Arnaldo Gonçalves VozesAté mais Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito. Fernando Pessoa [dropcap style=’circle’]G[/dropcap]uardo para o mês de Janeiro o encerrar de um ciclo. O de anotador do quotidiano nas páginas do ‘Hoje Macau’. Um quotidiano por vezes frustrante, penoso, castrador de sonhos e utopias, mas também anunciador do dia novo e da esperança. Foram sete anos de escrita, muitas vezes intermitente, ao sabor da actualidade, a internacional que se me agiganta por mister académico e a nacional, do país distante, que deixei pela segunda vez já vão treze anos. Escrevi para mim, esperando que com as palavras que deixei espalhadas pela folha de Microsoft Word tocasse o dia-a-dia dos que tiveram a paciência de as ler, neste pequeno território do Mar do Sul da China. A escrita só faz sentido se convidar à reflexão, à opinião, à tomada de partido. A escrita que é conformista nada acrescenta, pactua, ajoelha, é redundante. O mister do intelectual – categoria em que porventura me visiono – é de incomodar e alertar. Não com o sentido de fazer processos de intenção ou de disparar recriminações, mas pôr os pontos nos iis. Por isso o intelectual convive mal com o poder. Seja ele qual for. Das duas uma ou ele é um escriba do poder, um porta-voz, um altifalante ou é uma voz crítica. Ser crítico não significa dizer mal, por sistema, apelando aos instintos maledicentes de quem nos lê ou ouve. Significa ver a floresta e não apenas as árvores, não tergiversar em questões de princípio ou de valores cardinais. Ter opinião, fundamentá-la, mas evitar ser um Cavalo de Tróia das oposições ou dos interesses corporativos organizados e instalados. Porque eles têm um objectivo interesseiro: serem um dia poder ou pelo menos condicionarem o poder instalado. Ao longo deste trajecto, perguntei-me por vezes se faz sentido ser cronista numa língua que apesar de oficial é estatisticamente minoritária. Li por aí que apenas 2.4% da população de Macau lê ou fala o português. É manifestamente pouco, o que me suscita a questão de qual é exactamente o auditório dos jornais e órgãos de comunicação social, em língua portuguesa. Confesso que não sei responder. Tive sempre a ideia, porventura romântica, que quando temos essa predisposição para a escrita faz sempre sentido porque acrescentamos algo à vida das pessoas, ao seu conhecimento, à percepção da realidade. É como a profissão de professor. Passam-nos pelas mãos dezenas de jovens com expectativas diferentes do que fazer da vida, com um conhecimento reduzido do que se passa no mundo e por vezes na comunidade que os circunda. Não é que seja falta de curiosidade mas uma maneira diferente de estruturarem o seu pensamento, de definirem as suas prioridades e projectos de vida. As novas gerações são muito diferentes, têm um imediatismo de objectivos, um sentido de competitividade que outras anteriores não tiveram, ou priorizaram. Costumo dizer que na nossa geração (nascida na década de 1950) sonhámos, imaginámos poder construir um mundo melhor e mais perfeito. Criámos uma contra-cultura na música, na escrita, na arte, no vestir, no sistema de crenças. Fomos, à nossa maneira, revolucionários e ateus quanto às verdades absolutas ouque nos quiseram transmitir. As novas gerações são diferentes. Têm de se fazer a um mundo onde rareiam as oportunidades, onde a competição nas universidades e nas empresas é feroz, onde já não existem empregos para toda a vida, onde a mobilidade é a regra. Hoje está-se aqui; amanhã acolá. Nada, ou pouco, prende ao cais de partida ou de arribação. Talvez apenas a saudade dos bons momentos passados com os amigos. Há que se fazer à vida sem olhar para trás. Pergunto-me também o que será Macau, dentro de décadas, à medida que nos afastamos da data da transição para a China. É difícil deixar de sentir alguma nostalgia por essa última década florescente do século que findou. Porque se imaginaram cenários de modernização e autonomia que não se concretizaram. Um pouco pelas circunstâncias, outro tanto porque a comunidade que é maioritária e que dirige Macau nunca o sentiu como fundamental. A ligação à Mãe-China foi sempre preponderante, definidora de uma maneira de estar e de uma convergência de destinos de que não imagino variação. E essa ancoragem é sempre lembrada, quando surgem dificuldades e hesitações. Confesso-me, a esse propósito, expectante e receoso. Expectante de que Macau consiga, por alguma forma, prolongar a situação de excepção que tem usufruído. Não falo na economia apenas. Falo na maneira de viver, nas condições de efectiva e valorizada liberdade. No pensamento, na escrita e na imprensa, na participação e organização cívica, na escolha de projectos de vida, na defesa do trabalho e de condições dignas de vida, na crítica aberta e não censurada. Seria lamentável que isso fosse perdido por mero cálculo e tacticismo imaginando-se que com o silenciamento das opiniões próprias se poderá servir “melhor” um qualquer senhor distante ou partido iluminado. O que é mais difícil é fazer cumprir o espaço de liberdade que se imaginou e que se alcançou com grande esforço e empenho. Existe sempre a sedução do poder querer domar a liberdade para não ser posto em causa por ela. Os homens são, nesse particular, seres imperfeitos, limitados. A magnanimidade não existe na sua esfera. Pelo menos nunca a encontrei. Guardo para o fim um agradecimento ao Carlos Morais José, proprietário do “Hoje Macau”, pelo convite que me dirigiu, há sete anos, para ser cronista no seu jornal e aos directores, editores e jornalistas com quem tive o prazer de conviver e trabalhar. Ser jornalista é das profissões mais honrosas que conheço e uma das mais difíceis. Está-se normalmente do outro lado dos interesses instalados. E isso gera desconfiança, senão animosidade. É tempo de interregno, de parar. São praticamente duas décadas de crónicas em jornais de Lisboa e de Macau, olhares que deixei pontuados aqui e acolá. Fecho com Fernando Pessoa. “Para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha. Porque alta vive”. Até mais.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA China e a geopolítica global “The world is entering a demographic transformation of historic and unprecedented dimensions. The coming transformation is both certain and lasting; there is almost no chance that it will not happen-or that it will be reversed in our lifetime. The transformation will affect different groups of countries at different times. The regions of the world will become more unalike before they become more alike. In the countries of the developed world, the transformation will have sweeping strategic, economic, social, and political consequences that could hamper the ability of the United States and its allies to maintain security. Throughout the world, the 2020s will likely emerge as a decade of maximum geopolitical danger.” The Graying of the Great Powers: Demography and Geopolitics in the 21st Century Richard Jackson and Neil Howe [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]mundo estranha a época não tão longínqua em que apenas uma super potência como os Estados Unidos, determinava o rumo da economia global, e entretinha-se a prevenir e a conjurar as crises financeiras. Os problemas, por vezes, eram enormes e os Estados Unidos recorriam à Europa e ao Japão, e entre si fixavam um roteiro. Os tempos que vivemos não permitem que tal aconteça. Os Estados Unidos estão muito concentrados em reactivar a sua economia de modo sólido, depois da crise, a verdadeira Grande Depressão de 2008, não a de 1930 e a firmado pelo presidente americano no seu sétimo e último discurso sobre o Estado da Nação. A Europa luta por salvar o Euro e toda a arquitectura da Eurozona. O Japão não consegue superar os seus problemas e a política de “Quantitative Easing (QE) – Flexibilização Quantitativa”, que trata de injectar recursos líquidos no mercado, mensalmente, comprando obrigações e títulos, que não estão a funcionar e o estancamento permanece. Pode ser a China a grande esperança? Tudo indica que não, pois o seu crescimento desacelera, houve desvalorização, queda bolsista e menor procura de produtos mundiais. Mas, e sobretudo não tem o menor interesse em enfrentar os problemas que virão, convertendo-se em líder mundial no campo económico e financeiro. O mundo não conhece uma relação tão importante como têm os Estados Unidos e a China, repleta de tensões, como compete a uma superpotência que até há pouco tempo foi hegemónica, e outra que ameaça disputar-lhe essa posição, num futuro não tão distante. O mais evidente é a luta pelo controlo do Oceano Pacífico? O novo cenário onde os americanos reconstituíram o “Acordo de Parceria Aliança Transpacífico”, celebrado a 5 de Outubro de 2015, e que terá como membros a Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Estados Unidos, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietname, representando cerca de 40 por cento da economia mundial, tem por objectivo conter o seu rival e testar o seu poderio bélico nas águas circundantes à costa chinesa. A concorrência estende-se de forma global no plano comercial. A luta contra os piratas informáticos chineses que endoidecem as empresas e as instituições governamentais dos Estados Unidos, foi um tema importante durante a recente visita do presidente da China à América, sem esquecer a enorme presença chinesa na África e na América do Sul, anteriormente reserva de caça americana. A luta que se trava tem como fim definir a potência hegemónica em todas as áreas. Durante setenta anos, desde o final da II Guerra Mundial, os Estados Unidos têm-se apresentado, e em grande parte têm sido os donos do mundo. O seu poder militar trazia segurança ao mundo, o seu poder económico movimentava os mercados do mundo ocidental, e a força da sua cultura e do seu nível de vida, foram o modelo que mais de metade da população do planeta procurava imitar e que se vai desvanecendo. O poderio americano enquanto durou a Guerra Fria, teve na União Soviética um oponente que o desafiava, ameaçava e controlava. A queda do Muro de Berlim, em 1989, simbolizou a desintegração do mundo comunista, e parecia que finalmente, os Estados Unidos eram de novo líderes únicos, com as bandeiras bem erguidas da democracia, livre mercado e liberdade de expressão, sem que nenhuma outra potência lhe disputasse a liderança do mundo. Desde que terminou a Guerra Fria, o esmagador poder militar dos Estados Unidos foi o núcleo central na política global. Os Estados Unidos continuam a deter um poder militar incrível, com bases navais e aéreas espalhadas por todo o mundo para sossegar os seus aliados e intimidar os rivais. Os Estados Unidos suportam 75 por cento dos custos da NATO, que garante o território dos seus membros, gastando quatro vezes mais em defesa que a China. A marinha americana controla os mares e o exército e tem tropas em todos os continentes. As forças armadas americanas tornaram-se dominantes desde o início do século XX. A sua decadência será muito lenta. A China questiona os Estados Unidos acerca do seu direito de navegar nas águas do Mar da China, como se fosse seu. A marinha americana, no sudeste asiático está habituada a tratar o Oceano Pacífico como se tratasse de um lago americano, garantindo a liberdade de navegação e oferecendo segurança aos seus aliados. A Rússia que necessita de recuperar a sua auto-estima ignora a advertência dos Estados Unidos para não escalar a tensão existente com as operações na Síria. A intervenção da Rússia na guerra civil da Síria mostra que os Estados Unidos já não controlam o Médio Oriente, e têm-se mostrado receosos em intervir, enviando de novo infantaria. A Rússia encontrou uma brecha para se introduzir e poder intervir. A Europa viveu, em 2014, a primeira anexação forçada de território desde a II Guerra Mundial, (Crimeia e a cidade de Sevastopol) mantendo vivo o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Os países bálticos ficaram temerosos e a NATO está alerta e reforçou a sua presença militar na região, tendo os Estados Unidos e a União Europeia imposto sanções económicas à Rússia. A construção na Ásia de ilhas artificiais chinesas pela acumulação de areia transportada desde o continente, no Mar Meridional da China, transformou a reclamação teórica da China sobre as suas águas territoriais, a quilómetros da sua costa, numa realidade. Os Estados Unidos ainda que não se possam intrometer nas disputas entre países vizinhos, asseguram que protegerão a navegação no Pacífico, mostrando que não vivemos num mundo sem fronteiras. As fronteiras existem e os países estão dispostos a lutar para as defender, o que significa que a ordem mundial depende da ordem territorial. Se nada se souber sobre quem detém a soberania de um território, nada se pode saber sobre a ordem internacional. A nova China é um país poderoso, com uma economia forte e forças armadas muito bem equipadas. O seu orçamento da defesa tem apresentado um aumento de dois dígitos nos últimos vinte e cinco anos. As suas forças armadas estão equipadas com aviões de guerra, helicópteros de ataque e mísseis intercontinentais. A China, poucos dias antes da visita do presidente chinês aos Estados Unidos, realizou um desfile de doze mil militares na Praça de Tiananmen para celebrar o septuagésimo aniversário da rendição do Japão aos aliados na II Guerra Mundial, tendo convidado todos os líderes mundiais. O presidente dos Estados Unidos, aproveitando o facto de o seu país estar a meio de uma campanha presidencial, em que os candidatos criticavam a China, escusou-se a assistir. Os que se interrogavam sobre a direcção da liderança chinesa, encontraram resposta durante a recente visita do presidente chinês aos Estados Unidos, dada num jantar, em que ensaiou alguns argumentos entre eles, o de que a China está comprometida com um crescimento em, e pela paz. A China aprendeu a lição da II Guerra Mundial e reconhece que a hegemonia militar não é uma opção, estando comprometida com a ordem multilateral e a Carta da ONU. O presidente chinês referindo-se à ideia de que o crescimento do poderio da China provocaria temor aos Estados Unidos e conduziria a uma eventual futura guerra, insistiu na ideia de criar um novo tipo de grandes relações de poder, que evitem a concorrência militar na procura de métodos mais criativos de cooperação que permitam a todos lucrar. Que tipo de pessoa é o presidente chinês? Quando iniciou o seu mandato foi considerado como débil, medianeiro de consensos e conservador da velha guarda, e ninguém previa que se pudessem dar grandes mudanças durante os primeiros tempos, porque tinha de consolidar o poder, tendo no entanto, surpreendido o mundo, sendo descrito como o líder mais forte que a China teve nos últimos anos, tendo implementado alterações profundas e desmantelado a tradição do governo colectivo e politicamente é considerado como conservador, e em termos económicos como liberal.