Ainda faltava a cereja no topo do bolo

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] final do mandato do Prof. Cavaco Silva coincide, grosso modo, com a passagem do 16.º aniversário da transferência de administração de Macau para a R. P. da China, que se celebrará em 20 de Dezembro. Entendeu o Presidente da República (PR) aproveitar a ocasião para oito anos depois da saída de Jorge Sampaio, em jeito de despedida e ajuste de contas com o antecessor, atribuir ao último governador de Macau a mais elevada condecoração nacional. Contra o que o bom senso recomendaria.
O PR, como os portugueses estarão recordados, tem condecorado, na esteira dos que o precederam, toda a gente e mais alguma. Muitos por méritos mais do que duvidosos, mas que têm em comum serem da sua cor política, terem trabalhado ou colaborado com ele, porventura terem-se com ele cruzado à entrada de uma estação de metro num dia de nevoeiro ou num café de Boliqueime. Não admira por isso que quisesse também condecorar Rocha Vieira, militar que para o bem e para o mal ficará eternamente ligado ao que de pior Portugal fez em Macau em matéria de nepotismo, favorecimento e alimentação de clientelas. Para banalização da Torre e Espada, ordem honorífica cuja atribuição deveria ser consensual e compreendida por toda a Nação, é o ideal.
Quem desconhecer o passado e apenas conheça a propaganda da máquina que Rocha Vieira colocou ao serviço da sua promoção poderá pesquisar alguns livros que se publicaram, ver quem os pagou, e os milhares de páginas da imprensa local, incluindo do então Boletim Oficial, para perceber o que o senhor andou a fazer pelo Oriente rodeado pela sua gente, entre a qual se contavam alguns tipos pouco recomendáveis à luz de qualquer padrão de decência, dos que se orgulhavam de ter “andado a matar pretos em África” aos que assinavam contratos “por conveniência de serviço” em nome do Governo com as empresas de que eles próprios eram administradores. O próprio Fernando Lima, assessor do PR famoso no célebre caso das escutas do Público, foi um dos que por Macau se passeou, aproveitando para pernoitar em hotéis de cinco estrelas enquanto compilava, escrevia e publicava uns livros à custa dos patrocínios que directa ou indirectamente saíram dos cofres de Macau. Creio que o Conselheiro Macedo de Almeida, que foi Secretário-Adjunto para a Justiça de Rocha Vieira e é hoje assessor do PR, não contou nada disto ao Prof. Cavaco Silva para evitar que este se arrependesse a tempo.
Depois de um final penoso mas bem encenado e melhor coreografado, onde o descontrolo da segurança se misturava com os milhões, os caixotes e os salamaleques a Stanley Ho e aos poderosos das suas relações, enquanto se condecoravam os amigos e se sugeriam medalhas a Lisboa, criavam-se as instituições onde seriam colocados os seus – não a Portugal – leais servidores, muitos deles ainda hoje vivendo à grande do que então se retirou dos fundos locais. Em matéria de favores nada ficou por pagar fosse em medalhas, contratos, prebendas várias ou viagens e passeatas. E do trabalho que por Macau deixou aos mais diversos níveis, seria bom que os portugueses soubessem que década e meia volvida não há quem não se queixe do que se fez da justiça e dos tribunais, a começar pelo presidente da Associação dos Advogados, e até o português já perdeu, na prática, o estatuto de língua oficial, havendo tribunais a notificarem em língua chinesa destinatários falantes do português e recusando-se a fornecer traduções de despachos e sentenças a esses destinatários, em clara violação da Declaração Conjunta e do estatuto de igualdade das línguas, como que numa antecipação do final do período de transição de 50 anos. Tivesse sido o trabalho bem feito e nada disto estaria agora a acontecer.
O Presidente Jorge Sampaio, através de um gesto que teve tanto de ingénuo como de temerário, já tinha condecorado Rocha Vieira, embora nunca o devesse ter feito. A prova disso é que Rocha Vieira acedeu para logo depois fazer de conta que não tinha dado o seu aval à condecoração. O jornalista João Paulo Menezesrecordou-o recentemente:
“Depois de ter aceitado a condecoração proposta por Jorge Sampaio (primeiro verbalmente, depois ao estar presente na cerimónia), Rocha Vieira protagonizou um dos episódios mais insólitos da história recente das condecorações em Portugal.
Como é regra, depois da cerimónia pública é enviado para casa dos distinguidos um documento designado “compromisso de honra de observância da Constituição e da lei e de respeito pela disciplina das ordens”.
Só depois dessa assinatura e da devolução do documento é que a condecoração passa a ser oficial. Mas Rocha Vieira não só não assinou como não devolveu o “compromisso de honra”.
Resultado: o Anuário das Ordens Honoríficas – online, no site da Presidência da República – omite essa condecoração e no seu próprio currículo Rocha Vieira também não refere que recebeu em 2001 o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique”.
O general Rocha Vieira apresenta uma justificação no livro que o seu fiel e abnegado colaborador e editor publicou, dizendo que tal condecoração é “como se não existisse”, mas para dizer isto mais valia que tivesse logo recusado a oferta de Sampaio e esperasse que a história, ou quem àquele sucedesse, um dia reparasse a “injustiça”. Homens de valor e com feitos excepcionais não fazem o que ele fez a um Presidente da República por muito que não gostasse dele.
Sobre os méritos do futuro titular da Ordem Militar da Torre e Espada, nada mais há a acrescentar, sabendo-se que a sua acção em Macau – e a dos portugueses, por tabela – valeu o gozo dos cartoonistas da imprensa internacional, da americana ao South China, pela forma como foi constituída a Fundação Jorge Álvares, onde estão acantonados os seus homens. E dos quadros dos ex-governadores retirados pela calada, como ainda há dias foi recordado por um ex-assessor de Sampaio, nem vale a pena falar.
O que se estranha é ver o general Ramalho Eanes, um modelo de militar e cidadão, a quem os portugueses muito devem pela consolidação da sua democracia, associado a esta farsa que a Presidência montou para homenagear Rocha Vieira. Só vejo o general Eanes na cerimónia por ser um homem educado e bem formado.
É que é difícil encontrar um paralelo, para além da farda, entre a acção de Ramalho Eanes e a de Rocha Vieira. Não consta que o general Eanes no exercício das suas funções públicas ou na sua vida de militar fosse cínico, falso, prepotente, que usasse o posto e a função para oferecer o que do seu bolso não pudesse pagar, distribuindo benesses, encaixando os amigalhaços, fazendo museus, fundações e institutos para sua glória, editando livros ilustrados com as suas próprias fotografias, dando o seu aval a indecorosas campanhas de promoção pessoal, esperando sempre ser devidamente bajulado em todas as esquinas. Ainda recentemente o general Eanes foi às Filipinas receber um prestigiado prémio internacional, fazendo-o com a maior discrição, como se a distinção que lhe foi concedida não fosse motivo de orgulho para todos os portugueses. A diferença entre os dois homenageados não está apenas no facto do general Ramalho Eanes ter dado o seu nome a um largo de Macau e sobre o outro haver hoje quem em Macau não saiba quem foi, tal a irrelevância do seu papel.
A atribuição da Ordem da Liberdade ao general Ramalho Eanes, militar e homem de Estado a quem em matéria de ética e intenções não haverá um acto que suscite dúvida, é inteiramente merecida e não devia acontecer desta forma, à socapa, em final de mandato, sem brilho.
Quanto à do outro cavalheiro a quem o PR resolveu agraciar com a Torre e Espada, a única coisa que se pode dizer é que não será pelo general Ramalho Eanes lá estar que deixará de ser um ultraje. Porque o homenageado será muito seu amigo, simpático e educado, mas faltará tudo o que a Torre e Espada pretende significar. Faltam os “feitos excepcionalmente distintos” à frente de órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha, faltam os “feitos excepcionais de heroísmo militar oucívico” e faltam os “actos ou serviços excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade”.

18 Dez 2015

Pura ficção. E uma mensagem para a comunidade macaense

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]Este texto é um plágio. Este texto também é uma ficção pelo que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência… Com a devida vénia a Ésopo, aqui vai:
Era uma vez uma pequena cidade antiga à beira mar onde pouco ou nada se passava. Tinha vivido tempos difíceis mas, um certo dia, os locais tinham descoberto uma forma de se sustentar. Alguém vindo de fora montou uma gaiola dourada onde criava galinhas. Galinhas essas, mágicas com certeza que, segundo reza a lenda, punham ovos de ouro. Não eram muitos mas o suficiente para os habitantes da cidade terem uma vida digna. E assim se passaram anos, uns mais tranquilos do que outros naturalmente, mas o pão não faltava e os tempos das fomes e das necessidades há muito tinham passado. Não era uma vida perfeita, mas a cidade gozava de bons ares, tinha até o maior índice de esperança de vida do mundo e as pessoas tinham uma vida livre, de alguma forma satisfeita, sendo vulgar reunirem-se em grupos animados em jantaradas ao ar livre pela noite dentro. Viva-se aquilo que os de fora chamavam um vida descansada, laid back. Porque, para além das galinhas que proporcionavam o rendimento aos autóctones, a própria cidade e a sua forma tranquila de vida era uma atracção para os de fora. Aos seus portos chegavam viajantes de variadas origens não só à procura do ouro das galinhas, como também para descobrirem essa cidade lendária que as histórias homenageavam, à procura da poesia que só esta cidade antiga conseguia oferecer. E alguns gostavam tanto que até decidiam ficar, porque não eram apenas as galinhas que eram mágicas, toda a cidade construída ao longo de séculos sob a influência de povos de diversas origens, respirava odores de lenda, era um lugar sem igual no mundo.

Mas chegou um dia em que tudo mudou.

Descontentes por acharem que a gaiola dourada não tinha capacidade para mais galinhas, alguns habitantes poderosos decidiram chamar gente de fora para construir mais gaiolas e criar mais galinhas até porque nas regiões vizinhas a criação daquelas galinhas era considerada tabu e só nesta cidade era possível criar tais criaturas mágicas. E assim foi: de um dia para o outro construíram-se novas gaiolas e criaram-se milhares de galinhas mágicas. O resultado foi espectacular! A produção de ovos de ouro chegou a níveis impensáveis e a cidade encheu-se de curiosos que vinham ver o milagre e, quiçá, levar um ovo com eles. O sucesso foi tal que até os vizinhos se arregalaram com tanta fartura, e deitaram abaixo velhos tabus e começaram também eles a construir gaiolas.

Mas os habitantes da nossa velha cidade estavam demasiados ocupados com as suas fábricas de ovos de ouro para perceberem o que se estava a passar ao lado e continuaram a deitar abaixo prédios antigos, bairros inteiros para criarem ainda mais galinhas. Os preços na velha cidade subiram tanto e os espaços foram tão reduzidos que muitos demandaram a outras paragens e a velha cidade depressa se transformou num galinheiro. Mas o pior estava para vir: um certo dia, a produção de ovos caiu e milhares de mirones começaram a debandar para outras bandas porque, afinal, o fenómeno dos ovos dourados não era um exclusivo da nossa velha cidade. Na realidade, a partir do momento em que se torna vulgar, para ver galinheiros tanto se pode ir aqui como ali. Os outros, os que vinham à procura da cidade das lendas também há muito tinham deixado de a visitar, porque ela não mais pode ser encontrada, atafulhada de galinheiros e lojas de pechisbeque. Espantados, os habitantes da cidade coçam agora o cocuruto olhando para a cidade antiga que os seus aviários destruíram, interrogando-se sobre o próximo passo a dar.

(continua numa rua perto de si)

À COMUNIDADE MACAENSE

Muito se tem falado nestes últimos dias sobre o ser macaense, ouvindo-se muita coisa. Fala-se de idiomas, de etnias, do que é ser, do que é sentir, se é macaense ou macaísta, macaio ou lacaio, português ou marroquino, chinês ou mongol, mediador ou criador, nativo ou amante, mais ou menos mestiço, houve até quem falasse em fazer mais filhos… Todavia, há algo que se sobrepõe a todos esses conceitos, ideias ou hipóteses: chama-se Macau. Sem Macau não havia macaenses. Por isso, se pretendemos de facto discutir a comunidade, não podemos passar ao lado da terra. Uma terra onde, qualquer dia, as memórias vão limitar-se aos cemitérios e, caros amigos, sem memória, sem espaços comuns, sem reminiscências do passado, sem uma traça que distinga um lugar, não há cultura que resista. Por isso, a minha modesta contribuição para essa discussão é que se debata a cidade, o seu planeamento, a sua forma de viver. Ser macaense, tem muito de amor à terra, isso parece ser uma nota comum. Mas são apenas 28 km2… Não é a cultura que está em vias de extinção, é a cidade que lhe deu origem e a discussão tem de ser recentrada na cidade, e com carácter de urgência! Porque sem Macau não há cultura macaense. Macau, mais do que nunca, precisa dos que a amam, precisa de ser defendida dos usurários que a pretendem destruir. Essa é a missão dos macaenses se pretendem que a sua cultura chegue ao próximo século, às próximas décadas… Essa tem de ser a cultura do momento, esse tem de ser o debate, mais, essa tem de ser a acção – acção construtiva, inteligente, moderna, forte e com sentido de missão. O resto é pura retórica que o tempo se encarregará de engolir – e os tempos andam depressa por estes lados. Depois podemos sentar-nos à sombra de uma Figueira de São João e discutir a cultura com um lai chá fresquinho e umas trincas numa batatada.

MÚSICA DA SEMANA
La Pandilla – “La Casa”

“Era una casa muy chiquitina.
Sin desvancito y sin cocina.
No se podía pasar adentro
por que no había ni pavimento.
No se podía ir a la cama.
No había techo ni las ventanas.
No se podía hacer pipí
por que no había un orinalín.
Pero era hermosa con mis canciones
en el país de las ilusiones.
Pero era hermosa con mis canciones
en el país de las ilusiones.”

17 Dez 2015

Droga, porcaria e chupa-ovo

I

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ntre a correria dos afazeres profissionais, quase nem dei pela entrada da quadra natalícia, o que vem comprovar que esta época outrora dada a balanços de fim-de-ano e menos “stress” já não é que era – e para o Sporting este Natal parece que também não. Fico aliviado, uma vez que esta vontade excepcional de fazer render o que falta para acabar o ano civil, e que no universo das anedotas de alentejanos seria considerado “uma epidemia”, contraria a tendência do PIB, esse em curva descendente. Pesando tudo isto na balança, o resultado é positivo, uma vez que as previsões mais pessimistas apontavam para o desinvestimento, coisa até considerada “normal” numa indústria tão volátil como a dos Jogos de Fortuna e Azar, e tudo o que isso representa, e de que Macau e a sua população se encontram invariavelmente reféns.
E é no seguimento deste recheio social sortido que nos sai na rifa de todos os vícios que encontramos a droga – isto salvo seja, obviamente. Fico a saber que o Executivo se prepara para rever a moldura penal para os crimes de tráfico e consumo de estupefacientes, e sim, era previsível: as penas vão ser mais pesadas. Tão pesadas que fossem estas “penas” a de uma ave, teria que ser de um avião. Eu já me sinto indiferente – para que estragar a pele com manifestações perante esta táctica de “mais vale quebrar que torcer”? Aumentaram os números do consumo e o tráfico? Penas mais pesadas! Aumentaram outra vez, é? Então toma mais dois ou três ao fresco! E agora, atrevem-se? Claro que se atrevem, mas qualquer que fosse na mesma direcção da maioria das restantes jurisdições civilizadas e progressistas, para quem o consumidor é também uma vítima, seria entendido como um sinal de permissividade, de fraqueza.
Assim mais vale o simpático Hin Wai ir todos os anos anunciar novos patamares de insucesso na missão de que o incumbiram mais ao departamento que dirige, o que pode ser entendido também como uma demonstração de confiança quiçá única no mundo (nem José Mourinho aguentava no Chelsea com resultados destes), que o problema no fundo é “político”.
Este ano estive em Bali, na Indonésia, país onde este ano as autoridadas executaram 14 detidos pelo crime de tráfico de droga, alguns deles estrangeiros, e por sua vez entre estes, uns que foram detidos exactamente quando da sua chegada àquela estância turística. Por aquilo que vi e me foi dado a entender, o problema destas malogradas almas inconscientes foi não ter licença de importação, ou “cartão de membro do clube”. Droga era coisa que havia por lá ao pontapé, posso garantir.

