passar. Para cada uma, duas luzes de semáforo de colorido diferente e ambas possíveis a seguir. Para cada cor da luz, duas leituras possíveis. Recompensa ou penalização. Não há uma ética no acaso. E no final do pequeno episódio, de novo o sinal íntimo e intermitente. Não imaginar. O que poderia ter-se cruzado num dia qualquer, como destino, em resposta a um minuto que se perdeu ou se ganhou. Como se alguém mexesse fios de marionetas e como se o fôssemos. A aproximar ou afastar de sonhos.

As luzes são sinais. De trânsito. De curta validade. A respeitar, de qualquer modo e para além deles. Sinais da importância de um sinal. A cumprir ou a não cumprir. E só. Sem mais respostas, sem validação sem orientação para além do momento curto e logo obsoleto. Outros sinais são como um semáforo na Etiópia.

Uma agulha num palheiro. Lembro-me daquela praça em Adis Abeba onde nunca estive. Um cruzamento de loucos e sem semáforos. Onde o único sentido que prevalece, é o de cada um. E chegar onde se quer.
Não. A vida não se apresenta clara nem dá respostas unívocas. Esconde a causalidade das pequenas coisas, como quem se reserva para o melhor ou não pretende assustar. Como o platonismo de Kafka. Uma realidade sempre a caminho de ser e nunca sendo. Não uma direcção e não um fim, somente um sentido. Mas algumas respostas são prévias, como mantimentos para o caminho.

E a única resposta vem de dentro. Como num teste de escolha múltipla. Avaliamos, escolhemos e voltamos a avaliar. Mas o caminho é às cegas, tirando pequenos sinais. Onde está o sorriso da cor e o nosso, a cor dos segredos – isso – diálogos a sós.

24 Fev 2020

Uma vida simples

[dropcap]A[/dropcap] despeito de tudo quanto penso ter aprendido ao longo do titubeante percurso a que chamo “a minha vida até agora” – de certa forma bastante privilegiado por contraste com a vida dos meus pais, por exemplo – há coisas que me descubro a fazer nas quais as figuras de pai e de mãe se intersectam em mim, pequena roda dentada movendo a intemporal engrenagem do cuidado e da preocupação que em cada geração e sob diferentes roupagens transforma um ser humano banalmente autocentrado em mãe, e, com alguma sorte e mais trabalho, em pai.

Ao contrário do que imaginava na adolescência, ser mãe ou pai não é de todo fácil. E a dificuldade não reside “nas grandes questões” mediante as quais os adolescentes fazem questão de ridicularizar a geração que lhes precede. O problema, como quase sempre, não são os grandes ideais, o abstracto ou as questões morais da época. O problema é mesmo o dia-a-dia, as pequeninas coisas que conformam a teia mais ou menos segura da quotidianidade: o lugar da pasta de dentes, a conta da luz, o facto de ninguém se parecer importar com a forma como o tapete fica geometricamente desalinhado em relação à cómoda quando se passa por ele sem ter o cuidado de o endireitar depois.

Apesar dos inegáveis avanços técnicos, sociais e culturais que o império a prazo a que chamamos humanidade tem produzido, ainda ninguém nasce herdando qualquer tipo de conhecimento. A enormíssima vantagem do humano – a sua indeterminação cognoscente originária – implica, por outra parte, que cada um tem de aprender tudo outra vez: a andar, a falar, a comer com talheres, a namorar, álgebra e metafísica, a mudar uma fralda, a fazer o luto. Somos todos repetidamente principiantes. E isso nota-se quando se tem um filho: aqueles que nos precederam sentiram aquilo que estamos a sentir em cada fase do processo pelo qual se consolida paternidade ou maternidade. As mesmas inseguranças, as mesmas dúvidas, a mesma incapacidade de confessar a ocasional vontade de desistir de tudo.

É quando muito cedo pela manhã e em modo automático preparo o meu filho para o deixar na escola que mais sinto o quanto cresci enquanto pai (há outras ocasiões em que sinto precisamente o oposto, pelo que o saldo oscila entre neutro e suficiente menos, não dando lugar a qualquer assomo de orgulho). A necessidade acaba por instalar alguma disciplina nos lugares das coisas, nos gestos, na sequência dos actos. A pobre criança, que outrora tinha de acordar muito mais cedo para parecer vagamente humana ao passar pelo portão da escola tem agora a oportunidade de, acordando uma hora mais tarde, sair de casa mais compostinha. Deve ser a isso que os economistas da nossa praça chamam eficiência. Talvez me tenha tornado alemão na questão da paternidade.

Há um conto do Tolstói, chamado Padre Sérgio, no qual um clérigo tomado pelas dúvidas em relação ao comportamento adequado em terra para chegar ao céu acaba, depois de muitas atribulações particularmente gráficas, por compreender a simplicidade e a sua necessidade, a segurança da rotina, os pequenos passos indispensáveis para percorrer um caminho que ele queria atalhar num salto grandioso. A vida é muitas vezes isso mesmo: uma difícil e demorada tensão para a simplicidade.

21 Fev 2020

Ser é querer

[dropcap]“S[/dropcap]er é querer” leio no tratado da liberdade humana (Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana, 1809) de Schelling (Friedrich Wilhelm Joseph Schelling 1775-1854). Não é um querer de uma vontade qualquer, dessas que se apregoam nos livros de auto ajuda, como se não fôssemos os objectos preferenciais de ajuda. Nem é o querer da frase batida: “querer é poder”. Não se entendermos a frase como o slogan do empreendedorismo da self-made mulher/homem de sucesso, entendido como o êxito expresso no que pode financeiramente, na vida boa que “tem”. Schelling interpreta este “querer” como o agir acção de uma vontade de um “eu”, não existindo nada que não seja conforme a um “eu”. Toda realidade objectiva estudada pela mecânica pode ser considerada uma natureza morta. Contudo, a natureza morta existe paredes meias com a natureza viva. A inércia existe em tensão com o movimento. São manifestações possíveis de um mesmo sujeito. O inorgânico tem em si partículas subatómicas numa dança louca inimaginável e como quer que pensemos átomos, não é de certeza em sossego. Diz Schelling que o ser humano em particular no fundo do seu ser tem um querer. Querer é ser. Cada pessoa para existir passa por este ser a querer. Todo o viver é interpretado como um querer. O romper da aurora tende ao nascer do dia. O crepúsculo tende ao cair da noite. Ir nas horas tende ao fim de cada uma. O fim de cada hora e de cada tempo é o início de cada outra hora e de cada outro tempo ou fase de tempo. Todo o instante está cheio de um ser que é um querer mesmo quando não pensa que quer ou deixa de querer, mesmo até quando explicitamente não quer ou quer que qualquer coisa não aconteça. Não querer não é nada. Não querer exprime-se em cada pessoa de formas extraordinárias de protesto, em que se diz não, age contra, interdita, proíbe, boicota, cria distância, afasta, desiste, renuncia. Querer testemunha-se de modo extremo quando achamos que não conseguimos, quando sentimos que estamos à beira da desistência, quando parece mesmo que não se é capaz. Querer é oferecer resistência, é não desistir, é insistir. Falamos connosco na segunda pessoa do singular do presente do imperativo “aguenta!”. Pedimos capacidade de resistência e um instante de tempo para perseverar. Um só instante em que “não deitamos a toalha ao chão”, um breve lapso de tempo, pode representar toda uma vida de sentido. O momento em que se desiste dura o mesmo tempo que o momento em que se resiste menos aquele brevíssimo instante em que se fica ainda. Esse brevíssimo instante de resistência dá sentido a toda uma vida. O tempo da desistência, mais breve do que o da resistência, estende a sua sombra por toda a nossa vida, é lamentado e temos pena de não ter aguentado.

Não ter sido não quer dizer que não “seja”. Aquilo de que desistimos e não fizemos, aquilo a que renunciamos e que não fomos, o “não”, o negativo, a nulidade existe e está encastrado nas nossa vidas. Mas Schelling dá um sentido decisivo ao querer ser de que cada pessoa é portadora. Não é apenas um querer resistir nem um não querer desistir, nem a avaliação complexa das diversas possibilidades que se jogam nas nossas decisões com verdades e consequências, bases, motivos e fundamentos num complexo de relações. Desistir pode ser sensato como resistir. É óbvio. Em todo o caso, parece que é depois de “elas se darem” que podemos fazer um diagnóstico da situação, o que contradiz a própria ideia de diagnóstico, porque vem tarde demais. E não só. Não sabemos bem se poderíamos escolher de outra maneira, adoptar outras medidas diferentes, resolver de outro modo. Ser é querer porque o seu sentido como todo o querer é futuro. Não apenas o que cada um de nós quer não é possuído ou se o é, queremos continuar a ter isso à nossa disposição, como o que move todo o querer é algo que se quer ao manifestar-se a partir do futuro como um polo de atracção que nos atrai para si, que é sexy, tem sex appeal, nos vira para lá, mexe connosco, faz-nos virar para lá, orienta-nos e dirige-nos. Mas o querer do ser não é de uma única coisa, de muitas coisas ou de todas elas. Para o querer do ser é o querer de si, um querer-se a si nas suas manifestações positivas: querer simplesmente e positiva: “não quero mais isto!”. Schelling diz que há em cada ser humano uma saudade que faz vibrar todo o nosso ser, porque é a própria vibração do ser a ser, independente de mim, ti, dela ou dele. É uma saudade do ser que faz querer, um querer de nada em particular mas sempre de um querer-se-a-si, não para continuar a ser o que é, mas que se perspectiva como nunca tendo sido. Querer-se a si descobre-me como não existindo, não tendo sido verdadeiro, não tendo sido o meu potencial. E desse meu eu verdadeiro que não fui ou ainda não fui que o ser tem saudades, afinal eu não fui ainda. As saudades de me parir.

21 Fev 2020

Letras responsáveis

[dropcap]N[/dropcap]este frenesim de palavras ocas em que o mundo se tornou, consta que os castores da América do Norte se apresentam desdentados, a neve (há quem diga que por espírito de síntese) agora só cai sobre quem tem gabardina, o próprio silêncio procura o osso perdido das origens.

Desde que se instalou este estado de coisas as conversas morrem a meio, as vacas e os filósofos ruminam mas não engolem (as vacas começaram a levitar, os filósofos enterram-se a prumo com o peso das escórias) e descobriu-se que o corona é a vingança do pangolim.

Muitos propõem remédio mas no melhor dos casos só se detectam paliativos. E só enxergo uma saída, a aventada por Simone Weil quando assegura que a pura observação pode ser transformadora desde que empreguemos devidamente a sua melhor arma: a atenção.

A solução não está no cultivo das identidades, na inquietude ou na competição performativa, na elaboração de listas de tarefas pendentes, no bombardeio com que somos emboscados pelo mercado, no deve e haver sobre crimes passados (como alguém que já só sabe revolver o lodo), na indulgência que obtemos da nossa tribo nas redes sociais: não. Mas, em voltando a subir os índices da nossa capacidade para ficar atentos, para permanecermos atentos, para finalmente nos concentrarmos no que fazemos, esta balbúrdia das velocidades contemporâneas que nos aturde e provoca sonolência atenua-se.

Só o desejo de luz produz luz, dizia a senhorita Weil, e esta para ser vista necessita de um esforço da atenção. Não se conte com o que não custa esforço. Será isto alguma vez reflectido?

Entretanto, num livro autobiográfico que acabei e que incide sobre a infância e os imediatos anos de aprendizagem, escrevi este parágrafo: «O meu pai, que começara por ser trolha, entrou como aprendiz de linotipista no Diário Popular e seguiu o ofício. Na época, consideravam-se os linotipistas os intelectuais do operariado, por incarnarem em chumbo os livros de outros; enfim, uma consideração abstracta, demasiado generalista, esse confronto com as ideias dependeria da qualidade do que haveria a digitar, seria diferente ser o tipógrafo de Carlos Oliveira ou do Augusto Abelaira ou sê-lo de um prestamista do regime. Todavia acreditava-se que por osmose ou circulação dos fluidos se vazava a sabedoria de uns para outros e o meu pai, lacónico até à medula, devia passar por muito profundo.»