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCorn Flakes e Masturbação [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]arece que o senhor Kellogg era uma activista pela cruzada anti-masturbação e foi isso que o motivou a criar os favoritos cereais de pequeno-almoço. Corn flakes são uma tentativa de criar uma alimentação nutritiva, mas isenta de luxúria. Porque a luxúria nos alimentos, ou seja, comida saborosa, aumentaria a energia sexual dos jovens, levando-os a tentar o prazer sexual, se não com os outros, com eles próprios. A guerra contra a masturbação sempre foi feroz. Com os mitos que gerações mais antigas tiveram que levar: masturbação faz crescer pêlos nas mãos (assim saberemos quem anda a gozar-se nos seus tempos livres) ou pode cegar. Se o acto sexual continua envolto em tabu, a masturbação parece que está em piores condições. A masturbação masculina parece que é um lugar mais comum, uma conversa mais frequente, e a feminina menos disseminada. Sim, sim, as mulheres masturbam-se. Aliás, a ideia de que os genitais trazem prazer pode ser entendida em muito tenra idade, e é muito normal. Contudo, mesmo que já não haja uma força tão grande a reforçar mitos sem sentido sobre a masturbação, ainda há um sentimento de condenação. Uma força de tradição judaico-cristã que não aceita a individual legitimidade para o prazer – o prazer sexual ainda menos. Mas a masturbação é importante. Os programas de educação sexual ou qualquer discussão sexual ainda não conseguem incluir a masturbação e as suas vantagens de uma forma mais integrativa ou abrangente. Os depoimentos e registos de terapeutas conjugais no mundo ocidental apontam para a relação entre as dificuldades sexuais do casal e a forma como a masturbação é vivida. Porque encontrar o parceiro das nossas vidas não garante o sexo das nossas vidas – se não soubermos comunicar sexualmente de uma forma eficaz. Praticar masturbação é perceber o mapa sexual e orgásmico do nosso corpo e assim, saber o que é preciso para ter prazer com o outro. Comunicar com o outro. E quando eu digo comunicar, não quero tirar todo o tesão da coisa ao sentar o casal em frente de uma mesa de centro a beber um chá enquanto verbal e mecanicamente se discute os caminhos para o orgasmo (pode resultar para alguns). Mas fica a sugestão de masturbarem-se à frente um do outro. À vez. Não? A anatomia masculina tem a vantagem de que está ali pendurada, à boa vista e de muito fácil exploração. A feminina está menos acessível, só uma mulher com uma flexibilidade extraordinária é que poderia olhar a sua vulva ‘nos olhos’, mas ao tocar-se, ao olhar-se ao espelho perceberá qual o seu aspecto – e ajudará a perceber as suas anomalias, em caso de doença. As vantagens da masturbação vão ainda para além de uma sexualidade saudável, está provado que ajuda relaxar, cura dores de cabeça, pode ajudar a descongestionar uma sinusite e ajudar mulheres a terem menos dores menstruais. Ademais, o uso de vibradores e das bolas Ben Wa ajudam no exercício das paredes da vagina que previnem problemáticas como incontinência. Masturbação é tudo de bom. O momento de descoberta sexual começa com a estimulação dos genitais, que continua com o exercício imaginativo daquilo que nos excita, agrada e entusiasma. Muitas vezes este processo é acompanhado por materiais mais visuais do que a simples imaginação (mas já escrevi que baste sobre a pornografia). Não há perigos reais de uma masturbação excessiva (para além de pele irritada, talvez). Mas se usados (constantemente) os mesmos padrões de fantasias para a excitação, podem levar a uma dependência psicológica que, quando se está finalmente com outra pessoa, podem ver as suas fantasias não correspondidas. O problema nunca será pela masturbação em si, mas pelas formas de excitação associadas. Mas se alguém se masturba sempre a pensar em pés, quando se apresenta para sexar e o parceiro não acha graça nenhuma que lhe toquem nessa zona do corpo, pode sentir-se alguma incompatibilidade/insatisfação de ambas as partes. A masturbação é vista como um acto individual, mas que na sua privacidade permite uma abertura bastante frutífera para a sexualidade no geral. A analogia que me foi descrita é de um atleta a praticar para uma competição desportiva. A masturbação é uma forma de prática para o derradeiro momento, portanto deverá ser ajustada entre a sexualidade individual e a sexualidade com o outro. A masturbação permite um tempo valioso de descoberta pessoal, mas também de descoberta do que gostamos no(s) outro(s), aquele admirável mundo novo do sexo que ainda por aí. Há quem ainda sugira momentos de masturbação ‘mindful’ onde deverá ser criado um momento de total intimidade connosco próprios. Se for preciso pôr velinhas, que se ponham velinhas e incenso e música romântica! A relação dos corn flakes com a masturbação é nula, com a excepção de que há por aí muitos comedores de corn flakes que provavelmente se masturbam. O senhor Kellogg que nunca o descubra.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesDepois do Esplendor [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 4 de Janeiro, a bolsa chinesa registou uma quebra de tal forma acentuada que nos pode fazer temer um eventual colapso económico. Ao mesmo tempo em Macau, as receitas do jogo têm vindo a cair consecutivamente ao longo dos últimos 19 meses. Embora ainda gerem quantias suficientes para cobrir as despesas do Governo, existem indícios que demonstram que a Idade de Ouro da indústria do jogo em Macau está a chegar ao fim. Esta situação não tem qualquer relação com os incidentes provocados em Hong Kong pelo movimento “Occupy Central”, foi sim desencadeada pela situação económica que se vive actualmente na China O excesso da capacidade produtiva da China deu origem a um aumento do preço do trabalho, ao mesmo tempo que o encerramento de muitos projectos de construção provocou enormes desperdícios de investimento. O crescimento “anormal” da economia chinesa, aliado à natureza especulativa do mercado imobiliário e às políticas monetárias, colocou em perigo uma “bolha” de mercado há muito existente. Os especialistas em economia terão de encontram formas de impedir que a “bolha” rebente e que a economia chinesa entre em recessão, à semelhança do que aconteceu no Japão há 20 anos atrás. E como as bolhas acabam por rebentar, mais cedo ou mais tarde, a melhor solução é impedir que se criem. Já que Macau não foi capaz de transformar a sua estrutura económica em 2000, as taxas aplicadas à indústria do jogo tornaram-se a principal fonte de receita do Governo. Na sequência do fim do monopólio da indústria do jogo, e do grande florescimento financeiro, os turistas da China continental têm vindo a alimentar das mais diversas formas a economia de Macau. Para lidar com a inflação o Governo da RAEM implementou o Plano de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico, que ainda agravou a situação. À medida que as “bolhas” económicas de Macau aumentavam, e em face das medidas restritivas implementadas pelas políticas anti-corrupção na China, a quantidade de turistas continentais diminuiu drasticamente. Assim, a economia macaense decai dia após dia e as “bolhas” económicas acabarão por rebentar. Em face desta situação preocupante, o Chefe do Executivo, Chui Sai On, afirmou explicitamente, durante a sua visita a Pequim, que o Governo da RAEM está a começar a estudar formas de diversificação moderada e de intensificação da economia de Macau e irá apresentar essas propostas por escrito ao Governo Central. Esta iniciativa não foi sugerida pelo Governo Central, é de facto a primeira vez, desde a transferência de soberania, que o Governo da RAEM avança com propostas para a melhoria da situação da região. Vejamos se estas propostas podem conduzir Macau ao bom caminho após o fim da “bolha” económica. Embora esta “bolha” económica seja moldada por factores externos, também foi influenciada pelas políticas erradas do Governo da RAEM. Quando Macau regressou à soberania chinesa, há 16 anos, o Governo Central escolheu os seus representantes no seio das famílias locais mais abastadas, os quais trabalhavam de perto, na administração de Macau, com associações tradicionais e com grandes capitalistas. Estabeleceram como principal prioridade a manutenção da estabilidade, objectivo que foi alcançado. No entanto, o excesso de estabilidade abriu campo à monopolização do poder, que por seu lado resultou em corrupção. Após o disparar da economia de Macau, a corrupção instalou-se inevitavelmente. Estas “bolhas” políticas não podem encobrir a instabilidade social nem as diversas crises geradas dentro destes micro-sistemas. Os dois relatórios. publicados recentemente, sobre a análise do sistema eleitoral, não conseguiram apontar caminhos para melhorar as políticas cada vez mais fechadas e corruptas que se praticam em Macau. Para que uma sociedade desfrute de estabilidade a sua economia deve registar um crescimento saudável e a sua política administrativa terá de ser transparente e livre de corrupção. Só com a implementação de medidas eficazes, se pode impedir o abuso de poder e o desrespeito da Lei por parte dos políticos, tornar possível o aparecimento de competição e de mecanismos de avaliação, cruciais para a afirmação de competências e do reforço da supervisão da actuação do Governo, de forma a impedir a corrupção. As “bolhas” políticas e económicas são igualmente destrutivas e devem ser ultrapassadas. É necessário tomar medidas e estar preparado para o que está para vir.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPromessas Virginais [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 6 o website‘news.hsw.cn’ fez saber que numa escola de ensino superior, em Xi An, na China, existe um curso designado por “Qing Chu Wu Hui”. Para frequentar o referido curso, todos as raparigas são obrigadas a assinar numa “Carta de Compromisso”, que reza o seguinte: Compromisso Prometo solenemente a mim própria, aos meus familiares, amigos, futuro marido e filhos, que renuncio ao sexo antes do casamento, e renuncio a todas as formas de sexo extra-conjugal, depois do casamento. Assinatura do Próprio Assinatura da Testemunha Data Data Os jornalistas entrevistaram várias estudantes para saberem a sua opinião sobre o assunto. “A escola tem uma forma muito peculiar de nos controlar. Não têm o direito de assumir o papel de “zeladores da moralidade” e atentar contra a nossa dignidade.” “Compreendemos que a intenção da nossa escola é boa, mas este ‘Compromisso’ é sem dúvida muito antiquado.” “Este compromisso pretende resguardar as raparigas que estão em vias de começar a praticar sexo pré-conjugal. Temos sempre uma escolha, podemos assinar, ou não assinar. Mas se o assinarmos, devemos recordar a promessa que fizemos.” “Muitas estudantes da nossa escola não estão autorizadas a manter esta promessa.” “Somos chinesas. Devemos manter e respeitar a nossa tradição cultural. Devemo-nos opor ao sexo pré-marital. Daí que, a idade mínima para o casamento deverá baixar para os 14 anos.” O jornalista também entrevistou um professor desta escola, que declarou o seguinte: “A intenção da escola é zelar pelos estudantes, mas este ‘compromisso’ levantou uma polémica muito além das nossas expectativas.” Noutra Universidade, em Xi An, foi criada uma norma designada por “regulamentação para a manutenção da ordem académica”. Esta norma encoraja a denúncia de contactos físicos entre estudantes, que se verifiquem em público. Além disso, também é pedido aos estudantes que tirem fotografias, caso se deparem com situações de intimidade entre colegas. As fotos deverão ser enviadas por mail aos pais dos estudantes “prevaricadores”, culpados dos tais “comportamentos imorais”. É evidente que as escolas atrás mencionadas tentam lidar com casos de sexo pré-marital e de relações extra-conjugais. Na sua grande maioria os estudantes universitários são adultos. Embora a maioridade possa variar de país para país, o que o conceito implica é basicamente igual em todo o lado. A partir do momento em que se é adulto, pode fazer-se tudo aquilo que é permitido por lei. Na China a maioridade atinge-se aos 18 anos. Já no que respeita à idade mínima para casar, o caso muda de figura; no caso dos rapazes só é permitido a partir dos 22 e das raparigas dos 20. E aqui levanta-se uma questão importante: “Será que existe alguma lei que confira às escolas o direito de impedir os seus alunos de terem sexo pré-marital ou relações extra-conjugais?” Geralmente temos leis que proíbem aos homens o relacionamento sexual com raparigas abaixo de uma certa idade. O limite pode ser os 18 anos ou inferior, dependendo das disposições legais. Mas é muito improvável que exista uma lei que dê às escolas o poder de impor proibições sexuais aos seus alunos. Presumindo que não exista tal lei, pode uma escola intitular-se o direito de impor este tipo de ‘normas regulamentares’ restritivas? A resposta é um tanto ao quanto difícil. Na generalidade, os regulamentos académicos pretendem estabelecer alguns padrões de comportamento na escola, mas este “Compromisso” pretende estabelecer padrões de ordem moral. Se os regulamentos escolares entrarem no campo da moralidade, poderá haver dois tipos de consequências. Por um lado, é suposto educar-se os jovens no sentido de serem moralmente exigentes. Por outro lado, os estudantes podem facilmente acusar a escola de ‘restrição à liberdade’, já que são praticamente todos adultos. É por isso normal que vários estudantes considerem que se está perante um atentado à sua dignidade e, consequentemente, tomem medidas para processar as escolas. Em terceiro lugar, o “Compromisso” apenas faz incidir as suas restrições sobre as raparigas. E os rapazes? Também não deveria a escola preocupar-se com eles? Se uma regulamentação se destina apenas às raparigas, não estamos perante um caso de discriminação sexual? Já sabemos que a escola quer restringir o sexo pré-marital e as relações extra-conjugais. É uma questão de ordem moral. Quem os praticar não está fora dos limites legais. No entanto estes relacionamentos não são bem vistos na China. A melhor forma de manter a moral é através da educação. Não será preferível explicar aos estudantes porque é que o sexo pré-marital e as relações extra-conjugais não são bem aceites na sociedade chinesa? Qual é a melhor forma de lidar com estes relacionamentos? Estas questões são matéria da pedagogia. A intenção da escola é boa, do ponto de vista da sociedade chinesa, mas a escola também deve ter em consideração a sensibilidade dos estudantes.
Leocardo VozesSugestão do Chefe: Renascimento [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão podia concordar mais com quem defende que o Governo devia pagar era “quebas” aos tipos e tipas que investiram nos activos de risco daquela empresa de “bons rapazes” casineiros e no fim ficaram “a arder”, alguns com as economias de uma vida inteira (Isto não é certo, mas fica assim por motivos de…dramatização? Isso.) Nada contra as pessoas, que desconheço na sua totalidade, mas que no fundo devem ser pessoas como nós, com os seus problemas, sonhos, com as suas ambições, e é neste último que pecam especialmente: demasiada ambição, e ainda mais cara-de-pau. Dos “petit-je-ne-sais-quois” que nos separam culturalmente, a avareza (passo a falta de p.c.) é aquela que os chineses praticam com mais “profissionalismo”: levam aquilo tão a sério que no fim não conseguem usufruir do património que passaram a vida a acumular – e no fundo não é essa mesmo a percepção que temos de “riqueza material”? De facto o mundo é mesmo imperfeito, pois caso contrário a “riqueza de espírito” pagava pelos menos as continhas (e quem sabe deixava também uns trocados para jolas e tremoços, pelo menos?). Recordo-me de um episódio interessante que teve lugar num local público, aqui há uns anos, durante o auge da febre da especulação imobiliária. Estariam no local cerca de dez pessoas, e duas delas – ambas senhoras – conversavam a viva voz, aparentemente sobre qual seria o melhor fermento para fazer crescer ainda mais o bolo do capital que iam auferindo, e a certo ponto uma delas levanta a voz contra a outra, com um ar ultrajado, e de repente nem mais uma palavra se escutaria das duas, que pelo que deu a entender, “amuaram”. Que giro. Logo que foram embora, minutos depois, perguntei à única pessoa que não me era estranha naquele local, e que por sorte também era bilingue, qual a razão de súbita e insólita animosidade, que deixou mesmo toda a gente com cara de “isto só visto” nos momentos que se seguiram ao impacto. A prestável e cândida criatura contou-me então que as duas madames conversavam de facto sobre investimentos no sector do imobiliário, e uma delas não gostou que a outra lhe tivesse perguntado como havia obtido um empréstimo a juros apetecivelmente baixos – é lógico que se essa sabia, foi porque a “parte indignada” se vangloriou de ter obtido essa vantagem. Fiquei esclarecido, mesmo que desiludido pelo motivo tão fútil e mesquinho pelo qual se haviam desentendido aquelas duas alegres convivas. O dinheiro, o património, os negócios e mais o “raikusparta” nunca devia ser argumento de coisa nenhuma. Que chato. Que previsível. Que boçal. Pena de morte para estes gajos todos, já! (Desculpem, mas estou ainda meio traumatizado de tantos apelos à violência gratuita que andei a ler nas redes sociais). E lá está, este é o piolho oriental que nos deixa a coçar as nossas ocidentais moleirinhas; os tipos querem fazer rios de nota, mesmo que em muitos casos através de meios “marginais” (no sentido “strictum sensum” da legalidade, entenda-se), e ai de quem ousar questioná-los seja do que for. Se ganharam, “ninguém tem nada a ver com isso”, e desconfiam mesmo de alguém que lhes dá os parabéns. Se perdem, “aqui d’el-rei” ao Governo para ver se faz JUSTIÇA (ah!), e “ai de mim, que sou tão parvinha e não sabia”. Em Portugal tivemos um caso semelhante com os activos tóxicos do BES, mas aparentemente esses foram mesmo ludibriados. Mesmo assim não consigo ter pena deles – e porque havia de ter? Se os activos lhes dessem uma pipa de massa, pagavam um copinho ao pessoal? Era o pagavas! E ainda levávamos com um “o que é que tu tens a ver com o que eu ganho”, que saímos de lá com um olho moral roxo. Patetas. Bem feito! Em suma, pode-se dizer que temos aqui um grupo de gente que é o próprio reflexo da economia lúdico-dependente que popula: a casa ganha sempre, e quando não ganha, há sarilho. Veja-se o exemplo que foi a criação de um departamento governamental, coisa séria, com poderes XPTO, e tal, apenas para que ficasse assegurada a protecção dos “dados pessoais” de cada indivíduo. What’s the point? Ninguém quer saber o número do BIR do vizinho, ou mesmo o nome ou idade, e não dou conta de um número alarmante de raptos que justifique um secretismo tal que se chega ao ponto de se ficar sem saber muito bem o que se pode saber ou dizer de cada indivíduo. É uma mania, creio. Faz parte. É integrante da edição e não deve ser vendida separadamente. A expressão “quem não deve, não teme” não é para aqui chamada, portanto. Não se adapta. Sabem o que mais? Tenho uma teoria muito minha para explicar estas pequenas diferenças que todas juntas compõem certos abismos: o Renascimento. Sim, nós tivemos e eles não, mas já agora: e o que é que eles têm a ver com isso? Ah?!