II

Estive de fora de Macau durante uns dias, de visita ao Cambodja, e imaginem que durante a minha ausência foi anunciada a decisão da Universidade de Macau agora situada na Ilha da Montanha, em acabar com o ensino da Língua Portuguesa como opcional, o que provocou entre a nossa intelligenzia as já previsíveis e costumeiras ondas de choque. Este “corte” não se deverá ao facto da mudança do “campus” para o lado de lá, do primeiro sistema, e muito menos estariam à espera que eu virasse as costas, porque para mim – e preparem-se, ó “junkies” da indignação e do sobressalto, que pedem sempre em tamanho “supersize” – é igual ao litro. Estou-me nas tintas. Já deviam ter tomado esta decisão mais cedo, até porque vindo de quem vem, deixa-me apreensivo, desconfiado até, que se mantenha o ensino de uma língua que representa (preencha com a alarvidade patrioteira que melhor achar), ainda por cima fazendo-o contrariados, e eu não gosto de ver gente contrariada, com birra do sono, e possivelmente chichi.
É apenas sintomático que se venha agora por na porta mais este cadeado numa Universidade, que nessa função de formar os quadros superiores só pode classificada de “sinistra”, tais eram os sinais de rigidez que vinha demonstrando nos últimos tempos, atingindo o clímax no ano passado, com actos de pura censura e saneamento de académicos por motivos obscuros. No papel pode parecer mau que a instituição de ensino superior que ostenta o nome do território trate com esta menoridade um elemento indissociável da matriz histórica e cultural desse mesmo território. No papel, insisto.
Mas agora peço-vos que parem de emborcar esses hamburgueres de desaforo, empurrados não por coca-colas mas por “ora bolas que já nos tramaram”, chegando a ler neste acto algum tipo de prenúncio do apocalipse linguístico, e deixem-me que vos proponha uma dieta muito fácil, que nem requerer que tirem o rabiosque da cadeira. Basta reflectir durante um minuto e fazerem a vocês próprio esta simples pergunta: isto fica mal a quem, exactamente? Quem quiser aprender Português tem outras opções (e até no continente, e com mais qualidade, dizem), e não noto nenhum tipo de animosidade contra a segunda língua oficial, tirando dos suspeitos do costume, e a esses só nos resta deixar a pastar lá na montanha, onde se fala o montanhês. Béééé…

III

Também durante o curto período em que troquei Macau pela pátria dos Khmeres, falou-se de identidade macaense. Olha khmerda, já viram o que andei a perder, enquanto se tentava responder ao velho enigma que apoquenta menos que 0,0000000005% da humanidade que se propõe a discutir o problema: quem veio primeiro, a galinha chau-chau parido ou o chupa-ôvo? Eu adoro o Miguel, o André, a Paula e todos eles, no sentido não sexual nem gastronómico do termo, mas eles próprios sabem que esta discussão é tão produtiva como organizar um campeonato mundial do Jogo do Galo. Contudo, permitam que partilhe aquela que considera a melhor definição quanto ao género e sexualidade dos querubins:
“(…) Os movimentos migratórios convergentes para o território de Macau, tendo como principais territórios de origem Portugal e China, e os movimentos migratórios que daquele território divergiram para o mundo, constituindo-se como diáspora, devem ser incluídos na caracterização da comunidade macaense, privilegiando-se o seu principal núcleo de organização social, isto é, a família macaense.”
Aí está: a “família macaense” como o elo de ligação a Macau e, por inerência, ao sentimento de pertença, à noção de uma “identidade” própria. Mas não interpretem isto como uma tentativa de conciliar seja o que for, ok? Eu quero é que a malta “vá juntá” para “falá falá falá” e “comê comê comê”, e que não faltem para isso pretextos, por mais inconclusivos que possa ser a discussão.

17 Dez 2015

Fazer filmes

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz a sabedoria popular: se estás a fazer um filme estás a fazer um drama. Fazer filmes na vida real (como profissionais) estende-se para além de um género cinematográfico e expressa-se pela panóplia de emoções humanas que gostamos de exercitar. Se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, parece-me uma discussão desnecessária porque procurar a unidireccionalidade dos factos não me faz muito sentido. Um sistema bidireccional é-me mais simpático. Mas talvez seja porque vejo demasiados filmes, e é uma tão confortável forma de passar tempo, que é inevitável não nos sentirmos num. Até agora não conheci ninguém que não tivesse uma fantasia romântica baseada num filme (ou livro, para os mais tradicionais), ou não tivesse um ideal de homem ou de mulher que já não tivesse sido retratada por uma personagem cinematográfica, carregada fisicamente por um actor ou actriz lindos de morrer.
Para as idiossincrasias dos relacionamentos amorosos e do sexo, não há ninguém como o Woody Allen. Ele diverte-nos com um neuroticismo que roça o adorável e o irritante. Com tantos filmes realizados, é claro que ele cai em fórmulas repetidas, mas que têm entretido gerações de homens e mulheres pelo mundo fora. Sobre sexo, amor, paixão, relacionamentos e tesão. Pessoalmente, tenho constantes momentos de clarividência com o Woody, não sei como é que é com o resto do mundo: eu sinto-me compreendida nas suas particularidades e generalizações. Nos últimos filmes a estereotopia tem-me chateado um pouco, à excepção do Blue Jasmine que se demarca pela depressão genialmente representada e de uma forte presença feminina, que se caracteriza pela profundidade psicológica da personagem, algo raramente visto nos seus filmes. Poucas são as personagens do Woody que se tornam memoráveis, exceptuando talvez a Annie Hall e o Alvy Singer. O Woody é sobre os encontros, desencontros, compreensão, desentendimentos e homens e mulheres à luz da psicanálise. Retratos amorosos nova-iorquinos e de uma ou outra capital europeia. A beleza da sua cinematografia vem dos momentos dialógicos.
Reflectindo no trabalho realizado pela Cate Blanchett a dar vida a Jasmine encontrei-me a divagar sobre as mulheres no cinema. Essa forma artística que tenta imitar a vida com o twist das especiarias cinematográficas, tenho que cair no meu discurso bélico pela igualdade de géneros! E para isso apoia-me o teste que mede o machismo cinematográfico. Uma cartoonista decidiu por graça criar uma cena entre duas mulheres que discutem os filmes que querem ver, uma afirma: ‘Só vejo filmes onde haja mulheres a ter uma conversa entre elas que não seja sobre homens’. O teste estabeleceu-se e popularizou-se como o teste Bechdel-Wallace. Claro que não foi redigido por uma equipa de investigadores e não detém validade científica no verdadeiro sentido do termo. Mas a verdade é que são poucos os filmes que encaixam neste critério, e por isso extrapolaremos que o retrato generalizado é de mulheres que só falam de homens e não são capazes de ter uma conversa sobre assuntos mais socialmente relevantes.
Jean-Luc Godard, por exemplo, de quem gosto mas com laivos de irritação, é um realizador que fez parte do desenvolvimento da nouvelle vague francesa, movimento artístico caracterizado pela reintepretação das convencionais técnicas cinematográficas para a altura. Um ultraje pela caracterização feminina! Digo eu, que vi alguns filmes onde as mulheres eram lindas, sonsas, ingénuas e com tiradas literárias de quem fez doutoramento em estudos clássicos. Pelo menos não falam muito de homens, mas raramente as vemos a interagir com o sexo que não seja o masculino (chumba no teste Bechdel-Wallace!). Ou seja, sinto-me na posição de me queixar da objectificação feminina Godardiana e de outras, porque apesar de fantasticamente misteriosas e literárias, não conseguem transpor a realidade feminina.
Estes são alguns (muito poucos) apontamentos de algum descontentamento da minha parte na visualização de filmes. É que esta tendência cinematográfica tem como resultado a surpresa sempre que uma caracterização feminina é de significância, porque infelizmente trata-se de uma raridade. A sério, não estou a fazer filmes quando digo que, nos episódios IV, V e VI da Guerra das Estrelas, as intervenções femininas não duram muito mais do que um minuto (exceptuando as da Princesa Leia). E mais: em toda a saga, não há uma única conversa entre duas mulheres (outro que chumba no teste Bechdel-Wallace!). Esperemos que o The Force Awakens venha mudar isso. E já agora, que a indústria cinematográfica também.

15 Dez 2015

Meritíssimo Juiz

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 26, o website “yahoo” de Hong Kong, divulgou uma notícia onde ficámos a saber que um juiz chinês, de seu nome Huang Tao, em serviço na província de Jiang Su, escreveu uma carta à sua amante, Liu Ying. Na carta afirmava que a amava e garantia-lhe que se iria divorciar depois de 1 de Maio deste ano. Wang acrescentava na carta,
“As tuas palavras são ordens para mim.”
No final selou a carta com o timbre do Tribunal.
Wang foi considerado o melhor presidente do Tribunal dos últimos 40 anos da província de Jiang Su. A sua reputação era excelente.
Este caso veio a lume porque Liu teve recentemente problemas financeiros. A sigla IOU (em inglês I owe you, ou seja, devo-te dinheiro) indicava que Wang devia a Liu cerca de 200.000 RMB. Actualmente Liu sofre de cancro e a relação com Wang terminou.
Em resposta, Wang afirmou que a garantia tinha sido produzida por ele, que nunca tinha sido selada com o timbre do Tribunal, que o IOU era falso e que nunca tinha havido tal transacção.
Mencionemos agora um segundo juiz, a Srª. Ng Wai, do Tribunal de Magistrados de Hong Kong. No dia 2 deste mês, a Srª Ng presidia a um julgamento, o réu, o Sr. Hung Kwok Chu, tinha sido acusado de induzir a polícia em erro no decurso de uma investigação.
Em meados de Outubro, Hung contratou os serviços de uma prostituta. Quando estava a tomar banho, a prostituta fugiu com o Rolex de ouro de Hung. Quando Hung descobriu o roubo
tentou alcançar a prostituta, mas não conseguiu. Mais tarde disse à mulher e à filha que tinha sido assaltado.

Durante a investigação a polícia descobriu a verdade e processou Hung.
No julgamento, Ng perguntou a Hung:
“O que é que andou a fazer? Não percebe que agiu contra a sua mulher? Não se sente envergonhado?”
Nessa altura Ng reparou que a filha do casal estava sentada entre Hung e a mulher e disse:
“A sua mulher é a companheira da sua vida. Está triste.”
Ng ordenou ao réu que pedisse desculpa à mulher em voz alta. A mulher aceitou o pedido. Comoveram-se os dois e choraram.
Ng elogiou a mulher do réu, dizendo que tinha sido corajosa ao perdoá-lo. A juíza salientou que os dois deveriam esquecer este assunto e seguir com as suas vidas. Acrescentou que nunca mais deveriam mencionar este caso, mesmo que viessem a ter uma zanga. Para terminar, Ng recomendou a Hung que tomasse conta da esposa, já que esta sofre de uma doença grave.
Hung foi multado em 2.000 dólares de Hong Kong.
Hoje vamos ainda falar de um terceiro juiz, o Sr. Henry Denis Litton. Foi juiz efectivo no Tribunal de Apelação de Hong Kong. Actualmente está reformado.
No passado dia 3, durante um almoço de convívio, Litton fez um discurso, onde afirmava que se estão a viver tempos críticos em Hong Kong.
“Este ano celebramos o 32º aniversário da promulgação da declaração Sino-Britânica. Será também daqui a 32 anos que a Lei Básica de Hong Kong deixará de existir.”

“Hong Kong não possui quaisquer recursos naturais. Actualmente é um centro financeiro a nível mundial, porque a lei em vigor o permite. A Lei protege a economia, o comércio e a terra. Mas não sabemos o que irá acontecer a seguir. É bom que se comece a preparar o mais rapidamente possível as linhas mestras para 2047. Caso contrário, os organismos internacionais não irão depositar confiança em Hong Kong. As grandes empresas podem abandonar Hong Kong.”
Litton também criticou algumas pessoas que tentam processar o governo ao abrigo da Revisão Administrativa.
“A Revisão Administrativa é um procedimento legal que se destina apenas a averiguar se as políticas que o governo pretende implementar preenchem, ou não, os requisitos legais. Não é um instrumento para pôr em causa as políticas governamentais. A sala do Tribunal não é um espaço para debater políticas governamentais. Se toda a gente puder processar o governo, deixa de haver necessidade de terroristas para impedir o governo de funcionar”
Que condições são necessárias reunir para que tenhamos um bom juiz? É possível que cada um de nós tenha uma resposta diferente. No entanto alguns factores são essenciais, como a competência em matérias legais, uma moral irrepreensível, maturidade, etc. Temos normalmente grandes expectativas em relação à figura de um juiz, não porque esperemos que seja um ser perfeito, mas porque é alguém com a responsabilidade de distinguir o certo do errado, não só em termos legais, mas também por vezes, em termos morais. Se um juiz for suficientemente maduro, terá experiência de vida. Essa experiência ajuda-o a identificar, num litigio, quem está certo e quem está errado.

O juiz deve ver-se a si próprio como representante da Lei. É o responsável pela aplicação da Justiça e da justeza. A figura feminina que representa a Justiça é a deusa grega Témis. Ela empunha a espada e a balança como símbolos. Os juízes da actualidade empunham o martelo e o selo do Tribunal. Se a nossa lei for justa, se os nossos juízes deliberarem adequadamente, se todos tiverem igual acesso à Justiça, então viveremos num Estado de Direito.
E como é que identificamos o Estado de Direito? A resposta é simples. Nos nossos corações. Se respeitarmos a lei viveremos num estado de Direito.
Dos três juízes que mencionámos, Huang, Ng ou Litton, qual será o melhor? Por favor, sintam-se à vontade para fazer a vossa escolha.

14 Dez 2015

Virgínia de Oiro

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onheci Virgínia Or há alguns anos e sempre encontrei um genuíno e caloroso sorriso. Estranhamente, ou talvez não, Macau parece ser grande, porque raramente nos encontrávamos, mas a empatia pode juntar as pessoas.
Virgínia sempre me suscitou curiosidade. Sou curioso acerca de pessoas que me tocam. Virgínia é natural de Macau, mas muitos dos seus amigos não são. Observei, com atenção, a naturalidade da sua abertura ao outro. Soube que se havia licenciado em filosofia pela Universidade de Seattle e regressado a Macau há 15 anos. Trabalhou no Instituto Cultural. Depois, saiu mais uma vez e escolheu Lisboa para viver, na típica Alfama, onde trabalha como freelancer em eventos e performances. A minha curiosidade sobre pessoas leva-me a inquirir o que as leva a fazer algumas escolhas, o que é que as atrai.

ACJ: Virginia, tendo nascido em Macau, o que a levou a um lugar tão distante como Seattle, e porquê filosofia? Macau não preenchia as suas aspirações?
V.O.: Depois de terminar a escola secundária em Macau, e à semelhança dos meus colegas, procurámos continuar a nossa educação universitária noutro lugar. As universidades de Hong Kong, à época, eram de difícil acesso. Tentámos em vários lugares e, no meu caso, um colégio da comunidade em Seattle aceitou o meu pedido. E assim, após dois trimestres de estudos na melhoria do inglês, fui admitida na Universidade de Seattle. O sistema de ensino era bastante livre nos Estados Unidos e nós temos de mudar de curso várias vezes. Influenciada por alguns professores recém-graduados nessa altura, que verdadeiramente gostavam e eram entusiastas do ensino da filosofia, continuei a ir a mais e mais aulas e no final concluí o curso de filosofia. Nesse tempo e idade, vinda de uma pequena sociedade um tanto fechada como Macau, antes da popularidade da internet, nós tentávamos compreender muitas coisas pelo pensamento e pela ida física aos lugares: o ambiente, as questões sociais, as relações raciais, o nosso tempo, como nós pensávamos sobre as coisas… Nesse sentido, talvez sim, Macau não tinha o espaço psicológico para nos oferecer a oportunidade de ampliar os nossos horizontes de pensamento, antes propício a cristalizar as nossas aspirações.

ACJ: Reparei que muitas das suas relações em Macau envolviam amigos não-chineses e agora, suponho, em Portugal, também. O que a levou a atravessar a ponte para uma cultura e ambiente diferentes?
V.O.: A ponte é “atravessada” ou “está a ser atravessada” a partir do momento que saímos fora do nosso ambiente de casa e da nossa zona de conforto e entramos no espaço de tentar compreender os outros. Ao conhecer pessoas de diferentes lugares, elas como que trazem o mundo até nós, para mais perto de nós. Ainda há muito a aprender.

ACJ: A curiosidade é minha. Existe alguma diferença entre jovens chineses e não chineses entre os seus amigos?
V.O.: Acho que a diferença não é tanto a cultura ou raça, mas a educação social e a consciência cultural. Encontro o mesmo tipo de jovens em todas as sociedades e culturas que conheci, que não são muito abertos a pessoas de diferentes ambientes e culturas, e que estão mais interessados ​​no mainstream, como a sua própria segurança, status social e bons empregos, o que é uma escolha… mas também encontro outros que estão abertas à diversidade e às mudanças, para si e também para os outros. Por isso, acho que as pessoas, jovens e velhos, sem viajar e conhecer culturas, outras que não a sua própria, têm mais dificuldade em estarem abertos à diferença.

ACJ: Na sua perspectiva, o que é que diferencia os filósofos chineses dos seus colegas ocidentais e quais as principais diferenças culturais?
V.O.: A minha universidade só oferecia estudos de filosofia ocidental, a única genealogia do pensamento que aprendi. Mas porque, por educação cultural e etnia, sou chinesa, descobri intuitivamente que algumas premissas na forma de análise, pontos de partida para iniciar os trabalhos, não se aplicavam à nossa mente oriental, ou talvez para formas de pensar que se aproximam e inclinam no sentido do pensamento oriental. Nesse sentido, é mais difícil de fundir os dois.

ACJ: O que a fez escolher Lisboa, entre tantas cidades na Europa? E depois Alfama… estou verdadeiramente curioso.
V.O.:Porque nasci em Macau antes da transferência de soberania, então, naturalmente, sou Portuguesa de nascimento. Lisboa faz-me sentir em casa. A forma como a cidade velha se estende para fora, alguns edifícios, as ruas em calçada, a suave inclusão, o calor e sentido de humor das pessoas, bem como, hoje em dia, a diversidade, são acrescentos ao sabor do lugar. A nostalgia atraiu muitos, eu incluída, para os bairros antigos de Lisboa, como Alfama, Mouraria ou Graça, entre outros. Sinto-me, simplesmente, mais segura entre as coisas antigas do que entre as mais novas.

14 Dez 2015

O Colóquio

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o fim-de-semana passado tive o prazer de participar no III Colóquio Sobre a Identidade Macaense organizado pela Associação dos Macaenses (ADM). Ao contrário do que muitos poderão pensar – sobretudo os ilustres que reagem logo com um “Epá, que seca! Outra vez essa treta da identidade macaense?..” – o evento foi bastante estimulante e foram colocadas questões pertinentes.