Voltemos à frase sublinhada: os linotipistas/tipógrafos incarnavam em chumbo os livros de outros. As palavras moldavam-se em chumbo, dessas páginas em baixo relevo de chumbo resultavam as matrizes que seriam depois impressas, duplicadas, no papel. Havia um mano a mano com a densidade material, a cada palavra lida antecipava-a o seu peso, um grave e oblíquo labor responsável. Cada palavra antes de ser lida fora um artefacto material, era um fruto de um processo lento e de uma compactidade que, inesperadamente, tornava o pensamento profuso. Pergunto-me hoje se que isso não transmitiria à palavra uma qualidade, uma substância, um compromisso que a leveza, a rapidez, a facilidade de rasura e permuta do texto digital volatizam e desresponsabilizam; se quando a matriz da palavra tinha um peso não teríamos menos cobertas de croché.

Li há pouco tempo um ensaísta literário que dizia que a poesia portuguesa dos anos 90 se produzira contra a densidade de alguns poetas anteriores, como a Fiama Hasse Pais Brandão. De facto, e também na prosa, muito pouco hoje me parece estar à altura das densidades de A Noite e Riso, de Nuno Bragança, de Maina Mendes e Casas Pardas, de Maria Velho da Costa, ou de Novas Visões do Passado, Homenagemàliteratura, ou Área Branca, de Fiama, escritos na época do chumbo ou ainda sob influência do chumbo.

Quem hoje se entregaria ao entusiasmo de ler As Quibíricas ou A Arca, de João Pedro Grabato Dias?

Que tipo de eflúvios se libertaria daquele elemento químico com que se criavam as letras da tipografia e da “arte negra” – a caixa de metal em que se justapunham as letras de chumbo, linha a linha, para a composição de cada página –, como se a toxidade do chumbo fizesse o pensamento reagir, elevando-o, contrariando o desconforto da matéria?

Escreveu a Velho da Costa em O Mapa Cor de Rosa, um dos seus livros de crónicas: «Metamorfose do tempo que faz lá fora, eu sei talvez porque me assola hoje, ou mais se atiça, a retórica da melancolia e do desânimo.

A crónica é desse género que tem encruzilhadas a biografia e a escrita – só a ficção protege, em dias assim, ou a epistolografia íntima, desatada. Mas os poetas, Senhor. Ou os cronistas de reinos, desunidos.

A senhora Amália, um supor, que vivia em Montes Velhos, ai Nena, um lembrar. Vivia e nem mal, nem bem, vivia. Bateu-lhe à porta uma cigana que trazia um menino aos peitos caídos, rilhado de um porco, disse bem, rilhado. Eu disse que a ficção defende e a crónica desabriga, e só a poesia obriga a trabalhar – juro-vos que esta história é londrina, desgostos portugueses, lá iremos».

Como é que se diz tanto em tão pouco, sem nunca descurar o ritmo, o sabor da língua, ou a riqueza de vocabulário? É muito mais do que exibir a opinião: Eu disse que a ficção defende e a crónica desabriga, e só a poesia obriga a trabalhar – é conhecimento. Como é que esta estupenda autora não tem um único livro traduzido e hoje é lida somente por uma minoria?

Atravesso a noite a reler-lhe os livros de crónicas e eis-me siderado. Eu que tanto aprendi com ela, quando escrevíamos filmes juntos, continua a ensinar-me. Havia um brio em fazer melhor, em comunicar com o máximo de recursos, e hoje faz-se da preguiça norma de decência e de uma língua de trapos chave de leitura. E, mais frívolos e desatentos, deseducamos o leitor.

20 Fev 2020

Saudades das cartas e o caso Almeida Faria

[dropcap]N[/dropcap]as cartas existe um silêncio que não tem qualquer ressonância nos universos WhatsApp ou Messenger. As cartas relevam uma outra demora, uma ocupação íntima da memória e de horizontes não necessariamente imediatos ou urgentes. As cartas desenharam o grande plano da existência e não apenas um ‘frame’ que se consome a si mesmo. Quando a literatura se começou a entender enquanto literatura, a partir da segunda metade do século XVIII, é óbvio que recorreu logo à tradição epistolográfica, pois ela tinha em si o genoma preciso de que a literatura havia de ser feita.

Jacques Rougeot encontrou em ‘Les lettres portugaises’ de Guilleragues (1669) a primeira obra do chamado romance epistolar e em ‘Les Liaisons Sangereuses’ de Laclos (1782)  a última. Seja como for, setecentos foi período áureo do romance epistolográfico e em Portugal, embora não haja nada comparável a umas ‘Lettres Persanes’ de Montesquieu (1721) ou a umas ‘Lettres Moscovites’ de Localelli (1736), há casos muito interessantes como, por exemplo, as ‘Cartas sobre a Educação da Mocidade’ (1760) de António Ribeiro Sanches, as ‘Cartas Familiares, Históricas, Políticas e Críticas’ (1742) de Cavaleiro de Oliveira, as cartas de D. Francisco Manuel de Melo – ou as ‘Memórias das Viagens’ (1741), escritas na Holanda (e que Artur Portela considerou como uma descoberta do “caminho terrestre para a Europa”) ou ainda as ‘Lettre Bohémiennes’ de Matias Aires e as ‘Cartas Curiosas’ do Abade António da Costa (estas últimas apenas publicadas em 1879).

Como Andrée Rocha sublinhou, o ofício era realmente perigoso. Verney não deixou de frisar a necessidade de se destruírem as suas próprias cartas, não fossem elas cair nas mãos da santa inquisição (do mesmo modo que negou ser o autor do ‘Verdadeiro Método’). Estes riscos, a par do vazio iluminista que cruzou de lés a lés Portugal, contribuíram para que o voo epistolar fosse rasteiro entre nós.

Como que a preencher esta lacuna da história literária portuguesa, Almeida Faria, ao longo da sua ‘Tetralogia Lusitana’ (1964-1983), não apenas revisitou o género epistolográfico, como parodiou habilmente as suas traves mestras. Sobretudo na segunda parte da obra, em ‘Lusitânia’ (1980) e em ‘Cavaleiro Andante’ (1983), o ‘romance da distância’ cumpriu-se na sua plenitude, através de uma polifonia anfitriã de registos íntimos e pícaros, caldeados por uma série de calculadas intertextualidades.

É por isso que a paisagem de Veneza, inscrita nas epístolas da protagonista Marta, mobiliza uma espécie de monomania apaixonada e um apego raro pelo que se poderia caracterizar como a alegria estética do mundo.

A tradição do ‘pathos’ amoroso e do emaravilhamento diluem-se na opacidade e na distância geradas pelo universo das cartas. Este tipo de interface existencial fora já claramente observado em ‘La Nouvelle Héloise’ de Rousseau, obra de 1758. A espontaneidade de forma, a verosimilhança das trocas epistolares, a ininterrupta actualização da matéria sentimental, a confissão reflexiva, os exames de consciência, os discursos didácticos, a sátira e as longas “rêveries” remetiam já para aquilo que Versini classificou como sendo a cripta da mais “pure comunication”.

Na primeira metade do século XX, há dois nomes que se distinguiram na renovação do romance epistolar: Gide e Motherland. O primeiro, sobretudo em ‘Les Faux-Monnayeurs’ (1927) por causa dos requisitos formais (tratamento da simultaneidade, da multiplicação dos pontos de vista e do requinte dos jogos de espelhos); o segundo, sobretudo na tetralogia ‘Les Jeunes Filles’ (1930-39), por ter atingido aquilo que Michel Raimond caracterizou por “complexidade dostoievskiana da consciência”.

Num repentino acesso metadiscursivo, Sónia, uma das personagens da ‘Tetralogia Lusitana’ de Almeida Faria, deu a conhecer nas páginas do romance ‘Lusitânia’ algumas das funções das cartas, sob o pretexto irónico de nelas se citarem alguns “apontamentos daquelas venerandas aulas na iletrada faculdade de letras”:

“… não é um elemento formal para o romance picaresco do século dezasseis, porém mais tarde torna-se um simples processo que pode ter funções diversas, permitindo ao autor ligar diferentes situações conservando o mesmo herói (primeira função), exprimir suas impressões sobre diversos lugares visitados (segunda função), apresentar retratos de personagens que de outro modo não seriam compatíveis na mesma narrativa (terceira função). Isto associado à forma epistolográfica ou telegráfica, conforme o tempo de cada caracter, seria um método capaz de dar, pelas astúcias da mimese, algumas facetas da complexidade em que nos movemos”.

O eco espistolográfico da Tetralogia Lusitana é obviamente paródico como tudo o que surgiu no decair da modernidade, mas permite ainda hoje, não apenas focar uma diversidade de mundos em disrupção acelerada como também inscrever o leitor na densidade do tempo que enunciou a obra. Sobre esta perspectiva plural, a escrita de Almeida Faria, discursivamente riquíssima, continua a ser única no modo como movimenta aquilo que é o fundamento do continente literário, tal como o entendemos há já três séculos.

20 Fev 2020

O meu cavalo chama-se Nietzsche

“Olhos de transeuntes da loucura: em vós desaguam os restantes olhares”
Paul Celan

[dropcap]H[/dropcap]á um brilho no tempo que cega. A cintilação é-nos dirigida e nunca atinge o presente, segundo Agamben. E os amaldiçoados que não se deixam cegar pelas luzes do século só podem ver de longe. Do alto. Do Céu. Talvez por isso tenha gostado sempre do título Teorias do Céu. E roubo-o para este e outros textos que hão-de vir a trote e a galope de cavalo.

O ar fresco lava-me a cara, enquanto o passeio montado ganha asas. Posso gritar a plenos pulmões: obrigada Kant, doce inimigo de alguns. Deliro porque lhe roubei um enunciado tão belo. Que ousadia a minha!

Escorrego vertiginosamente no tempo. É urgente! Tenho de chegar precisamente às 15h a Konigsberg. Não posso deixar de rir. Parece um sonho, eu sei – mas, como sabemos, dos sonhos só é preciso despertar – desagrilhoar. Vou despedir-me do filósofo que libertou a razão de Deus, lançando a moral dele, daquele desavindo Deus, na experiência. Golpe baixo na metafísica — a bem do pensamento, o mal da vida! Como Bartleby, preferia não receber nenhuma moral prescrita por aquele Deus. Prefiro não o ter por companhia eterna.

Volto a ser arrastada para os céus. O movimento alado deixar-me-ia descansar? O mundo escureceria o suficiente para eu adormecer, sonhar, despertar de novo para ver melhor? E seria despertada por quem? Por Duchamp? Adorava! Contando que ele tivesse a infinita delicadeza de me olhar com aqueles olhos de águia embelezados de inteligência, e nos deliciássemos a comentar a forma pertinente como laminou e revolucionou o princípio do nosso século XX. Ou ser desperta por Marx, acusando-me de sonhar a história em vez de ter consciência dela! Se assim fosse, acatava. Como podia discordar do homem que criminalizou a burguesia por afogar o velho mundo nas “águas geladas do cálculo egoísta”? Como podia recusar um beijo ao homem que sonhou a simbolização igualitária e emancipatória? Sucumbiria perante as barbas, o cheiro a velho e passaria a noite a tentar perceber porque falhou o projecto comunista! Há quem diga que foi assassinado, o projecto. Onde estávamos todos, os que podiam ter feito alguma coisa? Lamentavelmente quando o modelo antropológico é fracturado, nem sempre conseguimos ser contemporâneos. A anomia resultante gera guerrilhas incalculáveis. E muitas vezes os fantasmas é que lutam sozinhos nestes campos de batalha onde elementos pregnantes, entre sangue e pranto, geram um mundo novo. Marx estava ciente da violência deste nascimento. O óbito do passado ficaria como fantasma resiliente pronto a atacar em qualquer momento em que os contemporâneos descansassem e fechassem os olhos. É preciso ser águia e falcão ao mesmo tempo. Ver sem qualquer miopia estéril. Ter o gesto tão afiado politicamente e preciso eticamente, como uma lâmina de bisturi para não falhar o compromisso contemporâneo com a ruptura. Não, não há descanso possível.

Levantamos voo de novo. Como Montesquieu, Nietzsche e tantos outros, é preciso aprender a ver montado nas estrelas. O meu olho esquerdo olha para trás, enquanto nos esgueiramos em força para a frente. O meu olho direito para a frente. Os dois, estrabicamente, convergem no presente. É um grande esforço atar estas duas órbitas, estes dois arquivos, um morto e um por viver, e dar-lhes, oximaramente, um sentido. Uma coisa é certa, na tarefa difícil do etnógrafo do presente, prefiro não fazer parte dos legisladores do pensamento e fixar-me nos estilhaços que fundam a crise, que estão ali por ligar, rematar, completar ou ser indiferente. A constelação que resulta de tudo isso é infixa, o referencial que a move é infixo. O verbo que a comanda é imprevisível. Instala-se um boomerang imparável, um caleidoscópio imparável, um ruminar imparável, como se mastigássemos o tempo e o regurgitássemos. Não é um caso de subjectividade, mas de urgência de “voltar a um presente em que jamais estivemos”.