Fernando Eloy VozesBowie! “Eu estava virtualmente a experimentar tudo… E acho que fiz praticamente tudo o que é possível fazer – excepto coisas realmente perigosas, como ser um explorador. Mas tudo o que a cultura ocidental tinha para oferecer – Eu quis passar por tudo.” Telegraph, 1996 “Fazer o melhor de cada momento. Nós não estamos a evoluir. Nós não vamos a lado nenhum.” Esquire, 2004. “Não sei para onde irei a partir daqui mas prometo que não será aborrecido.” Madison Square Garden, no seu 50º aniversário. [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]avid Bowie foi um dos meus primeiros heróis. Hoje, porque me é mais difícil sentir a atracção pelas estrelas que sentimos quando somos jovens, para perceber o que um adolescente sente ao admirar o seu ídolo do momento tenho de me reportar ao que eu sentia por David Bowie onde tudo o que fazia era um acontecimento para nós. E continuou a fazer. Anos após anos, após anos Bowie continuou a surpreender trazendo-nos sempre trabalho de primeira qualidade, sempre provocativo, sempre grande. Ensinou-nos a libertar, a experimentar, a ser, a usufruir e conceitos tão rebeldes como a própria definição de sexualidade que é muito mais fluidez do que propriamente rótulos estritos de género ou preferência. A morte dele custou. Primeiro por assim se encerrar uma fonte ímpar de inspiração, de criatividade, de atitude, mas também por morrer um pouco de nós, daqueles que gostávamos da sua obra. Esse é o problema das mortes das pessoas que gostamos, ou nos identificamos: porque, no fundo, choramo-nos é a nós. Choramos a mágoa por não termos mais a pessoa, choramos a falta que ela nos faz, choramos por nós, por não mais a termos. Resta-nos a recordação que sabe sempre a pouco. Com a morte de pessoas que nos habituámos a “conviver” praticamente desde sempre, há uma sensação de eternidade que se esvai, um aproximar desconfortável à nossa própria mortalidade. Quando as estrelas rock da nossa infância se vão, há ainda algo de lúgubre que nos ataca, o sinal que também o nosso ciclo se aproxima do fim; e quando se tratam de foras de série como Bowie é impossível não nos ocorrer se, de facto, fizemos ou não alguma coisa de substancial com a nossa vida; um quinto que seja do que ele fez. A morte de David fez-nos também perceber quão importante a música e as artes são para as nossas vidas. Nunca tinha visto o facebook assim. Não me parece que esteja a exagerar que no dia da sua morte cerca de 90% dos meus 800 e tal contactos publicavam algo sobre David Bowie. Muita música claro, mas também inúmeras reflexões das quais me permito citar algumas: Duarte, psicólogo, dizia que “David Bowie, antes de morrer, já estava liberto da lei da morte. Movido por uma criatividade e curiosidade incessantes foi inventando, de obra-prima em obra-prima, o futuro da música e da cultura pop. Distinguia-se por ser alguém grande, de contribuir para uma forma de vida melhor – para usar o conceito de Wittgenstein: desprendia-se das fórmulas, dos sucessos, ou do espaço conquistado/inventado em trabalhos anteriores, para lançar-se vertiginosamente num novo projecto. Continuamente, encorajava ou colaborava com novos músicos e projectos musicais emergentes, que só depois se tornariam conhecidos – por exemplo os Kraftwerk – nunca temendo ficar na sua sombra. A música, a cultura, a forma de vida são bem mais importantes!” Andreia, produtora de espectáculos, dizia que “compreendo melhor Black Star agora, um disco quase perfeito mas tão enigmático. Foi composto já durante a doença, sabendo provavelmente que não iria recompor-se. Ao choque que senti com a notícia sucedeu-se a serenidade de perceber que Bowie soube lidar com a morte. Ouçamos Black Star. E tudo o resto. Celebremo-lo.” Stu, produtor de cinema e de banda desenhada, desabafava desta forma “É impressionante como um artista pode ter tanta influência noutra alma”. José, artista plástico, confessava a sua mágoa assim: “Nunca a morte de uma celebridade me afectou desta forma. Quando soube da sua morte senti este vazio estranho dentro de mim como se me tivesse sido arrancado um bocado sem permissão.” De facto. Marilyn Manson contava-nos o seguinte: “A primeira vez que me apercebi de David Bowie, foi a assistir a “Ashes to Ashes” na MTV. Fiquei confuso e cativado. Mas foi só na minha primeira real estadia em Los Angeles, por volta de 1997, que alguém me disse para perder um momento a ouvir algo para além de Ziggy Stardust, Aladdin Sane e Hunky Dory. Então fui dar uma volta alucinante de carro pelas colinas de Hollywood e ouvi “Diamond Dogs.” Toda a minha nostalgia de repente se transformou em admiração. Estava a ouvi-lo cantar sobre ficção como uma máscara para mostrar a sua alma nua. Isto mudou a minha vida para sempre.” Pois é. Era esse o poder de David Bowie. Mudava a vida das pessoas que se detivessem a escutá-lo. Uma influência global, da moda à representação, à forma de estar, ao seu activismo como, por exemplo, quando criticou a MTV por não passar música negra, ou quando rejeitou o grau de cavaleiro oferecido pela rainha de Inglaterra por não saber para que servia, ou a sua permanente capacidade de estar sempre um passo à frente no tempo como quando, em 1996, foi o primeiro artista de primeiro plano a disponibilizar um single para download, ‘Telling Lies’, um processo que, na altura, com as velocidades disponíveis, demorava cerca de 11 minutos. Mas não posso terminar sem o tweet integral de Val Kilmer que nos dá uma outra perspectiva, menos de Bowie e mais de Jones, o homem por quem Íman se apaixonou como ela recentemente disse: “A última vez que vi David Bowie foi em Brooklyn, junto com algumas pessoas muito muito sortudas que foram assistir a Lou Reed tocar a sua glória negra, BERLIN, ao vivo. Ele estava sentado mesmo à minha frente com a mulher de Lou, Laurie Anderson, que tinha visitado o meu rancho no Novo México com o Lou. Quando nos cumprimentámos, ele virou-se e eu reconheci-o instantaneamente. E eu, em vez de dizer ‘olá’ apenas comecei a dar-lhe uns tapinhas nos ombros. Não consigo descrevê-lo de forma mais precisa. Ele era tão especial que foi a única forma que consegui exprimir a minha alegria. Não acariciei muitos homens dessa forma em toda a minha vida. Estou tão feliz por o ter podido fazer. E, mais importante do que isso: ele deixou-me fazê-lo. Apenas sorriu quando lhe pedi desculpa pelos afagos. Pareceu-me que não apenas entendeu como aceitou a minha estranha oferta de gratidão e reconhecimento. E de repente o encanto desfez-se quando ele se focou intensamente no palco percebendo que para além de qualquer um de nós estava aquele concerto histórico que se iniciava. BERLIN era um disco importante para ele, como o disse várias vezes, e ele valorizava muito a sua amizade com Lou, apesar deste ser um tipo muito difícil, desafiante mesmo. Mas todos nós gostávamos de ser tão “cool” como o David. Mesmo o Lou. David era sempre o tipo mais cool na sala. E era um mestre cantor e compositor. Deus abençoe David Bowie.’” A morte de Bowie leva também consigo um dos expoentes máximos de uma geração de artistas para quem a fama era apenas boa, como ele disse, para arranjar um lugar num restaurante, tão ao avesso do comportamento tantas estrelas de brilho duvidoso dos dias de hoje que tudo fazem para aparecerem continuamente nem que seja para mostrar o novo par de sapatos. Da minha parte só espero conseguir pelo menos cumprir um percurso semelhante ao que ele preconizou quando celebrou 50 anos, idade que em breve farei, pois não há nada pior que o aborrecimento. Nada. MÚSICA DA SEMANA David Bowie – “Black Star” I can’t answer why (I’m a blackstar) Just go with me (I’m not a filmstar) I’m-a take you home (I’m a blackstar) Take your passport and shoes (I’m not a popstar) And your sedatives, boo (I’m a blackstar) You’re a flash in the pan (I’m not a marvel star) I’m the great I am (I’m a blackstar)
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO Paradoxo da Intimidade [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] intimidade é daqueles pilares relacionais que não pode ser dispensado. É a parede mestre dos relacionamentos românticos. Intimidade, eufemisticamente, refere-se a sexo, ao mesmo tempo que se refere a proximidade, familiaridade e muito à vontade com o outro. A isto se deve à nudez, às caras de sexo, aos orgasmos, a histórias de infância, a traumas, a choros, a sorrisos e às confissões nunca antes partilhadas. Esta é a porta que permite a entrada do outro aos recantos mais sombrios do nosso ser. O Sr. e Sra Perfeitos deixam de fazer sentido à medida que a intimidade cresce. Porque estas zonas mais negras, mais sujas e vergonhosas, são normalmente partilhadas e expostas no desenvolver da relação. As nossas imperfeições e dificuldades tornar-se-ão (idealmente) objectos de amor. Todos nós queremos ser reconhecidos e adorados exactamente como somos, podres incluídos. E o que somos nós? Somos aquele equilíbrio de que nos orgulhamos e nos envergonhamos (se de uma forma saudável, em quantias que se nivelam). O que muitos se questionam é que se deveria existir uma barreira intransponível? Um limite para a abertura íntima, ou seja, o que é que é demais ou de menos? Devemos mostrar tudo? Ou um pouco menos que tudo? Não há fórmulas, claro. Apesar da cultura popular gostar bastante de as impor, às vezes, com alguma graça. Tomemos o exemplo do cocó. A merda. Dizem uns e outros que há um protocolo para o número dois. Quem viu o Sexo e a Cidade saberá que as quatro amigas regulamentaram que não se caga na casa do namorado. Ponto. É das primeiras preocupações que se tem quando passamos pela primeira vez mais de 24 horas com a pessoa amada ou com a pessoa com quem se anda a ter uma amizade colorida. É muito pouco sexy quando pensamos que sai algo de nós tão nojento e malcheiroso. Por isso tenta-se esconder o facto que as nossas funções biológicas existem, aliás, nunca existiram. O quê? Fazer cocó? Dar um peido? Só na escuridão de uma casa-de-banho, quando ninguém está a ver ou a cheirar. Escusado será dizer que há quem se sinta mais confortável em partilhar os seus movimentos intestinais do que outros. Dependendo da forma como vemos o acto de evacuar. Li algures por uma bloggeira, que se debruça por várias questões matrimoniais, que acredita que muitos casais podem considerar o à vontade em partilhar movimentos intestinais, um desleixo. Que provavelmente reflectirá as expectativas que o mundo cria das relações amorosas. Porque há quem as tome de uma forma cinematográfica tão literalmente (e.g. cabelos ao vento, risos soltos, jantares românticos, olhares profundos) que provavelmente terão dificuldade em lidar com o ‘desleixo’. Muito menos com um peido. Que, diga-se, até pode ser um daqueles momentos de intimidade de graça adolescente. Quem fala de puns, pode falar de outra coisa qualquer, que por alguma razão recai bastante em expectativas femininas. Mulheres que se ‘desleixam’ com a maquilhagem, com a roupa interior sexy, com os pêlos que teimam (que surpresa!) em nascer de novo. E o que é que é suposto fazer em relação a isso? Conheço quem viva sob esta doutrina da perfeição, ao ponto de dormir com maquilhagem para conseguir acordar e apresentar uma cara fresca, e não com uma terrível cara de sono (nunca percebi como é que esta técnica funciona, não me sai da cabeça a imagem do Joker todo esborratado – combinação de maquilhagem com uma almofada). Também já a vi quem se preocupe obcessivamente em tirar todos os pêlos do corpo, para que o seu mais que tudo nunca perceba que eles de facto existem. Cada um faz o que quer, e é aconselhado a fazer aquilo que o deixa mais confortável e lhe dê mais prazer. Óbvio. Mas tem me feito espécie que o tão temido ‘desleixo’ seja carregado pelas mulheres, como se houvesse a obrigação de sermos as únicas a manter uma intimidade interessante, sexy e bem apresentada. Que não é o caso. Acautelem-se homens: vêm aí as doutrinas anti-barrigas de cerveja e as queixas de falta de gestos românticos. O que eu percebo como o paradoxo da intimidade é o seguinte: tenta-se incutir a ideia de que a intimidade é necessária para o desenvolvimento do casal, mas carrega a possibilidade de ser encarada como um desleixo. Porque se a ideia é sermos nós mesmos com o outro, e permitir que a atracção circule e seja entendida nos moldes que nos definem, podemos cair nas temidas coisas mundanas que por si só não são muito atraentes e em casos mais graves, poderão pôr relacionamentos em causa. Por isso, seguindo o conselho de tantos terapeutas matrimoniais por esse mundo fora: comunicação. Se vos agrada ou se vos incomoda, comuniquem um com o outro (de forma diplomática, acusações têm pouco de produtividade). Porque os gestos de intimidade e de desleixo, o romantismo exacerbado, as actividades rotineiras e um ou outro pum, são o que fazem uma relação.
Hoje Macau VozesBRICS: Análise comparativa da sua performance * Por Rui Paiva [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]menção ao BRICS remete para uma pluralidade de realidades bem diversas, atentando ao que cada país membro representa sob o ponto de vista económico, financeiro ou enquanto actor global que, não obstante, consubstanciam um lobby de expressão mundial que representa 40% da população (três mil milhões de pessoas), e pouco mais de 20% do produto global. A China destaca-se pela sua pujança económica e financeira, com elevadas taxas de crescimento, (se bem que a decair para perto dos 6%), e uma realidade global mais sólida do que os restantes países. Este crescimento é considerado como uma importante forma de legitimação do Governo e do Partido Comunista Chinês. A diferença de dimensões realça-se no PIB da China, quatro vezes o do Brasil (e grosso modo também da Rússia e Índia), e vinte vezes maior que o da África do Sul. “A nova normalidade” é o conceito usado pelo governo chinês para definir o actual estádio, que significa a mudança de um crescimento forte para um crescimento menor, mas sustentável. Concretamente, em 15 de Março de 2015, aquando da 3ª sessão da 12ª Assembleia Popular da China (APN), o primeiro-ministro Li Keqiang refere numa conferência de imprensa que “a economia chinesa entrou na fase da nova normalidade”. Xi Jinping, num discurso muito importante apresentado em 28 de Março de 2015 no Boao Forum for Asia Annual Conference 2015 (a replica asiática do World Economic Forum, realizado de 21 a 24 de Janeiro em Davos), caracteriza da seguinte forma este estádio: “Now, the Chinese economy has entered a state of new normal. It is shifting gear from high speed to medium-to-high speed growth, from an extensive model that emphasized scale and speed to a more intensive one emphasizing quality and efficiency, and from being driven by investment in production factors to being driven by innovation. China’s economy grew by 7.4% in 2014, with 7% increase in labor productivity and 4.8% decrease in energy intensity. The share of domestic consumption in GDProse, the services sector expanded at a faster pace, and the economy’s efficiency and quality continued to improve”1. E mais adiante quantifica o envolvimento chinês, afirmando“This new normal of the Chinese economy will continue to bring more opportunities of trade, growth, investment and cooperation for other countries in Asia and beyond. In the coming five years, China will import more than US$10 trillion of goods, Chinese investment abroad will exceed US$500 billion, and more than 500 million outbound visits will be made by Chinese tourists”. Análise dos indicadores De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano, um indicador para aferir o grau de desenvolvimento humano e social, a Rússia é a melhor posicionada em 55º, seguida do Brasil em 85º, figurando entre os piores a África do Sul em 121º e a Índia em 136º. A China coloca-se a meio da tabela (101º). Na realidade, o PIB (em PPP), o maior produto decurso de alguns anos), leva a que se verifique a necessidade de recurso às suas diversas divisas, ou ao dólar norte-americano, a referência para os mercados financeiros, como ocorre nos pagamentos de negócios de petróleo (fala-se de petrodólares). No plano político, desde logo sobressai a natureza dos regimes políticos, sendo três democracias e duas repúblicas de regime autoritário; e se a China é um actor global com uma projecção crescente, já a Rússia se tem destacado pela sua presente beligerância, mas há a ponderar outro aspecto que os caracteriza: a ‘vantagem’ de serem ambos membros do Conselho de Segurança da ONU, dando-lhes outra capacidade negocial. Ora, por outro lado, devemos ter em conta que as posições expressas nesse mesmo conselho pelos vários BRICS não são idênticas, como aconteceu a propósito da resolução relativa à Síria: a Índia e a África do Sul a favor, e a China e a Rússia a vetarem a resolução. Analisando sob a perspectiva da Governance, não sendo nenhum dos países abertamente revisionista, é apontado outro indicativo de falta de unidade de acção: o caso da eleição para o FMI (de Christine Lagarde), não conseguindo entender-se para um candidato comum. Passando à ordem social e demográfica, veja-se que a população (força de trabalho activa) tem e terá a médio e longo prazo um impacto diferente: a Rússia e a China com graus de envelhecimento que a Índia não acompanhará. Este factor tem um abalo muito significativo a nível de competição internacional, ou da criação de diásporas no mundo, na divisão internacional de trabalho (a China na manufactura e a Índia campeã dos serviços, por exemplo via call centres de multinacionais). Pontos de convergência entre o BRICS4h> Abordando agora os aspectos que podem aproximar estes países e auxiliar a implementação de uma acção de colectivo, com impacto regional ou global, podemos destacar o facto de até agora não serem abertamente revisionistas (nenhum propondo a alteração da ordem internacional), afirmando-se pela manutenção do statu quo (dependendo todos os outros, de uma ou outra forma, da China). Afirmam-se mais como actores de um forum de reflexão e decisão sobre a ordem política internacional e sobre o sistema financeiro, numa união de esforços, mas acima de tudo uma forma de projectarem a sua posição, de se fazerem ouvir, dado que ganhando maior peso e capacidade de pressão poderão imprimir a sua vontade, instigando um espírito de união (relativa), que a crise financeira terá ajudado a fortalecer. Na política interna serão eventualmente mais susceptíveis de enveredar por formas nacionalistas de comportamento, associadas a um proteccionismo comercial ou financeiro. Uma característica comum é a adopção de política sistemática de acumulação de reservas, atitude defensiva e de precaução desde a crise asiática4 de 1997, uma prática que ganhou maior expressão entre os países deste continente. Esta é uma medida com impacto nas suas balanças de pagamentos e na sua autonomia financeira em relação ao exterior, com efeitos muito positivos na capacidade de afirmação económica e financeira e autêntico ‘guarda-chuva’ ajudando a solucionar eventuais crises futuras (veja-se o caso presente da Rússia). Também a China está a implementar reservas externas num modelo global, mas justificada parcialmente, em torno da insuficiência mundial de infraestruturas. A Índia poderá eventualmente ser a excepção, ao querer assumir-se como uma alternativa regional à China e tendo em conta a recente e aparente (com a Índia é preciso esperar para ver) assunção de uma parceria estratégica mais realista e profunda com os EUA; este factor poderá passar a reflectir um ponto de divergência futuro. Importante também é o “factor liberdade”, em que as três democracias (do IBAS) se destacam pela positiva com uma pontuação de 2, quando a China e Rússia têm valores muito elevados: 6,5 e 6. A medida da desigualdade (distribuição de rendimento) é-nos facultada pelo índice de Gini2, muito elevado na África do Sul, com 0,65, melhor o da Índia nos 0,34, Rússia com 0,39, e Brasil e China ainda com muito espaço para percorrerem, com 0,52 e 0,47 respectivamente. Finalmente as Reservas Externas cujo caudal foi alimentado pela China até Junho de 2014 (um pico de 3,99 mil milhões de dólares), estacionando actualmente nos 3,887 mil milhões. Representam seis vezes as da Rússia, e cerca de dez vezes as do Brasil e da Índia. Este é um indicador de liquidez e de capacidade de financiamento de orçamentos expansionistas. Reservas que a China orienta para operações de M&A (aquisições e fusões) pelo mundo fora, contrabalançando a perda de dinamismo do seu modelo de desenvolvimento e rentabilizando assim esses recursos acumulados, ao mesmo tempo que vai gradualmente descolando da sua dependência do dólar norte-americano e perfilhando um outro importante desiderato, ainda longínquo: a projecção do yuan enquanto moeda de referência mundial. O FMI tornou públicas projecções de crescimento do BRICS (2015/2016), que vêm fundamentar os receios de queda do crescimento da China (6,8/6,3%), comprovam a pujança da Índia (7,5/7,5%), o crescimento fraco da África do Sul (2/2,1%), o crescimento inócuo do Brasil (-1%/1%) (com fragilidades infraestruturais, corrupção do caso Petrobras e contestação social massiva) e finalmente uma Rússia fortemente abalada pelas sanções (crise ucraniana e tomada da Crimeia, a par da forte quebra dos preços do petróleo), com crescimento negativo (-3,8/1,1%). Em síntese, assiste-se, a) Brasil, com problemas políticos e sociais (dossiê corrupção), infraestruturas deficitárias, perdas de receitas de petróleo; b) Rússia, com dificuldades advindas da quebra de preços de petróleo e devido às sanções aplicadas (ocupação da Crimeia), aliando-se tacticamente à China (v. g. nas áreas energéticas), demografia envelhecida a suscitar receios futuros; c) Índia, com crescimento mais sustentado e expressivo, mas com uma vasta população rural e pobreza endémica, com muitas e importantes reformas por fazer, (dossiê fiscal por exemplo); d) China, em mudança de modelo (de baseado nas exportações para um assente no consumo), e anterior crescimento rápido assente na voragem do imobiliário e das bolsas de valores, com problemas de equilíbrio entre a liberalização de sistemas (financeiro), e a centralização do poder; e) África do Sul, relevante no seu continente, mas com xenophobia nas relações laborais, (mineiros imigrantes), fragilidades infraestruturais, necessidade de reformas estruturantes. Será fácil o entendimento entre estes países tão diferentes? Pontos de divergência entre o BRICS Na ordem económica e financeira sobressai uma grande disparidade com tudo o que implica a sua projecção no mundo, capacidade de influenciar decisões de investimento ou de outra natureza económica e financeira, facilmente perceptível quando a China é quatro vezes superior ao Brasil, Índia e Rússia e vinte vezes à África do Sul. Acresce um manifesto diferente grau de desenvolvimento, de vontade ou de tendência reformista, assim como de modernização do sistema financeiro. Nos recursos naturais e energéticos, refira-se a diferença de realidades para os diversos países: existência de recursos e sua exportação, característica da África do Sul, do Brasil e da Rússia. A Rússia, como um dos principais produtores energéticos, tem o seu orçamento muito dependente da venda do petróleo e gás, sendo muito afectada por variações, no sentido da baixa, do preço do petróleo, estando no outro lado da balança a China e a Índia (importadores de recursos naturais e energia). A China aproveitou a actual pressão sobre os preços energéticos para repor as suas reservas estratégicas. No plano financeiro e monetário, a inexistência de uma moeda de referência de um dos seus membros, (estando a China a tentar internacionalizar o yuan3, o que só se verificará em pleno no decurso de alguns anos), leva a que se verifique a necessidade de recurso às suas diversas divisas, ou ao dólar norte-americano, a referência para os mercados financeiros, como ocorre nos pagamentos de negócios de petróleo (fala-se de petrodólares). No plano político, desde logo sobressai a natureza dos regimes políticos, sendo três democracias e duas repúblicas de regime autoritário; e se a China é um actor global com uma projecção crescente, já a Rússia se tem destacado pela sua presente beligerância, mas há a ponderar outro aspecto que os caracteriza: a ‘vantagem’ de serem ambos membros do Conselho de Segurança da ONU, dando-lhes outra capacidade negocial. Ora, por outro lado, devemos ter em conta que as posições expressas nesse mesmo conselho pelos vários BRICS não são idênticas, como aconteceu a propósito da resolução relativa à Síria: a Índia e a África do Sul a favor, e a China e a Rússia a vetarem a resolução. Analisando sob a perspectiva da Governance, não sendo nenhum dos países abertamente revisionista, é apontado outro indicativo de falta de unidade de acção: o caso da eleição para o FMI (de Christine Lagarde), não conseguindo entender-se para um candidato comum. Passando à ordem social e demográfica, veja-se que a população (força de trabalho activa) tem e terá a médio e longo prazo um impacto diferente: a Rússia e a China com graus de envelhecimento que a Índia não acompanhará. Este factor tem um abalo muito significativo a nível de competição internacional, ou da criação de diásporas no mundo, na divisão internacional de trabalho (a China na manufactura e a Índia campeã dos serviços, por exemplo via call centres de multinacionais). Notas 1 Xi Jinping – Towards a Community of Common Destiny and A New Future for Asia (disponível em https://english.boaoforum.org/ hynew/19353.jhtml). 2 Quanto mais perto dos 0,5, menor desigualdade; quanto mais aproximado do 1, maior grau de desigualdade. 3 O acordo de fornecimento de gás e petróleo que a Rússia (Gazprom) e a China (China National Petroleum Corporation) selaram em Maio de 2014, no montante de 400 mil milhões de dólares, foi fechado em yuans e rublos, quando normalmente estes contratos de energia são firmados em dólares, o que é visto como uma parte da estratégia de descolagem da divisa americana pois, quando assim acontece, obrigam-se os consumidores de petróleo a pagarem nesta moeda, expandindo a sua utilização. 4 A China por ter tomado uma atitude – política monetária – mais radical, conseguiu evitar o efeitos das fortes pressões especulativas que outros países asiáticos sofreram, caso da Tailândia e Indonésia, por exemplo.