Uma conterrânea nossa que esteve presente perguntou-me se ia falar do colóquio aqui na minha coluna. Respondi-lhe prontamente que “apenas se o colóquio correr mal, para poder má-linguã!” pois, caso contrário, para quê elogiar a iniciativa de quem trabalha em regime de voluntariado e sacrifica o seu tempo livre para preparar eventos que dão bastante trabalho organizar?

(Caríssimo leitor, estou a ser irónico).

Miguel de Senna Fernandes, na qualidade de moderador, fez lembrar por diversas vezes à assistência de que estávamos num debate para partir pedra e confrontar ideias sem cerimónias. Ora, numa interpretação mais directa da minha parte, estávamos ali “prá porrada”. Mas no fim não houve muita, pois da assistência, que interveio bastante, foram mais as questões lançadas do que as respostas dadas.

Faço aqui um pequeno registo do que me pareceu mais interessante, aproveitando também para apresentar as minhas próprias observações.

O inquérito

Muitos foram os elogios dirigidos ao José Basto da Silva que apresentou os resultados do inquérito, da sua iniciativa, que foi lançado on-line. Foram mais de 500 os inquiridos e temos aqui uma ferramenta de trabalho muito útil.

Trata-se de bom material para analisar a textura da comunidade macaense à luz de diversos critérios, permitindo aos interessados lançar estudos com base em dados estatísticos concretos. Portanto, podemos abandonar o “acho que”, “penso que”, “sinto que” e citar concretamente “de acordo com as respostas obtidas no inquérito do Bosco-chai”.

E, já que estamos nisso, do inquérito conclui-se que os macaenses da faixa etária mais avançada falam mais português que chinês e são pessimistas em relação ao futuro da comunidade.

E agora acrescento: porque cristalizam definições, são incapazes de aceitar uma realidade em constante mutação, estamos em 2015 e ainda não aceitaram a transferência de soberania e são campeões na invocação do artigo 9º da Lei Básica.

(Este último a propósito da pequena tempestade no Facebook resultante de um chonto di gente que se sentiu incomodada porque o inquérito foi inicialmente lançado em inglês, em detrimento da língua de Camões. Haja paciência.)

A próxima geração

José Luís Pedruco Achiem, um dos oradores, sublinhou a necessidade de manter uma taxa de fertilidade acima dos 2.1% como condição absoluta para que a comunidade sobreviva.

Muito bem, mas fazer filhos apenas não basta, certo? A verdadeira questão, obviamente, será como educar os nossos filhos garantindo que a chama da comunidade maquista se mantenha viva. Falou-se em tradições e gastronomia, mas para mim a chave da questão está no domínio das línguas.

A língua não é apenas uma ferramenta de comunicação, é um universo cultural. E numa altura em que se assiste ao declínio do uso do português no seio da comunidade, é urgente que os pais macaenses programem a educação dos filhos para que sejam bilingues em pleno.

Esqueça-se o inglês, língua que se aprende facilmente em dois tempos, e concentre-se no chinês e no português.

E não se venha dizer que esta ou aquela língua foi descartada por causa do sistema de ensino que se decidiu seguir: caríssimo leitor, pode matricular o seu filho no Pui Cheng e falar português com ele em casa, uma coisa não impede a outra. E aqui falo com autoridade porque a minha taxa de fertilidade é de 2.0, aos 3 anos o meu filho já era trilingue e da minha menina de 2 meses não espero outra coisa.

Sobre línguas não vou desenvolver mais pois este tema foi por mim abordado em detalhe no artigo “Noite de Natal no Karaoke”. (*)

Rethinking the boundary

Foi este o tema desenvolvido por Elisabela Larrea, a primeira oradora do colóquio. A nossa amochai apresentou o seu trabalho em inglês – ai os antigonços e os seus intestinos que devem estar a mexer, e de que maneira – e conseguiu transmitir o que para mim faz todo o sentido e sempre defendi: a riqueza do ser maquista reside precisamente na sua diversidade cultural, portanto porquê criar fronteiras redutoras?

Tudo muda com o tempo: o mundo mudou, Macau também, portanto os parâmetros de definição da identidade Macaense têm, necessariamente, de mudar e evoluir.

A Elisabela não falou do nada: segundo a sua pesquisa, a peça de Patuá “Olá Pisidénte” (1993) continha 99% de palavras em Patuá e apenas 1% de Cantonense e Português, sendo que a audiência era maioritariamente macaense e portuguesa.

Já a recente peça “Qui Pandalhada” (2011) apresentou apenas 61% de palavras em Patuá; e 26%, 10% e 2% em Inglês, Chinês e Português, respectivamente. Quanto à audiência, para além dos macaenses e portugueses, verificou-se o que já sabemos: uma presença significativa de chineses.

Aceitar que ambas as peças são manifestação da cultura macaense é também aceitar, por conseguinte, que a definição do conceito de macaense é mutável.

Descartemos os complexos: a nossa multiculturalidade deve ser celebrada em pleno.

Aquela coisa do “no meu tempo”

Foram vários os intervenientes que recordaram o Macau antigo e lamentaram a ausência dos lugares de convívio onde outrora socializavam com a malta, apontando essa situação como uma das ameaças à sobrevivência da comunidade.

Houve até quem dissesse que para muitos é preferível não estar em Macau “a assistir a essa destruição, sendo se calhar mais fácil estar nos Estados Unidos, ou num outro país qualquer, onde se sentem melhores”.

Salvo o devido respeito, não posso concordar com essas afirmações. O discurso do “no meu tempo” arrepia-me. O nosso tempo é o nosso tempo, as coisas mudam de geração em geração.

Aos fins-de-semana o meu filho de cinco anos diverte-se nos parques limpos, bem tratados e bem equipados do IACM, ou então nos indoor playgrounds dos novos empreendimentos. E divertimo-nos à brava. Quem sou eu para lhe dizer que no meu tempo as coisas eram melhores?

Aliás, escrevo estas linhas depois de um agradável jantar com amigos do meu tempo, estivemos num restaurante formoso de um dos novos casinos, fomos servidos por um chef português nosso amigo. Boa comida, bom ambiente, bom convívio.

“No meu tempo” não era necessariamente melhor ou pior, era diferente – e não temos forçosamente que ser pessimistas em relação ao futuro. O passado é bom, mas é morto.

Considerações finais

Não quero deixar de destacar a positiva participação de intervenientes em língua chinesa. Deu um colorido à coisa e sei que essa era uma das intenções da ADM – por essa razão todo o evento teve tradução simultânea. Aliás, qual o sentido de um colóquio para debater a identidade macaense se for apenas entre nós, entre a malta? Se for para isso, mais vale combinarmos uma jantarada entre nós…

Os meus parabéns à ADM pela iniciativa. Para o ano há mais, certo?

Sorrindo Sempre

Há 10 anos atrás, quando trabalhava no Governo, conheci um caso em que um funcionário avançou, sem a devida autorização superior, com a execução de uma obra que implicou despesas do erário público.

Quando, já intempestivamente, o funcionário submeteu a papelada para processar a coisa, superiormente foi exarado o seguinte despacho: “Aprovo com efeitos retroactivos e sanciono o técnico responsável pelo sucedido, sendo que o mesmo será tido em consideração aquando da renovação do seu contrato”.

Tradução: “a m**** já está feita e vou aprovar a contar da data em que foi feita, mas estou lixado contigo e sou capaz de te pôr na rua.”

Volvidos 10 anos, sou confrontado com o seguinte caso: alegando falta de espaço no pavilhão onde costuma organizar as suas Festas de Natal, o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes (DJCN) decidiu este ano alugar um espaço no exterior: o auditório do IPM.

Alugar um espaço no exterior custa dinheiro. E das duas, três: ou (1) o DJCN não sabia, ou (2) sabia e fez mal as contas, ou então (3) sabia, fez bem as contas e apercebeu-se que precisava ainda do carcanhol dos encarregados de educação, mas por mera má gestão ou por motivos que sou incapaz de compreender, decidiu que estes deveriam ser informados apenas no último momento.

Pois que com a Festa a realizar-se no dia 12 de Dezembro, o DJCN decide apenas enviar aos encarregados de educação, no dia 8 de Dezembro, um e-mail onde se lê: “(…) todas as despesas inerentes a esta deslocação representam um montante elevado que irá ser suportado pela escola. Ainda assim, torna-se indispensável que os Pais e Encarregados de Educação adquiram os respectivos bilhetes no valor de 75 MOP cada. (…)”

Caríssimo leitor, não vou passar fome por ter de arrotar as 75 pataquitas. Mas incomoda-me saber que a DJCN toma decisões dessas sem consultar primeiramente os encarregados de educação, para depois enviar um e-mail assim, em cima do joelho, já com tudo decidido e o facto consumado, obrigando-nos a arrotar as tais 75 pataquitas. E, que eu saiba, em Macau nenhum jardim de infância pede aos pais que paguem para ver a actuação dos seus próprios filhos no Natal.

O (a) responsável por essa borrada toda merece, indubitavelmente, um puxão de orelhas semelhante ao daquele despacho escrito.

Sorrindo sempre? Não.

(*) “Noite de Natal no Karaoke”, edição de 24.07.2015 do jornal Hoje Macau.

11 Dez 2015

Fong & friends

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda o que aconteceu na sexta-feira passada. Faz hoje oito dias, ficámos todos a perceber com clareza – se dúvidas ainda tivéssemos – de que massa é composta muita da gente que, directa ou indirectamente eleita, com a bênção do Chefe do Executivo ou sem ela, ocupa um lugar na Assembleia Legislativa. Na realidade, o tema vinha de véspera e foi Tsui Wai Kwan, um dos escolhidos de Chui Sai On, que deu o tiro de partida para um dos mais tristes espectáculos a que assisti em mais de dez anos de plenários.
Resumindo, para depois concluir: há deputados que estão preocupados com o investimento que o Governo, através da tutela de Alexis Tam, está a fazer na saúde pública, no Centro Hospitalar Conde de São Januário e nos centros de saúde do território. Consideram que a intenção é boa, mas já chega, não é preciso ir mais longe. A razão para este travão político? A concorrência às clínicas privadas e ao Hospital Kiang Wu, essa instituição que dispensa apresentações e que todos nós sabemos como é financiada.
Como é hábito naquele edifício ao qual se deu o nome de Assembleia Legislativa, há um deputado particularmente despudorado, conhecido pelos frequentes dislates, de seu nome Fong Chi Keong, que assumiu a defesa da causa: se o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura continuar nesta senda de tentar melhorar o serviço público de saúde, vai acontecer uma catástrofe. (Quem não conhecer o estilo da retórica fonguiana poderá porventura achar que me enganei na redacção da última frase. Não, não me enganei.) Vai daí, o douto tribuno deixou um conselho ao secretário, que “ainda é novo”: há que parar enquanto é tempo, que o Kiang Wu é para ser tratado com amor e carinho.
Os deputados defensores do Kiang Wu – Fong Chi Keong é bom a fazer contas e somou oito, ali todos sentadinhos – explicaram, ao longo de várias e entediantes horas, como é que o Governo, ao estar a melhorar um hospital que é de todos, prejudica o hospital de quem tem dinheiro para pagar contas: há médicos que estão a trocar o Kiang Wu pelo São Januário. Que indecência, que despautério, que grande tolice. E, claro está, se o hospital público um dia destes recupera a confiança da população, as contas mensais do Kiang Wu provavelmente vão ressentir-se. Que vã preocupação.
O que tu queres sei eu, disse Alexis Tam a Fong Chi Keong, e disse muito bem, que todos sabemos o que ele quer: esta situação de concorrência desleal gerada pelo único governante que, até à data, veio defender que o São Januário não deve cair de podre, nem deve ser o hospital dos pobres e desvalidos, só pode ser resolvida com mais uns servicinhos encomendados ao Kiang Wu. Como se já não bastasse o dinheiro todo que, anualmente, entra por várias portas no hospital privado. Como se não bastasse.
Para Alexis Tam, obviamente basta. Não será à toa que, apesar dos cortes orçamentais deste ano, o secretário continua a ter dinheiro para investir, para contratar, para fazer. Apesar da oposição, continua, portanto, a ter apoio político para levar o seu projecto avante. Mesmo havendo um Kiang Wu na cidade. Mas a contestação à melhoria do que é público serve de explicação – queiram os deuses e restantes santos que não seja, de novo, premonitória – das dificuldades que se colocam a quem, de uma forma ou de outra, se atreve a tocar em vacas sagradas, mesmo que com jeitinho.
Falta de vergonha dos deputados à parte, importa reflectir, para memória futura, na postura de Alexis Tam, que fez questão de encerrar os dois dias de debate com uma mensagem clara e inédita na política local: ele está no Governo para servir a população, não uma minoria da população. E espera que os deputados entendam que assim é e assim vai continuar a ser enquanto lá estiver.
Este tipo de mensagem leva-me a pensar que, com o secretário, passa-se uma de duas coisas: sabe bem o que está a fazer, que terreno pisa, e por isso diz o que diz, porque segue um certo alinhamento nacional que não tem, nos dias que correm, o empresariado ganancioso e despudorado em grande conta; ou é simplesmente alguém que quer fazer, que quer cumprir o que promete, que quer ir mais além na vida política e poder continuar a defender o interesse público. Às tantas, são as duas coisas em simultâneo. Fong e amigos, parece que o mundo está a mudar, apesar do lento ritmo local da mudança.
Alexis Tam é uma carta claramente fora do baralho governativo, mas não está só. Noutro registo, com um estilo completamente diferente, o secretário para os Transportes e Obras Públicas protagonizou esta semana mais um momento político nunca visto. Depois da ladainha de comentários e perguntas de uma dezena de deputados, Raimundo do Rosário, com a sua forma de responder sem rodeios, pouco ou nada virada para os novelos retóricos em que os deputados se emaranham, explicou que não pode responder a tudo, nem pode fazer tudo. Ficou sem 300 milhões e o que lhe falta em pessoal, em terrenos e em recursos, tem a mais em problemas, limitações e nós para desfazer que, à medida que os anos foram passando, se foram tornando cada vez mais apertados.
É refrescante ouvir um governante desta terra não prometer estudos para resolver problemas há muito diagnosticados, mesmo que nos diga aquilo que não queremos ouvir. É refrescante ouvir um governante desta terra dizer que está aqui para me defender, a mim e aos outros todos que fazem parte da maioria que não sabe fazer contas com a quantidade de zeros da máquina de calcular de Fong Chi Keong.
Talvez daqui a uns tempos chegue à conclusão de que estas formas de estar não me deram um melhor hospital ou um trânsito menos caótico. Por ora, sabe-me bem ouvir um discurso político de maior elevação.

11 Dez 2015

Uma derrota, uma vitória

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] A derrota nas recentes eleições legislativas na Venezuela do governo chavista de Nicolàs Maduro e a conquista de uma maioria absoluta no Parlamento pelas forças de oposição ao regime, organizadas à volta do Movimento de Unidade Democrática(MUD) revela que não é inevitável uma alternância bipolar entre o esquerdismo guevarista e o conservadorismo musculado. Uma terceira via, liberal e moderna, faz o seu caminho com Júlio Borges e o MUD, Juan Manuel Santos na Colômbia, Maurício Macri na Argentina e Horácio Cortes no Paraguai.
A iniciativa de ‘impeachement’ da presidente Dilma Rousseff do Brasil, já aceite pela Câmara de Deputados, conduzirá à criação de uma Comissão que avaliará as acusações que impendem sobre Dilma. Profundamente desacreditada perante o seu povo pelo desgoverno dos últimos anos, a antiga vice-presidente de Lula da Silva poderá, com alguma probabilidade, ver reduzido o tempo do seu segundo mandato. As forças da oposição creditam ter sido obtido por manipulação eleitoral, golpismo e alargada corrupção federal e a nível dos estados. A ser assim, o Brasil poderá ser o quarto país sul-americano a sair do bloco dos regimes de esquerda que aliam má-governação económica, corrupção generalizada, delapidação de recursos naturais e punição da classe média.
O esquerdismo latino-americano agrupa para além da Venezuela e do Brasil o regime castrista de Cuba, o nativismo de Evo Morales na Bolívia, e os regimes autoritários de Rafael Correa no Equador e Daniel Ortega na Nicarágua.

2. Na Europa, a vitória de Marina Le Pen nas eleições regionais francesas do passado fim-de-semana marcou o fecho de um ciclo de exclusão da direita nacionalista francesa do círculo de poder. Denota a identificação do eleitorado com as propostas da líder da Frente Nacional, quando se aproximam eleições presidenciais. Eleições que Marina Le Pen é uma das favoritas com o presidente da UMP, Nicolas Sarkozy. Rapidamente envilecida pelos órgãos de informação de esquerda e pelas redes sociais, a líder da Frente Nacional expressa o sentir de uma maioria crescente de eleitores que estão profundamente descontentes com o incompetente governo de François Hollande, na gestão da economia, na participação na União Europeia, e na defesa da segurança colectiva perante a ameaça permanente do terrorismo islamita. Em menos de um ano, os franceses foram flagelados por vários atentados e deram-se conta que a ameaça (consumada) à sua segurança não é externa mas interna. Ela advém de células de jihadistas simpatizantes do chamado Estado Islâmico que têm estado dissimuladas nas comunidades muçulmanas de França.
Não se trata, ao invés de uma opinião mil vezes multiplicada, de comunidades marginalizadas e socialmente desfavorecidas mas de elementos da classe média inteiramente integrados nas suas comunidades, dispondo de informação abundante e circulando abertamente, pelos favores de um sistema tolerante, entre Paris e os oásis terroristas no Médio Oriente. Núcleos reforçados por kamikazes que aportaram a França, no meio dos movimentos migratórios que passam pela Grécia e pelos países do Mediterrâneo, aproveitando uma política imprudente de ‘fronteiras abertas’.
A vitória de Le Pen não é, contudo, um caso ‘clínico’ que agitou as boas consciências dos eleitores franceses mas que passará. É o regresso em força de um nacionalismo europeu, populista, que sabe ler muito bem as premências mais graves dos cidadãos e projectá-las no discurso político. Nacionalismo que ataca a erosão de identidade nacional e dos valores tradicionais que têm origem na língua, nos costumes, da ética social enraizada, na prática religiosa em favor de culturas alienígenas que optam pela não assimilação e resistem à lógica de integração e acomodação.
O que coloca o velho problema dos limites da tolerância. O Estado de direito democrático não pode, sob pena de pôr em causa a sua própria sobrevivência, contemporizar com ataques sistemáticos à coesão social dos grupos, comunidades étnicas e concepções de vida e sociedade, que formam as comunidades políticas, na modernidade.