O cavalo finalmente adormeceu. Imagino que sonha. Quando quiser partir desperto-o e peço-lhe que conte o seu sonho na língua da natureza a que ambos pertencemos. Estremece, coitado. Deito-me no seu dorso, não tanto para ter calor, mas para o sossegar. Não o quero ver sofrer. Entre as coisas do mundo, algumas merecem amor. Adormeci no seu colo. Sonhei com Nietzsche. Melhor, sonhei que o meu cavalo falava comigo intempestivamente, dizendo que a sua época padecia de um mal, “um defeito do qual justamente se orgulha”. E também que um tal Barthes iria dizer que “o contemporâneo é intempestivo” e não um momento cronológico da história. Bem me parecia que não podemos ensacar o tempo na eternidade linear porque ele não é objecto de domesticação. Como se estivesse num Western, o meu cavalo relincha, abre as asas de Pégaso e leva-me de volta ao mar. É bom sobrevoá-lo, cheirá-lo e fechar os olhos sob a plúmbea superfície, antes das rebeldes espumas esbranquiçadas anunciarem as grandes vagas e medonhos abysmos. Mesmo de longe sinto receio quando a superfície coesa e pacífica do oceano se altera, desenhando outro mapeamento e outro enredamento, porque não sei se o mundo é o mar que se agita ou o meu corpo que receia.

A veloz besta em que se tinha tornado a minha montada, não me permitia parar. Queria repousar deste desassossego, mas assalta-me um poema de Celan: “vejo tanta coisa de vós/ que não vejo mais / do que ver”, como se tivesse na bagagem um telescópio inoportuno que me libertasse do real pelo próprio acto de ver. Como uma Poeisis, o contemporâneo liberta-se da história, e enquadra o real onde os mortos “brotam e florescem” como modificadores de tempo em acontecimentos a-históricos. Dir-se-ia que o tempo morre no presente, por isso não se pode parar para olhá-lo frente-a-frente. É-se condenado a um olhar distante para assistir ao luto do tempo que se despede de outro tempo no próprio presente, numa kronostipia efervescente e desregrada. Neste desesperado exílio qualquer reflexo devolve ao olhar trágico do contemporâneo um requiem ao humanismo.

Somos agora um rosto informe, fractal à procura de um mundo que nos deseje e reconheça os sinais como a ama de Ulisses. Mas as minhas mãos, as minhas orelhas, os meus olhos, os meus pés desconfiam uns dos outros. Que rosto é aquele que olha fixamente os fantasmas do tempo que refulgem no presente? Que reclama pelo não vivido ainda? Que se materializa no que está por acontecer? Que olhos são aqueles que são capazes de mergulhar o olhar nas trevas do presente? Na dor, na lancinante dor? É esta a almejada condição de ser contemporânea?

19 Fev 2020

Já há tratamento contra o corona vírus

[dropcap]O[/dropcap] mundo acordou para um problema sério de saúde pública, quando o governo chinês declarou existir em Wuhan uma epidemia de um novo tipo de vírus de gripe. Estava-se em plena celebração do Ano Novo Chinês, o que apanhou mais de mil milhões de pessoas em movimento para irem à terra festejar, levando as autoridades chinesas a lançarem um alerta na tentativa de suster a propagação do Corona vírus (Covid-19), denominação dessa nova gripe, que apesar de ser mais contagiosa que a SARS se revelava menos fatal. Até então, pouco se sabia sobre o meio de contágio e só pessoas idosas com problemas graves de saúde tinham falecido. Mobilizados os médicos de medicina ocidental, os resultados foram, no entanto, desmoralizadores e como foi dito não existir nenhum medicamento para tratar, as pessoas ficaram verdadeiramente assustadas.

Nas redes sociais, os “médicos” de Medicina Tradicional Chinesa (MTC) apresentavam sugestões de tratamentos, referindo existir já desde a dinastia Ming (1368-1644) a explicação do que estava a acontecer no livro Wenyi Lun (温疫论, On Plague Diseases) escrito por Wu You Ke (吴又可). Este médico referia que em 1641 aparecera uma peste nas províncias de Shandong, Henan e Zhejiang que originou a morte de muitas pessoas, levando-o a deslocar-se ao terreno para tentar curar os infectados e procurar as razões de tão grande mortandade. Descobriu que a maioria ficara doente não por causa do vento, frio, calor, humidade, secura ou calor interior, mas porque entre o Céu e a Terra havia uma energia (qi) anormal para a época do ano, que criava problemas ao ser humano e se transmitia pelas pessoas através da respiração e pelas mãos.

Quem era apanhado por essa má energia (疫气, yi qi ou疠气, li qi), primeiro sentia muito frio, depois febre, dores de cabeça e dores por todo o corpo, aparecendo problemas de estômago, com vómitos e diarreia. O médico questionava-se: Constatou tal dever-se ao poder de resistência de cada um, actualmente reconhecido por imunidade. Registou no livro todas as etapas da doença e para cada uma delas deixou escritas as fórmulas das receitas para as tratar.

Ano GengZi

O actual surto aparecera várias vezes na História e já o livro dos livros da Medicina Chinesa, “Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo” (Huang Di Nei Jing, 黄帝内经), do século III a.n.E., referia que no final do ano de Ji Hai (己亥, Ano do Porco) o último dos seis Qi (energia) do ano [correspondente aos cinco últimos termos solares do Calendário do Agricultor (农历, Nong Li), que compreende o período entre Xiaoxue (Leve nevão) e Dahan (Grande frio), e em 2019 ocorre entre 22 de Novembro e 20 de Janeiro de 2020], tem o Inverno mais quente que o normal, provocando o desabrochar antecipado das plantas e o despertar dos animais que se encontram a hibernar. A água, ao contrário do normal, não congela e também antecipando a Primavera, o qi proveniente da terra começa a crescer. O corpo do ser humano por este anormal qi facilmente apanha Wen Li (温厉, febre sazonal/doenças patológicas febris).

Ligado com o corpo do ser humano, o qi interior é guardado no Inverno, que este ano mais pareceu ser Primavera e por isso, o nosso corpo abriu mais cedo, desprotegendo-se, deixando o frio entrar facilmente, a provocar a doença sazonal de febre (Wen Li). Esta constipação com tosse se durar longo tempo entra directamente nos pulmões [pois o interior Fogo (o mau qi, ou li qi, 疠气) controla o Metal (pulmões)]. Tal ocorreu até ao termo solar Dahan (Grande frio) a 20 de Janeiro de 2020, quando se estava no período do sexto qi.

Segundo Huang Di Nei Jing, ao mudar do último qi do ano Ji Hai (己亥, Ano do Porco) para o primeiro qi do ano Geng Zi, (de 20 de Janeiro a 20 de Março de 2020, entre os termos solares Dahan a Chunfen) o qi controla (está contra) yun [normalmente deveria ser o Céu a controlar a Terra (Yun controla o qi)], significando um ano com grandes oscilações no clima, sendo a Primavera mais fria do que é normal, parecendo estarmos no Inverno e por isso se sente o frio a chegar e os animais voltam a ir dormir, a água gela e o vento torna-se mais forte e tudo isto controla o yang do qi. Assim pode-se prever a partir de agora a chegada de constipações e gripes devido ao frio que vêm substituir a anterior febre provocada pelo calor antecipado.

Evite comer e beber em excesso, não ingira alimentos frios, nem ácidos e sem estarem cozinhados. Não esteja muito tempo sentado, evite gastar a sua energia em sexo e deite-se cedo. A saúde do seu corpo tem a ver com a força do seu qi. Não importa o quão complicadas são as mudanças patológicas das doenças, pois todas estão incluídas na predominância ou declínio do yin e yang.

Pela Teoria do Wu Yun Liu Qi, que num próximo artigo iremos falar e aqui ficou ao de leve explicada, a epidemia do coronavírus estará controlada nos finais de Fevereiro.

Pelo Yi Jing, fogo e trovão são os elementos para controlar esta epidemia e foram eles usados nos símbolos dos dois hospitais construídos em poucos dias em Wuhan para albergar esses doentes.

Como últimas notícias, a 3 de Fevereiro, em Wuhan aos pacientes infectados que se encontravam nos hospitais foi dado beber um chá preparado pela fórmula do médico Professor da Universidade de Medicina Tradicional Chinesa de Beijing, Tong Xiaolin (仝小林院士). Em Guangzhou, a equipa do médico académico Zhong Nan Shan (钟南山) apresentou a 5 de Fevereiro uma fórmula preparada à base da MTC para prevenir e tratar esta gripe, especialmente para os habitantes de Guangdong.

19 Fev 2020

A nova era ptolomaica

[dropcap]É[/dropcap] provável que estas duas notícias de que vos falarei agora apenas pareçam ter ligação para este cronista. Mas fiquem comigo mais um pouco, amigos.

Primeiro, foi a morte de George Coyne, um sacerdote jesuíta que era astrónomo no Vaticano. Durante a sua vida provou que a Fé e Ciência não são de todo incompatíveis e defendeu Galileu e Darwin contra as opiniões mais reaccionárias da Igreja. O seu olhar, por convicção e vocação, era do tamanho do universo e nesse olhar todos cabiam.

A outra notícia seria um fait-divers mas teve direito a parangonas e, como agora se diz, tornou-se viral: um rapazinho teve um acto de fair play e lealdade durante um jogo de futsal, corrigindo o árbitro sobre uma infracção que iria beneficiar de maneira importante a sua própria equipa. Ora eu até acredito que isto aconteça todos os dias e em vários lugares – é o facto de nos surpreender e comover que me espanta e diz bastante daquilo em que nos tornamos.

Ou talvez tenha sempre sido assim, não sei. O que sei é que a ortodoxia vigente neste lado do globo é uma espécie de uma visão ptolomaica dos afectos e do indivíduo – uma metáfora só para aproveitar o facto de ter George Coyne a dar brilho a estas pobres linhas. O Outro foi abandonado pela visão de que nós – eu – somos o centro do universo e que tudo orbita à nossa volta. Há pessoas assim e eu conheço algumas. Mas que isto se torne numa constatação global é que me entristece. O postulado parece ser: o centro sou eu . Não só das relações como de toda a Humanidade. Mesmo que não seja sobre mim é sempre sobre mim.

Nota-se facilmente por todo o lado. Nas redes sociais – essa fiel depositária de todas as qualidades e defeitos da natureza humana – a lupa é implacável e facilmente se chega lá. Desde os obituários de famosos que por lá surgem, e que em vez de prestar tributo aproveita-se para falar de um episódio em que se conheceu o defunto, até à mais arrogante e irritante formulação do “Quem me conhece sabe”. A sério? E então para onde vamos nós, os que não conhecem nem querem conhecer? Quem assim escreve pede uma atenção – pior: pensa que lhe está devida – que ninguém quer dar.

Podiam apenas ser meras irritações mas olhando para os sinais, que já têm décadas, receio que esta atitude esteja para ficar. Mesmo os movimentos colectivos que se dirigem ao outro refugiam-se muitas vezes no cinzento do anonimato e no conforto da sala. Como há medo ou incómodo de enfrentar um rosto dá-se a ilusão de que a solidariedade é real e próxima. A cultura confessional que Robert Hughes diagnosticou nos anos 90 – uma outra forma de dizer cultura de vitimização – terá criado também este monstro paradoxal (outro, mais conhecido, é o do politicamente correcto).

Não venho aqui apresentar soluções, amigos. Não sei, não posso. Registo apenas sinais que fazem desta crónica um lamento mais do que outra coisa. Mas fico-me pelos pequenos gestos como o do rapazinho. Ou a grandeza do homem que defendeu que somos nós que orbitamos algo maior, mesmo contra muito do que lhe disseram para pensar. Enquanto houver este legado nos nossos dias, a nossa viagem finita há-de ser sempre um pouco mais leve. E isso é melhor do que nada. Melhor do que nós.

19 Fev 2020

Vieuxtemps: o Paganini belga

[dropcap]H[/dropcap]enri François Vieuxtemps, nascido em Verviers no dia 17 de Fevereiro de 1820 e cujo bicentenário se assinalou ontem, foi talvez o maior representante da escola violinística franco-belga.