Sérgio de Almeida Correia VozesUma triste ficção [dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m economista estaria em óptima posição para explicar ao leitor o que é a moeda. De uma nação, de um estado, de uma simples região. Não sendo economista, e escrevendo para todos, terei de me socorrer daquilo que aprendi ao longo da vida, procurando numa linguagem desprovida de tecnicismos e enfeites semânticos transmitir aos leitores o que quero levar à sua reflexão. A moeda é para a generalidade das pessoas aquilo que tem um valor pecuniário, aquilo que numa economia serve para comprar bens e serviços. Unidade de conta, reserva de valor, meio de troca. Em regra, são estas as funções da moeda. Mas se estivermos a falar de Macau, de uma região administrativa especial de um Estado soberano, estaremos também a falar de algo mais. Estaremos a falar de um símbolo da sua identidade, de uma marca da diferença, de um valor seguro, fiável e com a capacidade de perdurar para além dos homens, constituindo valor, criando riqueza, sendo motivo de orgulho das suas gentes. Quando em 1987 foi assinada a Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau, ficou a contar desse texto no seu ponto 2.8 que a Pataca – está grafado em maiúscula – continuaria a ter curso legal na RAEM. No Anexo I, relativamente ao esclarecimentos prestados pela RPC, ficou a constar que “[c]omo moeda com curso legal na Região Administrativa Especial de Macau, a Pataca de Macau continuará em circulação, mantendo-se a sua livre convertibilidade”. Quanto à segunda parte do que ficou acordado sabe-se que, segundo informa a AMCM, para a convertibilidade das notas de Macau emitidas em patacas pelo Banco da China e o BNU, “os dois bancos emissores devem entregar na AMCM um montante equivalente em dólares de Hong Kong, à taxa cambial de HKD1 = MOP1.03”. Quanto à primeira parte, agora que estamos a mais de 30 anos de 2049, é que tenho dúvidas que a pataca continue em circulação nas condições que os seus cidadãos podem esperar. E manifesto as minhas dúvidas porque embora os que aqui trabalham recebam os seus proventos, em regra, na moeda local, sei que hoje em dia se contam pelos dedos de uma mão os poucos contratos, dos milhões que anualmente são celebrados em Macau nas mais diversas actividades, cujo valor é fixado na moeda local. Ou em que sendo fixados em dólares de Hong Kong apresentam a correspondência em patacas. É verdade que se continua a pagar as contas nos restaurantes em Patacas, aqui grafando-se em maiúscula o que consta dos textos legais e nos sai do bolso, bem como são notas nessa moeda que servem para pagar as compras nos mercados, cafés e lojas de sopas de fitas, havendo ainda alguns cartões de débito e de crédito emitidos nessa moeda. Mas o facto de esses valores ainda assim poderem ser pagos na moeda da terra é cada vez mais uma raridade. Se formos a ver bem as coisas, aquilo que os cidadãos de Macau pagam em patacas não é mais do que os preços em dólares de Hong Kong convertidos na moeda local. Pode parecer confuso mas basta olhar para o que se passa no mercado imobiliário, ver as montras das imobiliárias, para perceber do que falo. Quando no espaço de dois ou três dias se verifica que o preço do leite, dos iogurtes, das batatas ou das azeitonas aumenta e alguém questiona a razão para a variação de preço, muitas vezes em valores bem superiores àquilo que são os dados oficiais da inflação, a explicação é sempre a de que os produtos são importados e pagos em dólares de Hong Kong a quem os vende, apesar de não raro quem os vende não estar em Hong Kong, nem na China, mas aqui em Macau. Quanto a isso parece existir uma espécie de clister conformista que a tradição local nos impele a acatar sem ondas, fazendo com que a explicação que sorridentemente nos enfiam deslize sem dor nem mais questões, numa espécie de bênção pela satisfação de necessidades básicas. O problema é quando alguns desses clisteres assumem proporções “bíblicas”. Isto é, quando se compara o valor pago por esse serviço em dólares de Hong Kong com a crescente falta de patacas nos bolsos para perfazer o preço pedido. Na verdade, a convertibilidade da pataca e a crescente insuficiência de moeda local nos bolsos dos cidadãos é um problema que não é sentido pela elite política, empresarial, administrativa e, já agora, criminal da RAEM, isto é, aquela andou a receber “investimentos” em salas VIP, como se de bancos autorizados se tratassem, e que mercê da sua argúcia, perspicácia e capacidade reprodutiva conseguiu alterar o sentido do texto da Declaração Conjunta a que acima aludia de maneira a que a moeda com curso legal em Macau se tenha tornado o dólar de Hong Kong. É evidente que o problema não nasceu ontem, tendo contribuído sobremaneira para a actual situação uma decisão judicial proferida em plena Administração portuguesa, no tempo daquele senhor que passou por uma data de portos a encher contentores e a instituir fundações dos mais variados tipos sem se preocupar com o factor cambial. Nessa altura houve um tribunal superior que veio dizer que o dólar de Hong Kong era uma moeda com curso “quase-legal” em Macau e que perante a exigência do Código Civil então vigente de que os contratos de arrendamento cujo valor fosse superior a oitocentas patacas fossem reduzidos a escrito sob pena de nulidade, veio esclarecer que para esse efeito oitocentos dólares de Hong Kong eram exactamente o mesmo que oitocentas patacas. Graças a esse “douto” aresto, que como cidadão de Macau me envergonhou, aquilo que era nulo tornou-se válido, a cantina dos almoços continuou a funcionar, embora entretanto já encerrada, e os cidadãos pagam hoje o custo social e económico dessa equiparação forçada. E isso é de tal forma escandaloso que quem queira nesta altura comprar um automóvel, arrendar uma fracção para habitação ou comércio ou um lugar de estacionamento terá de negociar os preços em dólares de Hong Kong e celebrar os contratos nesta moeda. E as patacas, além de se terem tornado um bem raro e escasso para pagar as contas, pura e simplesmente tornaram-se numa ficção. Uma ficção com custos elevados e indignos. Neste momento, a pataca só serve para pagar o salário do Chefe do Executivo, o dos seus secretários e o do pessoal que exerça funções públicas e assalariadas na actividade privada. E impostos e custas judiciais. Quanto ao mais não existe. Qualquer empresa do sector automóvel ou empresa de mediação imobiliária anuncia alegremente os seus preços em dólares de Hong Kong como se fossem patacas, e até quando o vendedor ou senhorio é de Macau, recebe o seu salário em patacas e paga as contas do supermercado na moeda local, a renda da casa onde o seu inquilino vive ou a do lugar de estacionamento que arrenda ao vizinho é paga em dólares de Hong Kong. Nos casinos contam-se pelos dedos as máquinas que há em patacas, havendo mesmo algumas salas em que os residentes de Macau que queiram e possam jogar na sua terra, para o poderem fazer têm primeiro de trocar patacas por dólares de Hong Kong num balcão da concessionária ou subconcessionária, como se estivessem de férias em Las Vegas e essa fosse efectivamente a moeda de Macau, a única com curso legal. Uma vergonha. Bem sei que estas são questões menores para quem tudo recebe, com excepção das ajudas de custo e do seu pocket money, em dólares de Hong Kong ou noutra moeda qualquer. Quem recebe as suas “comissões” em dólares de Hong Kong ou USD, contando para isso com a benevolência dos legisladores e a insensibilidade das autoridades, preocupa-se pouco com isto. Não lhe toca, passa-lhe ao lado. Mas para os outros, para os filipinos das limpezas, para o segurança do tribunal, para o lavador de carros que veio do outro lado das Portas do Cerco para ganhar a vida em Macau e para todos os que diariamente são obrigados a converter patacas em dólares de Hong Kong para pagar a renda do quarto ou do apartamento, o desprezo dos poderes públicos perante esta realidade cala fundo. E dói. Para o cidadão de Macau que recebe o seu salário em patacas é incompreensível que tudo seja negociado em dólares de Hong Kong. Que esta seja a verdadeira moeda de Macau. O facto de existir uma taxa fixa e uma indexação permanente não retira a esta realidade o carácter aviltante de que este facto se reveste. A actual situação da pataca, para além de facilitar a lavagem de dinheiro, o crime económico e a corrupção, só beneficia os especuladores. E os que sendo residentes noutras regiões recebem os seus pagamentos em dólares de Hong Kong, sendo poupados aos custos de conversão e transferência, podendo continuar a arrecadar sem custos para si e em prejuízo dos cidadãos locais e dos cofres da RAEM. Se a pataca é hoje uma ficção, se se entende que sempre foi, se não é um símbolo da autonomia de Macau e da sua identidade, se não se quer que seja, se não serve os interesses da RAEM, então o Governo local deverá acabar com a actual fantochada e dizê-lo, sendo nisso secundado pela própria RPC. Porque a actual realidade é a todos os títulos inaceitável e o Governo da RAEM deveria ser o primeiro a encontrar uma solução que retirasse a Pataca do ghetto em que se encontra. Uma solução que lhe restituísse a dignidade e protegesse os cidadãos de Macau dos abusos dos que aqui especulam e traficam noutras moedas. A pataca é um símbolo da cidadania de Macau e isso vê-se nos cheques com que anualmente se tem comprado a sua submissão, o seu silêncio, a sua passividade. E é por ser paga em patacas que a sua cidadania deve ser respeitada. A cidadania de Macau não é convertível, nem tem curso quase-legal em qualquer outra moeda. Por isso é que para qualquer cidadão que vive do seu trabalho dez ou vinte mil patacas não são o mesmo que dez ou vinte mil dólares de Hong Kong. Nunca o foram. Qualquer ladrão, até o mais pobre, sabe isso na hora de estender as mãos para as lavar.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesFraude Académica [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]esta coluna, como devem estar lembrados, já tive ocasião de divulgar alguns casos de exames fraudulentos. Hoje, vou partilhar com o leitor mais algumas destas histórias. No passado dia 27 de Outubro, o website “chinapress.com” fez saber que a empresa Goldman Sachs tinha despedido 20 empregados chineses por terem “copiado no exame de contabilidade”. A maior parte trabalhava nas sucursais sediadas em Nova Iorque e Londres. O artigo adiantava ainda que outras 10 pessoas tinham sido afastadas da filial nova-iorquina da empresa JP Morgan Chase & Co. (JP Morgan) por alegada fraude no exame de matemática. O porta-voz da JP Morgan declarou que este tipo de comportamento é inaceitável e que a empresa encara estas situações com grande seriedade. É fácil depreender que estas pessoas não puderam pedir à empresa que lhes pagasse a viagem de regresso à China. É óbvio que fazer “batota” nos exames não é novidade. Mas, de alguma forma, as declarações do porta-voz da JP Morgan não deixam de ser surpreendentes. “A fraude nos exames de admissão à empresa é prática corrente. Mas torna-se notícia quando o examinando é tonto ao ponto de se deixar apanhar.” Se fizermos uma busca rápida sobre esta matéria, podemos encontrar um artigo, datado de 8 de Julho e divulgado pelo website “lx.huanqiu.com”, que nos conta uma situação ocorrida na Índia. No seguimento da notícia, 40 pessoas morreram sem razão aparente. Uma das vítimas era jornalista. Na foto que ilustra o artigo, vemos imensas pessoas a treparem pelas varandas de um edifício. Eram pais dos alunos que estavam a ser examinados no interior. O propósito dos “alpinistas” era passar as respostas aos filhos através das janelas. Mas voltemos à China. O website “edu.qq.com”, publicou uma notícia há cerca de duas semanas, onde relatava que, no dia 26 de Dezembro, alguns candidatos às provas de inglês do “Graduate Student Entrance Examination”, tinham informado o governo sobre uma fuga das respostas dos exames. O departamento da Educação investigou o assunto de imediato. Mas antes de prosseguirmos, é preciso salientar que o Código Penal chinês recebeu uma emenda há cerca de dois meses. A nova versão entrou em vigor a 1 de Novembro de 2015 e estipula que a fraude nos exames é considerada crime. Quem vender as respostas dos exames é condenado a três anos de prisão. Mas se a situação for considerada muito grave, a pena pode ir até aos sete anos. E é aqui que se levanta uma questão. Se a venda das soluções dos exames é considerada crime, porque é que ainda se mantém? Penso que o artigo publicado no website “chinesetoday.com”, no último dia de 2015, responde claramente a esta pergunta. Pelo artigo ficamos a saber que, em 2012, tinha havido fuga nos exames de política, matemática, e medicina do “Graduate Student Entrance Examination”. O departamento de Educação investigou o caso e ficou apurado que os responsáveis eram funcionários governamentais. Para além disso, Qi Hang, funcionário do colégio particular “Qi Hang Jiao Yu Ji Tuan ChangSha Fen Xiao” foi também acusado. No entanto, Qi Hang não parece ter sido muito afectado. Tornou-se até bastante popular entre os alunos. Em alguns materiais promocionais podíamos ler, “Fugas de Qi Hang, podes crer.” Continuando a nossa leitura, ficamos a saber que o colégio também não foi muito incomodado. Antes pelo contrário, passou a informar os estudantes que os seus exames eram dignos de confiança. Do ponto de vista do estudante, mais vale gastar algum dinheiro para comprar as respostas do que trabalhar arduamente. É uma forma simples e eficaz de ter boas notas. Dado que o mercado funciona desta forma, a Lei não parece ser suficiente para travar a compra e venda de perguntas e respostas dos exames. Para reduzir a fraude nos exames, a educação deve ter um papel central. Através da educação, as pessoas têm de perceber que estes comportamentos são desonestos. Se as mentalidades não forem alteradas, independentemente das consequências previstas na Lei, a sociedade não evolui. É preciso ter presente, que parte das normas legais são medidas para avaliar o comportamento humano. Se o seu comportamento estiver aquém dos requisitos legais, você deverá ser considerado culpado. Mas não podemos concluir que a Lei exclui o crime. Por exemplo, o homicídio é crime. Mas, no entanto, continua a ser praticado. A Lei pode facultar o padrão de comportamento desejável, mas não pode impedir o delito. Para travar a infracção, é necessário sensibilizar as pessoas e chamá-las à razão. A Educação pode ensinar a distinguir o certo do errado, mas leva tempo. * Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau
