Boi Luxo VozesValerie a Týden divů, Jaromil Jires, 1970 [dropcap style=’circle’]V[/dropcap]alerie… é um filme que permanecerá sempre como algo de íntimo. Pode pensar-se que mais ninguém viu este filme e que aquilo que pensamos que ele é não passa, afinal, de um grande engano ou de algo que nos aconteceu na florescência da adolescência. Housu, de Nobuhiko Obayashi, também é assim – partindo do princípio que existe e que não é apenas uma alucinação. Valerie… é a prova de que existem vampiros – e não apenas no cinema – e de que os padres e a religião são uma influência perniciosa para o crescimento. Assim, é um filme que sublinha um tipo de credibilidade. No que diz respeito ao crescimento e à função mágica da inocência estou preparado para acreditar mais neste filme que em qualquer outra fonte. Seria tentador repetir algum texto que aqui já se ofereceu sobre a Nova Vaga checoslovaca mas não seria mais do que isso, uma repetição. Chegue recordar que na Checoslováquia se fizeram alguns dos mais interessantes filmes europeus dos anos 60 e 70. Parte dos nomes mais conhecidos deste saboroso cinema já por aqui passaram, Jan Svankmajer (a propósito de um filme de 1994, Fausto), Vera Chytilová (o delicioso, voluptuoso, surrealista Sedmikrásky/Daisies, 1966) e Juraj Herz (o inquietantemente actual Spalovac mtrvol/The Cremator, 1969). Lembrar que, para além dos filmes em cima indicados, o hilariante The Firemen’s Ball, de Milos Forman, o intrigante Closely Watched Trains, de Jiri Menzel e o extraordinário Marketa Lazarová, de Frantisek Vlacil (talvez o filme cujo desconhecimento geral mais me espanta) são dos anos 60, serve como alerta suficiente para a riqueza do cinema checoslovaco desta época de aberturas e repressões. Jan Svankmajer estava ainda a fazer apenas as muitas curtas metragens que o tornaram famoso e que não terão deixado de marcar toda esta geração. A sua primeira longa metragem, Alice, é de 1988.* Valerie é a rapariga de 13 anos a cujo crescimento assistimos. O aparecimento da sua primeira menstruação marca o início de uma viagem em que ela se vê assaltada pelo mundo, num ambiente pagão e surrealista onde o sangue que os vampiros desejam tem uma marca central para além da marca da sua entrada no mundo adulto. A jovem pende mais para a chegada de um grupo de actores que para a chegada (ansiosamente esperada pela erótica avó, fria como a neve) de um grupo de missionários. Esta avó, atraente lúbrica penitente, faz a ponte entre o universo virginal da jovem Valerie e o interesse material, sexual e monstruoso da classe clerical que invade a aldeia e a assedia constantemente. Muitos dos mistérios que se tecem ao longo do filme não alcançam resolução e esta fragmentação narrativa é uma das suas atracções. Aparentemente, os saltos e desvios que no filme se notam reproduzem os que se lêem no livro de Vitezslav Nezval em que aquele se inspirou. De que serve saber quem é o verdadeiro pai de Valerie ou como é que esta sobrevive à fogueira a que o padre que a tenta molestar a condena, quando o que verdadeiramente desejamos é que Valerie olhe para nós de frente e nos assegure de que para lá do mal está a sua inviolável donzelice. No fim, a figura da pequena jovem sai vencedora de todas as ameaças vampíricas e clericais à sua integridade. A opção onírico-vampírica que anima o filme de Jaromil Jires – seguindo uma tradição narrativa popular estabelecida no cinema da Europa de Leste que os vários regimes comunistas não viam como ofensiva – torna-se mais dolorosa se a virmos como um desesperado escape à repressão e ao obscurantismo que se seguiu às aberturas da Primavera de Praga. Explica Jana Prikril (autora do texto que acompanha uma edição recente do filme) num artigo constante de uma edição de início de Outubro de 2015 da NYRB, que esta é uma altura em que as autoridades checoslovacas baniram os filmes de alguns dos autores mais famosos mas se esforçaram, também, por manter a ilusão de uma cinematografia continuada e de sucesso. Ironicamente (veio a descobrir-se mais tarde), o poder via Menzel e Jires como dois realizadores capazes de fazer, com sucesso, filmes acessíveis ao público. Não foi isso que aconteceu com este filme que aqui se distingue.