Criado num ambiente familiar impregnado de música, recebe as suas primeiras lições do seu pai, violinista aficionado e construtor de violinos, prosseguindo os estudos com um conterrâneo do seu progenitor, Lecloux-Dejonc, que aponta nele grandes qualidades. Em 1826, com apenas seis anos, inicia a sua carreira concertística com o Concerto para Violino e Orquestra n.º 5 de Jacques Rode. Em 1827 dá o seu o primeiro concerto em Bruxelas, travando conhecimento com o violinista e compositor Charles-Auguste de Bériot, que acede a admiti-lo nas suas classes do Conservatório de Paris. Vieuxtemps muda-se para a capital francesa em 1829. No entanto, o casamento de Bériot com a cantora lírica Maria Malibran e a sua partida de Paris em digressão de concertos, levam Vieuxtemps a regressar a Bruxelas, onde alterna os estudos com uma importante actividade concertística pelo seu país e pela França, Alemanha, Itália e Estados Unidos, colaborando em especial com a eminente meio-soprano Pauline Viardot, irmã de Malibran. Numa digressão pela Alemanha em 1833, com apenas treze anos, conhece e torna-se amigo de Louis Spohr e Robert Schumann, que o compara o jovem virtuoso a Nicollò Paganini.

Durante a década seguinte visita várias cidades europeias, impressionando com o seu virtuosismo não apenas o público, mas também compositores famosos como Hector Berlioz e o próprio Paganini, com quem trava conhecimento na sua estreia londrina em 1834. Com aspirações a tornar-se também compositor e tendo já tido lições com o reputado Simon Sechter em Viena, passa o Inverno de 1835-36 a estudar composição com Anton Reicha em Paris, datando a sua primeira composição de 1836: o Concerto para Violino n.º 2 em Fá sustenido menor, Op. 19. A sua juventude e o seu virtuosismo criam-lhe uma fama lendária. Entre os seus compositores mais admirados encontra-se Beethoven, de quem se converte em intérprete favorito do seu Concerto para Violino, Op. 61.

Em 1837 e 1839 realiza digressões na Rússia, onde adquire uma grande reputação. Durante a segunda digressão escreve o Concerto para Violino n.º 1 em Mi Maior, Op. 10, estreado em Paris em 1841 com o aplauso de Wagner e Berlioz. Em 1843 e 1844, efectua a primeira digressão de concertos nos Estados Unidos, compondo para a ocasião Souvenirs d’Amérique, Op. 17.

Na sequência da digressão americana, segue-se uma tournée pela Alemanha, onde Vieuxtemps comporia uma nova obra, o Concerto para Violino n.º 3 em Lá Maior, Op. 25, muito influenciado pelo seu amado Concerto para Violino de Beethoven. Em 1844 casa-se com a pianista vienense Josephine Eder, e entre 1846 e 1852 estabelece-se na Rússia como violinista da corte, violinista solista dos Teatros Imperiais de São Petersburgo e professor do conservatório desta cidade. Ali compõe, para além de muitas outras obras, um dos seus concertos mais conhecidos, o Concerto para Violino n.º 4 em Ré menor, Op. 31, descrito por Berlioz como “uma sinfonia para violino”. Apesar de ter assinado um contrato de seis anos com a corte russa, foi-lhe permitido dar concertos fora desse país durante as suas férias anuais, continuando a actuar em toda a Europa.

Vieuxtemps regressa à sua Bélgica natal em 1852 e permanece em Bruxelas até 1854, quando se muda para Dreieichenhain, perto de Frankfurt, onde permaneceria por mais de dez anos. A sua segunda digressão aos Estados Unidos teve lugar em 1858, onde actuou 75 vezes em menos de três meses! Em 1858, o seu amigo Hubert Léonard e professor do Conservatório de Bruxelas encomenda-lhe uma obra para ser utilizada num concurso de violino da instituição. Entre 1858 e 1859 Vieuxtemps compõe o Concerto para Violino n.º 5 em Lá menor “Grétry”, Op. 37, obra de grande sensibilidade e tom romântico. O concerto foi expressamente concebido para testar as capacidades de alunos muito avançados do instrumento, mas manteve-se no repertório por mérito próprio e provavelmente ultrapassa o Quarto Concerto em popularidade. Devido a uma situação política cada vez mais difícil, deixou a sua casa em Dreieichenhain em 1866 e estabeleceu-se em Paris. A sua mulher Josephine morreu de cólera em 1868, o que o levou a fazer uma longa pausa na sua intensa agenda de concertos.

Embarcou na sua terceira digressão pelos Estados Unidos em 1870, influenciado a aceitá-la em parte pelo início da Guerra Franco-Prussiana. Durante essa tournée, actuou 121 vezes em meio ano. Em 1871, depois de ter recusado duas vezes cargos de ensino, aceitou finalmente uma cátedra no Conservatório de Bruxelas. Os seus alunos mais famosos foram Eugène Ysaÿe e Jenö Hubay. Em Setembro de 1873, enquanto se encontrava em França num concerto de caridade para ajudar vítimas da Guerra Franco-Prussiana, sofreu uma apoplexia e perdeu o uso do braço direito, tendo ido morar para Paris com a sua filha e genro, voltando gradualmente a compor e até a tocar, embora não publicamente. Após uma tentativa abortada de voltar às aulas no Conservatório, resolveu mudar-se com a sua irmã para Mustapha, na Argélia, onde o marido desta residia. Ai dá continuidade ao seu trabalho criativo e compõe os seus dois últimos concertos: o Concerto para Violino n.º 6 em Sol Maior, Op. 47 dedicado à violinista Wilhelmine Normand-Neruda e, logo a seguir, o Concerto para Violino n.º 7 em Lá menor, Op. 49, dedicado a Hubay que o visita na Argélia. Permaneceu um compositor ativo quase até ao dia da sua morte, no dia 6 de Junho de 1881. O seu corpo foi transladado para a Bélgica onde Vieuxtemps foi recebido como um herói nacional e enterrado em Verviers, a sua cidade natal.

Sugestão de audição:
Vieuxtemps: Violin Concerto No. 5
Viktoria Mullova, violin, Academy of St. Martin in the Fields, Sir Neville Marriner – Philips, 1989

18 Fev 2020

O fenómeno do hospedeiro

[dropcap]A[/dropcap]travessemos então este deserto pois que é Natal no mundo e sem ele não há a festa. Aquela faixa estreita e alta, por onde todas as colunas de um estranho fogo se levantam, é um corpo, um organismo, um efeito anatómico, e o seu estreito desenho nos mapas parece-nos ainda uma serpente emplumada, e se grandes extensões na Terra são mais ou menos estáticas, neste corredor tudo o que muda nos fez mudar também. O metabolismo deu certamente origem a um “órgão” não assimilável pelo conjunto do todo, uma árvore trepadeira perto do jardim do paraíso onde querubins guardiões ainda vigiam o mistério vegetal do seu reino. Daqui, todos se foram em diásporas e reinos disseminados para o corpo mundo que os circunscreveu ao seu domicílio de estranhos hospedeiros, mas o órgão retorna, e mesmo quando não está no local de origem sente as dores fantasmas do amputado, e é este órgão que se vê submetido a uma luta infinda perante o corpo que se instala por fim no local nascido.

Foi a dissidência da sua condição original que criou o coração, e nós ainda caminhamos à procura do centro, ponto indizível do tal órgão indesejado neste corpo em circuito fechado que expele sémen e detritos, mas que pode vir um dia a ser o lugar da habitação: somos escravos e estrageiros no corpo habitado e não sabemos onde está nele o local mais santo. Tocar nesse corpo é o convite ao hospedeiro na funda gruta da sua estalejaria, mas se o corpo apenas nascer, não saberá desta função. Se da casa de David vier um longo entendimento, essa casa é a Arca e transportar o seu enigma convidar-nos-á a dançar enquanto pelo deserto a marcha vai.

Quem regressou da viagem veio por uma estrela. Foi na época de um corpo muito sombrio que não deixou de sentir a sua vocação, e se nas margens de um Mar Morto a imortalidade o tomou, é por que o mar é um elemento que morrerá quando todo o deserto cobrir o detrito que foi a humanidade, e nem por isso fomos menos sagrados a um tempo que esse menino que nasceu. Que nascer era tudo que os profetas almejavam para libertar o seu mundo da morte constante, da fuga sem fim, da diáspora, dos ódios de todos. Nascer em qualquer lado sempre a andar, e regressar um dia apenas pelos sonhos- por um imperecível sonho- que só um corpo tão glorioso não apagara.

Quando toda a memória dele se for estaremos perdidos dentro de nós, o corpo quer viver, mas a sua alma, não, e tudo lhe serve de combate a um confronto épico onde a matéria se endeusa para cobrir a fria corrente… Sem que o saibamos podemos estar mortos dentro do corpo a pedir ao desejo que nos traga um sentido para não morrermos de terror. Os que vaguearam pelas vagas de inimigos retornaram ao lar, os dissidentes desse lar deram-nos uma luz, mas, se o corpo estiver coberto de musgo pela passagem dos presépios, apenas andaremos em busca do nosso refúgio imaginário. O deserto onde nasce um deus não precisa de mais nada que ser um ponto de infinito entre as Nações. Nem nós, corpo imenso, somos capazes de cobrir a sua grandiosa desolação, nem entender os rios onde se chorou para a ele retornar. Ao nosso corpo juntemos as palavras do Levítico, 19, 33-34: «Não oprimireis o estrangeiro que permanecer na vossa terra» o que não conhecermos de nós que seja bem-vindo e se junte para a transformação; os nossos órgãos de fogo não podem destruir toda a grande casa!

Com compassos de espera até ao estertor final nós vamos prosseguindo tão sós como num qualquer deserto e falta-nos ainda saber da rota deste desconhecido habitado. Veste-se de usura e é indecifrável nos seus desígnios? Despe a usura e cobre-se de um manto bom e protector? É porque veio da sua própria necessidade ocupar o tempo no espaço que deve ser melhorado e criar luz nas próprias entranhas.

Diz-nos ainda que seis órgãos servem o ser humano e três escapam ao seu controlo, e nesta aventura saberemos o que temos de integrar. Nada se passa muito além e, no entanto, é sempre para longe que reflectimos e desconhecidos de nós mesmos, festejamos. Estamos na hospedaria mas está tudo preenchido, não temos lugar…. e quando damos por nós fomos parar a um local improvável, nos confins do mundo, desértico, com as dores de parto de um mistério por decifrar.
Guardemos os segredos e caminhemos.

18 Fev 2020

Eus

[dropcap]L[/dropcap]uigi Pirandello disse numa entrevista que dividia os escritores em dois grupos: aqueles que se encantavam com o que viam, com o que acontecia fora deles e passavam a descrevê-lo a quem chamava escritores naturalistas; e aqueles que se surpreendiam com o que se passava dentro deles mesmos, com a incongruência entre o que sabiam e faziam, o desconhecido enorme que os habitava, a quem chamava escritores filosóficos. Termina por dizer: “Infelizmente faço parte do segundo grupo.”

O seu conterrâneo Marcello Crocetta, nascido em 1975 em Agrigento, pode ser também considerado um escritor desse segundo grupo. Os seus livros são todos de textos curtos, alguns de duas páginas, e desde o início que dividiram a crítica italiana, considerando-os entre pequenos contos e crónicas. Recentemente, quando esteve em Portugal, numa entrevista concedida à poeta e jornalista Inês Fonseca Santos, para o programa de TV “Todas as Palavras”, Crocetta disse acerca desse assunto: “Aquilo que escrevo é conto. A matriz é sempre a ficção. Se algo acontece comigo, ou penso acerca de um acontecimento ou comportamento social, a tendência natural da minha escrita é criar uma personagem ou personagens e pulverizar o eu, de que a crónica tanto vive. Se acontece, por vezes, o texto desenvolver-se na primeira pessoa, não sou eu que falo, mas uma ficção. Eu não tenho opiniões, e seguramente menos conhecimento ainda para dissertar acerca de um assunto, embora me julgue capaz de criar “eus” fictícios que se movem em determinados cenários que talvez não sejam mentira. Aliás, todos sabemos que o eu é uma ficção não assumida enquanto tal. A minha escrita leva apenas essa premissa à conclusão ficcional. Se eu não sei quem sou, se me ponho a discorrer acerca de um assunto, como este aqui e agora, é evidente que é uma ficção.”

Quando Fonseca Santos lhe pergunta: “Então, qual a diferença entre o que acaba de dizer e um conto que escreve?” responde: “Não sei. Mas suspeito que seja a apresentação do corpo. Estas palavras colam-se a mim, parecem ser expressões minhas – ou pelo menos é desse modo que tendemos a ver –, as que escrevo separam-se naturalmente de mim.”