André Ritchie Sorrindo Sempre VozesNatal (não) Macaense [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]acau, 1 de Janeiro de 2016: em tempos passados hoje seria indubitavelmente um dia de cérebro embrumado resultante de uma violenta noite bem regada festejando a entrada no novo ano. Mas para mim há muito que a passagem de ano deixou de ser assim, tendo-se transformado num acontecimento banal, um fenómeno de calendário e pouco mais, sendo por isso incapaz de olhar para a coisa como um evento propriamente dito, muito menos algo passível de ser festejado. Acordamos no dia seguinte com a sensação de que está tudo diferente por se tratar de um ano novo? Não. Quanto ao Natal: No passado cheguei a viver o Natal com alguma intensidade. Não apenas por ser miúdo, por causa das festas e das prendas, ou porque ainda acreditava no Pai Natal. Nada disso e muito pelo contrário até. O período de Natal era das poucas alturas do ano em que o meu irmão e eu tínhamos forçosamente de andar rigorosamente bem vestidos, no sentido formal e clássico do conceito. Em casa as celebrações começavam com o jantar de Consoada no dia 24 de Dezembro. Regra geral em tantos anos nunca falhou a Sopa Lacassá, a Capela, o Tacho, o Peixe no Forno e o Camarão Abri-costa. Foram estes os pratos preferidos durante muitos anos. Chegava-se ao fim do jantar com goma nos lábios – o Tacho genuíno deixa sempre goma nos lábios – e ainda uma mesa bem artilhada de iguarias macaenses: Genete, Farte, Alua, Ladu, Coscorão, Cake e mais, muito mais. Habitualmente era já altura de nos prepararmos para a missa do Galo. Na igreja não havia as multidões que há hoje nem os curiosos que, chan yit lau (*), aparecem lá munidos de gorros de Pai Natal com luzes. A igreja ainda era uma igreja e podia-se entrar com calma, serenidade e paz. No fim da missa ficava-se no adro, cumprimentando os presentes, desejando bom Natal e boas entradas. Regressávamos a casa onde nos aguardava uma canja de galinha. E logo a seguir era xarope, chichi, cama, pois acordava-se com um dia longo pela frente. O nosso dia de Natal começava bem cedo porque logo de manhã saíamos de casa para visitar, um a um, os familiares mais seniores: avós, tios-avós e ainda “outros legítimos superiores” (**), uma tradição que entre nós, macaenses, se entendeu chamar por “via-sacra”. (***) Eram muitas as visitas pois falamos aqui de uma família numerosa. O que vale é que era um Macau sem os problemas de trânsito actuais. Vivíamos na Penha e ainda antes de entrarmos no carro, logo à porta de casa, começávamos por visitar umas tias que moravam ali ao lado. Continuava-se depois pela Barra, Chunambeiro, Rua Pedro Nolasco da Silva, Rua Nova à Guia, Rua D. Belchior Carneiro, não se excluindo pelo meio eventuais paragens em lares de idosos ou no hospital onde poderíamos ter de visitar também alguém. A nossa via-sacra terminava habitualmente no Toi San. Portanto, atravessávamos a cidade de uma ponta à outra, num carro que saía de casa cheio de prendas e que, frequentemente, regressava ainda mais carregado. Os nossos familiares tinham sempre as casas bem ornamentadas e preparadas para receber as visitas. Dava-se as boas festas e fazia-se sala, convivia-se amenamente. Brindava-se à saúde de todos com pequenos cálices de vinho do Porto e a seguir bebia-se um chá quente enquanto se petiscava. O meu irmão e eu não corríamos de um lado para o outro como hoje se vê vulgarmente entre a criançada. Não que alguém nos tenha expressamente dito que não nos era permitido, simplesmente com todo aquele ambiente formal, ma non troppo, sabíamos que não era suposto. Recebíamos as prendas, que alguém nos vinha trazer da árvore de Natal, agradecíamos, mas não abríamos logo. E permanecíamos sentados a conversar com os adultos. Não era frete nem nunca me lembro de ter comentado com alguém de que aquilo tudo era aborrecido. Era o que era e fazia parte do Natal. Convivia-se com cortesia, de forma polida, e foi também assim que cresci, aprendi a socializar e a ser adulto. E numa altura em que não existia nem internet nem Facebook, era também uma oportunidade para captar novidades dos nossos parentes na diáspora. Não era, por isso, inconsequente. O Natal foi assim durante muitos anos, passou a ser uma rotina. Não sou muito de repetições, mas nessas coisas há algo de romântico quando se faz exactamente o mesmo de ano para ano. A familiaridade do cenário revisitado dá-nos conforto e ajuda a solidificar as recordações. Com o passar do tempo e por diversas razões, deixámos de fazer via-sacra no Natal. Os encontros de Natal com os nossos familiares passaram a ser diferentes e, nesse novo contexto em que uns deixaram este mundo e outros cresceram e multiplicaram-se, para meu desagrado comecei a constatar que se deixou de conviver da mesma forma – não sei bem porquê. Trata-se do reconhecimento de um facto e também de uma crítica aberta àqueles que, por algum motivo que desconheço, até parece que não foram educados pelos mesmos que no passado nos direccionaram a comportarmo-nos no Natal com urbanidade, sem histeria nem algazarra. Dói-me o coração quando, na qualidade de macaense, observo a conduta de alguns e verifico que, no espaço de uma geração, tanto se perdeu da nossa identidade. Sei que os tempos são outros e não fará muito sentido exigir-se o formalismo de outrora nos dias actuais. Mas que haja algum equilíbrio e bom senso – afinal, somos macaenses e ainda há não muito tempo atrás chegámos a passar o Natal juntos num ambiente um pouco diferente, um pouco mais polido. Não é elitismo, tradicionalismo, conservadorismo ou qualquer outro tipo de “ismo” barato. É ter consciência da riqueza da nossa identidade e não aceitar que, de repente, se passe a celebrar essa importante festividade de forma inadequada, a conviver aos berros, com empanturramentos e encharcamentos de comida e álcool despropositados. Passei por isso a encarar o Natal com mixed feelings. Porque infelizmente hoje associo todo o período do Natal e passagem de ano a excessos: excesso de festas, excesso de prendas, excesso de lucky-draws, excesso de ambiente carnavalesco, excesso de comida, excesso de álcool, excesso de barulho, excesso de má-educação, excesso de mensagens superficiais e inconsequentes no Facebook, SMS, Whatsapp, WeChat, enfim, excesso de excessos. E todos esses excessos aborrecem-me. Abomino o discurso “no meu tempo era melhor”, mas tenho sinceramente saudades do Natal do meu tempo, da via-sacra, dos brindes com vinho do Porto, de ser obrigado a andar bem vestido, de fazer sala, de todo aquele formalismo. Porque as mudanças só fazem sentido quando se ganha alguma coisa no processo. E aqui, caríssimo leitor, posso assegurar que não se ganhou rigorosamente nada. Só se perdeu. Em tempos um amigo meu afirmou que o Natal passou a ser de tal forma incompreensível que devia ser como o mundial de futebol: apenas de quatro em quatro anos. Respondi com um encolher de ombros. Mas confesso que quanto mais penso no assunto, mais me parece fazer sentido. Só não deixo que essa ideia ganhe ímpeto porque felizmente sou ainda capaz de ver o que para mim passou a ser o lado positivo e a essência do Natal: um período de descanso que me permite estar com a família. Por outro lado, sendo macaense e pai, tenho consciência de que cabe a mim fazer com que os meus filhos cresçam celebrando o Natal com a devida importância e de forma adequada à nossa herança cultural. E sem excessos. Para que do Natal guardem apenas boas recordações. Sorrindo Sempre Um dia, no prédio onde moro, entrei no elevador com o meu filho que trazia com ele uma vassoura para pôr no lixo. No elevador estavam duas mulheres e um homem. E como o pau da vassoura era maior que o meu filho de 5 anos, a coisa cambaleou um pouco dentro do elevador. “Vê lá! Não me espetes com o pau entre as pernas!”, ouviu-se em português, saído da boca de uma das mulheres. Eram os três portugueses, portanto. Aturei muito disso em Portugal. Ter de aturar o mesmo em Macau custa ainda mais. Respirei fundo e disse ao meu filho, alto e bom som, mas num tom muito calmo e em português: “Diogo, tem cuidado com a vassoura.” Ficaram os três com cara de chupâ ovo. Sei que devem ter pensado que não temos cara de quem fala português. E sei também que quem pensa assim em pleno século XXI, na RAEM, 15 anos após a transferência, tem de ser necessariamente mentalmente estreito. Sorrindo sempre. (*) 趁熱鬧 : expressão típica em cantonense para aqueles que se juntam a multidões apenas com o intuito de não ficar a perder o que quer que seja, mas sem saber ao certo o que se está a passar. (**) Do Quarto Mandamento da Lei de Deus. (***) Leia-se “viassácra”, sem acento tónico na palavra “via”.
Isabel Castro VozesLivr(o)e [dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Aprendi a ler muito cedo, porque quis. Na altura não tinha noção de que saber ler era meio caminho andado para o combate ao tédio, porque desconhecia a palavra. Também não sabia o significado de solidão, filha não única mas sem outras crianças em casa. Com os anos, os livros passaram a ser companhia constante, vício, virtude também. Inundavam as tardes abafadas e intermináveis de Verão. Apagavam as noites de insónia. Os livros. Só mais tarde, muito mais tarde, percebi a libertação que me trouxe o acto da aprendizagem da leitura. Ler liberta. Ler é poder ir a todos os lados, conhecer todas as pessoas, incluindo aquelas que nunca vimos, que falam línguas que não conhecemos. Ler é prepararmo-nos para o que o mundo tem de diferente. Ler é liberdade. Às tantas é esta liberdade toda que faz com que goste que a minha filha goste de letras, apesar de ainda não ter idade para saber ler. Gosto que ela goste de livros, que me roube os livros das estantes e brinque com eles, que goste dos livros dela. Quero que possa ler tudo, que todos os livros do mundo estejam ao seu alcance. A minha mãe viveu o tempo em que havia leituras proibidas. A mim foram-me dadas toda as letras que consegui apanhar. Não conheço o teor dos livros que se vendem que nem ginjas em Hong Kong, e em Macau também, e que são proibidos na China. Os livros que, ao que dizem, são os responsáveis pelo desaparecimento de cinco pessoas que viviam num espaço que julgávamos ser de liberdade. Não sei se os livros são bons ou maus, se contam histórias verdadeiras ou falsas. Só sei que são livros. E que tudo o que se escreve – nos livros e nos jornais – é um exercício de liberdade. Uma liberdade que, quando viola os outros direitos que também temos, deve ser avaliada em sede própria. É assim que acontece nos sistemas que, julgávamos, se regem pelos princípios do Estado de direito. É estranha a história de Lee Bo. Como é estranho o desaparecimento dos quatro colegas, em Outubro passado, que não mereceu a atenção de ninguém: umas quantas linhas na imprensa local e uma silenciosa reacção da comunidade dita internacional e mais livre. É estranha toda a narrativa, tudo aquilo que nos têm dito. E os livros no meio de tudo isto. Ler. Ser livre. 2. Eles dizem que foi uma bomba a sério, os outros desconfiam. Vivemos – nós, aqui perto, e os outros, mais longe – com um problema sério que tem sido olimpicamente ignorado pela tal comunidade internacional defensora da liberdade, não da dos livros, mas de outra liberdade qualquer cujos contornos, frequentes vezes, não consigo perceber. Desde que vim para Macau que me comecei a interessar pelas questões coreanas. Afinal, é aqui ao lado. No início era a curiosidade que me despertava um regime que parou no tempo; depois, com os livros que fui lendo, a vontade de criar uma imagem de um país que dificilmente conhecerei de outra forma. A Coreia do Norte é a prova de que o mundo é uma coisa muito mal-amanhada e muito mal resolvida. É a prova também de que o xadrez da política internacional é um jogo sujo que não serve ninguém – nem os povos que alegadamente estão representados, nem os povos sem voz, aqueles que só merecem a preocupação de meia dúzia de organizações não-governamentais e de outros tantos observadores indignados. Pyongyang tem sido um problema conveniente que a China tem no quintal. Ontem lia especialistas na matéria, todos eles chineses, dizerem que dificilmente Pequim terá uma atitude interventiva em relação ao regime que tem vindo a proteger porque não só tem perdido influência na liderança sem tino de Kim Jong-un, como também passaria a contar com dilemas adicionais resultantes de uma eventual queda do regime. Mas, explicam também esses especialistas, um quintal com competências nucleares não serve a Pequim. E não serve ao resto do mundo. O mundo tem, aparentemente, mais um problema para resolver – um problema com que os norte-coreanos, esfomeados e perseguidos, vivem há 60 anos. Pois. Essa coisa da liberdade.
Leocardo VozesEi. Você aí! Não viu… [dropcap style=’circle’].[/dropcap]..um livreiro aí? Resolvi acabar a frase no início do texto senão o título ia ficar “de rabo cortado”, como no último texto publicado (cala-te boca). Mas até vem mesmo a calhar, já que falamos de rabos que após contados se apercebe da ausência de cinco deles, aparentemente vis propagadores do mal para uns (sabemos bem quem), e paladinos das liberdades e da democracia para outros (ainda a anunciar): [voz tenebrosa] livreeeeeeiroooos!!! Espera aí, livreiros??? Aqueles velhinhos corcundas com olhos de lupa que na indústria cinematográfica porno estão na categoria de “weirdo”? Essa agora, já não bastava que alguém com a pinta de Jason Chao fosse considerado “inimigo público número um” para certas sensibilidades, e temos “Os doze indomáveis livreiros”, que neste caso são cinco, e terão pavor de borboletas. “Talvez eu esteja agora aqui a brincar com coisas sérias” – pensarão alguns. “O vosso problema é mesmo esse: pensam, e deviam abster-se dessa inglória e frustrada ambição”, responderei eu, que nada aqui é a brincar, “leidizangentelmén”. Não há nada pior do que me abster de ler notícias, escrever qualquer coisa ou ler mensagens (fiquei dez dias sem abrir o Facebook, pasme-se) desde o Natal até aos reis, e a primeira notícia com que dou de frente com a tromba quando resurjo ao mundo, é esta, do tipo: “Olha, já foste, acabou-se o que era doce”. Deveras. Quem é que podia adivinhar uma coisa dessas, depois de ter andado tanto tempo a brincar com coisas sérias? Não vou aqui fazer nenhuma leitura política ou qualquer outra deste facto, mas o desaparecimento dos tais livreiros por razões com que nos fingimos surpreendidos são mais do tipo “andas-te a pedi-las”. E acreditem, depois de ter andado o último quartel do ano passado a deparar com pessoas A DESEJAR que acontecessem tragédias para depois usá-las para incriminar um certo grupo de outras pessoas, fiquei mais ou menos imune aos anti-corpos da “indignação”, aquela panaceia para todos os terrores mas administrada na forma de “vai lá tu que eu fico aqui a torcer por ti” – nem sei como é que ainda não se processou judicialmente certos personagens, que iam ao ponto de difundir notícias falsas com o óbvio intento de causar o pânico. Adiante que se faz tarde. Assim, mal soube da notícia, fui inquirir um colega meu, orgulhoso patriota que nem disfarça – antes ostenta – a sua simpatia e intimidade com o Partido (aquele, “o único”): “Olha lá, onde é que puseste os livreiros desaparecidos? Atão qué isto, uh?”. Ao que ele então retorquiu, identificando de imediato a minha intenção: “Claro… naturalmente!”, e sem mover um nervo em sobressalto, tal era a certeza de que “digam o que disserem, não têm nada contra nós desta vez”. Muito na linha oficial do Partido (o tal), que na forte possibilidade de se dizer do lado do bem e estar a afirmar a verdade, tem adoptado este estilo tão cândido de fada dos nenúfares. É até bem possível que alguém o tenha feito por eles, e sem que eles o encomendassem – ou aprovassem, até. Que sorte e azar ao mesmo tempo, vejam só. Talvez esta seja a versão em chinês do “quem anda à chuva, molha-se”, que no Ocidente tem paralelo numa certa elite que repete vezes sem conta anedotas sem graça para provocar quem dizem ser “maléfico”, mas que no fundo não é mais do que alguém como nós, e quem já andaram a encher até aos cabelos com provocações parvas. Imaginem só se certos tipos desatassem a molestar-vos a toda a hora, porque “ouviram dizer” que vocês faziam assim e eles assado, e “eles é que estão certos, e vocês são uns bárbaros”. Quanto tempo iam aguentar até ir ao focinho do primeiro que estivesse à vossa frente? Pensamento profundo, mas no fim fico com pena realmente dos livreiros-pessoas, e não dos livreiros-utensílios de arremesso político. Sabe-se lá onde estão, e se estão bem, e se não precisam de tomar de alguma medicação, ou se dormem em ambientes salúbres. Isso é que me preocupa. Falando como pessoa, é claro, para o resto estou nem aí. Vamos ver agora quem “vai à frente”, que a gente fica aqui a “dar a nossa poia moral”. Para reflectir em 2016, já que 2015 ficou marcado pela queda no ridículo daquilo a que chamam “luta pela liberdade”, com manifestações por tudo e por nada, e sempre com aqueles figurões já com mais que idade para ter juízo, ostentando fitas à volta da mona pedindo “fleedom”. Especialmente encantadora foi aquela greve de fome que se ficou pelo jantar do dia seguinte, aparentemente ao melhor estilo do antigos filmes “B” da antiga colónia britânica, com muito “Amelican style”. “You pay now”. Sayonara.