3. Trata-se se puxarmos a discussão a um nível filosófico do debate do paradoxo da tolerância tratada pelo filósofo austríaco Karl Popper em ‘A Sociedade Aberta e os seus Inimigos’. A tolerância ilimitada conduz ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada aos que não são tolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante contra os assaltos daqueles que são intolerantes então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. Isso significa, sempre citando Popper, que não se deve impedir a expressão de filosofias intolerantes, desde que as possamos contrariar com argumentos racionais e tê-las sob vigilância da opinião pública, a sua supressão será pouco prudente. Mas devemos reivindicar, em nome da tolerância o direito de as suprimir se necessário com o uso da força. Pode bem suceder que não estejam abertas a argumentar connosco com base em argumentos racionais, mas denunciem todos os argumentos. Podem proibir os seus seguidores de ouvir o argumento racional, acusando-o de ser enganoso e ensiná-los a responder com os punhos e as armas. Devemos reivindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Devemos afirmar que qualquer movimento que pregue a intolerância coloca-se à margem da lei e considerar crime o incitamento à intolerância e a perseguição, da mesma maneira que o fazemos quanto ao homicídio, sequestro e a reabilitação do tráfico de escravos.
O endeusamento pela esquerda do valor cardinal da igualdade tem favorecido expressões de extremismo niilista em nome do princípio da diferença, ao procurar fazer que se tenha o terrorismo como um facto socialmente aceitável. Que não é, já que visa a destruição da sociedade que toma como alvo.
O terrorismo tem prosperado em França por uma lógica de tolerância invertida. É por essa razão que os franceses dão agora a confiança política a Marina Le Pen, já que perceberam que ela poderá forçar a adopção de politicas clarificadores que outros acham desajustadas em nome de uma inclusão sem nexo.

11 Dez 2015

Nem bom vento, nem bom alimento

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]ia ontem uma notícia na imprensa local que anunciava o desenvolvimento em curso em Da Nang, no Vietname. Dizia, entre outras coisas, que os junkets organizam 25 voos charter por semana (!) para China, falava de lucros já mirabolantes dos casinos existentes e ainda citava o responsável de turismo local que dizia estarem a posicionar a capital do centro vietnamita como um destino de lazer, praia e de reuniões e convenções. Fiquei mal disposto. Por Macau e por Da Nang. Por Macau porque tem ali um concorrente quase impossível de superar se as coisas continuarem como até agora por aqui. Por Da Nang porque a conheço bem demais, porque conheço bem demais os impactos do turismo massivo, e porque sei bem o que se está por lá a passar, e o futuro não vai ser bonito.
Soa familiar a declaração do responsável do turismo de Da Nang. Demasiado familiar, diria, mas com uma pequena (grande) diferença: praia. Naturalmente, não será pela praia que os turistas chineses (a grande maioria deles, naturalmente) lá irão mas é pela praia, também, que muitos outros, de outras partes do mundo para lá irão cada vez mais. Macau não tem praia, ou seja, Macau não tem uma praia que consiga sequer rivalizar com a China Beach. Mesmo que acontecesse o milagre da despoluição nunca as praias de Coloane conseguiriam fazer frente àquela costa magnífica. Isto para não falar do espaço disponível e de muitas outras coisas que aquela região vietnamita proporciona e que me vou escusar de referir porque nem seria justo, nem faria sentido. Que pode então Macau fazer? Que pode então Macau fazer quando já percebeu (finalmente!) que os turistas da China não bastam e que é preciso diversificar mercados? Macau, como os ingleses diriam, tem de limpar o seu acto, literal e figurativamente. Macau tem história mas tem vindo a perder os seus vestígios com a construção urbana desordenada. Macau tinha um bom ar mas agora, não bastas são as vezes em que é pior do que o ar respirado em Central (HK)! Não acredita? Aconselho então a baixar uma aplicação para telemóvel chamada “Global pm 2.5*” e verifique por si mesmo. À hora de escrita deste artigo, 20:30H, o centro de Macau registava um nível de 130 (considerado insalubre) e Central 85; até Foshan registava menos que Macau com 97 e, pasme-se, mesmo Cantão ostentava menos poluição atmosférica do que Macau (!) ao marcar o nível 104. Caem então pela base as teorias conspirativas que apontam o dedo ao continente para a poluição do território, porque não foi a China que mudou dramaticamente, fomos nós com obras incessantes e mal protegidas, autocarros a perder de vista, transportes públicos do tempo da Maria Cachucha, quando em Shenzhen se fabricam autocarros amigos do ambiente, torres de habitação e casinos que fecham as tomadas de ar da cidade, trânsito caótico. Porque é que o governo permite, e adopta, autocarros movidos a diesel é um mistério sem segredo: porque existem lobbies que viriam os seus rendimentos gasolineiros coarctados. Porque é que se permite a construção desenfreada e praticamente sem regras? Porque existem lobbies que disso dependem e que não estão nada interessados em construir melhor, nem sequer em parar de nos entaipar.
Chegamos aos mercados e é a desgraça. Fala-se nestes dias em Hong Kong que estão preocupados com mais um potencial escândalo alimentar por não saberem se a carne que está a ser vendida ao público está, ou não, carregada de antibióticos. Estes são utilizados por criadores menos escrupulosos para fazerem as aves e os bovinos crescerem mais rápido. Isto surge quando existe uma campanha mundial de alerta para o uso excessivo de antibióticos que está a causar resistências e a torná-los ineficientes. E se eles estão na carne que consumimos, mesmo que não nos encharquemos de antibióticos quanto temos um resfriado, acabamos por levar com a dose no prato. Em Macau nem sequer a rotulagem é uma preocupação. Rótulos exclusivamente em chinês, carnes que congelam e descongelam, armazenamentos da idade da pedra… Assim nunca seremos um destino de nível mundial, nem regional quanto mais mundial.
Macau precisa de visão e de coragem se não quiser transformar-se na quimera de destino mundial de lazer num destino irrelevante para turistas manhosos que tanto se lhes dá assim como assado. Macau precisa de saber honrar a sua história, de proteger e dar vida ao seu património, ocidental e chinês, e deixar apenas de pintar fachadas. É absolutamente necessário dar conteúdo às fachadas, não podemos ter Lilaus fantasmas anos a fio porque o património vive-se não se admira. Temos de saber honrar a distinção da UNESCO e acabar com a salganhada que é hoje em dia o centro histórico da cidade onde cada um monta o reclamo como lhe apetece e que, como alguém me dizia no outro dia e muito bem, parece-se mais com o free-shop de um aeroporto do que com o centro de uma cidade secular. Macau precisa de esplanadas, precisa de tirar carros e autocarros da rua, mesmo de fechar ruas ao trânsito, precisa de apoiar o comércio tradicional, precisa de se ligar mais às artes, ao ensino de qualidade, ao verdadeiro lazer que não passa apenas por piscinas de ondas e salas de cinema XPTO, mas pelo prazer de caminhar, de descobrir uma cidade secular e viva onde apetece descobrir ruas e becos e não mais uma loja de ourives de Hong Kong – como eles por lá se devem divertir agora; vieram para aqui fazer o seu à custa dos parolos enquanto vão recuperando a sua cidade para, eles sim, a transformarem no tal destino turístico mundial que Macau sonha mas não tem unhas para arranhar. Não podemos mais ser provincianos e temos de saber aproveitar os ganhos da época de ouro para transformar esta cidade num local onde as pessoas queiram vir e, acima de tudo, estar. Uma cidade ecológica, moderna mas tradicional, onde a vida seja um prazer de facto e não um prazer de catálogo e filmes institucionais. Uma cidade que honre a sua história e a sua forma de vida e não um gueto de proibições, centro comercial foleiro e descoordenado, purgatório luminoso sem eira nem beira.
Para isto Macau precisa de coragem política, como a que teve Alexis Tam ao defrontar os lobbies da saúde privada na assembleia, mas não pode ser só ele, nem pode ser apenas o governo – nós também temos de a ter para exigir, para propor, para deixar os carros em casa e acabar com a desculpa dos filhinhos, coitadinhos, que não podem ir a pé para a escola. Daqui a uns anos eles vão agradecer-nos a boleia quando tiverem uma cidade (ainda mais) irrespirável…
Macau precisa de coragem para tomar decisões que pensem mais no bem comum e menos no bem de alguns. Macau precisa de um plano de transformação urgente. Ou melhor, de um plano de recuperação urgente porque o que está a acontecer agora não nos pode levar a nenhum lugar aprazível porque mais Da Nangs virão.

___________
*material particulado (sigla em inglês, PM, de particulate matter), são partículas muito finas de sólidos ou líquidos suspensos no ar. Para ser considerado PM, suas dimensões (diâmetro) variam desde 20 micra até menos de 0,05 mícron[1]
As maiores fontes antropogênicas de particulados são a queima de combustíveis fósseis em motores de combustão interna de veículos, termoeléctricas e indústrias e as poeiras de construção e de áreas onde a vegetação natural foi removida.

MÚSICA DA SEMANA
Tema da Banda sonora do filme “Good Morning Vietnam”
“Nowhere To Run” – Martha And The Vandellas
Nowhere to run, baby nowhere to hide
I got nowhere to run, baby nowhere to hide
It’s not love, I’m running from
It’s the heartaches, I know will come
’Cause I know, you’re no good for me
But you’ve become a part of me
Everywhere I go, your face I see
Every step I take, you take with me, yeah
Nowhere to run, baby, nowhere to hide




10 Dez 2015

A Deus

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onheço miríades de gente em todo o lado que dá “Graças a Deus” por tudo e por nada. Para quem é um bom cristão, fica sempre bem ser agradecido ao divino pelas boas graças, mas é estranho que o contrário não seja também verdade. Por exemplo há quem diga qualquer coisa como: “Parou de chover, graças a Deus”. Estas pessoas certamente não gostam de chuva, mas porque é que foi “graças a Deus” que parou de chover? E quem mandou a chuva? Deus só tem a capacidade de fechar a torneira? Foi um anjinho maroto que a abriu? Mistérios do divino que não encontram explicação. Quando alguém esteve doente e depois melhora, diz que foi “graças a Deus”. Será portanto parte do plano divino Dele que esta pessoa tenha ficado primeiro doente, para só depois recuperar. Deus não teve nada a ver com a gripe ou com a perna partida, mas foi parte indispensável da recuperação. A sério, isto deixa-me seriamente preocupado. Quem é que nos anda a tramar e a dar tanto trabalho a Deus?
Muita gente gosta de falar com Deus, ora através da oração silenciosa ora conversando mesmo em voz alta sozinho (ou com Deus, depende da perspectiva). Não se espera é que Deus responda, pois nesse caso seria “mau sinal” – quando se calhar até seria “bom sinal”, não se percebe muito bem. Voltando aos jogadores de futebol, acho o caso do internacional brasileiro Kaká fascinante. Quando o branquelo marca um golo, levanta as mãos ao céu e agradece. Quando falha um golo, não vejo desiludido ou a pedir explicações ao criador: se não marcou golo, foi porque “Deus não quis”. Deus é imprevisível, e a Sua vontade aleatória. E para onde Lhe dá. Quando se reza por alguém, é normalmente um caso perdido. Quando alguém morre mesmo depois de muitas rezas, correntes e até promessas, baixa-se a cabeça e resigna-se à “vontade de Deus”. Na eventualidade (muito rara) da pessoa sobreviver ou até recuperar totalmente, nunca foi devido à medicina ou à ciência. Foi, adivinharam, graças a Deus. Daí os tais pagadores de promessas, que por vezes se sujeitam a andar à volta de santuários gigantescos de joelhos como agradecimento à alegada influência divina. Este “sacrifício” parece dar a Deus “extra bonus points”.
Deus é visto como uma autoridade real, e não imaginária, que nos está constantemente “a ver” (sim, até no chuveiro). Diz-se daquelas pessoas que são uns cabrõezinhos da pior espécie mas por culpa da sociedade (ou do Diabo?) são ricos e famosos, que “têm contas a ajustar com Deus”, que Deus “não dorme”. Duvido que quem mate, roube ou cometa fraude e enriqueça esteja muito preocupado com isso. Deus é usado como moeda de troca. Quem pede “pelo amor de Deus” está mesmo a apelar. Se resultasse mesmo não existia desemprego, bastava pedir um emprego “por amor de Deus”, e ficava o problema resolvido. Quem pede esmola “por amor de Deus” é a maior parte das vezes recusado com um “tenha paciência”. Este “tenha paciência” é a “safe-zone”: Deus não fica chateado se atirarmos com esta frase mágica, que nos livra da obrigação caritária da esmola. Acho piada aos mentirosos que juram “por Deus” estar a dizer a verdade. Quem usa Deus como desculpa só pode estar mesmo a brincar.
“Deus” é mesmo uma palavra banalizada. Já ouvimos milhões de vezes expressões como “Deus queira”, “Deus é que sabe”, ou a sua variante niilista “Só Deus sabe”, “Deus me livre”, e muitas outras. A minha preferida é “Até amanhã, se Deus quiser”. Isto demonstra uma dose de pessimismo especial. Nunca me passou pela cabeça não estar vivo amanhã, ou depois de amanhã, ou para a semana que vem dependendo exclusivamente da vontade de um ser divino. Assim não marcava consultas, não comprava bilhetes para concertos, não cumpria qualquer compromisso, não fazia nada. Ficava deitado à espera que Deus finalmente me resolvesse levar para junto Dele, o tal “destino final” que todos aguardam. E porque não havia Deus de querer que haja um amanhã para todos? Vá lá, pronto, fico por aqui. Vão com Deus, mas não abusem.

10 Dez 2015

Abstinência

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz o dicionário que abstinência é a nossa deliberada decisão de não nos envolvermos numa actividade ao mesmo tempo que temos um desejo tremendo de praticá-la, tipo comer uma fatia de bolo de 2000 calorias. Abstinência sexual não é diferente, apesar de ser muitas vezes confundida com virgindade. Há um episódio genial do Seinfeld (essa grande série sobre o nada) que explora as potencialidades de duas personagens por não se envolverem na actividade sexual durante um longo período de tempo. De uma forma caricaturizada e brincando com os estereótipos de género, o homem torna-se num génio intelectual, porque finalmente se viu livre da distracção que o sexo trazia para a sua vida, e a mulher estupidificou por completo, porque usava o sexo como clareador da mente. Um exagero de descrição que traz a curiosidade de perceber qual é o mal e/ou bem da abstinência sexual.
Abstinência sexual faz-me lembrar o uso de cuecas de ferro trancadas por uma fechadura. Mas de uma forma mais simples, pratica-se abstinência com um simples ‘não quero’ envolver-me com os órgãos sexuais de outrem. Pode ser uma abstinência deliberada ou uma abstinência imposta (como eu gosto de chamar). Porque a ausência sexual nem sempre é uma decisão, mas um acumular de circunstâncias que torna o não-envolvimento sexual inevitável, em certos momentos das nossas vidas.
Até que ponto o sexo é uma obrigatoriedade humana é uma pergunta difícil de responder. Bem, para quem quer ter filhos, convém. Quando se está numa relação amorosa/sexual onde normalmente sexo faz parte do ‘pacote’ relacional, também convém. Freud diria de peito aberto que quem não tem orgasmos vai desenvolver sérios problemas psicológicos, e por isso todo o imaginário psicoanalítico, que já é tão parte da cultura popular, vem trazer a ideia de repressão e violência quando não vemos as nossas necessidades sexuais satisfeitas. Há mesmo uma preocupação genuína, principalmente entre os homens, que o não uso do seu órgão sexual irá atrofiar os testículos, os fazedores de esperma. Por isso, no espectro das decisões sexuais no mundo ocidental temos de tudo, desde os que se recusam aos que acreditam ser absolutamente necessário.
Não nos envolvermos em sexo não é condenável, nem uma ideia ridícula. Se pensarmos no admirável mundo do sexo como um todo, com os seus preconceitos e doenças/infecções sexualmente transmissíveis, cedo se percebe que não praticá-lo com quem não se conhece muito bem não é uma ideia absurda. Mas a abstinência sexual é o que afinal? Será que se refere somente a sexo vaginal? Ou aos outros sexos incluídos? E a masturbação? É de longa ou curta duração? Em casos de celibato religioso encontramos obviamente uma doutrina para o seu significado. Em contextos contraceptivos fala-se em abstinência relacionada com a penetração vaginal, principalmente entre as camadas mais jovens, porque há uma preocupação acrescida de gravidez na adolescência.
Mas tentar explicar estas malhas da abstinência sexual é expor a vida social que o sexo desenvolve na esfera pública, quase como se tivesse vida própria de pressupostos já definidos. A abstinência que não seja praticada porque se considera a melhor forma de prevenir o que quer que seja, porque há formas alternativas diversas. Ou por outra, que seja utilizada pelo pessoal que está informado sobre tudo o que é possível de ser utilizado no mercado vigente. É totalmente OK, foder se tivermos toda a informação necessária e é totalmente OK não querer foder, quando se tem toda a informação necessária.
Pior são aqueles que são levados a uma abstinência motivada pela falta de parceiro. O sexo, por isso, não possui as características de um direito biológico como comer ou beber porque depende da outra pessoa querer também e é óbvio que não se pode obrigar ninguém. A actividade sexual exige um louco exercício social em tempos que se prega individualismo puro. Os eremitas não são grandes candidatos para o sexo, por exemplo. Por isso a abstinência talvez faça mais sentido a quem tenha desdém pelo sentido social da humanidade. Para todos os outros, que o sexo seja compreendido como é: de uma difícil percepção social mas de um livre arbítrio inerente. Desenvolve-se a experiência individual com ou sem sexo, como se queira.