** Com o onirismo e o cliché do filme de vampiros mistura Jires uma outra face pagã e lírica, e desta ousada fusão resulta um filme que os censores inexplicavelmente não proibiram – como acontecera com a sua longa metragem anterior, The Joke (1969), muito mais abertamente crítica e de um nihilismo mole humoristicamente contrário ao optimismo oficial dos inícios do comunismo da era do pós-guerra. O absurdo de algumas das demonstrações de Valerie age eficazmente como exibição dos absurdos do regime mas os seus censores parece não terem entendido a sua mecânica. Passados quase 50 anos, Valerie a Týden divů torna-se cada vez mais delicioso e cada vez mais improvável. Ao contrário de Krik/The Joke ou Zerk/The Cry, a passagem do tempo tem-lhe trazido favores inesperados. * ver as cerca de 15 curtas-metragens que Jan Svankmajer realizou nos anos 60 e 70 é um inestimável avanço no conhecimento do cinema checoslovaco destas duas décadas. Svankmajer continua em actividade e espera-se com ansiedade a conclusão de The Insects. ** O regime queria “filmes para o público, filmes para hoje, filmes para socialistas”. Quase 50 anos depois é espantoso e doloroso verificar que há países em que esta prática totalitária persiste e que filmes que deveriam ser orgulhosamente celebrados como exemplos de criatividade são, ao invés, escondidos da população ao mesmo tempo que os seus autores são perseguidos.
Hoje Macau VozesTachos de lata [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m 2011, Passos Coelho prometia não levar para o Governo “amigos, colegas ou parentes, mas sim os mais competentes”. Já depois de convocadas as eleições de 2015, o Governo PSD/CDS contornou as suas próprias regras e nomeou centenas de dirigentes para a Função Pública. Em 2011, Passos Coelho prometia não levar para o Governo “amigos, colegas ou parentes, mas sim os mais competentes”. Para isso até criou a Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP). O leitor pode espantar-se, mas é esse mesmo Governo que acaba por fazer 14 nomeações definitivas para os Centros Distritais da Segurança Social, todas atribuídas a quadros do PSD e do CDS. E logo no Ministério de Mota Soares, campeão da demagogia anti-tacho. O que é que aconteceu? Ao que parece, a incapacidade da CReSAP para realizar todos os concursos bastou para que fossem feitas várias nomeações de substituição, livres de quaisquer regras. Chegado o momento do concurso, esse tempo de substituição exercido nos cargos da Administração Pública contou como “experiência” no currículo destes militantes. Os cargos intermédios também estão fora do crivo da CReSAP. E por isso foi possível ao Governo, já depois de convocadas as eleições, contornar a suas próprias regras e nomear centenas de dirigentes para a Função Pública. Segundo consta, no Ministério da Defesa até foram criados novos cargos na semana anterior às legislativas. Apesar de todo o seu moralismo e arrogância, Passos Coelho não cumpriu nada do que prometeu. Só a hipocrisia do discurso se tornou mais sofisticada. A nomeação de fiéis do partido para lugares no Estado é uma forma de recompensa às tropas, mas não é só isso. Em áreas tão delicadas como a Segurança Social, o assalto às esferas de direcção possibilita a concretização de uma visão ideológica, sem escrutínio ou contestação. Por isso ninguém desafia ou denuncia, e por isso é tão difícil travar o desmantelamento dos serviços de protecção social ou a sua entrega a instituições privadas (também elas, muitas vezes, controladas pela Direita). Saibamos separar o trigo do joio. A Administração Pública não se confunde com os “boys”, muitas vezes incompetentes, colocados pelos partidos nos cargos dirigentes. Além deles, existe o esforço dos seus trabalhadores. Funcionários e quadros que o Governo prometeu proteger para acabar com os tachos, vindo a fazer exactamente o contrário. Mariana Mortágua, in Esquerda.net
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCasual [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] sexo casual define-se pela inexistência de sentimentos românticos pelo parceiro, que pode ser de curto ou de longo-prazo. Quando é de curto-prazo, i.e., uma única noite de loucura com alguém que acabámos de conhecer, é mais vulgarmente e internacionalmente conhecido como ‘one night stand’. O sexo casual de longo-prazo, refere-se a um relacionamento que pressupõem encontros sexuais regulares mas que não pressupõem qualquer actividade romântica, ou amor entre os envolvidos. O sexo casual parece ser uma prática comum no século em que vivemos, com alguns fervorosos adeptos e outros menos. Diz a Psicologia Evolutiva que os homens têm mais queda para estas coisas casuais, especialmente as de uma noite, porque, assim, podem plantar a sua semente por um maior número de corpos, ou seja, aumentar a sua possibilidade de transmissão genética. As mulheres, por seu turno, irão preferir estratégias de acasalamento de longo prazo porque, pronto, se de facto quiserem deixar parte da sua carga genética ao mundo, implica um investimento de pelo menos 9 meses e não é um decisão que se tome de ânimo leve. Por isso, de uma forma muito geral, isto vem justificar as nossas escolhas relativamente à natureza dos encontros sexuais que pretendemos