Fernando Eloy VozesCoisas que não compreendo [dropcap style=’circle’]À[/dropcap]medida que vamos ficando crescidinhos, tenho a sensação que em vez de percebermos mais vamos percebendo cada vez menos. Não sei se sente o mesmo mas comigo é o que se passa. Não vislumbro se é fruto de alguma condição somática ainda não diagnosticada o que, claro, me preocupa, por isso resolvi desabafar esperando que talvez você que agora lê esta minha confissão me possa dizer se estou, ou não, a perder o juízo. Ficam aqui um resumo das (muitas) coisas que não compreendo. Neste mundo e nos outros. Não compreendo porque o Chefe do Executivo da RAEM ainda vai pensar num plano para a diversificação económica de Macau quando isso já foi pedido por Wen Jiabao e por Hu Jintao. Não compreendo como se pode incrementar a diversificação económica em Macau e cortar os orçamentos dos departamentos do governo que, como se sabe, é o principal motor da economia local. Não compreendo o que o Governo de Macau entende por diversificação económica. Não compreendo como o governo de Macau só depois do anúncio das milhas marítimas vai pensar num plano para as águas territoriais. Terá sido uma genuína surpresa de Natal? Não compreendo a draconiana lei do fumo na cidade do lazer quando, ainda por cima, aparecem cada vez mais opções alternativas (e melhores) nos países vizinhos sem proibições cabotinas como esta. Não compreendo como a mesma cidade do lazer em vez de fechar ruas ao trânsito e de criar alternativas de transporte não poluente prefere aumentar os impostos sobre veículos, cavando mais divisão social e mantendo um mau ambiente. Não compreendo como Macau ainda não tem autocarros amigos do ambiente. Não compreendo porque há tantos autocarros parados com o motor ligado apenas para manter o motorista fresco à custa dos cidadãos que têm de levar com mais diesel pelas narinas acima. Não compreendo porque a cidade do lazer não tem equipas para investigar os veículos poluentes e os motoristas encalorados como tem para fiscalizar os bandidos dos fumadores. Não compreendo porque a zona nobre de Macau é dedicada ao estacionamento de autocarros. Não compreendo porque o plano pecuniário de Macau é atribuído de forma igualitária e não ponderada. Não compreenderei se o governo não disser o que vai fazer em termos de desenvolvimento económico e social com os 223 milhões que sobraram do apoio pecuniário. Não compreendo como Macau continua a fazer planos dia a dia e ainda não conseguiu imaginar uma cidade para o futuro. Não compreendo como o Chefe do Executivo da RAEM pode nomear para a AL indivíduos como Fong Chi Keong e não responder politicamente pelas barbaridades do sujeito. Não compreendo a plataforma Macaense para a China e os países de língua Portuguesa. Não compreendo como foi possível o canídromo ver a licença renovada. Não compreendo porque é a marijuana considerada medicamento nuns países e droga proibida noutros. Não compreendo a guerra contra a droga. Não compreendo a relação entre os escândalos bancários em Portugal e o número de arguidos. Não compreendo o acordo ortográfico. Não compreendo a presença de um futebolista num panteão. Não compreendo para que serve um Panteão. Não compreendo a quantidade de inglesismos utilizados no português de Portugal quando existem palavras no léxico luso para os substituir. Não compreendo o enorme “tempo de antena” que os média portugueses dão à política quando, no limite, isso faz com que as pessoas se enjoem da política. Não compreendo como Portugal tem telejornais a abrirem com notícias de futebol. Não compreendo porque os políticos portugueses mandam tantos bitaites sobre a bola mas quando devem intervir, como no caso dos direitos televisivos, ficam calados que nem ratos. Não compreendo para que servem as conferências de imprensa da bola se a conversa é sempre a mesma jogo após jogo, ano após ano. Não compreendo como se gasta tempo num telejornal em Portugal com a conferência de imprensa do bipolar presidente do Real Madrid a falar de treinadores de futebol. Não compreendo os benfiquistas. Mesmo. Não compreendo o número avassalador de medalhas que Cavaco já entregou. Não compreendo como ninguém se apercebe das incongruências do Marcelo Rebelo de Sousa e já todos lhe estendem a carpete para Belém. Não compreendo a paixão insensata pelo turismo em Portugal. Não compreendo como antes o nosso dinheiro tinha correspondência directa com ouro e agora não. Nem de longe. Não compreendo como a NATO ainda não puxou as orelhas à Turquia. No mínimo. Não compreendo como a Comunidade Europeia tolera no seu seio governos como o húngaro ou o polaco sem lhes puxar as orelhas. No mínimo. Não compreendo a incapacidade logística e organizativa da Europa para lidar com a crise de refugiados. Não compreendo como ninguém debate os mapas desenhados a régua e esquadro pelas potências coloniais quando é claro que grande parte dos problemas de África e do Médio Oriente residem neles. Não compreendo como o mundo actual produz que chegue e tem condições técnicas e humanas para cuidar de todos e continuamos em guerra e com tantos milhões a passarem fome e sem condições dignas para existirem. Não compreendo porque os detentores do capital tudo fazem para aumentar a desigualdade social quando, a montante, desigualdade crescente implica problemas de rentabilização do capital. Não compreendo como existem dirigentes de países que se eternizam no poder e o mundo tolera. Para além do Alberto João. Não compreendo como o Brasil continua a não ser capaz de conter a destruição da Amazónia e ainda não teve qualquer tipo de sanção, ou ameaça de perder a soberania do território a favor das Nações Unidas (esta figura legal se não existe, não compreendo a sua inexistência). Não compreendo como ninguém leva a sério os líderes sul-americanos que clamam pela dívida europeia sobre as riquezas roubadas durante a colonização, no mínimo como garantia de perdão das dívidas soberanas. Não compreendo porque a China pretende mais território. Não compreendo porque os países asiáticos, de uma forma geral, não atribuem a nacionalidade a estrangeiros nem a nados no próprio país que não sejam da mesma etnia. Não compreendo porque o mapa-mundi do Mercator continua a ser utilizado como “o mapa” se já toda a gente percebeu que está grosseiramente errado nas proporções. Não compreendo como se permitem indústrias privadas de armamento sabendo que o fito de qualquer indústria é expandir negócio. Não compreendo como a guerra pode ser privatizada. Não compreendo como depois do que os judeus passaram os israelitas façam agora parecido aos palestinianos. Não compreendo como ainda nos dividimos por religiões e dentro das próprias religiões. Não compreendo como a Arábia Saudita preside à Comissão dos Direitos Humanos da ONU. Não compreendo as pessoas que concordam com o Donald Trump. Não compreendo o que Donald Trump pretende dizer com “Make America Great Again”. Está a falar de que período? Da lei seca? Da Colonização? Da Guerra-civil? Do Apartheid? Do “Macartismo”? Do assassinato de Kennedy? Está a falar do quê, exactamente? Não compreendo como um país tão grande como os EUA precisa de socorrer-se de herdeiros políticos (Bushes, Clintons, Flinstones…) na corrida à presidência. Não compreendo como ninguém foi punido pelo escândalo das financeiro dos fundos imobiliários de Wall Street. Antes pelo contrário. Não compreendo como o Federal Reserve Bank pode imprimir notas como se fossem panfletos de massagens em Macau. Não compreendo os conservadores. Não compreendo porque os americanos se referem a “afro-americans”, “native americans”, “italian-americans”, “irish-americans”, “asian-americans” e por aí fora. Fico sem saber quem são os americanos no meio de tudo isso. Não compreendo os americanos de uma forma geral. Não compreendo como alguém possa pensar que negócios como a Uber são o futuro se apenas promovem emprego precário e sem qualquer tipo de apoio social. Não compreendo como os indianos ainda não perceberam que grande parte das violações provêm de uma sociedade sexualmente reprimida. Não compreendo porque o sexo faz tanta confusão a tanta gente. Não compreendo como se pode ilegalizar a prostituição. Não compreendo porque os homens podem andar de tronco nú e as mulheres não. Não compreendo porque o Paris-Dakar ainda se chama Paris-Dakar. Não compreendo porque o governo Angolano pratica o nepotismo e tem medo de músicos. Não compreendo porque existem carros que andam a muito mais de 120 km/h e praticamente em todo o mundo ultrapassar esse limite é ilegal. Não compreendo porque não existem estradas onde se possa conduzir a mais de 120 km/h. Não compreendo tanta coisa… Estarei doente? Será da idade? MÚSICA DA SEMANA “Shameless” – Groove Armada featuring Bryan Ferry (…) I can read your lips I can read your mind, It’s all I want to hear, Why am I so blind? And the way we were Fatefully entwined In a shameless world, Rock ‘n roll desire (…)
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBalanço [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Olha-se para um 2016 cheio de potencialidade sexual, mas merecemos rever o 2015 que trouxe uns quantos triunfos ao sexo e ao género pelo mundo. Triunfos que trazem ao entendimento de que sexo é muito mais do que aquilo que se faz na escuridão do quarto e que se abrange pelas malhas macro-sociais da vivência humana. 1. Casamento Homossexual – 2015 viu a possibilidade legislativa do casamento homossexual tornar-se uma realidade para alguns países do mundo (onde outros ainda se encontram a lutar pela despenalização da homossexualidade). O grande exemplo foi os EUA que, quer queiramos ou não, se rege na sua influência cultural, por vezes bastante hegemónica, de internacionalização. Não que queira dar uma super credibilidade aos meandros cuturais do país (e assim muito por geral refiro-me à figura que o Donald Trump anda a fazer), mas constitui um passo importante para a visibilidade e a normatividade que casais homossexuais merecem. 2. Adopção por casais Homossexuais – Para adicionar à generalização de novas formas de família, a adopção por casais homoparentais já é uma possibilidade em muitos países por esse mundo fora – e ainda bem. Agora seria bom que outros países olhassem para Portugal e Colômbia que em 2015 trouxeram esta felicidade aos casais que tentam ter filhos e que querem ser reconhecidos pelo estado. 3. Penalização da mutilação genital feminina – Uma prática atroz que começa a ser legalmente penalizada, e que tem lutado contra formas culturais e crenças enraizadas por grupos de pessoas que acredita que é um rito de passagem necessário, e que assim as mulheres podem adquirir um bom dote e não serão socialmente excluídas. O argumento que tem tentado dissiminar-se por várias instituições nacionais e internacionais: o dote, que, normalmente, é uma vaca, pode dar leite e alguma carne mas morre, mais rápido do que se imagina – uma rapariga/mulher que tem a possibilidade de estudar e trabalhar nesse sentido poderá trazer dinheiro para a família toda a vida. Isto para alertar que a penalização é um grande passo, mas o cuidado tem de existir nas crenças que ainda são comunicadas entre as pessoas. A Gâmbia foi um dos países que viu a MGF ser penalizada em 2015. 4. 50 Sombras de Grey – 2015 foi também o ano que viu adaptado para o cinema o romance que ganhou em popularidade pelo grafismo sexual e pela grande curiosidade e procura que incitou de produtos sexuais de tendências sado-maso. Diz a indústria que, este ano, algemas, chicotes, pinças para mamilos, fatos de latex pretos ou mordaças foram muito mais procurados. Pela experimentação sexual tivemos esta referência cinematográfico-literária. E que venham mais. 5. A criação de uma casa-de-banho na Casa Branca – Esta não é uma casa-de-banho qualquer, é uma casa de banho neutra. Sem género. Isto para que a Casa Branca seja mais inclusiva aos trabalhadores e visitantes transgénero. Pena que não tenha sido publicitado mais fortemente. Este mundo precisa de casas-de-banho sem género associado, porque o binarismo complica-se, cada vez mais. E não tem havido estruturas que o têm acompanhado. 6. Miley Cyrus e a fluidez de género – Este foi o ano que muitos artistas pop vincaram a fluidez de género como uma necessidade de afirmação individual. Os exemplos são Miley Cyrus, Angel Haze entre outros, que vêm como necessária à sua definição pessoal e artística. Apesar de muitos considerarem-no como uma ‘fase’ ou uma ‘moda’ adolescente, mais útil será considerá-lo num debate que urge em ser desenvolvido pelas várias camadas sociais. 2015 não trouxe a moda de fluidez de género, mas a necessidade do reconhecimento da fluidez de género. No geral, o ano teve realizações sexuais bastante positivas. O ano de 2016 trará muitas mais, certamente. Com alguma esperança, na escuridão do quarto também, que é um pouco mais difícil de aceder através de estatísticas, questionários ou artigos de jornal. Que o ano de 2016 traga realizações sexuais individuais e colectivas. Que se experimente novas formas de sexo, diferentes posições e diferentes expectativas. Que se puxe pela sexualidade dentro do limite do confortável. A todos, um 2016 muito sexy.
Hoje Macau VozesCharlie, um ano depois [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão vale sermos politicamente correctos. Enquanto jornalistas, sabemos que somos os muitos odeiam, os que muitos esquecem, os maus da fita quando convém. Coordenar um jornal não é tarefa fácil, especialmente quando o conteúdo dita um determinado movimento, uma ideia defendida com unhas e dentes, seja ela qual for. O ataque ao Charlie Hebdo levou mais do que vidas – dentro e fora do jornal. Levou a que a liberdade de expressão – exagerada, dirão alguns – fosse violada mais um bocadinho. Mas fez também o mundo perceber que, concordemos ou não com o destaque que foi dado aos ataques ao Charlie, concordemos ou não com a sua forma de trabalho, há por aí questões bem mais fortes que devem merecer ser o centro das atenções: o fanatismo, a forma errada de julgamento do que é ter fé. O facto de que, seja o que for que escolhamos mostrar enquanto jornalistas, também nós – como vós todos – somos constantes vítimas de algo bem maior do que um atentado terrorista. Somos vítimas de uma imposição que não queremos, somos vítimas da intolerância. Mas somos também os perpetradores da violência psicológica que nos divide todos os dias, enquanto nos exprimimos livremente sobre quem e o que quisermos. O Charlie Hebdo – como os jornalistas de todo o mundo – fê-lo publicamente. Seguindo uma linha criticada por alguns (por outros valorizada, não fosse estar vivo desta forma há mais de 20 anos) o Charlie Hebdo fez menos do que nós – enquanto pessoas – fazemos todos os dias: mostrou-se livre de qualquer religião, partido, nação. Por isso, contra todas as críticas, sejam eles – o Charlie Hebdo e as suas vítimas – um símbolo do quotidiano de milhares de outros: dos que sofrem com a guerra, dos que estão à mercê de terroristas, dos que morrem mesmo sem culpa. Sejam eles uma lição para todos nós, que alimentamos egos e conflitos sem muitas vezes nos apercebermos. Para todos nós que perdemos tempo a julgar o que não compreendemos e o que não queremos compreender, só porque podemos – e podemos sem que haja, por isso, consequências. Joana Freitas [dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma caricatura de quem não deve ser desenhado. Foi assim que começou um dos mais negros anos de ataques terroristas do século XXI. O tiroteio numa redacção francesa culminou com o assassinato em massa em cinco locais de Paris. Ancara, Beirute, Charleston, Kuwait, Bamako, Sousse. Todas cidades agora manchadas com sangue de inocentes que nunca pediram homens-bomba nem espingardas apontadas. A autoria remete, na maioria dos casos, para o Estado Islâmico, mas o terrorismo não tem cara nem alma: tem ideais distorcidos de cor, de religião, de etnia. As diferenças caracterizam a humanidade, mas é a igualdade que define os humanitários. Leonor Sá Machado [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] que nos mata é a cegueira. A maior cegueira de todas, “a dos olhos abertos”. Não é aquele nem os outros. Não é o vermelho, o azul ou o branco. Não é o veneno, a pistola ou a faca. É a cegueira. É fechar os olhos aos outros, rejeitar a diferença, desligar a mente. O que nos mata somos nós. Tu a mim, eu a ele, ela aos outros. O que nos mata é um mundo fechado dentro de nós mesmos, são as verdades únicas e absolutas. Um ano depois, o que nos mata continuamos a ser nós, continuamos com sangue nas mãos e com a mente suja. Ouvem-se os tiros, tapam-se os gritos. Filipa Araújo [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uma expressão em Chinês que diz “os bons conselhos são duros para o ouvido”. Criticar pode não ser uma maldade, é apenas o compreender de algo de forma diferente e dar uma opinião que é nossa. O jornal satírico Charlie Hebdo não deveria ter sido uma vítima do atentado terrorista de há um ano. Só mostrou aquilo com que não concordava. Sendo jornalistas, recebemos todos os dias críticas, positivas e negativas. Porque é que os jornalistas podem e devem escrever o que os outros dizem, mas os terroristas não conseguem aceitar opiniões críticas? Flora Fong [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á um ano o mundo assistiu a um ataque bárbaro que devia envergonhar o mundo moderno e as suas instituições, e que lembra que a liberdade e a dignidade humana estão cada vez mais em risco. O desenho é uma arma, mas a morte e a violência não devem ser os meios usados para acabar com essa arma. Um ano depois, só podemos pedir ao Charlie Hebdo que continue com a mesma criatividade e coragem com as quais se mostraram ao mundo. Andreia Sofia Silva