10 Dez 2015

A cidade culta

Planeando criatividade, cultura e cidades, muitas vezes leva a visões limitadas e sensacionalistas, em que os criativos culturais são vistos principalmente de um ponto de vista económico. Isto é uma pena, diz Charles Landry, para a cultura é muito mais do que o valor económico ou o aumento das indústrias criativas. Landry apela para que uma cidade a use a criatividade de muitos “para se tornar a melhor e mais imaginativa cidade para o mundo – e não a cidade mais criativa do mundo”.
Roy van Dalm

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]cultura não é uma transcendência, muito menos uma utopia. A cultura é a estrutura que define o ser, que lhe dá maior abertura, maior capacidade de visão, educação e, com isso, abrem-se as portas às imensas possibilidades e opções que se deparam através do acto de pensar.
Charles Landry, britânico, autor de “A Cidade Criativa”, publicada no ano 2000, constitui um manual para planificadores urbanos. Landry vê a necessidade de um pensamento novo e culto e o subsequente recurso à criatividade de muitos para resolver questões importantes da cidade. Não é uma história económica, portanto, mas antes uma chamada para uma visão cultural mais ampla.
Sucede que uma das verdades menos consideradas é que ignorância é não se saber que não se sabe, tanto quanto o grosseiro não sabe que é mal-educado. Sendo verdades de La Pallisse não constituem evidências suficientemente assertivas para se constituirem em metáforas do que há a combater.
Charles Landry, como tantos outros, passará por Macau, para um painel integrado no “This is my City” , a ter lugar no Centro de Design de Macau.
Diria que é um dos palcos possíveis, mas gostaria, enquanto cidadão de Macau, que Charles Landry e todo o painel, também falassem para toda a cidade, via televisão. Gostava que houvesse em Macau um Centro do Pensamento Contemporâneo, que precede e alimenta a criatividade, rasgando-lhe horizontes em permanente diálogo.
A cidadania não é um B.I.R. nem uma burocracia que define o permanente e o temporário. A cidadania é, também, a chamada dos mais habilitados, independentemente da proveniência, raça ou credo, para integrarem a cidade desejada, ainda por acontecer.
Carles Landry passará por Macau. Quanto do seu saber será aproveitado?
Já por mais de uma vez tive oportunidade de escrever que uma cidade é um organismo vivo, orgânico, um lugar consequentemente holístico, onde uma acção se repercute em todo o tecido urbano e humano.
Macau tem todas as possibilidades, ainda, de se converter numa cidade criativa, se houver visão e vontade política.
Não existe, infelizmente, na desumanização da cidade, uma teia de afectos que até Confúcio prescrevia. Existe apenas o egoísmo da sobrevivência, o todo excessivo, seja na construção, seja no trânsito, ou nas ruas tornadas metáforas do caos.
O contexto singular de Macau, característica antiga que situa ainda hoje a cidade ao nível da excepção e não da regra, radica fundamentalmente o seu estatuto numa relação de conveniência pragmática, compromisso que permitiu a consolidação da sua essência conjugadora entre dois mundos.
A nova realidade de Macau é um processo ainda por concretizar na definição política que lhe foi conferida, de centro mundial de turismo e lazer. Só o poderá ser verdadeiramente se a amálgama de todos os problemas urbanos forem resolvidos, se existir uma matriz estruturada para acolher este desígnio.
Perante esta indesmentível constatação, importa extrapolar um conceito que há mais de duas décadas venho defendendo, tendo em conta que uma parte da população de Macau é transitória:
o da consolidação de um polo referenciador e aglutinador das diversas comunidades em presença e que tenha como referência a percepção da Cidade, a relação supra-linguística, a recíproca interpretação cultural, num processo de plena abertura para com o Outro, tanto naquilo que o assemelha como naquilo que o distingue.
É na teia de relações e afectos ainda improváveis, que a Cidadania – enquanto também identidade – se pode consolidar na sua plenitude, permitindo então a aplicação plena da abordagem cultural na Cidade Criativa.
A questão da cidadania sempre me foi particularmente cara pelo que comporta de implícito compromisso, e também porque Macau, integrado no segundo sistema, tão inteligentemente concebido por Deng Xiao Ping, constitui parte integrante. Vislumbro aqui a formulação do segundo sistema como um acto de política eminentemente criativa, inicialmente destinado, como se sabe, a operar a progressiva transformação do interior da China pelo efeito de capilaridade de que a criação de zonas económicas especiais e de regiões administrativas especiais, todas situadas na orla marítima, são instrumentos fundamentais.
Porém, cidades como Shenzhen, nascidas do nada, já desempenham importantes papéis no que toca à estruturação urbana, cívica e de experimentação que urge observar e reflectir.
Se o figurino urbano de Macau mudou radicalmente desde a sua criação, a sua essência de cidade-estado mantém-se subjacente e inalterada, independentemente do seu estatuto político. E é neste figurino que se joga o êxito ou insucesso não apenas da organização da cidade, mas da interpretação e cumprimento do desígnio que Pequim outorgou à R.A.E.M. Ou seja, ou a cidade se torna globalmente culta ou os desígnios não se concretizam, porque a cultura é o pressuposto fundamental.

8 Dez 2015

Radicalizados em casa

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]terrorismo torna-se global. Depois do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL) ter atacado em França a 13 de Novembro, um casal provocou a morte a 14 pessoas na Califórnia, na semana passada. Em Londres, um outro cidadão foi detido numa estação de metropolitano por ter apunhalado passageiros em trânsito. Enquanto perpetrava o ataque ia gritando “isto é pela Síria”. Já o governo da Tailândia, no dia do aniversário do monarca, anunciou que 10 alegados activistas da organização que controla parte do território do Iraque e da Síria teriam entrado no país, com a intenção presumida de proceder a atentados. Os alegados alvos, fez-nos saber a inteligência tailandesa, seriam os milhares de turistas russos que, pelo período do Natal e do ano novo, desembocam nas praias do país, fugindo ao Inverno.
Ainda que os contornos do que se passou em San Bernardino, na costa oeste dos Estados Unidos da América (EUA), sejam tudo menos claros – com analistas a expressarem dúvidas sobre a narrativa que está a ser construída –, o que é facto é que 14 pessoas foram mortas em plena festa de Natal e que, acto contínuo, um casal foi perseguido pela polícia e abatido dentro da sua viatura. Segundo o que nos é dito por quem controla a investigação, o casal professava a religião muçulmana (foi a primeira mensagem que se escutou) e havia prometido apoio ao ISIL no Facebook. Pelo menos terá sido isso o que fez a mulher há poucas semanas – Tashfeen Malik, uma paquistanesa que viveu vários anos na Arábia Saudita.
A validação desta visão do acontecimento foi feita pelo próprio Presidente Obama, que, no seu discurso semanal à nação, pela rádio, no sábado, fez saber que era “inteiramente possível” que o casal se tivesse radicalizado. O FBI estava a tratar o evento como um caso de terrorismo. Tanto mais que o ISIL logo revelou pelos seus meios habituais, online, que se tratava de um casal de apoiantes da causa.
Independentemente das narrativas que estão a ser construídas, quer nos Estados Unidos, contra os muçulmanos – basta para tal ouvir a campanha dos candidatos republicanos à Casa Branca –, quer na Europa contra os candidatos a refugiados e imigrantes, o número de atentados terroristas está a aumentar. Desde os ataques da Al Qaeda, em 11 de Setembro de 2001, o terrorismo aumentou exponencialmente. Segundo a Global Terrorism Database da Universidade de Maryland, houve 1882 atentados em 2001 contra os 16.818 registados no ano passado.
As intervenções internacionais no Iraque, mas também na Líbia e na Síria, terão contribuído para este fenómeno. São já os próprios norte-americanos quem o reconhece. Michael Flynn, antigo chefe da Agência de Inteligência Militar dos EUA, veio dizer recentemente ao jornal alemão Der Spiegel que a guerra no Iraque e a eliminação de Saddam Hussein foram erros históricos, um “falhanço estratégico”, que contribuíram para a criação do ISIL. O mesmo se aplica a Muammar Khadafi e à Líbia, que “é agora um Estado falhado”.
O número de atentados perpetrados por pessoas que se auto-radicalizaram está igualmente em crescendo. Os lobos solitários que, a partir de casa, através da internet, foram descobrindo o mundo do extremismo, deixaram-se “fascinar” pelas ideias redentoras do ataque suicida e transformaram-se em máquinas de guerra da chamada jihad.
Segundo um estudo recente da Universidade de Georgetown (EUA), o número de ataques, no chamado mundo ocidental, perpetrados por indivíduos não directamente afiliados com organizações terroristas, mas que passaram por um processo de radicalização, cresceu de 30, na década de 1970, para 73, na primeira década do Século XXI. europa
Embora não identifiquem um modus operandi único na forma como um potencial candidato se deixa seduzir pela ideia de radicalização, estudiosos do terrorismo afirmam que, por trás deste processo de auto-radicalização há sempre uma crise pessoal na sua génese, como a perda de um familiar, de um amor, um despedimento. O filme francês “La Désintégration” (2012), de Phillipe Faucon, que o Programa Académico da União Europeia para Macau vai mostrar hoje, pelas 18h30, na Universidade de Macau, explica bem esse processo pessoal. A par disso, há uma máquina de propaganda disponível online que inclui recrutadores à distância, disponíveis a contribuir para a metamorfose.
A falência do modelo multicultural explica como é fácil fazer de um jovem adulto desenquadrado um potencial terrorista. Um pouco por toda a Europa é patente a incapacidade de integração nas sociedades da segunda e terceira gerações de imigrantes, nascidos já em território europeu. Embora sejam formalmente franceses ou belgas, por viverem em verdadeiros guetos sócio-culturais nos subúrbios das grandes cidades, sem qualquer esperança de subirem a escada social, não se identificam com os valores dominantes. São “presas” fáceis para o recrutador online em busca de seguidores. É evidente que uma imensa maioria que estabelece contacto com estes extremistas, acaba por se afastar da doutrina que professam, pois, para muitos, a excitação de ter passado por lá e de ter gritado alguns slogans contra o ocidente lhes chega. Mas outros não.
Como se tem visto, a estratégia que está a ser seguida para aniquilar o Estado Islâmico, focada no ataque à liderança da organização, demora a produzir efeitos. E a semente do terror está já plantada em muitos bairros, cidades e países onde o potencial de recrutamento é grande. Vai ser preciso tempo. Vamos ter de nos habituar a controlos de segurança mais apertados – a União Europeia, confirmou, por exemplo, esta semana, a entrada em vigor, já em Janeiro, da partilha das listas de passageiros no espaço europeu – e a uma fragilidade inequívoca, que é a de nenhum Estado poder afirmar com toda a certeza de que está imune ao terrorismo.

7 Dez 2015

Voto Decisivo em Hong Kong

[dropcap=’circle’]O[/dropcap] processo eleitoral para o Conselho Distrital de Hong Kong chegou ao fim. No dia seguinte consegui comprar num quiosque de Macau o jornal “Wen Wei Po”, de Hong Kong, que é sempre difícil de encontrar. Em destaque, na primeira página, podia ler-se: “Corrente Pró-Governamental Vence Eleições”. De acordo com esta análise, a coligação formada pela Aliança Democrática Para o Melhoramento e Progresso de Hong Kong, a Federação de Associações de Comércio de Hong Kong, o Novo Partido do Povo e diversas associações orientadas pela doutrina “Amar a China e Amar Hong Kong”, tinha acabado de conquistar 300, dos 431 assentos do Conselho Distrital. Este número representa 70% dos lugares do Conselho, permitindo às forças pró-governamentais manter o controlo em 18 Distritos.
Mas, segundo a leitura do jornal “Apple Daily”, as forças pró-governamentais apenas tinham conquistado 298 assentos, mantendo a maioria, mas com menos 13 lugares que nas eleições anteriores. Os resultados da primeira eleição local, directa, após a Revolução dos Chapéus de Chuva, mostrou claramente que a nova geração de pró-democratas foi a grande vencedora. Os pró-democratas conseguiram passar o testemunho à nova geração através do voto sagrado do povo de Hong Kong. Albert Ho Chun-Yan e Frederick Fung Kin-kee não foram reeleitos, pondo assim um ponto final a essa era. O que ficou desse período virá a ser demonstrado pela forma como a nova geração do Conselho Distrital trabalhar os seus objectivos.
A eleição para o Conselho Distrital gerou uma luta entre as forças pró-democráticas e as forças pró-governamentais. Para as eleições do próximo ano, para o Conselho Legislativo, a questão que agora se coloca é saber se os pró-democratas irão, ou não, manter o terço de lugares, que possuem de momento. A eleição para o Conselho Distrital serviu apenas para medir forças entre os dois campos políticos. Os resultados mostraram que a geração mais velha dos pró-democratas deve aceitar ser substituída pela geração mais jovem, que conseguiu tirar proveito dos efeitos a longo prazo da Revolução dos Chapéus de Chuva e, que conquistou, com sucesso, o seu lugar na cena política. O destaque que o jornal “Wen Wei Po” deu à vitória das forças pró-governamentais, também parece ser uma forma de sossegar o Governo Central.

MARY POPPINS, Julie Andrews, 1964
MARY POPPINS, Julie Andrews, 1964

De forma grosseira, podemos considerar que, para estas eleições, existiram quarto tipos de voto: 1 – As forças pró-governamentais beneficiaram da sua relação de proximidade com o governo. Usaram os recursos a longo-prazo, que tinham disponíveis, para conquistar o apoio dos eleitores, possibilitando mobilizar os seus apoiantes, sem qualquer monitorização interna. 2) o voto das pessoas mais velhas, que beneficiaram de transporte organizado até às secções de voto. Por este motivo, as forças pró-governamentais obtêm muitos apoiantes entre a população mais idosa e conquistam a esmagadora maioria dos seus votos. Os preparativos e a mobilização de eleitores, descritos nestes dois pontos, são muito semelhantes ao que se passa em Macau. As diferenças encontram-se na terceira categoria: desde que Hong Kong foi reintegrado na China, muitos imigrantes, residentes em Hong Kong, passaram a poder votar, desde que vivessem na cidade há mais de sete anos. A sua decisão de voto é muitas vezes influenciada pelos seus conterrâneos e, é frequente votarem segundo as orientações que recebem. Nestas eleições para o Conselho Distrital, estes novos eleitores alteraram efectivamente os resultados esperados. Quanto aos jovens, que se recensearam a seguir à Revolução dos Chapéus de Chuva, sentem o desejo de reformar a sociedade através de uma participação activa nos movimentos sociais. Neste caso, votar faz parte do seu comprometimento cívico. No que diz respeito aos novos eleitores, as forças pró-governamentais e as pró-democráticas, registaram um empate. O quarto tipo de voto é o dos eleitores conscientes, e é crucial para determinar quem ganha a eleição para o Conselho Distrital. Muitos destes eleitores, que estavam recenseados, mas que nunca tinham votado, votaram agora nestas eleições. Quiseram usar o seu voto para eleger pessoas integras e capazes e. recusaram-se a continuar passivos. Quanto aos eleitores que votam sempre, o seu voto expressou-se no sentido da mudança, das reformas, ajudando a ingressar no Conselho Distrital aqueles que verdadeiramente desejam servir a comunidade. Fico muito satisfeito por verificar o despertar da consciência cívica em Hong Kong, que trará oportunidades de desenvolvimento e vitalidade ao futuro de Hong Kong.
E em Macau, haverá hipótese de mudança? A partir da atitude que se observa no governo da RAEM e, analisando os conteúdos dos debates, que decorrem na Assembleia Legislativa, sobre o desenvolvimento do sistema político, não parece provável que vão ocorrer quaisquer mudanças. Mas para tornar realidade o conceito de “Macau governado pelas suas gentes”, o empenho tem de partir da população. Se não quiserem saber e, não lutarem para que haja mudanças, vão acabar a chorarem o seu fado!