com base no nosso passado animalesco que era, de facto, muito orientado para a procriação. Diria eu que agora, a dinâmica não segue tão estrita explicação porque, bem, acho que não víamos sexo a acontecer de todo. Há homens que escolhem ter mais encontros casuais porque há mulheres que os querem, e vice-versa. Diz a minha ingenuidade que há de haver gostos para tudo, entre homens e mulheres, para satisfazer a diversidade sexual de cada um. Sócio-sexualidade é o conceito desenvolvido na comunidade científica para descrever uma maior queda para sexo casual regular. Não sei o porquê da escolha de vocábulo, talvez porque é preciso ser-se sociável, um ser extrovertido, para o sexo. Por isso, o sexo casual é para quem é socialmente aberto, e diga-se que é preciso muita lábia e técnica de engate para conseguir chegar à loucura que uma noite pode proporcionar. Percebemos, por isso, que sexo casual de curto-prazo é o resultado de uma atracção estritamente física que se quer ver satisfeita – na hora.[quote_box_right]“O cliché avisa-nos, contudo, que relações que duram no tempo e que se descrevem como exclusivamente sexuais são impossíveis de ser alcançáveis. Acabarão quando um dos dois se apaixonar”[/quote_box_right] Entende-se de forma diferente os amigos coloridos, amigos com benefícios ou os ‘fuck buddies’, neste caso tratam-se de encontros entre dois conhecidos, amigos ou não, com o único propósito aliviar as gónadas, desenferrujar as dobradiças, lubrificar a máquina sexual. Trata-se de não só satisfazer desejo mas de manter a sexualidade aberta em actividade. Esta é a visão puramente instrumental do sexo, i.e., eu quero, tu queres e por isso devemos aliviarmo-nos juntos. Sem complicações e sem o problemático amor envolvido, sexo parece ser muito simples de ser solucionado. As complicações que aparecem são de outra natureza, caem nos mal-afamados estereótipos e expectativas que põem os homens numa categoria de reis e as mulheres em categorias várias (mas que não são de rainha). O cliché avisa-nos, contudo, que relações que duram no tempo e que se descrevem como exclusivamente sexuais são impossíveis de ser alcançáveis. Acabarão quando um dos dois se apaixonar. Alcançando, assim, o prólogo que eu pretendia com a reflexão que se impõe: como é que o amor se relaciona com sexo ou de que forma podem ser tratadas como exclusivas ou emparelhadas? A casualidade, muitas vezes entendida como aleatória, oferece ao imaginário sexual uma novidade, uma excitação que depende do desconhecido e do desejo em alcançar mares nunca dantes navegados (apelando ao português que há em nós). Numa noite explora-se o que se pode, em encontros que se repetem no tempo talvez se explore um pouquinho mais, até porque o gradual à vontade vai permitir formas de comunicação sexuais cada vez mais sofisticadas.
Isabel Castro VozesUm presunto e um galo [dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Como se já não bastasse o ar que respiramos todos os dias. A Organização Mundial de Saúde veio esta semana dizer que as salsichas, o bacon e os enchidos são cancerígenos. A carne vermelha, às tantas, também faz muito mal. Mas certo, certo é que o presunto está no mesmo grupo de substâncias cancerígenas que o tabaco, o amianto e os gases de escape emitidos pelos motores a gasóleo. Quem diria. Em Hong Kong, onde se fazem as contas às pessoas que morrem por ano vítimas da poluição, também há estudos sobre os hábitos alimentares: os residentes comem três salsichas e meia e quase duas fatias de fiambre por semana. Estão condenados, os pobres coitados. Como se já não bastasse o ar que respiram todos os dias. Vivemos na era em que tudo faz mal. Comer vegetais faz mal, porque não sabemos de que é que são realmente feitos. Beber leite faz mal, porque não sei o quê. Comer carne faz mal. Comer peixe faz mal. Comer pão faz mal. E depois há ainda o glúten, a descoberta das mil e uma intolerâncias alimentares. E agora as alheiras e o salpicão e o presunto, bens essenciais que não me apetece dispensar – fazem parte do meu código genético. Fumar também faz mal, mas isso faz mesmo. Beber álcool também, embora hoje em dia o mundo científico nutra uma grande simpatia pelo vinho tinto. Em suma: viver faz mal. Quem vive em Macau – assim como aqueles que vivem em Hong Kong – sabe desde o primeiro dia que corre sérios riscos, sendo que o problema não é o presunto importado, a rara alheira de Mirandela ou o enlatado manhoso. Mesmo que seja vegan, faça 30 minutos de exercício físico por dia e a hora de meditação ao entardecer o tenha tornado completamente impávido e muito sereno, incapaz de se chatear com o trânsito, com a inflação e o mutismo selectivo de parte da população, está condenado o triste residente