Leocardo Vozes…Rabo no chão “[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]inheiro na mão, rabo no chão” – eis uma expressão chula que no seu sentido original faz referência ao pré-pagamento, ao “dinheiro à vista”, pelo que se pode imaginar que era mais utilizada em certos circuitos ditos “marginais”, e não propriamente na caixa de um supermercado ou num balcão de uma instituição financeira ou de crédito. No seu sentido mais lato, é mais uma das inúmeras referências que podemos encontrar no léxico popular à importância do vil metal – nada se faz sem dinheiro, porque vá-se lá imaginar porquê, ficou convencionado que sem ele é praticamente impossível adqurir bens ou serviços, ou traduzido para o idioma do “deixa-te lá de merdas”, serve para comprarmos as coisas de que gostamos e para, helas, “vivermos felizes” (Mas que raio de raciocínio este, e logo em plena quadra natalícia. Por outro lado, bah, que se lixe). O dinheiro é também conhecido por pilim, bagalhoça, graveto, massa, carcanhol, bufunfa, guito, grana, e agora pensando bem, basta inserir qualquer palavra num contexto económico ou comercial para que esta adquira uma conotação com o capital: “Quando é que me devolves os paralelipípedos que te emprestei a semana passada”, é uma frase que qualquer pessoa interpreta como referência a uma dívida em numerário. Se ouvimos alguém conhecido a lamentar-se “andar com falta de chimpanzés frenéticos” porque está desempregado vai para uns bons seis meses, a mensagem subliminar que nos é transmitida leva-nos a evitar qualquer forma de diálogo com o indivíduo em questão. É esclarecedor o poder que ele tem, quando quase unanimente se afirma que “o dinheiro só dá problemas”, mas cria problemas ainda maiores na sua ausência. O dinheiro é de tal forma arrebatador que a expressão “estou teso” deixou de se aplicar à boa circulação sanguínea ao nível do tecido eréctil fálico, tendo caído “na bancarrota”, por assim dizer. Uma outra expressão, “não há dinheiro, não há palhaços”, remete-nos de uma certa forma para a inocência perdida, da sensação de que muito possivelmente alguém só nos tenta agradar ou é agradável connosco apenas pelo facto de não existir entre nós uma relação comercial, inter-dependência financeira, ou um interesse materialista. E fico-me por aqui nesta deambulação , ou não vá entrar pela floresta dos orgasmos simulados e afins, e… porra, fico por aqui. Isto tudo para dizer que neste ano que hoje termina estive em dois países que até há relativamente pouco tempo pensei que nunca chegaria a visitar, e que a única forma de poderem vir a ser um dia visitáveis seria com um “rebooting” completo, do género “aniquilação total de toda a população existente, e sua substituição por outra de modo algum semelhante com ela”. Falo do Myanmar, que no câmbio do “deixa-te lá de merdas” ainda é mais conhecido por Birmânia, e no Cambodja – dois lugares onde a simples presença física aumentaria exponencialmente a possibilidade de nos ser declarado óbito (não que essa declaração “à posteriori” nos fizesse lá grande diferença, entenda-se). Mas não há que o negar; para a geração das pessoas que têm hoje mais de 25 anos, a Birmânia e o Cambodja são tidos como locais nada recomendáveis para se fazer turismo. E aqui refiro-me à noção mais comum e “democrática” de turismo, aquele do tipo “estou de férias, quero fazer o que me apetecer sem que ninguém me chateie”. E de facto a Birmânia foi e vai sendo notícia devido à sua atribulada situação política, que balança ao som dos maiores sucessos do despotismo e da corrupção, enquanto o Cambodja, resumindo em poucas palavras, viu um terço da sua população dizimada em quatro anos de Governo de uns tais “Khmer Rouge”, nome dado ao grupo de babuínos facínoras, e graças aos quais o país tem como uma das suas atracções turísticas uns tais “campos da morte”. E não, o nome não tem origem numa qualquer lenda maluca envolvendo ninjas celestiais e imperadores voadores mais as suas concubinas. Eram terrenos de natureza rústica onde morriam pessoas como nós. Simples. Mas tudo isso mudou e hoje posso dizer que andei de noite por becos e vielas nas entranhas de Rangum sem temer que me viessem impingir um Rolex da Candonga, e enquanto estive em Siem Reap não vi qualquer execução sumária em nenhuma das suas principais artérias, e em plena luz do dia. Vi gente feliz, simpática, afável, e tão prestável que fazia das tripas coração para se tentar fazer entender com os estrangeiros, um autêntico recital de orgasmos simulados (pronto, não consegui evitar, paciência), e tudo isto porquê? Lá está: “dinheiro na mão, rabo no chão”, e aqui existe o aliciante cambiante de que enquanto as nádegas estiverem suavemente pousadas na solidez desmilitarizada e desparasitada de vermes totalitaristas do asfalto, menos vontade estas pessoas têm de andar aos tiros, ou a rebentar com qualquer coisa “só para passar o tempo”. Descobriram que afinal era mais interessante vender qualquer coisa que se coma, vista ou use, satisfazer o consumidor, e ainda obter algum lucro no processo. E depois de acumulado essa lucro, compram uns dois ou três imóveis (estranhamente essa parece ser uma filosofia de vida regional). Posso mesmo afirmar que na Birmânia e no Cambodja se está a assistir ao contrário do que vamos vendo pelo Ocidente. Acho que chegaram ao ponto óptimo existencial, depois que atingiram o “nirvana” supremo que os fez pensar: “a política que se lixe; vou mas é trabalhar e fazer umas massas”. A Birmânia deixou-me especialmente encantado. Num país onde ainda recentemente o líder do Governo dedicou um discurso de quase uma hora a um combate de boxe, e tudo porque apostou e perdeu, não vi um único motociclo nas ruas da capital do país, e em vez de ter esses machimbombos de duas rodas anarquicamente estacionados em toda a parte, os passeios de Rangum eram ocupados por vendilhões, de um lado e do outro. E como chegava a ser agradável deter-me e inquirir sobre cada espécie de comércio com que me deparava, quer do lado esquerdo, quer do outro, enquanto me pavoneava pelas ruas de um país onde tudo o que sabia da actualidade foi-me dado a conhecer pelo último filme da série “Rambo”. Uma boa surpresa, portanto. E é com esta bonita imagem, com este sentimento de positividade que nos diz que de barriga e bolsos cheios dá menos vontade de fazer revoluções e tretas que tais. Para todos os leitores do Hoje Macau, um desejo de um ano que a expressão “estou teso” volte a ter o seu sentido original. Um feliz e próspero 2016, deste vosso servo.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSondar desejos [dropcap style=’circle]N[/dropcap]o passado sábado, dia 2, o website de Hong Kong “Yahoo” publicou uma sondagem efectuada pelo APM (Sondagem 2016). O objectivo era determinar as expectativas dos habitantes de Hong Kong para 2016. O APM é um centro comercial, muito conhecido em Hong Kong. A sondagem realizou-se a partir de 520 entrevistas. Metade dos entrevistados tinha menos de 27 anos. As principais conclusões foram as seguintes: Afirmações 5% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será melhor do que em 2015. 59% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será semelhante ao de 2015. 31% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será pior do que em 2015. O Apm comparou os dados da Sondagen 2016 com a homóloga de 2015, e revelou: Percentagem de entrevistados Afirmações 43% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será melhor do que em 2014. 35% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será semelhante ao de 2014. 21% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será pior do que em 2014. A recente sondagem revelou que o primeiro desejo dos habitantes de Hong Kong é a prosperidade económica, o segundo a paz social, sendo o terceiro o pleno emprego. Até certo ponto, a Sondagem 2016 indica a forma de pensar de algumas pessoas de Hong Kong. Após a luta política, para o cargo de Chefe do Executivo em 2014, as opiniões ficaram mais polarizadas. Ninguém estava interessado em escutar as opiniões do adversário. A contenda deu origem a uma desconfiança mútua. Sem essa confiança e sem relações de alguma proximidade, não é de estranhar que as pessoas se preocupem com a paz social. O resultado das eleições para o Conselho Distrital, realizadas há já alguns meses, foram também inesperados. Muitos dos membros mais experientes do Conselho Distrital e alguns conselheiros, que também eram membros do Conselho Legislativo, não foram eleitos. O resultado indicou claramente que os jovens querem ter uma “voz” que os represente. E essa mensagem foi passada de forma muito clara. Outra questão social muito sensível é a da habitação. Através dos números publicados recentemente pelo Governo da RAEHK, percebe-se perfeitamente que os terrenos disponíveis são limitados e que, portanto. será impossível solucionar o problema da habitação a curto prazo. Considerando este cenário, os resultados da Sondagem 2016 parecem ser compreensíveis. Em Junho do ano transacto, dia 23, foi publicado o “Relatório de 2014 Sobre Níveis de Bem-Estar Nacionais”. O relatório usou o método “Gallup-Healthways Global Well-Being Index”, aplicado para medir os níveis de felicidade dos habitantes de 145 países. O relatório indicava que o Panamá aparecia em 1º lugar”. Hong Kong ocupava a posição 120 e Macau não era mencionado. O Global Well-Being Index é um barómetro global das percepções individuais sobre o próprio bem-estar e representa o estudo mais recente do género. Os dados foram recolhidos em 145 países e, em 2014, foram entrevistas mais de 146.000 pessoas. Na altura, comentámos que o fraco posicionamento de Hong Kong no Relatório, demonstrava as muitas insatisfações dos seus habitantes. Podemos identificar os seguintes problemas em Hong Kong: 1. Preços de aluguer de casas elevado, um cidadão comum não consegue comprar a sua habitação, 2. Sistemas de pensões de reforma insatisfatório, 3. A questão do comércio paralelo afecta o relacionamento entre os habitantes de Shenzhen e de Hong, 4. Horários de trabalho muito sobrecarregados, que dificultam muito o lazer, 5. Espaço limitado e altos índices populacionais dão origem a poluição elevada, com consequências negativas para a saúde dos habitantes. Se compararmos a sondagem 2016 do Apm com o Relatório que temos vindo a comentar, compreendemos que as questões relacionadas com as finanças e o emprego continuam a ser as principais preocupações dos residentes de Hong Kong. Independentemente dos resultados de sondagens e relatórios, é preciso que o Governo e a população unam esforços para resolver os problemas. Não é uma tarefa fácil. Mas se prometermos a nós próprios, no primeiro dia de 2016, que vamos conseguir, então todos conseguirão. Resta-nos desejar a todos um excelente 2016. * Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau Blog: https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesDomingo em cheio [dropcap style=’circle]P[/dropcap]ara celebrar o 16º aniversário da transferência de soberania de Macau, que teve lugar a 20 de Dezembro, o governo da RAEM organizou as comemorações habituais e ainda, durante a tarde, um concerto no Estádio de Macau. No entanto, nem o ambiente festivo nem a música conseguiram abafar os gritos de protesto dos manifestantes. Seis grupos locais desceram à rua para demonstrar a sua insatisfação com a actuação do governo. Além disso, as pessoas que tinham comprado antecipadamente os apartamentos do edifício “Pearl Horizon”, que se encontra ainda em fase de construção, também se manifestaram, já que a empresa responsável não foi capaz de cumprir a construção dentro dos prazos legais e o governo, de acordo com a lei, fez questão em reclamar os terrenos destinados ao edifício. Os movimentos sociais, liderados pelos diferentes grupos e lutando por diferentes causas, chamaram a atenção quer do governo da RAEM quer do governo Central. Algumas pessoas chegaram a designar este aniversário como um “Domingo em Cheio” para manifestações. O grupo de manifestantes com maior impacto foi, sem dúvida, o dos compradores dos apartamentos do “Pearl Horizon”. Mais de 1000 pessoas bloquearam a rua e confrontaram-se com os agentes policiais, que fizeram o que estava ao seu alcance para controlar a situação, tomando apenas as medidas necessárias para fazer face aos ataques às forças da autoridade. O trânsito foi seriamente perturbado e algumas pessoas cometeram actos menos próprios contra os media. Finalmente os manifestantes dispersaram de forma pacífica. O caso do edifício “Pearl Horizon” deu origem a preocupações e debates ao longo das últimas semanas. Acredito que a maior parte das pessoas tem uma opinião sobre este assunto. Os compradores dos apartamentos acusam o construtor por não ter cumprido os prazos. O governo, pelo seu lado, reclamou os terrenos ao abrigo da Lei de Terras, para impedir que venham a acontecer mais casos semelhantes. A questão do edifício “Pearl Horizon” poderia abrir um precedente. Se o princípio orientador da Lei de Terras não for respeitado, os valiosos terrenos da RAEM podem ficar indefinidamente desaproveitados por construtores que aleguem o pretexto da “reserva de terrenos”. Macau é uma sociedade que pretende ser um estado de direito. Como os construtores já deram início ao processo legal, o assunto será resolvido nesse âmbito. Quanto aos compradores dos apartamentos do “Pearl Horizon”, terão de ser pacientes e esperar por uma decisão. No dia do aniversário, ocorreram confrontos na zona que circunda a Rua da Pérola Oriental. O Jardim do Mercado Municipal de Iao Hon foi também palco para protestos de outros grupos. Destes últimos, destacam-se, a Associação de Novo Macau (organizador de longa data das manifestações que têm vindo a assinalar o Dia da Transferência de Soberania) e, a recém-formada, Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau. Muitas pessoas, inclusive oriundas da China continental, querem saber se estas duas organizações são antagónicas ou se se complementam e contrabalançam o movimento! Pelo meu lado não estou preocupado com a possibilidade de conflito já que, quer o presidente, quer o vice-presidente, da Assembleia Geral da Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau, são candidatos à Assembleia Legislativa pela Associação de Novo Macau. Os membros destas duas associações conhecem-se uns aos outros. Mesmo que possam ter pontos de vista diferentes, não deixam de partilhar os mesmos princípios democráticos e defender a sua implementação em Macau. Podem até aperfeiçoar-se mutuamente. De facto, no encerramento da manifestação, o presidente da Associação de Novo Macau, Chiang Meng Hin, foi convidado para proferir um discurso pela Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau, ao passo que o deputado Ng Kuok Cheong falou durante o encontro da Associação de Novo Macau, a convite de Chiang. Por fim, as duas associações derem início aos protestos, lado a lado e de forma pacífica. Só me senti desapontado por estas duas associações não terem sido capazes de combater a fraca participação popular nas manifestações. A ausência de participação massiva pode, eventualmente, ser explicada pelo mau tempo que se fez sentir nesse dia, ou pelo facto de os cidadãos terem perdido o interesse em se manifestarem contra o governo. Seja qual for o motivo, o “Domingo em Cheio” foi um símbolo do muito que há a fazer para melhor a actuação do governo. “A procura de mudanças através de reformas políticas e a concretização de um verdadeiro sufrágio universal” terão de ser objectivos para o aperfeiçoamento da administração governamental.
António Conceição Júnior VozesTempo e memória [dropcap style=’circle]A[/dropcap]A passagem do Tempo incorpora em nós passado e memórias. E no segundo que medeia entre o velho e o novo, acorre-me um outro tempo, neste mesmo lugar. Macau, a Calçada do Tronco Velho e um vetusto edifício que se foi nos vendavais gerados por gente que hoje nem memória são. À esquerda de quem sobe, o passante que olhasse para as primeiras janelas do rés-do-chão veria homens debruçados, manipulando pedaços de chumbo, e sentiria um forte cheiro a tinta. Aquele casarão era misterioso. Bocas maledicentes segredavam rumores de que ali mandava um perigoso comunista, o republicano “Monteiro das barbas”, que para aqui se degredara para estar próximo dos camaradas do outro lado das Portas do Cerco. Ali dentro trabalhava-se até muito tarde. Funcionava aí o “Notícias de Macau” que Hermman Machado Monteiro havia fundado em 1947, sucedendo ao “A Voz de Macau”, do Capitão Domingos Gregório da Rosa Duque. Os tipógrafos viam-se da rua, compondo, letra a letra e com rapidez, colunas que se iriam encaixar umas nas outras de um modo tão anacrónico quanto, aos olhos de hoje, é a máquina de imprimir. Junto às janelas dos tipógrafos, comandados pelo senhor Jacob, que naquele tempo era assim que se tratavam os mais velhos, situava-se a porta de entrada. Esta dava para um largo átrio, em tijoleira vermelha, de luz coada, sábia medida para manter a frescura dos dias ardentes. Uma escada em L, que chiava, dava acesso ao andar superior onde havia dois caminhos a tomar. À direita, a zona da administração onde trabalhavam duas simpáticas senhoras. Um pouco mais à frente vislumbrava-se uma papaieira que anunciava o grande jardim, que confinava com a igreja de Sto. Agostinho. À esquerda, percorrendo uns escassos metros e abrindo uma porta de vaivém, chegava-se à sala da redacção com inúmeras mesas frente a frente, munidas de máquinas de escrever. Numa dessas mesas, Patrício Guterres matraqueava impiedosamente a sua Remington que um dia descobri já não ter letras nas teclas. No gabinete que dava para a redacção, trabalhava Luis Gonzaga Gomes, vizinho de casa e a quem todos chamavam de “Inho” Gomes. De poucas falas e que, para minha surpresa, conseguia andar sem barulho, deslizando pelo sobrado antigo. Tão metido consigo, era quase uma sombra. Só mais tarde vim a ler os seus livros, com dedicatória aos meus pais, que publicou nas oficinas do jornal. Chegavam aos poucos os senhores Anízio, Raul da Rosa Duque, José dos Santos Ferreira, meu tio Adelino da Conceição, Mário de Abreu e o Major Cabreira Henriques, que se detinha em longas conversas com meu Pai. A sala da redacção ia ganhando vida à medida que as horas passavam e o senhor Jacob entregava linguados para serem corrigidos, que aquilo era obra para muitas horas. O meu fascínio ia sobretudo para Hermman Machado Monteiro e o seu charuto. Falava pouco, como que pairava por lá, alentando com a sua presença toda aquela plêiade de gente. Recordo que no Fim de Ano, naquela casa de sobrado que rangia, havia sempre uma ceia aberta a todos e brindes com Vinho do Porto. Sabia que Hermman Machado Monteiro vivia no Hotel Riviera. Visitei uma vez, com meu pai, o seu quarto, enorme, com varanda para a Praia Grande. Tinha dois poisos preferidos, onde gostava de reunir os seus colaboradores. O restaurante do próprio Hotel Riviera, onde se reuniam em ampla e culta cavaqueira aqueles que seriam a Tertúlia do Notícias de Macau. No Fat Siu Lao, onde ia com tanta frequência que ficou na ementa o “Bife à Monteiro”, fazia questão de reunir todo o pessoal que trabalhava no jornal, desde redactores, revisores, director e tipógrafos. Nunca me perguntei se o jornal era viável. Acredito que não. Como não o era o Círculo de Cultura Musical que Luís Gonzaga Gomes dirigia. Mas outros elevados valores se levantavam. O Dr. Pedro José Lobo, verdadeiro Mecenas no panorama cultural de então e figura a requerer estudo biográfico, era também assíduo nestas tertúlias. Era um amante da música e, além de compositor, podia dar-se ao luxo de ter uma rádio, a Rádio Vila-Verde, em chinês, na sua mansão, e a Rádio Vila-Verde em Português, na rua Francisco Xavier Pereira. Meu pai, António Maria da Conceição, foi o último director do “Notícias de Macau”. Viu, ironicamente, fecharem-se as portas com a liberdade de Abril. Uma estranha comissão ad hoc desferiu o golpe final a um jornal que tinha por tradição juntar todos sem distinção. Meu pai escreveu o último editorial, à guisa de saudação final, que intitulou “Morituri te salutant”. Malhas que o Império tece… Antes, a marcar o Tempo, penduravam-se calendários nas paredes. Hoje, perdura a Memória, essa intangibilidade desconhecida por tantos. Os anos sucedem-se e, no bolor do tempo, pouco permanece. Que tenham um Bom Ano.