4 Dez 2015

Aturdimento e vazio

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]assado o tempo de choque causado pelos ataques a Paris, eis que a cidade das luzes é palco da Cimeira do Clima, neste mês de Dezembro.
Por aqui também faria jeito uma cimeira sobre cidades e cidadania, sobretudo quando Charles Landry está prestes a chegar a Macau. Não se deveria deixar passar a oportunidade da visita deste especialista em cidades criativas.
Este último mês do ano surge agora também ameaçador para quem tinha passes mensais de parques de estacionamento, agora descobertos como ilegais pelas entidades competentes. O efeito foi de total aturdimento. Os ouvidos a zunir e, em redor, o caos junto à incredulidade.
Cidadãos foram despejados de um parque de estacionamento que emitiu passes mensais posteriormente a 2009, o que para mim constitui uma estupefacção, porquanto não entendo nem consegui encontrar a razão da discriminação de datas e parques de estacionamento, a razão de o terem feito, porque só agora foram descobertos. Há um ditado que diz “ou há moralidade…”.
Há nisto tudo uma impreparação clamorosa, um improviso total, porquanto em 2009 já devia ter soado o alarme quanto ao número de veículos em Macau.
Foram precisos mais oito anos para que se tomasse a iniciativa de desalojar os portadores dos ditos passes sem que se conheçam quaisquer medidas para estancar o dilúvio de automóveis que continua a inundar a R.A.E.M., além da extrema poluição, consequência mais do que natural.
Parece que a tudo isto preside uma lógica que, ou é a da batata ou a do inhame, conforme gostos e paladares, porquanto, para além de retirar benefícios aos cidadãos em nome de uma eventual “moralidade” que apenas existe na cabeça de algumas sumidades científicas propensas a sorteios e afins, redundou no aumento do custo do estacionamento para MOP6.00 por hora, o que significa que o trabalhador normal pagará dez horas por dia, aproximadamente, qualquer coisa como MOP60.00 diárias. Como resultado, pude constatar que em plenas 15:00 horas, um dos parques apresentava 115 vagas para automóveis e 130 para motociclos. O panorama é radicalmente diferente, com enormes espaços desocupados por quem não pode, ou não aceita, pagar somas tão avultadas.
Perguntar-se-á a quem, verdadeiramente, beneficia esta medida. Seguramente não é aos cidadãos, únicas vítimas de tais luminosas ideias. Ora, não beneficiando o cidadão, alguém tirará lucro, se os automobilistas estiverem pelos ajustes ou forem obrigados a pagar por hora MOP6.00. Afinal, estamos num mercado libérrimo, onde até a asneira é livre.
Entretanto, e porque depois de Kyoto, a cimeira de Paris ainda não decidiu sobre o futuro dos combustíveis fósseis, o nosso mercado livre vai deixando engrossar a fileira de automóveis e motociclos, e o nível do caos que é o trânsito, e o veneno que é a poluição do dióxido de carbono, que mata que se farta, mas andam todos distraídos com outros malefícios.
Tudo isto me traz à mente o conceito budista do Vazio. “Uma taça só tem utilidade quando está vazia”. Transpondo para a realidade que este escrito aborda, creio que o princípio, ainda que não budista, é o mesmo: esvaziar para encher.
Seguramente estamos no plano do aturdimento e do vazio.

3 Dez 2015

Carta a Lili (Não tenhas medo)

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ara Lili,

Pode ser que esta minha missiva te apanhe de surpresa, mas não é nem nunca foi minha intenção invadir a tua zona de conforto, e espero também não te apanhar de mau humor, como dizes ser do teu timbre. Em primeiro lugar gostava de esclarecer que aquilo que tenho para te dizer não é necessariamente dirigido a ti, mas a quem queira tirar das minhas humildes palavras as ilações que considere oportunas, e mesmo que daqui se possa aproveitar alguma ideia, lembra-te que tens um bem precioso com que todos nascemos mas infelizmente nem todos se podem orgulhar de fazer dele o uso: o livre-arbítrio. Este nosso dom de poder escolher o nosso caminho, depois de termos sido inicialmente levados pela mão dos nossos pais, e dotados do saber transmitido pelos nossos mestres, provém de um outro igualmente inato, mas de mais difícil gestão: a liberdade. Este valor da liberdade assenta numa base menos sólida, mas onde ao mesmo tempo cabem as liberdades de toda a gente – “a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros”, não é apenas uma frase feita. O mais difícil mesmo é aceitar o que cada um entende por liberdade, e a medida da mesma que considera a melhor para si.
Se mais nada sabes de mim, Lili, sabes pelo menos que as distâncias nos separam; tu aí, no coração de Portugal, e eu aqui na Ásia Oriental, em Macau. O que nos une, quer queiramos quer não, é aquele grande abraço que um dia esse lugar que agora chegou a vez de ser teu deu ao mundo, e da ponta de uma das mãos abertas estás tu, e na outra estou eu, e em comum temos aquele sentimento que por vezes nos faz ficar mais próximos, que é a “Portugalidade”, aquele sentimento do ser lusitano que os nossos emigrantes tão bem exteriorizam e que nos faz encher o peito de orgulho. Pode ser que a forma como entendes este conceito seja diferente da minha, mas nenhum de nós está errado, e muito menos estará completamente certo. Ultimamente gostava de poder dizer que estou errado, e que não é esta a noção do ser Português que se recomenda, pois está muito longe da ideal e que passa em primeiro lugar por amar Portugal, o nosso país herdado dos nossos ancestrais. Mas se por um lado uma herança é parte do património individual ou dos bens de uma dada família, Portugal é a herança de todos, inalienável, indivisa, e tal como a própria liberdade, frágil e sujeita a que a diminuamos, deixando-nos com mais do que uma perda irreparável: um grande vazio no tal peito, outrora inflado de orgulho.
Mas vê se consegues perceber onde eu quero chegar, Lili. Somos aquilo que fomos, que fizemos, que ousamos um dia ser, e que em tempos foi muito mais do que somos hoje. Fomos uma das nações que de mundos ao mundo, e se daí se podem tirar coisas más e coisas boas, uma das boas foi o mundo ter ficado a conhecer-nos, e posso-te garantir daqui, do outro lado desse mundo, que nos olham mais como uma das suas partse integrantes, do que como um “invasor”, e quer gostemos ou não da palavra, é aquilo que um dia fomos. Curiosamente aqui os chineses referem-se a nós como “os piratas”, mas se para eles isso pode ser entendido de outra forma, para nós um “pirata” é um aventureiro, um destemido navegante dos sete mares, enfrentando desafios, vencendo batalhas, perdendo outras, e no ponto da História em que nos encontramos e ajudamos a escrever, deixa-nos onde estamos agora, eu aqui, tu aí, separados pela distância, e na soma de tudo o que somos, unidos pela Portugalidade.
Não sei nada de ti, Lili, nem tu de mim, mas és capaz de reconhecer em algumas das valências que nos aproximam aquele que foi o relato por excelência desse nosso passado que ainda faz eco no presente, e a que o poeta que ainda hoje todos comemoramos deu o nome de “Os Lusíadas” – que somos nós, e se temos consciência desse facto, talvez nem sempre o tenhamos presente em todos os momentos. Se alguma coisa retemos da epopeia narrada por Camões nessa obra que tantos de nós tratou injustamente por nos ser imposta enquanto jovens, tempo em que nos queriamos impor, foi a persistência e a coragem das nossas gentes. Se te pedir para me dizeres três personagens d’”Os Lusíadas” se calhar respondias o mesmo que eu: Baco, o velho do Restelo e o Adamastor. É engraçado quando o personagem principal somos nós mesmos, e as referências que nos vêm à memória são as das nossas adversidades. Mas isso não tem que ser necessariamente mau, ou uma expressão do nosso incontornável fatalismo, a que tão irremediavelmente entregues ficámos, que fizemos dele a nossa canção, e lhe demos o nome de fado.
E por falar em fado, também esse começou por ser invariavelmente triste, mas mais uma vez demos a volta por cima, e ora gingando ora cantando ao desafio, fizemos orelhas moucas das palavras do velho do Restelo, e fomos enfrentar o Adamastor, e imunes às ciladas de Baco fechamos os braços à volta do mundo, com a ilha dos Amores de portas escancaradas para nos receber, e onde somos sempre bem vindos. É por isso que me entristece que não nos encontremos num destes imensos pontos que temos em comum, e mais uma vez gostava de estar rotundamente errado. É nos momentos mais extremos que nos damos a conhecer, e da ponta da mão que abraça o mundo, olho para essa mão e vejo-a recusar segurar a mão de quem dela mais precisa, e por motivos que, seja eles qual forem, nada têm a ver com o impulso que nos fez meter nas Caravelas e enfrentar o Adamastor, que é o medo. Todos temos medo, uma vez ou outra, mas nunca devemos ficar unidos pelo medo, pois mesmo que nunca cheguemos a enfrentá-lo, o Adamastor ganha sempre.
Tanto eu como tu Lili, temos filhos, e os teus ainda mais pequenos que o meu rapaz, que é o único herdeiro que tenho, e queremos para eles o melhor, naturalmente. E queremos ainda que possam usufruír do melhor em plena liberdade, e dotados de um espírito crítico, advertendo-os dos perigos que são os Bacos e os Adamastores desta vida. É por isso e só por isso, Lili, que portas fechadas, ou neste caso as fronteiras que um dia estendemos até este ponto longínquo onde me encontro, e acreditar numa mentira por ser parte de um todo que achamos o mais válido, não se coadunam com essa liberdade, e serão com toda a certeza o ferro que fere de morte o espírito crítico que os impedirá de não comer do que não gostam. Um abraço do tamanho do mundo, Lili. Até à próxima, e sem medo.

3 Dez 2015

Macau, esse filme…

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]endo os filmes uma representação da realidade, porque não então comparar o seu processo de produção com coisas prosaicas como a gestão de uma cidade? Podia ser uma cidade ao calhas mas compare-se com Macau. Parece-me até especialmente apropriado neste momento solene em que se discutem as Linhas de Adormecimento Geral ou LAG, ou lá como se chamam. Tomemo-las como o guião do nosso filme.

Fazer um filme parece um processo relativamente fácil: escrevem-se uns diálogos, arranjam-se uns actores, um realizador, uns tipos para filmar mais umas roupitas, luzes e já está! Gerir uma cidade também. Arranjam-se uns secretários, um chefe, escrevem-se umas leis, uns polícias para as fazer cumprir, uma tropa para arranjar as ruas… enfim, vocês sabem. A diferença é que a grande maioria dos filmes é lixo e só algumas cidades dão mesmo vontade de lá viver, ou de lá voltar.

Todos os filmes começam por um guião. Quanto melhor for, quanto mais inteligentes e marcantes os diálogos, quanto mais elaborada e pensada a história, maiores as possibilidades de termos um filme de sucesso. Um mau guião dificilmente dará um bom filme a menos que a equipa de produção se exceda e consiga improvisar uma história melhor ou então estamos a filmar um porno. Mas, mesmo neste caso, ajuda que os grandes planos tenham algum contexto erótico subjacente. Um filme precisa, portanto, de uma ideia sólida, de um final entusiasmante, de um enredo que nos compila a viver naquele hiato de ficção, a vê-lo mais do que uma vez e até a recomendá-lo aos amigos. Neste contexto, os diálogos assumem um papel crucial ao revelarem personagens maiores do que a vida, ao desvelarem inconscientes, ao catapultarem a acção e a imprimirem na nossa memória lições de vida, formas de estar ou apenas grandes tiradas que marcam tempos gerações, modas, eternidades. Um bom filme não tem personagens que soam todas ao mesmo, nem as palavras são ditas apenas porque sim. Por exemplo, não podemos ter os personagens todos do filme a gritarem repetidamente “diversificação económica” ou “indústrias criativas” sem saberem muito bem o que isso quer dizer, a menos que estejamos a escrever uma comédia onde a repetição e o nonsense podem ser utilizados como ferramentas dramáticas. Mas gerir uma cidade não pode ser uma comédia. Um bom filme não se coaduna com uma personagem que é, por exemplo, médico e não sabe o que é uma amigdalite, como não podemos ter um dirigente de uma cidade ignorante do valor pago pelo governo dessa cidade em rendas. Especialmente quando a dita sofre horrores a esse nível. A menos, de novo, que estejamos a produzir uma comédia. Às vezes acontece não conseguirmos puxar mais por uma personagem. Foi mal desenhada, está desajustada da história, qualquer coisa. Quando assim é, é melhor riscá-la do guião. Mas lá está, quanto mais sólida for a ideia da história mais fácil se torna criar os personagens certos para a interpretarem. Naturalmente, um guião começa com uma ideia forte, uma premissa, uma questão que pretendemos ver satisfeita, uma sensação que pretendemos criar, seja lá o que for. Mas não basta uma boa ideia. Não basta dizer que vamos fazer um filme sobre dois gajos perdidos na lua, temos de construí-la, de criar drama, conteúdo, tensão, envolvimento de elaborá-la de tal forma que ela quase se materializa por si própria, ou o filme tem apenas uma cena de 10 minutos e acaba. Tal como não chega dizermos que pretendemos que uma cidade seja um Destino Mundial de Lazer – precisamos de saber o que isso quer dizer, o que isso implica, de tudo o que está à volta dessa ideia e traçar planos concretos que se coadunem com a visão do que isso realmente é. Por muito que se pense, o guião de um filme não é escrito de impulso, durante uma semana, ou duas, a fio. É um trabalho de sapa, de planeamento, de investigação, de reflexão, e depois um processo contínuo de decisões pois quando mergulhamos num assunto abrem-se mil e uma hipóteses, e isso implica sangue frio para separar o importante do prescindível, discernimento, qualidade. Temos de saber escolher: o personagem morre? A acção acontece onde? Qual o tempo? Enfim, chega uma altura em que é preciso decidir um caminho, cortar o supérfluo, avançar e ter coragem para eliminar cenas que achávamos fantásticas mas que em nada contribuíam para o enredo, por muito gozo que nos desse vê-las filmadas, caso contrário nunca teremos guião e, por consequência, nunca teremos filme. Comparando com a nossa cidade a tal cena que adorávamos mas que tivemos de cortar: será, por exemplo, que vale mais a pena construir uma passagem aérea faiscante numa rotunda, ou aplicar a mesma verba no apoio ao pequeno comércio local que, esse sim, caracteriza mais uma cidade do que 10 rotundas iguais à aquela? É apenas uma reflexão como muitas outras que vão sucedendo no processo de criação.

Chega de guião. Partamos do princípio que está lá tudo, que até é uma boa peça literária, com o necessário para dar um bom filme e passemos para a equipa. Se um mau guião dificilmente dará um bom filme, nada nos garante que um bom guião o consiga fazer. Uma escolha criteriosa do elenco para dar vida às personagens, do realizador para consubstanciar a visão, da equipa de filmagem, de iluminação, de guarda-roupa e por aí fora, é um processo absolutamente crucial para que o tal do guião consiga brilhar no ecrã. No caso da cidade, a equipa somos todos nós, governantes e governados, empregados e patrões, desempregados e poetas, artistas e cirurgiões. Naturalmente, como nos filmes, uns mandam mais que outros, mas todos são necessários para que a coisa corra bem. Ao produtor cabe-lhe a responsabilidade de se assegurar que reúne as condições financeiras e logísticas necessárias para conseguir fazer o guião brilhar, o realizador é responsável por ter e comunicar uma visão à equipa, explorar o seu potencial e assegurar-se que os diálogos são executados de forma convincente. Ambos são ainda, ou devem ser, responsáveis por que a equipa se sinta motivada e perfeitamente elucidada da visão subjacente, desde o mais simples assistente de produção ao director de fotografia todos devem estar no mesmo filme e com vontade de dar o seu melhor. Nestas circunstâncias, até um guião menor pode vir a tornar-se num grande filme pois todos contribuem para o fazer melhor – o realizador produz situações incríveis, os actores proporcionam desempenhos memoráveis, o guarda roupa sai-se com indumentárias inesquecíveis, o director de fotografia com imagens de rara beleza, e por aí fora. Mas é preciso uma visão clara, comum a todos para que isso aconteça. E, acredite-se ou não, nem tudo é dinheiro e muito tem a ver com a capacidade de se entusiasmar uma equipa, pois apenas assim obras foras de série são possíveis. Uma produção onde a equipa anda de trombas e desnorteada dificilmente fará um filme decente. No caso da nossa cidade, sabemos bem que o guião é defeituoso, ou inexistente mas, pior do que isso, é sentirmos também que a equipa está desmotivada e tem óbvia incapacidade para consubstanciar essa visão débil, quasi desconhecida. Vivemos de improviso em improviso e esperamos ter sucesso na bilheteira, ou no caso da nossa cidade, dar corpo ao tal Destino Mundial de Lazer.

Não basta colocar o ónus do desenvolvimento nos operadores turísticos que se regem por regras de concorrência e não de desenvolvimento urbano e civilizacional. Mesmo eles acabam por sofrer quando as suas equipas não estão suficientemente motivadas. Caso os produtores deste filme macaíno tenham dúvidas, perguntem à maioria dos estrangeiros que por cá trabalham o que os mantém cá. É preciso dizer “salário”? Mas a vida não é só trabalho e quando se está numa cidade entupida pelo trânsito, com proibições para isto e para aquilo, com uma assistência médica defeituosa alguém pensa em por cá ficar muito tempo? Mesmo aqueles que por cá nasceram ou que por cá andam há muito tempo, quantos não sonham em encher o pé-de-meia e porem-se a andar daqui para fora? Há estatísticas disso, ou não vale a pena fazer a pergunta? Que prazer dá viver numa cidade onde nem sequer existem esplanadas para se cavaquear com os amigos e esquecer as agruras do dia de trabalho? Que prazer dá visitar uma cidade que cada vez mais é uma colecção de lojas de marca e menos uma revelação dos sentimentos locais? Que gozo dá viver numa cidade onde as festividades são contínuos exercícios de boçalidade como os concertos de Ano Novo ou as decorações de Natal do Leal Senado para citar um exemplo recente? Que prazer dá viver numa cidade que tanto fala de criatividade mas não a estimula? Que prazer dá viver, ou visitar, uma cidade onde respirar começa a ser uma actividade de risco? Que prazer dá viver numa cidade onde os pequenos negócios não arranjam pessoal para trabalhar, nem argumentos para pagar os custos de localização? Qual viajante menos sensível às mesas de jogo terá vontade de cá voltar enquanto não esquecer os problemas que teve em deslocar-se, as contas surdas que pagou ou a cidade centenária que não descobriu?