das regiões administrativas especiais. O problema é mesmo a inevitável respiração – sair à rua é uma coisa complicada, sobretudo por estes insalubres dias. Crianças e velhos trancados em casa, os que têm problemas respiratórios também. Os outros que tenham paciência e respirem o ar insuportável a que temos direito. Um dia destes o Governo faz um ano e começo a perder a esperança de que alguém se preocupe – a sério – com a poluição. Já sei que esta nuvem que nos cobre a cabeça e não é chuva vem de fora, que a culpa não é nossa, que estamos do Delta do Rio das Pérolas e por aí fora. Mas quem percorre o território diariamente não acredita na culpa externa: basta abrir os olhos e ver os autocarros velhos, as carrinhas e os camiões a desfazerem-se que andam por aí. São os tais gases de escape emitidos pelos motores a gasóleo – e frequentes vezes são gases que nem escape têm, que a viatura já deu o que tinha a dar. São salpicões sobre rodas, portanto. As autoridades não parecem estar particularmente preocupadas com a situação. Nunca vi nenhuma fumarenta carrinha ser multada. Talvez porque a polícia se preocupa mais com os veículos parados, aqueles que têm donos que se esqueceram da moedinha no bolso, aqueles que têm donos que se esqueceram de acordar às 8 da manhã de domingo para não falharem o parquímetro que, à porta de casa, não lhes dá um dominical minuto de descanso, guardado que está por um zeloso agente das força de segurança. Quanto ao Governo, falta alguém com vontade de tornar Macau numa cidade habitável, onde se possa respirar fundo e menos fundo, que imponha técnicas de conservação energética e essas invenções modernas que, dizem os especialistas dos outros países, fazem poupar na conta da electricidade, com as devidas consequências para uma vida um bocadinho melhor. 2. A semana começou mal: mais de uma centena de pessoas feridas num acidente com um jetfoil que viajava de Macau para Hong Kong. O barco embateu num misterioso objecto, embateu com força, e aquilo foi sangue por todos os lados. As imagens que nos chegaram são feias – e mais feias são porque podíamos ser nós. Quando a desgraça nos é próxima, torna-se mais forte. Não foi o primeiro acidente com um jetfoil. Aqui há uns anos falou-se muito na necessidade de melhorar as condições de segurança dos barcos, mas o assunto caiu no esquecimento. Há jetfoils sem cintos de segurança. A maioria tem apoios para os braços feitos de metal. Há várias embarcações com bancos velhos, desconfortáveis, com as marcas de muitos corpos transportados. Não há cintos de segurança, nem sistemas pensados para o transporte de crianças – que pagam como gente grande assim que completam um ano de idade. Em caso de acidente, tudo isto conta. É diferente bater com a cabeça num bocado de ferro ou num pedaço de espuma. Sabemos bem que o empresariado da região não se distingue por ser generoso nas actividades que desempenha profissionalmente, apesar de haver algum gosto por uma certa filantropia com fins meramente mediáticos. Mas falta a generosidade para com aqueles que sustentam os negócios: de um modo geral, o carpinteiro poupa na espessura da madeira dos armários e nas camadas de verniz, o empreiteiro economiza nos metros de fio eléctrico e de tubos, a companhia aérea da terra resolve o problema do catering com umas bolachinhas oferecidas em troca de publicidade. A Shun Tak – a proprietária do acidentado jetfoil, com fortes interesses também no imobiliário – triplicou os lucros no ano passado, em relação a 2013. Não é propriamente uma pequena e média empresa com problemas financeiros. Mas é poupadinha nas condições que oferece aos seus clientes, depois de anos de monopólio, sem concorrência no transporte entre Macau e Hong Kong. Porque o empresariado de Macau não é generoso, o Governo tem de o obrigar a ser, pelo menos, cuidadoso: talvez tenha chegado a hora de termos barcos com melhores condições, para que, da próxima vez, em vez de sangue sejam só galos na testa.
André Ritchie Sorrindo Sempre VozesUm país, muitos sistemas [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stávamos na segunda metade dos anos 90 e não era, naqueles tempos, vulgar questionar-se o conceito do espaço Schengen, da moeda única e, enfim, todo o projecto europeu. Era tudo cor-de-rosa, fazia tudo sentido – qual crise económica, imigrantes do Leste ou refugiados Sírios. É nesse contexto que um sábio amigo meu, numa conversa sobre o futuro de Macau, diz-me assim: “numa altura em que na Europa abolimos as fronteiras e usufruímos da livre circulação, com Macau e Hong Kong a China vai criar fronteiras dentro do seu próprio país”. Essa observação, aparentemente simplista, tinha na verdade um significado bastante profundo. Possivelmente por