Arnaldo Gonçalves VozesFactos que marcaram 2015 [dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. XI E O COMBATE ANTI-CORRUPÇÃO O ano de 2015 assinala o reforço da luta anti-corrupção, cruzando os escalões cimeiros do Partido Comunista Chinês, a estrutura da administração pública e os CEO das empresas globais chinesas. Os observadores questionam-se se esta é uma estratégia de eliminação faseada de inimigos internos. Ou se é uma repetição das campanhas de rectificação da década de 1950 para ‘limpar’ o partido e o Estado dos colectores de subornos, do promotores de empresas familiares e dos agentes de transferência de fortunas e capitais para paraísos fiscais e países europeus. En passant, Xi viu crescer o número de inimigos internos, por ora recolhidos e que escolherão o tempo apropriado para o ajuste de contas. A corrupção é crónica na China. Foi grande no regime imperial; é gigantesca no Estado socialista. Enquanto o sistema judicial não for verdadeiramente independente ela crescerá na exponencial. As campanhas políticas são tigres de papel. 2. CHARLIE HEBDO E A CIDADE DAS LUZES Paris tornou-se simbolicamente o alvo preferido dos terroristas islamistas. Num ano tiveram lugar dois atentados, de enorme violência, visando colher o maior número de vítimas, e estremecer as democracias europeias. Nova Iorque foi em 2001 o símbolo da senha niilista contra a civilização ocidental e a cultura de tolerância, inclusão, economia de mercado e consumo que a distinguem. Paris é, catorze anos depois, um novo alvo. Pelo que representa em termos de património do Renascimento e do Iluminismo, do laicismo, da arte, da música e da cultura em geral. As vítimas são danos colaterais. Os kamikazes, tochas humanas que se imolam à glória de um Deus sanguinário e uma vida para além da morte prenha de prazeres profanos. As razões religiosas (um mundo islamizado) um pretexto para uma operação calculada de cerco e ocupação militar. A Europa está em guerra. 3. UNIVERSIDADE DE SÃO JOSÉ Depois de ter sido lançado, nos anos finais do período de transição, como um desígnio estratégico educativo de Portugal, o Instituto Inter-Universitário de Macau transformou-se, em 2009, na Universidade de São José. Ruben Cabral redefiniu-o como um projecto de âmbito regional. A instituição perdeu velocidade, em razão de polémicas constantes que levaram à demissão do reitor. O novo reitor, Padre Peter Stilwell, inverteu a estratégia de expansão do projecto. Eliminou cursos, dispensou docentes, suprimiu unidades de investigação e elegeu um só objectivo: a edificação de um grande campus. Sem alunos do continente, dada a inexistência de relações oficial entre Pequim e a Santa Sé, a USJ tornou-se uma pequena universidade da RAEM , sem amplitude e com reduzido número de alunos oriundos da Região Ásia-Pacífico. Suprimida a cooperação com a Universidade Católica Portuguesa, reforçou-se a dependência da diocese e dos seus interesses. A USJ é um projecto universitário a termo certo. 4. PS E ANTÓNIO COSTA Depois de uma derrota significativa nas urnas, mas tirando partido da ausência de maioria absoluta, António Costa manobrou com tactismo. Negociou com comunistas e a esquerda radical um acordo de incidência parlamentar. A solução foi ratificada por Cavaco Silva, na ausência de alternativas. Atarantado com negociações constantes com os seus parceiros, Costa tem recorrido ao expediente de fazer aprovar no Parlamento as propostas mais radicais dos seus aliados marxistas. Apressou-se a empurrar para o fim do ano (2016) as medidas impostas pelo Tratado Orçamental. O ano de 2016 será farto em medidas populistas dirigidas ao crescimento dos salários e a estimular o consumo público e privado. Navegando à vista, Costa espreita o apoio tácito do novo Presidente para este conventículo oportunista. Os adversários não serão o PSD e o PP. Serão a Procuradora-Geral e o Presidente do Tribunal de Contas. Nos bastidores a nebulosa das empresas do PS e dos amigos espreitam o bolo dos contratos públicos. 5. TAM VAI MAN Uma querela particular sobre o acesso a campas, num cemitério público, tornou-se o processo judicial dos dois últimos anos. Arrastando no caudal o presidente e outros três responsáveis de uma unidade orgânica virada para acorrer às necessidades mais imediatas da população. Interpelada, nos tribunais, a imparcialidade e competência dos quadros visados, a magistratura judicial sufragaria, em primeira e segunda instância, a inocência dos mesmos e a insustentabilidade da acusação do Ministério Público. A Justiça fez-se. Evitou-se o sacrifício artificial de um dos melhores quadros bilingues que tive oportunidade de ter como aluno nos Programas de Estudo em Portugal, na década de 1990. Destaco aqui, como amigo, a sua coragem, determinação e amor à verdade ao longo do processo. Apenas lamento a exploração política que interesses bem identificados na Assembleia Legislativa (e fora dela) fizeram deste assunto. Quinze anos depois da transferência de administração de Macau há quem ainda não compreenda que nada se ganha com o denegrir da administração. 6. BARACK OBAMA Obama iniciou o seu mandato gerando enormes expectativas quanto à correcção dos erros da administração Bush, ao fim de intervenções militares no Iraque e no Afeganistão, ao encerramento de Guantanamo Bay e ao restabelecimento da credibilidade externa dos EUA. No plano interno, prometeu a recuperação económica, a criação de milhares de novos empregos, políticas sociais dirigidas aos mais pobres. Prestes a concluir o segundo mandato, o balanço é dividido. Se no plano interno, Obama conseguiu inverter a trajectória de declínio da economia, no plano externo o balanço é negativo. Quanto ao Iraque, coloca-se agora a necessidade de reforçar o contingente americano, no terreno. Guantanamo Bay continua por encerrar. Foi assinado um acordo com o Irão que não garante a anulação do programa de enriquecimento de urânio mas apenas o seu adiamento. Já noutro palco, permitiu a subida da competição militar chinesa no Pacífico Ocidental e o retorno da Rússia ao estatuto de grande potência, perdido em 1989. Ficará na história como o Presidente da retórica, da comunicabilidade mas de diminuta eficácia. 7. RAIMUNDO DO ROSÁRIO Aposta pessoal de Chui Sai On para uma pasta essencial do executivo de Macau, Raimundo do Rosário tem deixado notas positivas quando ao estilo, às prioridades e à forma de agarrar os problemas. No primeiro, uma forma muito directa de identificar dificuldades, possíveis soluções e mostrar as condicionantes. Nas segundas, um enfoque nas questões da habitabilidade, na carência de novos espaços urbanos que levam tempo a conquistar, de acordo com um planeamento lógico. Na terceira, a ideia clara que os problemas de Macau nas áreas de habitação, do trânsito, dos equipamentos sociais são técnicos. Devem ser geridos de acordo com critérios técnicos. É desejável a consulta à população. São louváveis os milhares de opiniões recolhidas nestas. Mas no domínio das políticas públicas não há soluções milagreiras. Há soluções executáveis. Macau tem um problema dramático, de fragilidade da sua estrutura económica. A curva de declínio das receitas do jogo acentua a incerteza do seu futuro. Têm de se dar passos certos; não mergulhar em aventureirismos irresponsáveis.
António Conceição Júnior VozesUrbanidades [dropcap style=circle’]A[/dropcap]noiteceu cedo, como é habitual nesta altura do ano, embora aqui o calor retire ao bafo da vaca do presépio o conjunto de clichés que nos foram impondo. Estava fora, e isso também fazia alguma diferença nos hábitos. A entrada do hotel patenteava uma árvore natalícia gigante. Um piano ecoava pelo enorme átrio onde se cruzava uma multidão díspar que, tal como eu, aproveitava a época para sair do repetitivo quotidiano. Lá fora, onde de dia se nadava, acendiam-se velas que bruxuleavam no escuro, expressando os festivos desejos habituais. Senti-me algo perdido naquela multidão enquanto esperava que nos agrupássemos para o jantar. Mas uma como que frequência chegou-me aos ouvidos na forma de um sinal quase insonoro, que se afirmava pelas vibrações que sobre mim exercia, como que uma membrana de uma coluna de som a vibrar. O fenómeno transbordou, percorreu-me a mente, os membros, o corpo. Subitamente, observei o que me rodeava de um outro modo, como se não fizesse parte daquele cenário. Vislumbrei então, vindo na minha direcção, um homem estranho, que se movia deslizando, sem se lhe ver os pés. Tinha uma tez de cera, vestia uma sobrecasaca preta, gola de veludo, um colete escuro. O mais insólito era o cabelo frisado, já ralo, e uma barba longa, encimada por um bigode farto e branco, todo ele saído da era Vitoriana. Olhava-me fixamente à medida que se aproximava, atravessando as pessoas sem que elas dessem conta dessa extraordinária visão. Não falámos. O extraordinário é que comunicou de uma forma que eu ouvia sem que houvesse som. “I bid you good evening, my dear fellow” disse-me, e cada palavra como que vibrava dentro da minha cabeça. “Good evening” respondi-lhe estupefacto, porque apenas pensara as palavras. Comunicávamos pelo pensamento, algo, para mim, deveras surpreendente. “I have been around for quite a while but these days I find all this a little too odd for my liking” retorquiu. “Anyway, my dear sir, my name is Charles. You may call me Charles given these uninformal days you live in”. O ar era sisudo, as pálpebras descaíam sobre um olhar pesado, talvez mesmo cansado. Aquele rosto era-me familiar, mas não com tanta idade. Arrisquei: “I presume, if my memory does not betray me, that you are Mr. Dickens, Mr. Charles Dickens”. O meu interlocutor fitou-me com um semblante algo triste. “In fact I created Ebenezer Scrooge, and since then all they know about me is the Christmas Carol. Well, I guess one cannot escape one’s destiny”. Tossiu, pigarreou, olhou para mim e disse: “Não sei porque estou a falar inglês quando posso falar qualquer língua”. “Mas venha”. Agarrando o meu antebraço, começámos a elevar-nos por sobre as pessoas no átrio, dirigimo-nos para a enorme parede de vidro que atravessámos sem custo, olhei a piscina iluminada de velinhas flutuantes. Não senti medo. Acostumara-me à vibração que me percorria, como uma corrente de energia cuja origem era insondável. Ascendíamos sem parar, lentamente, numa trajectória oblíqua. Estávamos sobre o mar. Olhei para cima, mas fui interrompido: “Neste plano, ascender ou descender não tem significado. Não existe o acima nem o abaixo, o atrás ou o a frente, a esquerda ou a direita. Quando habitamos o humano, a nossa compreensão tem limites impostos pelo mundo em que crescemos e vivemos. A matéria ilude-nos e formata-nos. Escrevi sobre Ebenezer Scrooge e a sua avareza, que era material, e o seu arrependimento”. Olhei-o, enquanto continuávamos a subir. “Então quer dizer que neste momento estou materialmente tão… emaciado quanto o senhor?”. Sorriu-me, cofiou a barba e disse-me: “A morte material é uma realidade humana incontornável, mas tão natural como o nascimento. É a passagem pelo mundo plano e primário da matéria. Apontou-me para o gigantesco globo que tínhamos à nossa frente, a lua, que nunca tinha visto assim, enorme. Daí já podia contemplar um pouco mais do Universo. Não muito mais. Lendo o meu pensamento, pegou-me no pulso e deslocámo-nos a uma velocidade inimaginável. Abrandámos e, de súbito, estacámos no vácuo. Um panorama deslumbrante abria-se perante os meus olhos de mortal. Enormes galáxias em forma de nuvem, estrelas poderosas emitindo explosões de si próprias, planetas gigantes, outros menores, chuvas de meteoritos passavam perante o meu extasiado olhar. “Veja, estamos num ponto do Universo em expansão. Aqui não existe nem bem nem mal, nem aqui nem em lado nenhum. Não há agendas nem desejos. A matéria é uma consequência, não um fim. Apenas os espíritos muito primários alimentam guerras e usufruem delas, falam de paz e lucram com ela, arrancam confissões, combatem por deuses diferentes ou por matérias que destroem o seu próprio habitat. Oprimem e orgulham-se disso. Agarram-se ao poder com ambas as mãos. Matam, matando-se. Criam o inferno, o verdadeiro inferno” Olhou-me com o seu olhar entristecido, de pálpebras descaídas. “A matéria é energia acumulada. E isso é o que ilude no plano terrestre. Há outros planos de consciência, mas geralmente só se ascende a eles quando o espírito se liberta da matéria”. “Aqui onde estamos, percorre uma energia extraordinária que se chama Amor. Mas esta não é perceptível à maioria dos que dele falam. É demasiado poderosa para ser compreendida por seres incipientes”. E, sem mais, em um tempo que não é tempo, estávamos de volta ao átrio do hotel. Talvez não tivesse passado um segundo. Mas o que é o tempo? Fui cear com muitas interrogações e um olhar desconfiado para tudo o que o Natal representa de consumismo. Mas não deixei de, bem comportadamente, manifestar os meus votos de paz e amor.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexy 2016 – Nunca gostei das festas. – Festas? – Sim, as festas natalícias. O tempo em que se festeja a possibilidade de procriação assexuada. Uma mitose espontânea, que nem a biologia sabe explicar muito bem. – Pois. O Antisexo. – Somos obrigados a ver a família e a fazer revisões anuais. – Claro… e as recordações de 2015? – Sexo a mais e sexo a menos, dependendo do mês. Cinema e umas leituras. Ainda tive umas viagens por aí. Momentos de genialidade alcóolica, mas raros, porque a regularidade levar-me-ia ao alcoolismo. O teu? – O meu ano foi aborrecido. Pessoas aborrecidas, trabalhos aborrecidos, encontros aborrecidos. Não sei que te diga para além de que 2015 foi uma merda. – De que signo és? Posso ver o que te reserva para o próximo ano. A astrologia não foi afectada pelo meu cepticismo. – Eu só quero saber de sexo. Não quero saber de amor, quero saber de sexo. Não sei se é uma opção. – Queres um 2016 exclusivamente sexual? – Nem sei o que isso quer dizer, mas talvez. – Queres foder todos os dias? Com pessoas diferentes? Ter a excitação de corpos novos contanstantemente ou ter o conforto de um a quem já lhe conheces os cantos. – Talvez. Quero que 2016 traga a revolução no sexo ou… a re-significação do sexo. Justifico-me com a minha constante depressão, mas quero daquelas epifanias sexuais que tornam a metafísica do mundo reduzida ao glorioso acto de foder. – Não sei se isso te faz um tarado ou intelectualmente interessante. – Gosto de acreditar que faz de mim um e outro, em simultâneo. – E vais chegar à restruturação do significado do sexo como, exactamente? – Espero que com muito sexo e muita introspecção. – Não percebo como é que chegaste a esta necessidade de filosofar sexualmente. Não que o sexo e a filosofia se oponham, mas tão pouco são compatíveis, talvez complementares. Parece que te obrigas ao dualismo razão/emoção com a desculpa que queres foder bastante. – Se calhar deverias pensar o que queres que 2016 te traga, sexualmente. Talvez assim me compreendas melhor. – Nem é preciso pensar muito: um menáge à trois. Sou muito mais prática a operacionalizar os meus desejos sexuais. Um menáge à trois ainda não está na lista de experiências sexuais vividas. – Pois, ok. Tens algum amante regular agora? Quem seriam os participantes? – Não, não tenho. Estou a pensar ser o elemento extra de um qualquer casal. – E pronto? – Pois. – Vais o quê? Pôr um anúncio? ‘Disponibilidade para noite louca de sexo com casal que procure expandir a sua lista de experiências’. – Epá… não faço ideia. Tu é que me pediste a resolução sexual para o próximo ano, ainda não ruminei a ideia. Não sei como se faz, ou como se começa, só sei que gostaria. – Bem, se entretanto arranjar uma amante e ela estiver para isso, informar-te-ei com todo o gosto desta possibilidade. – Achas que pode contribuir de alguma forma para a transcendência sexual que procuras para o próximo ano? – Tenho a absoluta certeza de que sim. – Depois como seria? Eu, tu e esta hipotética outra. – Não sei. Imagino que jantariamos os três juntos, alguma conversa e intimidade não magoaria e depois… minha casa. – Mas marcávamos um dia? Ou sairíamos várias vezes os três a ver no que dava? Se haveria química. – Boa pergunta. – Para além do mais, precisariamos de um encontro de discussão de logística. Definir o que é ou não permitido. – Estás a destruir toda a minha fantasia pornográfica. – Não percebo porque é que o meu pragmatismo o magoaria. Mas preciso de saber as regras, nós três precisamos de perceber as regras. Há risco de cairmos em constrangimento. Tipo, sexo vaginal depois de anal é expressamente proibido. Ainda pior inter-participantes. – Tu… Já estiveste com uma mulher? Sabes como se faz? – Como se faz o quê? – Enfim, estar com uma mulher. – Fazer-lhe um minete? – Sim… – Essa é mesmo uma preocupação real? – Não, só curiosidade. – Sabes tu? – Acho que sim. Nunca se queixaram. – Se de facto estás a propor-te como um participante para a minha experiência de 2016, porque não um homem? – Hein? – Eu, tu e um hipotético outro. – Estás a destruir a minha fantasia pornográfica de novo. – E dupla penetração? Não estou a ver o que seja mais pornográfico que isso. – Pois, está bem. Mas não sei se conseguiria estar na presença de um pênis erecto, para além do meu. – Ok. Entendi. E nós? – Nós? – Claro. Sei lá eu se o nosso tesão vale a pena. – Isso é um convite para experimentar? – Talvez.