Esta sua resposta faz-nos lembrar de imediato o conto “Amanhã Serei Bonita”, do seu livro “Apresentar Argumentos à Beira do Suicídio”, de 2003, em que a narradora ao passar a lista do que tem para fazer nesse dia, durante o seu pequeno-almoço – três horas de exercício no ginásio, meditação, yoga, passar na loja de produtos naturais –, pensa “Fui eu mesma que pensei isto? Isto sou eu mesma? É isto que eu quero fazer?” Crocetta mostra-nos que nem aquilo que parece termos escolhido fazer pode ser expressão de um “eu”, mas uma ficção. Neste caso, uma ficção colectiva, mais ou menos abrangente. A pulverização do eu a que Marcello Crocetta se referia na entrevista acima citada não tem a ver com uma teoria, mas com uma vivência do autor, que não distingue entre o que consideramos não saber de facto e aquilo que nos é imposto pelo grupo social a que pertencemos. Nós não somos nós apenas por desconhecermos o futuro ou não termos todos os dados para tomar uma decisão acerca da nossa vida, nós não somos nós por isso e por também assumirmos comportamentos que têm a ver com o nosso “habitat”. Comida saudável, horas de ginásio, meditação, yoga não fariam parte da vida de Pamela – a narradora de “Amanhã Serei Bonita” – se tivesse nascido há 50 anos. Ao tomar o pequeno-almoço, no seu bonito apartamento de Roma, dá-se conta de que talvez as suas decisões, o que julga serem as suas decisões, não passem de decisões de outros por ela. No seguimento dessa reflexão, Pamela pensa ainda: “Mas se eu agora decidisse deixar de ir ao ginásio, de fazer meditação e yoga, seria eu a decidir?” É este pensar exaustivo de Pamela acerca da possibilidade de não existência de um eu dentro de si que agonia o leitor, não só neste conto, mas em quase todos os contos de Marcello Crocetta. A partir daquele momento Pamela passa a viver na vertigem da não existência do eu ou, melhor seria dizer, na vertigem da confirmação da não existência do eu. De cada vez que pensa algo, pensa que não há um ela mesma a pensá-lo, mas que alguém pensa por ela, o que acaba por levá-la ao suicídio.

Suicídio que acaba por se tornar assassínio, pois alguém dentro dela a levou a esse gesto final. Dias antes de se matar, de alguém a matar, envia uma mensagem pelo telemóvel à sua amiga Manuela, dizendo: “Alguém em mim me está a matar”. Este “alguém em mim” é o motor da escrita de Marcello Crocetta, que segundo ele é incompatível com a crónica. Esta exige um “eu” que se assuma como se existisse, e Crocetta escreve através de “eus” que ganham existência através de uma escrita que é atravessada pela crença de que nada em nós nos pertence, nem o desconhecido. Apesar disto, termina por dizer na entrevista a Inês Fonseca Santos: “Mas não tenho nada contra a crónica. Só que ela não me assenta bem.”

No fundo, a escrita de Marcello Crocetta não anda longe das reflexões que moviam a do seu conterrâneo Luigi Pirandello.

18 Fev 2020

Os Pagodes de Macau em 1867

[dropcap]E[/dropcap]m 1867 reina na China o oitavo Imperador Qing, Tong Zhi (Mu Zong, 1862-1875), enquanto, desde 1861 em Portugal o Rei D. Luís (1838-1889), o Popular.

O Governador da Índia é pela segunda vez José Ferreira Pestana (1864-70), cargo que exercera já entre 1844 e 1851, quando a 20 de Setembro de 1844 retirara Macau da subordinação a Goa, mas pela Reforma Ultramarina de 1863 voltara a cidade a ficar integrada no Estado da Índia. “Em Macau, com a ligação a Goa, o peso da máquina burocrática aumentou, cavando-se um fosso cada vez mais evidente, perante a descentralizada prática e alada prosperidade de Hong Kong”, segundo Beatriz Basto da Silva. Em 1864 a cidade começara a modernizar-se com a sua iluminação, sendo dados nomes às ruas e números às casas, havendo já uma regulamentação urbanística com o cadastro de todas as ruas divididas pelas zonas da cidade, freguesias da Sé, S. Lourenço e Sto. António e o Bazar, assim como das povoações da península fora da muralha da cidade. As muralhas estão a ser desmanteladas para permitir rasgar novas ruas e colocar canos de esgoto. O Governador de Macau é desde 26 de Outubro de 1866 José Maria da Ponte e Horta (1866-1868).

Os Templos

Macau em 1867 tem doze pagodes, encontrando-se três no Bazar, dois em Patane, seis em Mongh’a e um na povoação da Barra, o Templo de A-Má (a deusa Neang Ma) construído em 1488 e onde habitam dez bonzos, dos 26 que vivem em Macau. Quatro desses 26 bonzos acham-se suspensos do exercício de seu culto, residindo um no Bazar e os outros três nas hortas de Patane. Para os doze pagodes existem 40 empregados e na cidade há 39 benzedeiros.

Na área do Bazar, dos três pagodes um é “Weng Neng Fong”, local de reuniões dos mercadores chineses que formam a Sociedade Weng Neng (Weng Neng Se) e conhecido por Sam Kai Vui Kun. Sam Kai significa Três Ruas referentes à Rua dos Mercadores, Rua das Estalagens e Rua dos Ervanários e fora construído entre 1665 e 1671, antes da proibição do comércio marítimo que em 1684 foi removida. Até 1792 era também o local onde os mandarins de Heungshan se reuniam, quando estes passaram para o templo Lin Fong, continuando a ser o local de reuniões dos comerciantes chineses. Em 1913, após o estabelecimento da Câmara do Comércio de Macau, o templo perderá as funções originais e tornar-se-á o Templo de Kuan Tai, dedicado ao Deus da Guerra e da Saúde, achando-se na actual Rua Sul do Mercado de S. Domingos.

O segundo pagode do Bazar é o Templo de Lin Kai, na actual Travessa da Corda, construído por volta de 1740 atrás do riacho de Lotus, que nasce próximo do actual Jardim da Flora, na parte Leste do Monte da Guia e corre pelas actuais Rua da Barca e Rua de João de Araújo até ao Porto Interior. Por volta de 1830 foi reconstruído, mas o tufão de 22 de Setembro de 1874 causar-lhe-á muitos estragos e por isso será reconstruído e ampliado.

Já o terceiro pagode do Bazar é o Templo de Hong Kun construído antes de 1860 e localiza-se na actual Rua 5 de Outubro, no Largo do Bazar.

Os dois pagodes de Patane são, o Fok Tak Chi construído em 1836 na actual Rua do Patane n.º 34, que será reconstruído em 1895. Serve como sala de convívio e de reuniões aos residentes da zona, funcionando também como escola. O segundo é o Tou Tei Miu, no Largo do Pagode do Patane, entre a Rua da Palmeira e a Rua da Pedra, construído pelos seus residentes no reinado do Imperador Qianlong (1736-1796), mas essa data crê-se ser referente apenas ao actual edifício.

Em Mongh’a existe o Templo Cihu (vulgarmente chamado Pagode Novo), situado na parte Norte da Colina de Mong Há, que em 1722 passara a ter esse nome após o anterior aí existente, o Tin Fei miu, construído entre 1573 e 1619 na dinastia Ming, ter sido ampliado com novas extensões. É o lugar onde se hospedam os oficiais mandarins quando vêm a Macau e a 3 de Setembro de 1839 o comissário imperial da dinastia Qing Lin Zexu, na sua visita de inspecção a Macau, aí teve um encontro com os governantes portugueses da cidade. Nele em 1867 vivem seis bonzos. O nome de Templo Lin Fong será dado no reinado do Imperador Guangxu (1875-1908).

Já na Rua dos Pescadores existia num pequeno promontório um altar à deusa A-Má, quando em 1865 aí foi construído o Tin Hau Seng Mou Miu (templo da Deusa Rainha Celestial), também conhecido por Pagode de Ma Kau Seak.

Por fim, na actual Avenida Coronel Mesquita existem quatro pagodes, o Kun Iam Miu construído durante o reinado do Imperador Tianqi (1620-27) na parte Sudeste da montanha de Mong Há e em 1867 está a ser reconstruído e ampliado. Ao lado deste, em construção está o Templo de Seng Wong com a finalidade de os mandarins de Mong Há terem uma sala para reunir no primeiro e décimo quinto dia do mês lunar com o seu homólogo Deus Seng Vong.

O Kun Iam Tong, ou Pou Chai Sim Un, edificado em 1632, apesar de muitos dos edifícios datarem de 1627, data gravada num dos altares de pedra, terá inúmeros aumentos entre 1689 e 1692. No pátio do templo existe uma mesa redonda de granito onde a 3 de Julho de 1844 foi assinado o Tratado de Wanghia entre a China e os EUA. O templo em 1867 está a ser ampliado e aí vivem seis bonzos.

Ao seu lado, dedicado ao Deus Hong Kong (康公) o Templo Hóng Chan Kan, ou Hóng Kông Miu, construído em 1792 e no reinado de Daoguang (1820-1850) fora ampliado.
Estes são os pagodes de Macau em 1867.

17 Fev 2020

Dicionário das palavras difíceis

[dropcap]P[/dropcap]ensar como as palavras são difíceis e no mesmo mecanismo reflexo ocultar as difíceis, de dizer. Simples e límpido.

Na infância, palavras difíceis, eram as desconhecidas a ver no dicionário. Mas não por serem duras ou por magoarem. Mudou quando crescemos. Agora, difíceis são as que custamos a dizer para fora desse limbo em que nos assolam de dentro. A construir ou a corroer. Ou as que abrem caminho na carne, sem anestesia, vindas de terra estranha.

O que procuro nas palavras que se acercam quando escrevo, senão pacificar o desconhecido, o conhecido, é talvez difícil de decifrar. Um mapa. Surpreender um novo ângulo que o simples pensar não teria abarcado. As palavras são exigentes. Não se resignam com imprecisões. Perguntam na sua afirmação se estão no lugar certo do sentir do pensar. Mas num grau de exigência tocado de humildade. Elas pedem licença para ficar e dispõem-se a deixar lugar vago a outras, se vieram inconvenientemente. Se nos entenderam mal. São educadas. De bom feitio. E no entanto capazes de cortar a respiração de tão incisivas quando tocam a pele.

A alma. Pergunto sempre, nesse caso, de que lado sem piedade saíram de mim. Quando as deixo aflorar o ecrã luminoso. Não posso deixar que me façam mal. As minhas, pelo menos. Hoje as palavras difíceis são as difíceis de escrever. As difíceis de pensar a dimensionar um julgamento sumário em si, e sobre quem, simplesmente pensadas, nos tornam.

Às vezes correr no dia e nas coisas feitas e a fazer somente para chegar à noite. Entrar, descansar nela, essa interna terra de ninguém. Intervalo na voragem até mesmo quando demasiado lenta, amadurecida e penosa, dos dias. Penso que desperdício correr. Penso que desperdício tanto do que faço e tanto do que haveria a fazer. Penso. Que desperdício tão grande viver a pensar em vez de pensar a viver. E outras contas coloridas.

Que faço aqui? Que caminho é este? Quando se sabe de antemão onde se vai terminar mas não como, e quando. Em pleno ou com a consciência pela metade. Serenamente ou em agonia. Comigo, com quem? A sós. Quase de certeza. Palavras a apagar. Coisas que não se devem dizer. Aprender a escrever silêncios. A viver palavras melhores – como? Mudá-las de lugar na casa do dicionário. Significados a dois, sinónimos a dois. Sentidos em grupo. Famílias de palavras com quem jantar à semana. Umas, que acariciem as outras.

Há coisas difíceis de fazer. Mas há coisas ainda mais difíceis. Não há maneira mais infalível de fazer as primeiras, do que temer as segundas, adiar, fugir até ao limite do possível e nesse momento fazer uma série infinita de coisas fáceis e, para adiar mais um pouco as mais difíceis de todas, fazer as simplesmente difíceis.

Tornadas, por magia da comparação, fáceis, afinal. Com a secreta satisfação de ver o que foi feito afinal. Mesmo por razões transversais. Mergulhar no covil de um monstro que se torna vizinho e cúmplice. Nunca se enfrenta serenamente um medo, senão em fuga de outra esquina atemorizante. Com as palavras, o mesmo.