essa razão tenha ficado bem guardada e fechada nas gavetas do meu pensamento para que, passados quase 20 anos, pudesse ser revisitada para uma nova reflexão num cenário completamente diferente e, então, inimaginável. O que vou contar passou-se recentemente. A história em si de piada tem pouco, mas merece ser contada pela extrema absurdidade da coisa e como testemunho das bizarras situações que podem ser criadas dentro de um país que decidiu ter dois sistemas. Éramos ao todo quatro colegas de serviço, a caminho de Zhuhai para uma reunião de trabalho. Foi tudo meticulosamente planeado e discutido com antecedência, nomeadamente a agenda da reunião e a língua a utilizar, que tivemos o cuidado de solicitar desde logo que fosse o cantonense, evitando assim qualquer tipo de desvantagem que o eventual uso do mandarim nos poderia trazer. Logisticamente, a minha assistente teve o cuidado de organizar o transporte para as Portas do Cerco, definindo rigorosamente as horas de partida, de regresso e os respectivos pontos de encontro, uma vez tratando-se da fronteira com o maior movimento em toda a China. Tínhamos acabado de chegar às Portas do Cerco e, para qualquer pessoa de fora que olhasse para nós, não havia nada de invulgar no nosso grupo que se resumia a quatro sujeitos locais, todos falantes de cantonense, fisicamente orientais, com feições bastante semelhantes até, e que, por algum motivo, vão juntos à China saindo de Macau – tal como os milhares à nossa volta que, todos os dias, atravessam a fronteira de forma afogosa. Só que afinal éramos todos diferentes. Quando nos aproximamos dos balcões da migração, subitamente apercebemo-nos de algo que fomos incapazes de antecipar: cada um de nós ia, afinal, utilizar uma combinação distinta de documentos de viagem para sair de Macau e entrar na China. O John (*), chinês natural de Macau, ia registar a sua saída com o BIR da RAEM e entrar na China com o wui heong cheng. (**) O Brian, chinês de Hong Kong (aliás Hong Kong Citizen, conforme gostam de se denominar) ia com o BIR da RAEHK e o wui heong cheng, respectivamente. Eu, maquista, tinha já na mão o BIR de Macau e o passaporte português com visto para a China de entradas múltiplas e prazo de dois anos. E agora o over the top: o Albert que, apesar de ser chinês originário de Hong Kong, e tão local como qualquer um de nós, é na verdade natural de Londres, Inglaterra. Para todos os efeitos, é cidadão das terras de Sua Majestade e, como tal, para ambos os territórios ia utilizar o único documento de viagem que possui para o efeito: o passaporte da Grã-Bretanha. Com a particularidade de que, para entrar na China, ia até estrear um visto novo com direito a… duas entradas apenas! Foi assim que no meio da típica confusão do primeiro andar do posto fronteiriço das Portas do Cerco, em que por alguma razão toda a gente atravessa a fronteira a correr – porventura com receio de uma eventual aparição do Coronel Mesquita liderando as tropas rumo à tomada do Passaleão – combinámos à pressa como ponto de encontro a zona logo à saída de Gongbei. E separámo-nos. Ora, o caríssimo leitor sabe muito bem o resultado dessas combinações feitas à pressa, pois certamente leu a edição anterior desta coluna em que me debrucei sobre a nossa abusiva dependência dos telemóveis para marcar encontros banais do dia-a-dia. Quando cheguei a Gongbei e ao nosso suposto ponto de encontro, estava lá apenas o John. Foi o primeiro a despachar-se por ser portador dos documentos mais vantajosos para essa viagem em particular. Se o destino fosse a Europa, eu seria certamente o primeiro a chegar. Ficámos então à espera dos outros dois que por alguma razão nunca mais apareciam. A dada altura veio um polícia que nos mandou embora, pois não podíamos permanecer ali parados à porta do posto fronteiriço de Gongbei. Pelo que descemos as escadas rolantes que dão acesso ao célebre centro comercial subterrâneo. O que aconteceu nos 20 minutos seguintes podia facilmente figurar num filme do Woody Allen. A simplicíssima tarefa de comunicar a mudança do ponto de encontro aos nossos colegas Brian e Albert acabou por se tornar num verdadeiro bicho-de-sete-cabeças. Excerto de diálogo entre o Brian e o John: John: “Olha, estamos no centro comercial à vossa espera. Onde andam vocês? Sabes do Albert?” Brian: “Eu já me despachei. O Albert, a última vez que o vi estava ainda na fila para foreigners… Centro comercial? Passei pelo centro comercial e não vos vi!” John: “Passaste pelo centro comercial e não nos viste? Desceste as escadas rolantes?” Brian: “Escadas rolantes? Não vi nenhuma escada rolante, estás na zona do tabaco duty free?” John: “Não! Isso não é o centro comercial! Mas onde estás tu afinal? Já atravessaste a