Se um produtor quiser mesmo assegurar-se que tem hipóteses de fazer um bom filme deve pensar primeiro em ter um guião com o mínimo de qualidade, uma visão clara do caminho que pretende seguir, coragem para decidir e capacidade para o maximizar com equipas motivadas, capazes e felizes. Sim, felizes, fazer um filme é duro mas pode ser um processo feliz. Não basta depois ao realizador dizer “acção” e esperar que tudo se encaixe como por magia, como não basta ao governo falar de “linhas de acção” se os discursos forem apenas composições de frases sem conteúdo, se as ideias surgirem dispersas, e até desconexas, se os secretários não souberem que gastam 600 milhões por ano em rendas e não forem capazes, sequer, de imaginar, o que poderiam fazer com esses 600 milhões para consubstanciarem a visão. Porque não têm um guião, porque não conseguem perceber o filme em que estão e nem sequer demonstram capacidade para o realizar. Quando se gere assim um filme, o resultado é normalmente um fracasso de bilheteira, equipas alienadas, investidores tramados e mais umas bobines para a poeira do esquecimento. Quando se gere assim uma cidade, o resultado só pode ser exactamente o mesmo, ou então estamos a ensaiar um remake da “Fuga de Alcatraz”.

MÚSICA DA SEMANA
“The Final Cut” – Pink Floyd
Through the fish eyed lens of tear stained eyes
I can barely define the shape of this moment in time
and far from flying high in clear blue skies
I’m spiraling down to the hole in the ground where I hide (…)

2 Dez 2015

Má sorte ser jornalista

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]diário i e o semanário Sol vão fechar em Portugal. Alegadamente darão lugar a um novo projecto mediático.
Isto é uma péssima notícia. É dramático, naturalmente, para os 120 profissionais que vão ser despedidos. E para as suas famílias. Entre aqueles que vão agora para o desemprego estão sobretudo jornalistas. Desde o início da crise financeira de 2008, já terão sido despedidos em Portugal 1200 profissionais do sector da comunicação social. Um olhar mais distanciado destas duas redacções e menos próximo dos 120 dramas por que estas pessoas estão por estes dias a passar, o que esta notícia revela é que a liberdade de expressão fica mais pobre, o pluralismo mitigado e a capacidade de todos nós conseguirmos interpretar o mundo diminuída.
É evidente que este não é um problema específico do sector da comunicação social. Infelizmente. É transversal ao sector empresarial português. A crise – convém sempre recordar – começou por ter natureza financeira. Mas depois de ter afectado profundamente a economia portuguesa, continua ainda hoje, acima de tudo, a ser marcadamente social. Isto explica, por exemplo, que, nos quatro últimos anos, tenham saído de Portugal, para procurar trabalho no estrangeiro, temporária ou permanentemente, mais de 485 mil pessoas. O que os dados do Prodata nos dizem também é que, desde 2008, encerraram sempre mais empresas do que aquelas que abriram, com a excepção do ano de 2013 (os números do ano passado ainda não estão disponíveis).
Sem dados tão sistematizados acessíveis online, no sector da comunicação social podemos apenas pintar o quadro das últimas décadas. Nos anos da pujança económica e da inundação de Portugal com fundos comunitários, centenas de jornalistas foram formados. Foi um fenómeno, que coincidiu com a explosão das rádios piratas e a subsequente legalização do sector. Não foram apenas os cursos universitários, quais cogumelos, que se reproduziram um pouco por todo o país. Também os cursos técnico-profissionais levaram a que fossem chegando ao mercado profissionais qualificados, que foram entrando nas redacções, rejuvenescendo-as, e trazendo um pouco mais de conhecimentos teóricos aos seus profissionais. Os jornalistas da “velha guarda” – da tarimba –, formados no dia-a-dia das redacções, foram paulatinamente cedendo os seus lugares aos jovens vindos das universidades.
Com a crise económica, as receitas da publicidade caíram e as empresas de comunicação social foram ao longo dos anos procedendo a reestruturações que conduziram inevitavelmente a despedimentos. Em parte, isto tem muito que ver com os avanços tecnológicos e com as diversas tarefas – outras – que os jornalistas passaram a desempenhar.
Os tempos são completamente diferentes hoje nas redacções do que eram há apenas duas décadas. O advento da internet, primeiro, e do social media, depois, modificou totalmente o papel desempenhado pelo jornalista. Não foi assim há tanto tempo que as equipas de reportagem eram constituídas por quatro pessoas: o motorista, o repórter de imagem, o jornalista e o paquete que carregava o material. Eram tempos extraordinários. Quando se saía da redacção para se fazer a cobertura de um incêndio e o motorista não estava imediatamente disponível, corria-se o risco de que quando lá chegados, o incêndio já tinha sido controlado ou mesmo debelado. Isto era um drama para as televisões (ou melhor, televisão, que só havia uma), pois não haveria imagens para mostrar das labaredas. Agora, passe a imagem, o jornalista vai sozinho em reportagem, mais o seu bloco de notas, câmara de filmar e gravador.
A primeira grande alteração foi a introdução dos telemóveis. Subitamente, os jornalistas deixavam de estar obrigados, quando estavam em reportagem no interior do país, a descobrir um estabelecimento comercial que os deixasse usar o telefone para ditar a notícia para a redacção ou a gravar pela linha telefónica. Era ainda preciso parar o carro – é um facto –, levantar a antena do “tijolo” do telefone móvel, escolher uma localização em que o sinal da operadora fosse suficientemente forte para a voz ser escutada e gravar a peça.
Com a internet, o jornalista deixou de escrever apenas uma estória, para o dia seguinte. Passou a ter de actualizar regularmente o website de publicação. Se numa primeira fase os jornais ainda estabeleceram secções para o online, recorrendo às centenas de licenciados que estavam a sair dos cursos universitários, há muito que o jornalista é agora uma espécie de três-em-um. Faz a peça para o online, para a TV e para o jornal do dia seguinte. Põe som e imagem no website e ainda escreve uns parágrafos, as mais das vezes, do sítio onde está em reportagem. São tempos totalmente diferentes. Com a digitalização da rádio, o técnico de som saiu de cena – é agora o jornalista que produz e grava a peça sozinho.
Com estas inovações tecnológicas, a par com os cortes salariais, as reduções de quadros e a crise no sector, o jornalista médio deve hoje produzir três vezes mais do que acontecia há 20 anos e aufere, em média, consideravelmente menos do que se ganhava então.
O resultado de tudo isto, para o consumidor final, é o triunfo do jornalismo mainstream, suportado financeiramente por meia dúzia de empresas transnacionais, com interesses em áreas de negócio estratégicas. E leva a que o jornalista sobrevivente, aquele que ganha menos agora do que quando chegou a chefe há 15 anos, se interrogue sempre, e cada vez mais, se tem “tempo” para escrever sobre esta ou aquela estória. Talvez não haja. Sistematicamente.
Uma das grandes consequências disto tudo é o desinvestimento no jornalismo de investigação. Com algumas honrosas excepções, como a RTP – viva o serviço público! – e o seu programa de investigação emitido às sextas-feiras, pouco se investiga em Portugal. E o aumento de popularidade de blogues independentes, que fazem um esforço para tentar enquadrar a actualidade. De resto, de uma maneira geral, estamos todos a deixar de nos interrogar como é que tão rapidamente nos foi dito que havia um passaporte sírio ao lado de um dos alegados terroristas que se fizeram explodir em Paris, ou como havia uma câmara de televisão a filmar o avião de combate russo a ser abatido pela Força Aérea Turca, em terra de ninguém, um dia depois de uma cimeira Rússia-Irão.

(Em memória do Francisco, que, há 23 anos, me desafiou a ser jornalista.)

2 Dez 2015

Da China II

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hama-se a Revolução Sexual Chinesa e nasceu das especificidades da revolução cultural, da política do filho único, da aberta do país ao mundo e da internet.

Durante a revolução cultural, Mao foi o impulsionador de uma ideologia em que homens e mulheres seriam acima de tudo camaradas, vestidos de igual, com o mesmo corte de cabelo, com as mesmas atitudes e contribuições ao regime. Sexo era uma prática feudal depravada que deveria ser suprimida. Assim foi: mas já não o é. Pelo menos para quem acaba de chegar à China e tenta perceber em que moldes a sexualidade se forma, cedo percebe que não é no total conservadorismo que se vive. Pequim neste momento tem mais sex-shops do que Nova Iorque, homens e mulheres igualmente, tentam adornar-se e embelezar-se com os milhares de tratamentos disponíveis, há espaços para saídas nocturnas de loucura e já se começam a ver gestos de afecto em praça pública. Tudo isto, muito provavelmente, faria Mao corar de vergonha, ou arder de raiva.

Como não seria de surpreender, a política do filho único teve consequências para a sexualidade chinesa. Ter-se-ia pensado que o sexo seria visto como um objecto de controlo do governo e, por isso, estivesse mais reprimido ou fosse ignorado mas, pelo contrário, as mulheres rapidamente perceberam que não eram, única e exclusivamente, máquinas parideiras. Assim o sexo redescobriu a sua potencialidade recreativa, que fez com que muitas vozes se expressassem na sua curiosidade por uma sexualidade ainda divertida. Foram as mulheres em especial que começaram esta revolução, que com a ajuda dos meios de comunicação que já conhecemos, puseram dúvidas, contaram as suas histórias e procuraram uma nova identidade sexual. A mais conhecida de todas é uma de pseudónimo Mu Zimei (木子美) que começou um blog onde partilhava as suas aventuras sexuais, com detalhes tórridos das suas posições favoritas e avaliações quantitativas da performance do parceiro.

[quote_box_left]Como alguém dizia, são tempos extremamente divertidos na China. (…) Em 2009 tentaram criar um parque temático sobre o sexo em Chongqing mas foi ordenada a sua demolição antes de sequer abrir. A ‘Love Land’. Já se passaram seis anos, porque não tentar a sua abertura outra vez?[/quote_box_left]

Mas se a política do filho único trouxe vantagens ao sexo em si, trouxe o que já sabemos sobre a actual morfologia da população chinesa. A preferência por um filho homem criou uma grande impossibilidade da totalidade da presente geração de homens encontrar uma parceira e constituir família. E porque a concorrência é muita, os homens vêem-se agora obrigados a preencher requisitos financeiros como, por exemplo, possuir o ninho para viver o amor pós-conjugal, i.e. ter casa própria (normalmente comprada pelos pais do noivo). Percebe-se agora que ter uma filha até nem é mau de todo. Isto empoderou muitíssimo as mulheres da forma como se vêem no mercado do trabalho e em outras áreas das suas vidas, e que agora lutam pelas suas carreiras, pela sua liberdade e pela sua sexualidade. As que fazem uso deste empoderamento são muitas vezes referidas de ‘Sheng Nv’ (剩女), ‘as mulheres deixadas de lado’. Normalmente são mulheres com mais de vinte e sete anos e que ainda não se casaram e que são erroneamente referidas como ‘as rejeitadas’. Quando, na verdade, trata-se de pessoas com uma educação superior, inteligência, ambição e grande potencialidade para o progresso a que a China deveria aspirar. Como se havia de esperar, os homens deixados para trás não possuem tão óbvia alcunha, nem ninguém os chateia muito com isso. Tal “escassez de mulheres” que têm sido a desculpa para a ‘legitimidade’ do desenvolvimento da indústria sexual, mais especificamente, na proliferação de bordéis e de consultórios de massagens com ‘final feliz’. Lugares ilegais e operados em grande secretismo que têm contribuído para a contaminação crescente de jovens mulheres e homens com o HIV. A China tem tido pouco cuidado com isso.

A revolução sexual chinesa foi e é inevitável. Há forças de muitos lados que puxam para um explodir da sexualidade que se viu reprimida. A abertura, apesar de imperfeita, tem sido incrível, mas falta-lhe muito na divulgação e na informação bem cuidada em prol da saúde de toda a população, mental, física e sexual. No entanto, têm havido passos nessa direcção, com a criação de uma associação de sexologia chinesa ou na organização de exposições sobre sexo ( a que já assisti pessoalmente, com barraquinhas com os mais variados produtos sexuais, com desfiles de roupa kinky e com muitas palestras sobre os mais variados temas).

Como alguém dizia, são tempos extremamente divertidos na China, é uma redescoberta sexual, claro, com restrições políticas, mas que parecem ter alguma flexibilidade na forma como são vividas. Em 2009 tentaram criar um parque temático sobre o sexo em Chongqing mas foi ordenada a sua demolição antes de sequer abrir. A ‘Love Land’. Já se passaram seis anos, porque não tentar a sua abertura outra vez?

1 Dez 2015

Insensibilidade a bordo

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 24, a estação televisiva TVB, de Hong Kong, transmitiu uma notícia onde se relatava o caso vivido pelo Sr. Zhang, passageiro de um avião da China Southern Airline.
Zhang é jornalista. No dia 9 de Novembro, seguiu no voo (CZ6101) de Shenyang para Pequim, China. Cinco minutos, após o avião ter levantado voo, Zhang começou a sentir dores de estômago. As dores eram tão intensas que acabou por não se conseguir mexer e teve de pedir ajuda aos assistentes de bordo. Os assistentes informaram o comandante e foi pedida uma ambulância, que deveria estar no aeroporto, mal o avião aterrasse.
Mas foi aqui que começaram os problemas. A seguir à aterragem, os passageiros tiveram de esperar 50 minutos com a porta do avião aberta. Primeiro, entraram dois socorristas, mas não traziam maca. Também não transportaram Zhang para a ambulância. Em vez disso, travaram-se de razões com os assistentes de bordo – a questão seria, determinar quem é que devia levar Zhang para a ambulância!
O website “news.mydrivers.com” relatou a situação. Um dos socorristas era médico e, terá dito aos assistentes de bordo:
“Têm de levar o paciente para a ambulância.”
Ao que estes responderam:
“Porque é que nós pedimos a vossa ajuda? Se vocês não transportam o doente, quem é que o vai transportar?”
O médico retorquiu:
“As escadas são muito escorregadias, no caso de cairmos, quem é que se responsabiliza pelas consequências?”
Os assistentes responderam:
“O que é que podemos fazer? Se pedirmos uma escada rolante, vamos ter de esperar meia hora. Os senhores são muito irresponsáveis”
O médico voltou à carga:
“Porque é que nos está a chamar irresponsáveis? Este assunto não é connosco.” (Querendo com isto dizer que, como o paciente estava no avião, a responsabilidade de o transportar até à ambulância seria dos assistentes de bordo).
A discussão estava acesa e imparável. Por fim, Zhang já não conseguiu aguentar mais. Acabou por declarar, aos gritos:
“Eu desço pelo meu pé!”
Depois desta declaração de Zhang, fez-se silêncio e a discussão acabou. Zhang só conseguiu ouvir alguns passageiros, que lhe iam dizendo:
“Tenha cuidado.”
“Consegue andar?”
“As escadas estão tão escorregadias.”
Acreditam que estes comentários encorajaram Zhang?
Mas continuava a não haver quem transportasse Zhang para a ambulância.
Zhang efectivamente não conseguia andar. Arrastou-se pelas escadas abaixo até à ambulância. Quando finalmente lá chegou, o primeiro socorrista ter-lhe-á dito:
“Consegue entrar sozinho? A maca é tão pesada” (quer isto dizer que, se Zhang conseguisse entrar sem ajuda na ambulância, então melhor seria para os socorristas.)
Os nossos leitores conseguem facilmente adivinhar que Zhang acabou por entrar sozinho.
Já na ambulância, o primeiro socorrista levou uma boa meia hora a desancar os assistentes de bordo. Segue-se a transcrição da troca de palavras entre ele e Zhang.
“Os assistentes de bordo eram irresponsáveis. Viajava sozinho?”
“Sim.”
“Quer que alguém da China Southern Airlines o acompanhe ao hospital?”
“É melhor, porque não consigo andar sozinho.”
A ambulância parou imediatamente e, começou mais uma interessante troca de palavras,
“O paciente requer, peremptoriamente, que alguém da China Southern Airlines o acompanhe ao hospital. Está insatisfeito com a actuação da companhia.”
“Porque é que a ambulância parou?”

“Temos de esperar que chegue alguém da companhia. Se não o fizermos, eles não mandam ninguém.”
“O que é preciso é salvarem-me a vida, já. Se a companhia quiser mandar alguém para me acompanhar, óptimo. Se não, esqueçam.”
“Certo, fazemos como quiser.”
Passados 10 minutos, o primeiro socorrista informou Zhang que a companhia se recusava a enviar um funcionário para o acompanhar.
Finalmente Zhang chegou ao hospital e o médico diagnosticou-lhe uma apendicite. Após a operação, Zhang recuperou.
Alguns dias depois, a China Southern Airlines anunciou que tinha apresentado um pedido de desculpas a Zhang e que tinham sido enviados funcionários para o visitar. Este acontecimento foi alvo de uma investigação interna. Inicialmente apurou-se que, à data do incidente, o trem de travagem de um outro avião se tinha avariado. O avião teve de esperar que chegassem veículos para o deslocar. A companhia devia aprender, com este tipo de acontecimentos, a melhorar o seu serviço de apoio aos passageiros.
Como já foi referido, um dos socorristas era médico. O que transcrevemos foi o relato do website, não fazemos ideia se é ou não verdade. Em caso afirmativo, temos de colocar a seguinte questão: Qual deve ser a conduta profissional dum médico?
O primeiro dever de um médico é salvar vidas. Essa deve ser sempre a sua prioridade. Se um médico insiste para que outra pessoa transporte um paciente, só porque quer evitar os riscos envolvidos, será que está a ter uma conduta profissional correcta?
Mas, gostaríamos de saber o que pensa o administrador de uma companhia aérea, no caso de alguns dos seus funcionários se terem recusado a ajudar um passageiro que sofria de doença grave, e que efectivamente precisava de ajuda.
Uma pessoa encontra na rua alguém que aparenta sofrer de doença grave e que não se pode mover. Se o leitor fosse essa pessoa, teria ajudado o doente a chegar à ambulância? Será que os nossos códigos morais não nos obrigam a ajudar quem precisa?
Imaginem que Zhang tinha morrido durante a discussão entre os socorristas e os assistentes de bordo, estaríamos perante um caso de homicídio? Quem teria sido o homicida? Quando estavam a discutir, será que não pensaram nisso?