A escrita não é uma actividade voluntária. Não acontece quando quero, pelo contrário acontece quando não quero, quando não posso. Percorrer estes ténues limites da vontade é como equacionar a fila da confissão. Fujo do que me persegue mergulhando nisso. Não quero escrever isto que me assola. Na verdade é um soluço ou um vómito súbito. Uma certa e secreta escrita. Depois, num miradouro sobre este espaço nu. E vamos a ver, e já somos nós. De lápis na mão, emprestado, azul.

Aquele Atlas, de países fora de moda. Sempre gostei de mapas de percorrer e sonhar. E tenho o oráculo. De Borges. Aquele livrinho de folhas finas e azuis em que nunca leio mais do que uma palavra, apontada cegamente. E quando aponto uma página vazia, penso: o presente não fala comigo, de momento e o futuro indisponível. Sempre fez sentido assim. Como em qualquer leitura profética, projctamos o que desejamos ler.

Assim, uma única palavra, sem os labirintos que a atiram para bifurcações naturais a qualquer linguagem. Explicando, confundindo. Mas entre os livros de mapas, gosto particularmente do dicionário. Essencial à leitura daqueles. De que servem os mapas sem palavras de ir, vir, gostar, sonhar, querer. De um nunca. Um de novo. Em cada entrada o mergulho a pique. As dicotiledóneas ou as diatomáceas, tão perto da dicotomia da disposição. A secura lisa da apresentação. A poética revelação das palavras bonitas, das comuns, surpreendentemente versáteis. As estranhas paisagens de desconhecido de umas e do reconhecido noutras.

E pensar que todos os livros e todas as conversas, de uma miríade de vidas cabem ali. Desarrumadas como quem acabou de se levantar de uma noite. Dissimuladas, na sua ordem alfabética.

Duas páginas em frente. Virar esquinas do grosso volume. Pejado de vida, mistério, sons abafados pela estridência de outros. Um mundo. Que sempre espreito com fascínio e terror. Quantas palavras por estrear…Um parque florestal pejado de seres vivos até à mais recôndita camada. Um dia de arrumações, reorganizar o dicionário. Arrancar as páginas cuidadosamente sem estragar a encadernação. Como cartas de Tarot dispostas sobre a mesa. Consultar o insólito e novo agrupar de impressões em soluções para a vida.

Respostas em jeito de amigas que não nos conhecem e quase acertam de tão longe. E com tanto ou tão pouco sentido, quanto a coerência se revelou incapaz de definir. Como uma outra poética, sem espartilho. Recortar e colar tudo de outro modo. Reorganizar sentidos. Palavras gastas com outras mais jovens. Talvez. Umas que não se conheçam, para ver. Deitar fora as que têm demasiado uso e me cansam. Já. Tempo, matéria, mental, ilusão. Que aluada sou neste perscrutar escuridão. Quando a hora é de quem dorme cedo ou tem compromissos para a noite e aqui, do lado de fora se gera a quietude que teima em não entrar. Olho sempre pela janela porque dela vem a noite e em mim ainda oscila este fundo interior. A querer sair e acalmar.

Há que sair deste fundo de mim. Unir com uma linha fina de lápis F, delicado, nas folhas do pesado livro, a palavra estranha da entrada x da página da esquerda, à palavra comum da entrada y da página da direita, num casamento desigual e ir daí por diante no universo que se esboça.

A pensar, exultante na perplexidade, que tudo está em tudo, escrito ali. Somente a precisar de arrumação. Como um destino. Que se quer ler nas estrelas. Mas é de escrever. Ou um Atlas. De que nos servem tantas terras desconhecidas, a que ambição desmesurada abrem território, penso. Há um mapa pessoal a desenhar. Uma soma de caminhos, um sistema vascular. Como um corpo e o único amado.

17 Fev 2020

Epitácio Pais e a literatura de Goa

[dropcap]D[/dropcap]ir-se-ia que os poucos goeses que escrevem em língua portuguesa após 1961 o fazem numa língua forçosamente deslocada. Ela perdeu o seu sustentáculo social, dado pelo colonialismo português, e parte dos seus referentes simbólicos, que soçobraram com a integração de Goa na União Indiana. Ao contrário das literaturas africanas escritas na mesma língua, para quem a independência foi assentamento de batismo, para a goesa o fim do colonialismo implicou no ocaso de uma longa tradição que remonta a 1556, ano da introdução da imprensa no subcontinente, via Goa. Apesar disto, de alguma forma certos temas, figuras-tipo, situações narrativas da antiga literatura chamada “indo-portuguesa” continuam de outra forma, em outras línguas, o que me leva a crer que um livro como Preia-Mar, romance inédito de Epitácio Pais publicado há poucos anos em Goa (Edição de Paul Melo e Castro e Hélder Garmes. Taleigão: Goa 1556/Golden Heart Emporium, 2016), se encontra de alguma forma em contato com essas outras tradições dentro da literatura goesa.

Num mundo romanesco onde a referência portuguesa (colonial, se quisermos) já não existe, nem a comunidade católica se encontra valorizada, o autor está condenado a ser um “fala-só”, o que certamente se manifesta no contexto de produção e de circulação de Preia-Mar: um póstumo, o que diz muito sobre ele: póstumo, que rem relação à vida do autor, quer da língua em que escreveu o livro. Por outro lado, em obras goesas da atualidade escritas em inglês ou traduzidas para o português e do português para o inglês, muitas delas se vêm ainda ligadas aos significantes desse mundo “indo-português”, como no caso dos romance Skin, de Margaret Mascarenhas (falecida o ano passado), escrito em inglês, mas no qual as personagens falam português.

Epitácio Pais (1924-2009) foi um excelente contista da comunidade católica – que é também a de língua portuguesa – de Goa. O seu Os Javalis de Codval (1973) já se havia publicado em Portugal (Editora Futura), por iniciativa de Manuel de Seabra. Preia-Mar é um romance também escrito nos anos 70, e que ficou anos escondido numa gaveta e que abre uma janela para um mundo perdido de língua portuguesa, ou para ela perdido, em outra perspetiva. O livro possui um tom semelhante àquele que encontramos nos contos e em ambos se sente aquele efeito de deslocamento na linguagem do autor. Por exemplo: “Imprimo à vida um rumo diferente da arqueologia que norteia a nossa grei”, pensa o protagonista na p. 68 ao desejar tornar-se pescador. Na verdade, enquanto língua literária o português de Epitácio é bem diverso das contemporâneas linguagens dos autores africanos, mas também não é o português escorreito de um José Cardoso Pires, que tende a escolher vários dos mesmos temas marginais. Pode o vocabulário ser duro e explícito, mas dentro de um estilo arrevesado próprio dos escritores goeses. De fato, o português como veículo da modernidade literária em Goa é uma questão que este romance também coloca e que a crítica terá ainda que enfrentar.

Ao mesmo tempo, Preia-Mar é um romance muito contemporâneo, pela sua descrença perante os vários discursos em conflito na arena social: o discurso tradicionalista da família católica de Leo, de alta classe mas decadente; o da modernidade e da tecnologia de uma nova Índia encarnado em vários personagens com os quais Leo se relaciona e ainda o neo-espiritualismo simplista dos hippies, em busca de uma Índia milenar numa Goa mais habituada à presença de estrangeiros do que a outra Índia. O protagonista Leo – uma espécie de anti-herói pós-colonial, numa terra em que ninguém, nem mesmo ele, é modelo de virtudes – encarna bem o pessimismo do autor face à Índia sua contemporânea. Aquele pessimismo exprime-se também em uma série de casos de marginalidade, exploração e oportunismo que se desenham em torno de Leo e que sugerem ser a ideologia do livro uma espécie de neo-realismo sem marxismo, passe o absurdo. Nesta Goa pós-colonial todos são viciados em qualquer coisa ou procuram pequenos esquemas para obter dinheiro, à exceção de uma mulher-anjo quase camiliana (autor certamente lido em Goa) que acaba por redimir Leo pelo casamento, solução ex machina que resolve vários dos problemas do protagonista.

Para terminar, merece ser sublinhado que a publicação em 2016, na Índia, de um romance em português é um fato extraordinário em si mesmo, a tal ponto que é possível falar deste fenómeno editorial enquanto sinédoque da condição do português em Goa. Corajoso investimento, este de um livro que, na Índia, só poderá ser lido por uma reduzida comunidade. Em 50 anos, ela praticamente se desenvencilhou do português, trocando-o pelo inglês, como se vê pelo próprio nome da editora (Goa 1556/Golden Heart Emporium), ou pela troca das placas de rua no bairro das Fontainhas, em Pangim. Assim, neste livro se encontra resumida toda a situação dessa língua. Podemos, como Galileu, afirmar que algo ainda se move em torno dela; certamente não uma forma de “lusofonia”, antes algo que se organiza multilinguisticamente como um sistema independente, inserto em um sistema maior, o indiano. Isto significa que o português na Índia tem uma vida própria, que escapa à sistematicidade postiça da lusofonia e que, por essa razão, um brasileiro ou um português terão dificuldade em compreender. Certamente que um indiano de um outro estado não: este poderá só não compreender o que é dito na língua em si, a sua praxis. Em suma, Preia-Mar é uma janela aberta não apenas para uma tradição literária esquecida, mas também para uma Goa vista, em português, pelos próprios goeses.

14 Fev 2020

Lusitânia blues

[dropcap]A[/dropcap]gora é a eutanásia. Temos diversão para pelo menos dois meses. Ou até começar o Europeu de futebol, onde todos os olhos recairão sobre a selecção lusa, capitaneada por aquele moço cujo ego compete com os objectos mais maciços do universo na capacidade de distorcer tempo e espaço.

Agora é a eutanásia e toda a gente tirou da gaveta de competências em repouso o manual de bioética aplicada. Nas ruas e nas redes sociais pululam especialistas. Gente que por estudo ou dedicação apaixonada consegue traçar, de Aristóteles a Peter Singer, a história das ideias das quais resultam a configuração actual dos conceitos de indivíduo e sociedade. Como naqueles filmes onde um sujeito sente vergonha alheia das peripécias por que passa uma personagem, é constrangedor de ver. Mas é sempre assim, seja o assunto a tourada prós e contras, o aborto e o valor da vida ou a legalização da dormência na perna direita e a neurofisiologia. Se há coisa que não falta neste país é especialistas.

E se há entidade a quem as discussões acaloradas sobre um assunto dito fracturante dão jeito, é ao governo. Não só lhes calham bem que eclodam espontaneamente como reflexo de uma proposta de um partido minoritário como, em não acontecendo per se, as promove. Porque enquanto se fala da adopção e co-adopção por casais do mesmo sexo e das casas de banho mistas e da mudança de nome aos dezasseis anos não se fala da taxa homeopática de natalidade neste país, não se discutem os salários de vergonha que não permitem sequer a um sujeito aquecer a casa no Inverno (quando consegue ter casa, que a moda agora é o co-living, outro nome para a pobreza), quanto mais sonhar com uma semana nas Canárias, oblitera-se toda e qualquer conversa sobre os muito milhões que todos os anos são injectados em bancos cujos quadros superiores recebem ordenados e prebendas em linha com os seus congéneres europeus. Não é que não importem as questões ético-sociais que amiúde eclodem no espaço público. O problema é que quem nos governa atira para a rua as discussões sobre avanços civilizacionais, dando uma ilusão de promover o esclarecimento sobre os assuntos que tem em mãos e guarda para si, numa inescrutabilidade que chega a ferir os olhinhos (como no caso das audições parlamentares à porta fechada) todos as matérias restantes. E de discussão acalorada em discussão acalorada lá se vão perdendo uns direitos, uns dinheiros, uns serviços, até deste país restar apenas a legislação mais progressiva do mundo, uma dúzia de criaturas a morar no centro das cidades e um imenso ror de gente entre a sopa dos pobres e as sandes de pão com queijo na fila para a Caparica.

O Medina está-se bem a cagar para a opinião especializada do povo quando sonha com a baixa sem carros ou com a criação de “doze polos turísticos” fora de Lisboa, com o pretexto de “reduzir as tensões que o desenvolvimento do turismo gera junto dos residentes” mas cujo resultado vai obviamente ser a multiplicação da turistada para gáudio de quem ambiciona chegar a primeiro-ministro ou, pelo menos, dar nome a um par de ruas. O aeroporto do Montijo, sobre o qual recaem as mais fortes reservas técnicas e ambientais foi referendado? Foi sequer discutido? As injecções de capital a bancos falidos? Tudo quanto não é de cariz “progressivo” é conversado nos bastidores, representado na assembleia e aprovado num dia de festa. Esta é a democracia portuguesa, que todos os dias acorda surpreendida com os ventos do populismo, que sopram um pouco de todo o lado, e que se entretém a cuidar dos superiores interesses de quem está ao volante enquanto os seus fundamentos erodem todos os dias até quem mais cedo ou mais tarde a coisa caía de podre. Em Portugal é assim que as coisas más ou boas chegam ao fim: por exaustão.