fronteira?” Brian: “Estou numa praça e não vejo nenhuma escada rolante! Devo voltar para trás ou não? Passo pela migração outra vez?” John: “Fica aí onde estás! Manda-me uma foto e já te dou indicações!” Três minutos depois liga o Brian ao John: Brian: “Não consigo enviar a foto! Estou com problemas de rede! Há pouco o Albert ligou-me, teve problemas porque preencheu mal a ficha! Mas fiquei sem perceber onde estava porque a chamada caiu!” John: “Vai ao settings do telemóvel e liga o data roaming! Já deves estar com a rede da China! É por isso que não consegues enviar a foto!” Brian: “Roaming? Mas aqui já conta como roaming?” Depois de muitos telefonemas e finalmente reunidos, conseguimos ainda assim chegar ao local da reunião antes da hora. Pelo que decidimos ir tomar um café ao Starbucks para refrescar a cabeça e esquecer toda aquela desnecessária aventura transfronteiriça. Do nosso pedido de macchiatos, lattes e frapuccinos em que identificámos as bebidas em inglês, a funcionária ao balcão pediu-nos que repetíssemos tudo, apontando para uma lista inteiramente escrita em chinês. Pois isto de se misturar cantonense com inglês é comum em Macau e em Hong Kong, mas na China nem tanto. E ela não percebeu nada do nosso pedido. “OK… Alguém sabe como se diz frapuccino em chinês?” Naturalmente, viemos a ter a mesma dificuldade na nossa reunião. Felizmente, valeram-me os 12 anos em que trabalhei no Governo e aprendi a falar cantonense decentemente, comme il faut. Já os meus colegas não tiveram a mesma facilidade: habituados a misturar termos técnicos em inglês no meio do cantonense, em diversas ocasiões ficaram encravados. É de facto irónico, mas facilmente compreensível para quem conhece bem o nosso meio. Apesar de tudo, a reunião correu bem e entendemo-nos perfeitamente. E a chave da questão está aqui: entendemo-nos porque nos quisemos entender; e ambas as partes fizeram um esforço para se entenderem. Caríssimo leitor, raramente falo de política na minha coluna, mas hoje apetece-me afirmar com alguma firmeza que acredito verdadeiramente na fórmula “um país, dois sistemas”. Não me arrepia nem um pouco que dentro do mesmo país haja dois ou mais sistemas e uma grande heterogeneidade cultural entre as suas gentes. Não vejo de facto problema nenhum e certamente não é isso que me faz sair à rua com a bandeira do antigo Leal Senado na mão a reclamar de forma bacoca o que quer que seja. Estamos muito bem assim. E que venham outros 50 anos. Sorrindo Sempre Tanto build-up a antecipar a tão esperada conferência de imprensa da NASA, e afinal limitaram-se a anunciar – pela enésima vez – que existe água em Marte. Só que desta feita, dizem eles, apresentam provas irrefutáveis: imagens espectaculares que mostram muita coisa. Excepto o essencial, que se calhar todos queríamos ver: a água propriamente dita. Entre outros, a NASA demonstrou dominar a técnica do filme erótico-não-pornográfico, que mostra e não mostra. A comunidade científica ficou excitada. Eu também não. Sorrindo sempre. (*) Todos os nomes deste artigo são fictícios. (**) Salvo-conduto emitido pelas autoridades chinesas.
Leocardo VozesA Lei? O gato comeu… [dropcap style=’circle’]1[/dropcap])Decorreu no último fim-de-semana mais um Festival da Lusofonia, o Woodstock da comunidade portuguesa em Macau, que em termos do contexto do território onde está inserida, anda mais ou menos pela tabela do “Portuguese settlement” de Malaca – mas mais “chic”, com “c” na ponta. Assim tivemos as caipirinhas, que alguns “forasteiros” do universo da Lusofonia julgam ser a principal razão de ser do festival, uma amostra muito, mas mesmo muito simplista do que são os países onde se fala português, o palco com os concertos, o fumo do grelhador das febras a bater-nos nas ventas, o costume. Uma das atracções que vai ganhando mais destaque que os matraquilhos é o “muro das lamentações”. Sim, todos os anos crescem de tom as queixas por parte dos aficionados lusófonos que vão ali montar o estaminé, ora porque está tudo mais caro, o subsídio não chega para comprar os sacos do gelo, falta isto e aquilo, em suma, o primeiro directo para o Largo do Carmo na Taipa é uma autêntica purga que se faz dos obstáculos que a Lusofonia vai encontrando cada ano que passa . Mas também não consigo imaginar o que mais se podia dizer num directo destes, ou o que esperar para lá destes desabafos. Quem cantem uma morna ou dancem o samba? Assim por assim, fica-se pelo fado. E este ano a novidade do rol de pecadilhos até tem o seu ar de “perfídia” (fica assim, para se manter o nível semi-erudito): o Festival realizou-se pela primeira vez desde que entrou em vigor a lei do ruído, o que obrigou os luso-expositores a enxotar as luso-moscas e a fechar a luso-barraca às