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

30 Nov 2015

O Secretário e a realidade

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz Lionel Leong: as pessoas que, eventualmente, venham a Macau participar de uma convenção poderão “gostar e considerar Macau como um sítio de bom ambiente”. A esperança do Secretário é que tal os faça voltar para outras actividades, vulgo turísticas.
O que eu me pergunto é há quanto tempo Lionel Leong não tenta fazer vida de turista em Macau. Deve ser há muito. Na cinzenta realidade, esta cidade não proporciona um bom ambiente, muito menos a turistas: os transportes são… o que se sabe; os táxis – para além da sua já lendária desonestidade – não conhecem o nome de nada, a não ser em cantonense; nas lojas, ser recebido por um empregado eficiente e simpático é uma agradável excepção; as carantonhas enfadadas dos croupiers só levam a aproximar das mesas quem tem muita vontade de jogar. E isto só para começar… e não falar, por exemplo, da qualidade do serviço em restaurantes, bares e cafés (brada aos céus).
O Secretário para a Economia e Finanças, para além de ter ficado “chocado” quando soube o elevado montante que a administração paga em rendas, como se fosse um estrangeiro à economia de Macau, parece também ser distante das reais condições que a cidade oferece aos turistas. Na verdade, não são famosas e ouvimos muito que poucos terão realmente vontade de voltar, quando aqui ao lado e também na China continental se encontra um ambiente mais agradável e acolhedor.
Um dos atractivos de Macau era a complacência, mesmo o seu lado um pouco sleazy, o estar-se à vontade, uma sensação hospitaleira de liberdade. Agora é ao contrário: liofilizaram a cidade, empurraram para debaixo do tapete e para as salas VIP o que era visível, chegando ao ponto risível de qualificar de “pornográficos” uns meros folhetos de massagens. Vivemos numa cidade vigiada. Um burgo fiscalizado, seja pelo tabaco ou pelo trato. Os sinais de “proibido”, isto e aquilo, proliferaram como cogumelos venenosos da alegria de estar e de viver.
Pensem nisto devagar, compreendam a identidade da cidade. Dá-se hoje por um vazio. Muitos não sabem quem são e de onde vêm. Para além de uma História, Macau tem uma tradição, uma maneira de fazer, um pressuposto de ser. A alternativa será algo muito diferente, sem alma nem emoções, a saber a gesso: ao mesmo gesso com que os casinos tentam fazer-nos acreditar que são reais.

30 Nov 2015

Cada macaco no seu galho

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o primeiro ano da faculdade tive uma cadeira chamada Teoria Geral da Organização do Espaço, nome derivado de uma obra escrita do mestre Fernando Távora, um dos pais da denominada Escola do Porto.
Nessa cadeira, basicamente, o aluno era introduzido à disciplina da Arquitectura, sendo que nos anos subsequentes do curso outras cadeiras teóricas com nomes igualmente encantadores – Métodos e Linguagem da Arquitectura Contemporânea; Espaço Habitável e Formas de Residência; entre outros – orientavam o percurso do aluno ao longo de 6 anos.
Pois que a Arquitectura ensina-se e do arquitecto que seja competente espera-se uma visão e capacidade crítica com base numa cultura arquitectónica sólida adquirida tanto ao longo dos anos da sua formação, como da sua própria experiência de vida.
No entanto, o arquitecto muitas vezes não é respeitado.
Nos poucos anos que trabalhei como projectista em Portugal, tive a honra de aturar um cliente – um developer, conforme se diz nestas bandas, ou pato-bravo, conforme se diz em Portugal – que era particularmente obtuso nesse aspecto. Quando falava comigo era “sô arquitecto” isto e aquilo, mas transmitia no seu discurso tudo menos respeito pela minha formação e profissão.
Tratava-se de um conjunto habitacional com uma série de moradias geminadas e o homem não andava nada satisfeito com a volumetria e os alçados que eu tinha projectado. Queria uma coisa “mais festiva, mais alegre…” e eu, na minha juventude profissional e acabado de sair de uma escola que adoptava uma corrente minimalista, fiz-me de burro e fui resistindo, fazendo de conta que não alcançava o que ele pretendia.
Até que um dia o homem, no limite da sua paciência, aparece no atelier com uns desenhos feitos por ele próprio e simplesmente aterrorizadores. Tinha uns triângulos, umas coisas inclinadas e outras tantas igualmente estapafúrdias. “Atão sô arquitecto, tá a ver? É isso que eu quero! Quero uma coisa bonita, assim, e o filho da p*** que passar pela estrada e vir essas casas vai dizer ah cum carago!”
Não sei como acabou esse projecto porque entretanto vieram as eleições autárquicas, o PS perde uma série de câmaras, Guterres despede-se, entra Durão com o célebre discurso de “Portugal de tanga” e eu concluo que aquilo tudo não é para mim. Despedi-me, fiz as malas e regressei.
Regressei para um Macau onde adjacente à igreja onde fui baptizado se permitiu uma intervenção urbana pseudo-religiosa; onde na vila da Taipa, no sítio onde quando miúdo andava de bicicleta e comprava tai choi kou, se permitiu construir um dragão em pedra e num outro local uma arcada pseudo-paladiana; e onde, em Coloane, se permitiu enfeitar uma praceta de acordo com essa mesma linguagem.
Fiquei algo surpreendido com essas obras.
E terei pensado: “ah cum carago, o autor dessas coisas devia era estar em Portugal a projectar moradias para aquele tal pato-bravo que eu aturei…”
Caríssimo leitor, tudo isso se prende com uma pequena polémica aqui instaurada há umas semanas atrás que mereceu a primeira página deste jornal, e para o qual até fui convidado a prestar declarações: o projecto do Quartel de São Francisco, da autoria do nosso Carlos Marreiros.
Em primeiro lugar, esclareço desde já que o ilustre arquitecto, de seu nome Francisco Vizeu Pinheiro, que no jornal deu tiros no ar e alertou para o eventual perigo dessa intervenção arquitectónica, não é nem mais, nem menos, que o autor das três obras – em Macau, Taipa e Coloane – acima referidas.
Portanto, não se podia esperar desse meu colega outra posição que não fosse a manifestada, já que aparentemente é dono de um universo arquitectónico muito diferente do meu. A forma como aborda a Arquitectura será, digamos, distinta dos “best practices” das actuais correntes arquitectónicas.
Em segundo lugar, caríssimo leitor, quando se intervém num edifício antigo e se constrói no construído, a solução arquitectónica mais bacoca é precisamente aquela que procura uma reprodução mimética do existente. A tentativa de uma coerência formal através da cópia exacta do antigo é um grande disparate que não faz sentido absolutamente nenhum. Algo que abomino.
Não significa isso que não se possa ir buscar referências ao existente, reinterpretando elementos mais representativos à luz de um desenho actualizado e contemporâneo, em harmonia com as actuais tecnologias construtivas. Essa tentativa de diálogo entre o novo e o antigo é sempre possível e muitas vezes é aqui que está a piada da coisa toda. O Centro de Saúde do Tap Seac parece-me ser um bom exemplo: edifício contemporâneo que sempre apreciei por considerar bem integrado naquela envolvente e que, por coincidência, é da autoria do Carlos Marreiros.
Não existe uma fórmula resolvente universal e cada caso é um caso. Dito isto, não quero aqui deixar de mencionar uma outra obra que merece a minha admiração profunda: a Pousada de Santa Marinha em Guimarães, da autoria de Fernando Távora. Repare-se que se trata de um mosteiro antigo e a nova intervenção não tem nem arcos nem nada que se pareça.
(Chega de exemplos, mas por favor não se mencione aqui as pirâmides do Louvre do arquitecto I.M. Pei que considero, com o devido respeito, arquitectura para revista de cabeleireiro).
Face a tudo o que foi dito até aqui, a minha posição relativamente ao projecto do Quartel de São Francisco não podia ser outra: até agora não vi nada que me arrepiasse.
Todavia, através das redes sociais consegui perceber que são poucos os que partilham da minha opinião. E não consigo bem perceber porquê. Volumetricamente, o que há de assustador? É a pedra que incomoda? Será que a malta prefere arcos e paredes cor-de-rosa, imitando o que lá está?..
A verdade é que, por alguma razão que me escapa, o comum mortal que não é formado em Arquitectura julga sempre que dessa área compreende e está habilitado a debater e discutir, mesmo quando o seu interlocutor é arquitecto e teve uma formação específica.
E não se venha ora dizer que se trata de uma questão de “gosto” e que “gosto não se discute”. Quando se discute Arquitectura com pessoas que não são da área, existe sempre a tendência para se escorregar para esse discurso.
Não, a Arquitectura não é uma coisa superficial, não se reduz ao desenho de umas coisas bonitas adoptando este estilo ou aquele estilo. E, na verdade, quando se possui uma considerável cultura arquitectónica, o gosto até se discute.
O que não se pode nem se deve fazer é mandar postas de pescada quando do campo específico em discussão pouco ou nada se sabe. De resto, trata-se de um princípio aplicável a todas as disciplinas – penso eu de que.
Para simplificar, coloquemos antes as coisas da seguinte forma: quando vai ao médico, passa-lhe pela cabeça fazer o mesmo? “Sô dotôr, não quero pace maker, quero uma coisa mais alegre, um coração de porco a imitar o meu coração existente, ah cum carago, e por que não? Pá, é uma questão de gosto e, sô dotôr, o coração de porco é mais bonito e fica melhor, não acha?”.
Cada macaco no seu galho, certo?

Sorrindo Sempre

Diz o ditado que “em equipa vencedora não se mexe”. No entanto, mão de macaco, por alguma razão o Grande Prémio (GP) vai passar para o Instituto do Desporto (ID).
Nada contra o ID. Mas fica aqui registado que se fechou um ciclo de muitos anos em que o GP cresceu, amadureceu e tornou-se num produto bastante sofisticado.
E começa agora um novo ciclo.
Esperemos que as coisas corram bem ao ID porque o GP merece. E, entre outros, esperemos que o evento se limite a atracções relacionadas com o desporto motorizado.
Porque o que queremos ver é competição automóvel ao mais alto nível, velocidade, pneus a chiarem nas curvas e borracha queimada.
E o que não queremos ver é palhaçadas com artistas que fazem poses absurdas e infantis em descapotáveis que circulam a passo de tartaruga no circuito da Guia, ou ilustres que vão ao pódio receber taças sabe se lá por terem vencido o quê.
Pois para nós, fãs do GP, custa-nos que as voltas de uma corrida sejam reduzidas para evitar atrasos e cumprir o programa, para depois afinal ter de dar lugar a essas manifestações baratas do showbiz.
Uma ideia para juntar o útil ao agradável: há sempre quem se queixe dos distúrbios que o GP provoca, sugerindo que o evento seja transferido para Coloane ou Henqin.
Proponho então que se faça mesmo isso e que nessa decorrência se mude para Coloane o programa dos artistas e das suas macacadas. A cerimónia de entrega das taças poderá até ser feita junto dos pandas.
A outra parte do programa que diz respeito às corridas poderá permanecer em Macau, no genuíno Circuito da Guia. Não nos importamos.
(Quem se importar poderá sempre juntar-se aos pandas e aos macacos em Coloane).
Sorrindo sempre.

29 Nov 2015

Duas pedras em cada mão

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje vou precisar de ser sucinto, pois isto que tenho para dizer requer detalhe e minúcia, não vá eu juntar duas palavras que entram depois num contexto diferente do original, e nem vindo desmentir mais tarde a mais peluda e marreca das deturpações alguém acredita na minha versão – a única, no fundo. Mas indo directo ao assunto, vi no outro dia um vídeo que tem circulado pelas redes sociais onde um serviço noticioso ja à primeira vista de idoneidade suspeita dá conta de um caso de violência extrema, onde alegadamente um grupo de crianças “muçulmanas” teria apedrejava fiéis cristãos à saída da missa numa igreja do sul de França, e logo num dia de feriado religioso. Só esta descrição já seria o suficiente para que milhares de utilizadores da rede partilhassem este travesti (“notícia” daria azo a “interpretações extensivas”), com outros que entretanto faziam o mesmo, entre igualmente milhares de “likes”, e comentários que variavam entre o fatalismo resignado (“olha, quéqueu diçe, quiamos todes morrer”), o juízo final (“até que enfim, Deus, este mundo vai acabar!”), e a máquina de matar (“bombas já neles todos””).

Mas então e o vídeo, era autêntico? Era, um autêntico balde de fezes ralas. Via-se uma igreja cristã, certo, que podia ser no sul de França ou na Capadócia, mas o locutor, um canadiano se não estou em erro, dizia “France”, e nós “oui oui”. E via-se crianças a atirar pedras, de facto, e pareciam “muçulmanas”, não porque atiravam pedras, mas sim porque o faziam no sítio onde é comum deparar com esse cenário: nos territórios ocupados da Palestina – e estas eram imagens “vintage” desse “cromo” da nossa (falta de) civilização. No fim, e após tecer oportuníssimas considerações a respeito das tais crianças, que “nascem a pedir para morrer como mártires”, o locutor chega-se próximo da câmara, faz uma cara de maníaco e conclui berrando uma tirada fulminante de analise política: “É a religião da paz, minha gente!”. Como é que eu sei se o vídeo é falso? Essa pergunta preocupa-me por uma série de razões que nada têm a ver com o conteúdo da falsa notícia – e digo falsa porque é a única (des)informação que tenho. Fico preocupado porque basta ter dois olhos, estar acordado e mais ou menos sóbrio para perceber que o vídeo é falso, mas isto não deteve milhares de pessoas de o partilhar e comentar sem uma única referência a esse detalhe, que é tudo o que importa, no fundo. Pior ainda são os que não vêem o clip, porque “não têm coragem”, mas não se inibem de comentar: “não vi porque não aguento ver estas coisas, mas esses demónios deviam estar todos mortos” – neste timbre, ou pior.

São tempos difíceis, estes que atravessamos, e nada pior do que o éter das religiões para inebriar as massas, que devem já estar fartas de paz. Pelo menos é que eu entendo pelos apelos à guerra, aos festejos quando se dá conta de bombordeamentos, e sobretudo à relativização que se faz da vida humana em nome da religião, ou neste caso contra uma delas. Sei que as pessoas de bem preferem não entrar discussões fúteis, ou tentar chamar a atenção para o facto de se estar a usar um discurso extremista para se combater o outro “extremismo”, com o pretexto de o afastar da sua zona de conforto, e tudo com o terrorismo a servir inicialmente de mote, mas entretanto relegado para segundo plano. Era bom no entanto que quem de direito pudesse colocar alguma água na fervura, nem que fosse pelo autêntico deboche que tem sido a falsificação de factos, números e como já referi em cima, imagens. Também já me foi dito que isto é uma “fase”, e que esta tamanha bizarria explica-se pelo súbito aparecimento de um estrato menos educado da população a comentar nos fórums e nas redes sociais, e que apesar de escrever mal e estar dotada de um raciocínio simplista, partilha com os restantes um sentimento que a desinibe: o medo. Por esse mesmo motivo se explica também a radicalização de outros comentadores, outrora mais moderados, mas que justificam esta mudança em nome do combate ao “radicalismo”.

O medo, seja ele ou não justificado, pode explicar muita coisa, mas não explica tudo. Leio entre os muitos comentários na rede, e até alguns artigos de opinião na imprensa, gente que vem falar de uns tais “valores europeus”, ou “europeístas”; não sei bem do que se trata, mas concerteza que não tem nada a ver com a União Europeia, que desde que me recordo só oiço dizer horrores e manifestações de indiferença e desprezo. Também não entendo como é que alguns portugueses pularam com tanta facilidade para dentro da carroça do ódio, e aqui talvez seja uma boa oportunidade para recordar aquilo que me mantém numa posição de neutralidade. Não nasci nem cresci com os tais “valores europeus”, e o que me ensinaram, e se calhar foi por acaso, é que a nossa natureza humanista e globalizada dotou-nos de tolerância e respeito pela diferença, que foi, e espero ainda ser aquilo que nos distingue dos povos que à força impuseram o seu jugo à custa da repressão, segregacionismo e exclusão – um pouco como na “lei do mais forte”, no contexto da selecção das espécies. Aceitei estas valências como justas e irrevogáveis, e suficientemente sólidas para não se deixarem derrubar por uma provocação vinda de quem não se identifica com elas. E em retrospectiva, dá-me vontade de questionar os tais valores que desconheço, pois se na sua defesa a primeira opção é o conflito e a agressão, não deverão ser tão válidos assim, que os justifique preservar.

26 Nov 2015