14 Fev 2020

Semiótica

[dropcap]O[/dropcap] sinal de proibido, um círculo vermelho com um hífen branco – lembra-me sempre por associação imediata a bandeira da Suíça – está bem pendurado na cancela amarela, mesmo no meio da rua onde habitualmente arrumo o carro. Antes mesmo de lá chegar, contrariado, claro, corto à esquerda, a única opção para virar de que disponho, se não quero ficar parado, especado no meio da estrada. Ao fundo da rua, está o sinal azul de sentido obrigatório com a seta branca virada para a direita. Tomo esse rumo. Guio por ruas intersectadas por outras com sinais de proibição de virar à direita e à esquerda, que, na vertical a estrada negra na horizontal, sobre o fundo branco, é proibida a vermelho. Automaticamente, respondo às interdições e às proibições, obedeço de olhos bem abertos ao obrigatório sem pestanejar. O caracter deontológico é plasmado na condução sob pena de, ao desobedecer, a integridade física do próprio e de terceiros ser posta em causa.

O problema que me é posto resulta do fecho de uma rua, presumivelmente para obras. O problema obriga a um programa de resolução: como estacionar o carro na proximidade, ir onde se tem de ir para tratar do que se tem de tratar. As soluções não são desenhadas no papel, nem na imaginação, nem na fantasia, nem no GPS. Nunca tinha passado pelas ruas pelas quais passei até estacionar o carro onde acabei por as ter estacionado. Desde o primeiro confronto com o problema que obriga a uma solução durante a condução, e, na verdade, uma solução que passa por manobras ao volante, sem parar o carro no meio da rua, virando o volante para a esquerda, reduzindo a velocidade, engatando a primeira, subindo a rampa, até ao segundo momento quando, depois de ter cortado a rua, me deparo com um novo sentido obrigatório de rumo à direita, e assim sucessivamente, até ter soluções para a esquerda e direita. Quando essas possibilidades se me apresentaram, houve um primeiro momento em que uma má escolha me fez regressar ao ponto de partida, tendo sido obrigado a conduzir no perímetro de um círculo. Da segunda vez, tendo chegado a essa bifurcação, segui, sem saber onde iria dar, pela segunda opção, no sentido contrário. Quando encontramos sentidos proibidos ou sentidos obrigatórios, escolher, por estar condicionado, tem a sua opção determinada.

Há um jogo contínuo entre antecipação vazia, não abstracta, mas concreta e tensa, que pergunta sem verbalizar: “e agora? onde vai dar esta estrada?” e o preenchimento que vai esclarecendo o sentido das opções tomadas ainda que demore tempo, o tempo de fazer uma rua ou mais ruas em toda a sua extensão, até chegar finalmente a um ponto conhecido de uma rua ou de um bairro da cidade, a partir do qual se trace uma linha de orientação com uma direcção definida até ao ponto terminal, onde queremos ir, estacionar o carro, sair, ir fazer o que temos de fazer, ao ir onde temos de ir. A antecipação projecta-se de antemão sem que haja qualquer espécie de reflexão do género “deixa lá ver onde isto vai dar”. Não há tempo. Tudo acontece rápido demais, dá-se ao mesmo tempo em que se age, guia o carro, faz escolhas, toma medidas, nos resolvemos mesmo sem saber onde vamos dar, mas continuamos, porque ficar parados no meio da estrada não é opção.

“Vemos” sempre mais do que achamos que vemos. A nossa percepção da realidade, quando conduzimos, está montada numa acção hermenêutica que é semiótica pragmática. Eu explico-me. O que é que uma rodela de metal vermelha com um hífen branco? O que é uma rodela de metal azul com uma seta branca a apontar para a direita e para a esquerda, dada a sua posição, mas também podia ser para cima e para baixo? O que é que um triangulo branco de base invertida com rebordos vermelhos? O que é uma rodela branca de rebordo vermelho com o que parece ser uma minhoca no seu interior e um traço vermelho a cortar o seu diâmetro?

Os sinais de trânsito assinalam realidades heterogêneas e é decisivo compreender o que exprimem e que interiorizemos as suas indicações. Mas os seus conteúdos perceptivos visuais “nada dizem” por si sozinhos sem a interpretação semiótica do seu sentido simbólico e as nossas acções na condução têm de expressar na perfeição a codificação: obrigatório, proibido, interdição, perda de prioridade.

Estamos sempre mais à frente do que o tempo presente em que nos encontramos. Não só porque estamos dentro do carro e percebemos tudo o que está mais próximo de nós mas simultaneamente temos uma percepção, através do vidro, do sinal na cancela, o sinal no poste no passeio junto à parede lá ao fundo da rua, ou porque vemos já a bifurcação ou cruzamento lá ao fundo, a curva acentuada, a descida ou subida íngremes. Temos uma percepção dinâmica que nos desmobiliza ou mobiliza para “fazer” ou “não fazer” toda a estrada. Quando encontro a estrada fechada, eu não “vejo” toda a estrada que podia ser feita “na minha imaginação”, mas há uma “frustração” de expectativas, a intenção de passar por lá, aí estacionar e deixar o carro, a intenção como possibilidade mental, desfaz-se. Refaz-se outra intenção de significação que se projecta sobre a estrada, por onde agora conduzo, sem saber onde vai dar, se corto à esquerda ou à direita, se sigo em frente. As possibilidades apresentam-se mas não são estáticas, não se esgotam nos “troços” de estrada que me estão dados a ver – muito diminuídos na visão deles por causa dos prédios – mas são antecipados em projecção espontânea como caminhos que vão dar a sítios, ainda que indeterminados.

14 Fev 2020

Imaginação e utopia

[dropcap]D[/dropcap]iscorrer sobre Mozart seria infindável, mas uma anedota ilustra bem a sua imensa capacidade imaginativa.

Joseph Haydn e Mozart eram compinchas, e com outras pessoas fizeram uma comezaina em Viena. Durante a refeição, elogiou-se a superior capacidade interpretativa ao piano dos dois compositores. Então, Mozart desafiou, divertido: «Meus caros: vou escrever agora mesmo uma peça que nem mesmo o grande Haydn conseguirá tocar!»

Haydn apostou logo uma caixa de garrafas de vinho espumante. Mozart pegou em papel e lápis e, em poucos minutos, escreveu a peça.

Haydn sentou-se ao piano e começou a tocá-la, aparentemente sem problemas. Mas de repente, parou e comentou: «Isto não pode ser tocado: tenho a mão direita numa extremidade do teclado e a mão esquerda no outro, e aqui no meio há uma nota que deve ser tocada ao mesmo tempo. Isso é impossível!»«Ganhei! – disse o Mozart – A peça pode ser tocada perfeitamente.»

Sentou-se ao piano e quando chegou ao ponto em que Haydn foi incapaz de prosseguir, Mozart tocou a nota do meio com a ponta do nariz.

Há escritores notáveis com pouca imaginação. São muito bons observadores e inteligentes, reflectem com perícia e têm na precisão do verbo a sua melhor arma. Como Coetzee, Pavese, Martin Amis ou Cossery, de quem gosto muito, mas não pelos golpes de imaginação. Privilegiam outras qualidades, como a estrutura.

Mas Nabokov ou Camilo José Cela investem mais imaginação numa página que Coetzee num romance.
A falta de imaginação impede-nos de ver o que está diante dos olhos, no sentido que Frank Zappa esclarece neste seu dito: «A mente é como um paraquedas, só funciona quando está aberto».
Ramon Gener, um musicólogo espanhol, dá outro exemplo para ilustrar a imaginação em estado puro de Mozart: o”Dueto do Espelho”.

Trata-se de um divertimento em Sol Maior para dois violinos. A partitura está desenhada para que os dois violinos a possam tocar ao mesmo tempo, mas lendo-a no sentido inverso. Para fazê-lo deve pôr-se a partitura sobre a mesa e os violinistas terão de colocar-se um frente ao outro com a partitura no meio. Desta maneira, começando ao mesmo tempo, enquanto o primeiro violinista toca o primeiro compasso, o segundo toca o último (que para ele é o primeiro), quando o primeiro avança para o segundo compasso, o outro violinista avança para o penúltimo, e assim até ao final.

Observa Gener:«Para conceber um divertimento deste tipo, o que se necessita, em primeiro lugar e antes que nada, é de muita imaginação».

Sem dúvida, mas do que ele não deu conta é que o acto que esta partitura desencadeia é a grande metáfora do amor: duas pessoas interpretam de modo inverso a mesma partitura e onde sintonizam é no ritmo que lhes consente a ilusão de estarem ligados. Uma quebra de ritmo de ritmo ou uma aceleração do ritmo no outro e as afinidades esboroavam-se, a identidade que haviam construído perdia o nexo.

«Não concebo a inspiração como um estado de graça nem como um sopro divino, mas como uma reconciliação com o tema, à força de tenacidade e domínio… De modo que atiçamos o tema e o tema nos atiça a nós… Todos os obstáculos caem, todos os conflitos se afastam, e ocorrem-nos coisas que não tínhamos sonhado, e então não há na vida nada melhor do que escrever.», declarou entretanto um senhor cheio de imaginação, o Gabriel Garcia Márquez, e disse tudo: a imaginação é apenas a propensão para ocorrerem-nos coisas com que não tínhamos sonhado.

Esta cultiva-se, treina-se no espaldar da página, é um dispositivo engendrado por um estado de confiança que reaparece sempre que, para além de reconciliados com o tema, ficamos impregnados por ele. Aí dá-se a festa das sinapses e a “orgia” é segura.

Embora a imaginação seja individual e não se dê em todas as condições. Como aventava Auden: «A inteligência só funciona quando o animal não tem medo. Uma atmosfera de amor e confiança é essencial».

Com a imaginação é o mesmo e o outro drama que lhe é inerente é que a imaginação sem a acção não é nada, a imaginação é transformadora. Sem poder actuar, entristece.

Às vezes, dada a temperatura cínica em que mergulhámos, interrogo-me em quantos terá batido fundo o compromisso, que nos chega desde Pico della Mirandola, de que o homem não deve contentar-se com as coisas medíocres e deve aspirar às mais altas. Porque para isso é preciso que a imaginação transforme, que não haja um hiato entre o que se imagina e a acção.

É por contar com esse hiato que o Trump se dá ao luxo de dizer uma coisa no Discurso do Estado da Nação e de apresentar exactamente o contrário disso no seu Orçamento, uma semana depois. Razão tinha a sra., Pelosi em rasgar o seu exemplar do discurso à frente de todos, prevenindo aliás, Vocês verão o que vem aí.

O que é trágico hoje não é a vida (nunca vivemos tão bem, apesar de tudo), mas a tragédia da desistência do pensamento perante a vida, porque nos fizeram crer que tudo o que seja pensável será apenas a última ilusão que o mercado há-de converter em lucro, e esquecemo-nos de que há dimensões intocáveis, como, no dizer de Levi-Strauss, nos ensinam os mitos e a música: dimensões que promovem a suspensão do tempo.

É preciso voltar à utopia. Para Tillich as concepções animadas por um conato de transformação social “pervertem” o sentido da utopia por obra de uma crença cega no progresso. A seu ver, estas concepções “profanam” a aspiração legitimamente utópica, dirigida ao inatingível. Às dimensões que promovem a suspensão do tempo.

Quando o tempo se suspende, deixa de haver a necessidade de trocas, a mercadoria torna-se irrelevante, o desejo de ter volatiza-se.

É necessário voltarmos a crer com ímpeto nos efeitos da imaginação e que esta pode ser um agente para a utopia.

13 Fev 2020

Concerto para peluches número 2

[dropcap]S[/dropcap]abes tocar piano? Comprei um piano. Estou a ver que sim. Não, não sei tocar, mas era o que eu mais queria. Ainda se contam pelos dedos duma mão, as vezes em que o viu. Ao subir as escadas do segundo andar do número dois, pela primeira vez, há um ano, não foi a única surpreendida. Na altura, havia dois sofás na sala. Jantaram à mesa, com a toalha de ursinhos. Não conseguiu alertar antes que ele a servisse e não conseguiu acabar. Foi a primeira vez que partilharam uma manta. Ele fumou, na varanda. Ela sentiu muita vergonha.