luso-onze horas. “Dura lex sed lex”, e o melhor mesmo é lusofonar baixinho, não vão incomodar os pintarroxos mandarins que estão acasalar no pântano anexo ao espaço onde se realiza o Festival. Ninguém ligou muito a este detalhe, e durante a maior parte do tempo todos comeram, beberam e divertiram-se à brava, e outra coisa não seria de esperar, mas ficou registado o facto, que causou algum desconforto inicial. Excesso de rigor? Talvez. Embirração? Possivelmente. Sacanice? Garantidamente. Um dia vamos aprender a ignorar a fobia, e antes aproveitar ao máximo a fonia. [quote_box_left]O Festival realizou-se pela primeira vez desde que entrou em vigor a lei do ruído, o que obrigou os luso-expositores a enxotar as luso-moscas e a fechar a luso-barraca às luso-onze horas. “Dura lex sed lex”, e o melhor mesmo é lusofonar baixinho, não vão incomodar os pintarroxos mandarins que estão acasalar no pântano”[/quote_box_left] 2) E já que estamos na onda do escrupuloso e rigoroso cumprimento da lei, queria falar de José Pereira Coutinho, e da sua candidatura às eleições legislativas portuguesas do último dia 4 de Outubro, concorrendo a um dos dois mandatos pelo círculo de Fora da Europa. Como é do conhecimento geral (e se não for também não tem importância), o candidato Coutinho não conseguiu ser eleito, ficando apenas ligeiramente aquém dos votos necessários, mas conseguiu causar um furor maior do que se tivesse garantido o lugar na Assembleia da República. Tudo porque o presidente da ATFPM é também deputado pela AL local, e especulava-se sobre uma eventual incompatibilidade de funções, pois no caso de ser eleito, Coutinho estaria a acumular as funções de legislador em duas jurisdições diferentes: Macau e Portugal. Mas alto lá, pois TECNICAMENTE a R.P. China é também uma jurisdição diferente de Macau, certo? Ai não, desculpem que estou aqui a falar “do que não sei”, portanto ignorem o disparate. O que sei é que devido improbabilidade de uma situação destas ocorrer, e ao carácter quase único de Macau, que neste particular só encontra paralelo com a outra RAE da China, que é Hong Kong, não existe nada que inviabilize as pretensões do dr. Pereira Coutinho. Não se colocou essa possibilidade, portanto existe um vazio legal, e é por isso que nem a justiça é infalível, filosofando um pouco para relativizar esta grande desgraça. O que se tem observado ultimamente, e com mais incidência depois de se saber que o candidato não foi eleito, e portanto não ia existir nenhuma incompatibilidade, é um arraial de “mocada no Coutinho” que só fica mal a quem o perpetra – e olhem lá que se trata de alguém com elevadas responsabilidades, e que convinha ser ponderado nas afirmações que profere. Se não está a fazer nada de ilegal, o que justifica o conteúdo acusatório que tem sido propalado, inclusivamente nos média, a não ser uma antipatia pelo candidato, e sobretudo por aquilo que é a sua linha de acção política? São perguntas retóricas, estas, pois sei muito bem a resposta: nenhuma, tal como a incompatibilidade que chegou a estar em cima da mesa. O problema é que fico na dúvida se estamos a levar a sério e a cumprir o que ficou estabelecido nos inúmeros compromissos disto e daquilo, e que só parecem servir na hora de aplicar o conteúdo do capítulo V da Lei Básica, o tal que garante um sistema económico livre, capitalista, ou sem mais floreados desses, onde não seja preciso prestar contas a mais ninguém. E aparentemente esse é também o princípio e o fim de todas as coisas, o sol à volta do qual giram todas as restantes valências do segundo sistema. Quanto aos “lusófonos” críticos da candidatura de Coutinho, alegadamente por motivos que têm a ver com a ética, a moral, os princípios da democracia e tudo mais, foi apenas disso que falaram, ou melhor dizendo, cacarejaram. Não conseguiram foi evitar espumar da boca e fumegar das orelhas, de tão ressabiados que estavam, com ar de pindéricos pidescos. Mas esses contam? Se for depois das 11 horas, é ruído, apenas.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesQue Europa se pretende? “The European Union (EU) is going through hard times. Some would even go so far as to claim that it is in the midst of a serious survival crisis. There has also been growing apprehension regarding whether the euro itself, and the EMU of which it is the jewel in the crown, can survive. Moreover, many people and governments, especially in Germany, the Netherlands and the UK, are unhappy with the increasing number of immigrant workers coming to them from the new Member States.” The European Union Illuminated: Its Nature, Importance and Future Ali El-Agraa [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] Itália, ao contrário de outros países europeus