Volta a elogiar-lhe os brincos. Argolas prateadas mas não de prata. Então, pensavas que nunca mais nos íamos ver? Temos de jantar mais vezes, fazer uma viagem. Gritam o mesmo destino em uníssono, mas nunca se viram noutro lugar. No dia seguinte, volta o medo. Também gostei, mas acho que não é boa ideia repetir. Passam meses sem se verem. Falam pouco, cada vez menos. Chateiam-se muitas vezes.

Ela veste o robe do Bugs Bunny, que é dele. Ouve música no telemóvel, na casa de banho. Ele irrita-se. O que se passa? Tu intimidas-me. Tu também me intimidas. Não podemos partilhar antes a manta grande? Quantas vezes vamos fazer isto? Olha, porque é que não trabalhas ou fazes coisas enquanto eu toco? Hoje não tenho nada para fazer, só estar aqui. Ela já lhe disse que não são amigos. Ele vai buscar o vinho. É a segunda vez que ela nota: ele hesita em tocar-lhe no cabelo. Não falam, só riem até roncar, enquanto vêem o Sticks and Stones, do Dave Chappelle.

Pode irritar-nos que alguém faça a barba e não nos deixe vê-lo com ela grande. Que nunca o vejamos de cabelo curto. Que não perceba que a barba por fazer há dois dias fica bem com o cabelo curto. Que não pode fazer a barba se deixa o cabelo por cortar já com um mês de atraso. Que lhe faz cara de bebé. Aquela cara que nos dá vontade de morder, da bochecha ao queixo espetado. Pensar tanto em alguém. Falar dele aos amigos começando por aquilo a que sabe que torcerão o nariz, como a inclinação política. Ir percebendo, com o tempo, que cada vez nos importamos menos com isso. Ah, fazer algo resultar apenas na nossa cabeça.

Vêem a Guerra dos Tronos. Ela consegue ouvi-lo urinar, como no poema de Bukowski. Ele joga o seu jogo preferido do momento. Ela mostra-lhe a sua canção preferida do novo álbum do Boss. Ela atrasa-se, ele impacienta-se. Ela tem de escolher o vinho. Ela traz doces e ele não gosta, especialmente, de doces, e menos ainda destes. Ele pede salsa e depois diz que afinal tem coentros, que até ficam melhor com isto. Ele parece o Ian Curtis, e pergunta se ela quer uns chinelos de andar por casa. Ele diz que engordou. Ela nem comenta. É melhor falarem do quão suave a pele do outro é.

O paraíso é alguém que nos conta histórias e nos traz bolachas à cama. Alguém que se despe e veste sempre demasiado rápido para a nossa falta de jeito, e nos enerva com o seu nervosismo, mas que depois fica à porta do quarto, calado, a olhar para nós com ternura e se aproxima e nos beija a nádega. Não se chega a grandes conclusões, reflectindo sobre estes homens que nos ficam com a chave de casa e vão lá regar as plantas ou dar de comer e brincar com os nossos gatos. O homem que vai ao funeral da nossa mãe ou nos atribui uma escova de dentes em sua casa, mas a quem a palavra namorados causa ataques de pânico…. Ou de burrice, diriam algumas das nossas amigas, versadas em soft boys.

Queres jantar? (Lá está ele com as douradas de mar.) Ver o Benfica? Ficar mesmo sem ver o Benfica? Dormir aqui esta noite? Não, não, o quê?! (Então e o teu amigo?), e não. Aquilo são brincos? Sim. Podiam ser pulseiras da (inserir nome da dona dos peluches). Pensa que foi a coisa mais bonita que ele lhe disse.

Lembra-se de um texto que leu há muito tempo, que dizia qualquer coisa sobre não ter uma gaveta em casa do nosso amor mas, ao ouvi-lo dizer “a nossa casa”, as malas pesarem como pulseiras. Ele está a treinar para uma maratona. Ou apaixonado por outra. Ou ocupado com o trabalho. Ou a andar de bicicleta. A jogar xadrez ou a fotografar. Nunca tomaram o pequeno almoço juntos. Se calhar é por isso. Mas depois ela vai a colocar a cabeça no colo dele e, antes que possa fazê-lo, ele puxa-lhe o cabelo com cuidado, enfia-lhe uma almofada por baixo e fá-la pousar a cabeça, em menos de um segundo, e não volta a tirar a mão. Despedem-se várias vezes, até ele a expulsar, hoje um pouco mais gentilmente. No entanto, só alguém próximo consegue irritar-nos desta maneira, e ainda manter-nos mais ou menos por perto. Mesmo se nos faz sentir que não somos o suficiente.

Termina como começou. Cotovelos nos joelhos, punhos cerrados a suster o queixo, cabeça inclinada, à escuta, e ele ao piano, dizer asneiras. Tira-lhe uma foto, a ele que sempre diz que a quer fotografar mas nunca o fez, ou ainda não. Até pareço um pianista a sério, diz. Talvez vocês não saibam, mas ele nunca se engana quando toca para peluches.

13 Fev 2020

De Petrónio ao pernil gourmet

[dropcap]A[/dropcap]s “gastronomias” na linguagem dos edis e o torniquete “gourmet” na linguagem dos príncipes do nosso tempo são, cada um a seu modo, clamores que nos tocam o coração. O que seria a contemporaneidade com balcões de mármore corroídos a ver escorrer o carrascão? O que seria a contemporaneidade sem aquela vigilância que atira para a fogueira o papalvo que molha o pãozinho no molho espesso dos túbaros? O que seria a contemporaneidade sem o decoro do léxico dourado que nos salva das impurezas? Tanta interrogação, meu deus.

Vêm estas atoardas a propósito de uma tarde de sábado em que, de modo involuntário, misturei um suplemento do ‘Público’ que raramente leio, o “Fugas” e um livrão com vinte séculos de vida, de seu nome ‘Satyricon’, escrito por Petrónio. Se este último me fez rir e pensar, já os textos do suplemento me engasgaram o pranto, tal é, por vezes, o poder da reverberação. E a digestão desse sábado foi complicada, pois atrevi-me no coração do Alentejo a um rabo de boi com arroz salteado.

O discurso gourmet dos nossos dias encena a natureza e a naturalidade. Ergue com as duas mãos essas bençãos utópicas, fundindo-as depois com geografias que atraem o prazer de soletrar as finas sibilantes de um ossobuco, as aliterações líquidas de um poderoso risotto alla milanese e um ou outro lugar comum, como o dolce fare niente. Ora leia-se esta presteza musical: “Deixamo-nos cair numa esplanada a ver este espectáculo natural, na casa de Luca e Andrea, que têm duas moradas: L’Altro (mais gourmet) e a versão café. Entre um risotto alla milanese que se derrete na boca ao ritmo do açafrão (pode juntar-lhe o ossobuco) e uma panna cotta com chocolate branco e creme de limão, o melhor é cair por aqui no dolce fare niente milanês.”

Quando o corpo cai na Ásia e não na Lombardia, os olhos do Oeste tendem quase sempre a generalizar (“É, a seu modo, um restaurante de fronteira, entre a cosmopolita e pantomineira Nguyen Phúc Chú e o bairro de pescadores”). Mas logo a seguir não resistem a aclarar os magistérios do ‘zen’ que ilustram a gesta gourmet agora tão em voga: “Num tempo em que a comida se transformou numa espécie de religião, por razões de saúde ou de banal lifestyle, com os seus rituais incensados pelos media e o seu pós-moderno olimpo de gurus, o Chau My guarda uma saudável simplicidade; a mãe do senhor Hoa lá vem da cozinha com os pratos de cao lâu, de sorriso acanhado e sem teatro para inglês ver.”. Devo referir que apreciei a metáfora do incenso, a referência ao olimpo, o esteio (ainda vivo do) pós-moderno e ainda aquela película em English que, mais uma vez, remete para o senso comum do “banal lifestyle”.

Até que, chegados ao âmago da reportagem, fica logo provado que uma narrativa de teor gourmet emerge de uma sucessão de actos que se abstrai das fúrias do tempo comum. É como se estivéssemos sempre a levitar a bordo de um tempo extraordinário (tipo Páscoa, Pentecostes, Natal ou qualquer coisa assim elevada). Ora leia-se: “Na mesa, os pratos sucedem-se, apresentados em diferentes serviços Vista Alegre, da colecção desenhada por Christian Lacroix à inspirada em Fernando Pessoa. Os sabores são intensos, do consomé de cogumelos e caça ao leitão assado de pele estaladiça (ao estilo do leitão da Bairrada), passando pelo salmonete de escabeche (e o escabeche é uma receita da avó dos Sandoval, que volta depois num delicioso caldo), pelo pato servido de três formas, pelas super-intensas ovas de ouriço com molho de tripas à madrilena”. A prosa é evidentemente rica, densa e permite fazer crescer água benta na boca, tal é a intensidade e qualidade da porcelana, tal é também a evocação poética e a própria delícia carnal das vísceras.

Recuemos agora dois mil anos e entremos em casa de Trimalquião, o personagem que Petrónio criou para gozar com os novos ricos que enriqueciam e desejavam, a todo o custo, ostentar por ostentar. A festa dada pelo anfitrião na sua mansão ocupa 52 dos 140 capítulos da narrativa. Logo no início, um dos três personagens que estão em permanente estado de orgia (Gíton, Encólpio e Ascilto) relata a chegada à mesa das primeiras entradas. Leiamos lentamente, dando afinco ao ritmo e às suas imagens:

“A seguir aos nossos aplausos, chegou o primeiro prato, que não era tão especial quanto esperávamos, embora a sua originalidade atraísse a atenção geral. Tratava-se, então, de um recipiente arredondado, onde se encontravam dispostos em círculo os doze signos do Zodíaco; sobre cada um deles, o cozinheiro-arquitecto havia colocado um alimento específico e apropriado à natureza do signo: sobre Carneiro, uns grãos-de-bico de corninhos; sobre Touro, um bocado de carne de vaca; sobre Gémeos, uns testículos e rins; sobre Caranguejo, uma coroa de flores; sobre Leão, um figo africano; sobre Virgem, uma vulva de porca jovem; sobre Balança, uma balança em cujos pratos havia um pastel de queijo e um pastel doce; sobre Escorpião, um peixinho do mar; sobre Sagitário, um oclopeta; sobre Capricórnio, uma lagosta do mar; sobre Aquário, um pato; sobre Peixes, salmonetes. Ao centro, um torrão de terra cortado ainda com erva sustinha um favo de mel. Um escravo egípcio andava de mesa em mesa a servir pão, que retirava de um pequeno forno de prata…”.

Moral da história: os novos ricos de Roma ostentavam para fazer estalar o riso (pelo menos aos leitores de Petrónio): “Trimalquião surgia em pessoa” (…) “de um manto escarlate, erguia-se a cabeça rapada e, à volta do pescoço, já abafado em roupa, vinha enrolada uma toalha enfeitada com tiras de púrpura e com franjas que pendiam de um e de outro lado”. Os novos ricos de hoje já não se fazem notar pelas casas ‘estilo maison’, nem pelas ‘arquitecturas brasileiras’ de há um século. Já ninguém liga a isso, razão por que esses volumes já estão certamente em vias de se converter em “património” da UNESCO. Agora chegou a vez da linguagem para adornar a descoberta dos mistérios da terra, analisados a partir da cidade omnipolitana e digital, com a gravidade dos milagres. É por isso que uma açorda alentejana vai acabar por se transformar numa escultura de um centímetro cúbico, feita de pão com pintas vermelhas de colorau e uma borboletinha de coentros. E haverá cronistas sagazes para lhe dedicar as suas odes e os seus mais intrínsecos compassos de dança.

Afinal já estava tudo escrito no século I d.C.: “A coisa começava a dar a volta ao estômago, quando Trimalquião” (…) “reclamou novamente música” (…) “estendeu-se na ponta do leito e ordenou: “Fingi que estou morto; tocai qualquer coisa bonita”. Começaram os corneteiros a tocar uma ruidosa marcha fúnebre…”.

Santos, Luís J.; ‘Milão: uma caixinha de surpresas em 36 horas’, Fugas, Público, Lisboa, 25/01/2020.
Lopes, Humberto; ‘Esta noite o rio Hôi Han leva luzes e desejos’, Fugas, Público,  Lisboa, 25/01/2020.
Coelho, Alexandra Lucas ; ‘Coque. A magia duas estrelas dos irmãos Sandoval’, Fugas, Público,  Lisboa, 25/01/2020.
Petrónio, Satyricon, Tradução: Leão, Delfim F.; Cotovia, Lisboa, 2018.
13 Fev 2020