estava dividida em inúmeros Estados independentes. A marcha da História foi no sentido da unificação. Qual teria sido o poder de negociação da República de Veneza contra as potências que representavam nessa altura a França e a Grã-Bretanha? O mundo, presentemente, reduziu-se ainda mais, e põe directamente em relação económica, e concorrência social, grandes países, livres na sua política, e Estados médios, condicionados na sua. O combate é desigual, a não ser que se criem regras de jogo tão claras que o intercâmbio comercial se torne leal. Mas essas regras implicavam uma única moeda ou um sistema de câmbios fixos, em que muitas vezes, com efeito, os desvios permanentes que se observavam nas paridades das moedas vinham confundir os valores relativos do trabalho dos homens. A experiência das décadas de 1980 e 1990 foi a de sobrevalorizações e subvalorizações sistemáticas das moedas nacionais. A mesma exigência que levava à unificação dos países divididos em territórios independentes levou a pretender unir num conjunto homogéneo pequenos e médios Estados, para constituírem um espaço suficientemente poderoso para dispor de todos os atributos de soberania. A dinâmica era clara e foi no sentido da História. Mas o processo tem sido complexo, pois põe em jogo, simultaneamente, o político, o económico e o social. A sua relativa rapidez fez com que a redistribuição dos poderes que implica surgisse à luz do dia. Como é possível imaginar que aqueles que detêm poderes, ou pensam detê-los, fiquem sem reacção? E pouco importa se trate de trocar um poder formal por um poder real. O simbólico é importante, e os atributos do poder contam mais, por vezes, do que o seu exercício real. Certas resistências à Europa explicam-se deste modo. Um segundo elemento, essencial, deve ser tomado em conta. Refere-se à filosofia que preside à unificação europeia. Que esta seja inevitável não significa que as suas modalidades sejam as únicas. A unificação dos Estados foi um processo político, voluntarista, dirigista. A união económica e monetária, pelo contrário, provém de uma outra concepção. A revolução conservadora que se apoderou da Europa, na viragem da década de 1970 e 1980, levou à afirmação do primado do mercado sobre a vontade política, do liberalismo sobre a democracia. A Europa seria um grande mercado como é; a teoria económica afirmava que dele adviriam grandes vantagens, em termos de eficiência, de factores de progresso e, consequentemente, de produtividade e competitividade. Era preciso organizar esse mercado segundo os cânones da concorrência e deixar à flexibilidade espontânea dos preços e dos salários o cuidado de regular os desequilíbrios. A opção era, pois, a de políticas virtuosas, não intervencionistas, financeiramente equilibradas. No frontispício de Maastricht encontravam-se abstracções como o mercado, a concorrência, a moeda, e proibições como a inflação e os défices públicos. Tratava-se sem dúvida, de uma magistral falha de comunicação. Os povos esperavam ser aliviados das dificuldades da sua vida quotidiana, da ausência de futuro provocado pelo desemprego maciço. Em vez de lhes falar de melhoria do seu nível de vida, erradicação do desemprego, realização pelo trabalho, anunciava-se-lhes, como solução para os seus males, a moeda única, dizendo-lhes que a porta seria estreita e que haveria muitos candidatos mas poucos eleitos. A moeda, por essencial que seja, é, como dizia Hegel a “abstracção de uma abstracção”, visto que é um equivalente geral, a abstracção concretizada de todas as necessidades humanas. Evidentemente que estas duas posições não são mutuamente exclusivas mas são complementares. Mas a moeda foi anunciada como algo prévio ao crescimento, a virtude como condição necessária, mas não suficiente, da solução para o problema do emprego. Os mercados financeiros e cambiais, ao mesmo tempo, em busca de lucros fáceis, entregavam-se à especulação, retendo uma parte cada vez maior do esforço dos países. Faziam-se dançar as moedas, desfazendo, num instante, o resultado dos esforços de anos de rigor. Ao mesmo tempo também, cada um confessava a injustiça que constituía o nível historicamente elevado das taxas de juros: a miséria, o medo do desemprego, a estagnação do nível de vida, o marasmo dos negócios, tudo isso servia para distribuir rendimentos consideráveis aos detentores do capital financeiro. É claro, a Europa era uma moda, uma meta que podia voltar a dar esperança às pessoas; a unificação é portadora de novas solidariedades. Mas poderia e deveria ter-lhe sido dado um rosto mais atraente. A palavra Europa está hoje, mais do que ontem, carregada de múltiplas conotações. Algumas são negativas, pois o período mais recente apresentou a Europa mais como uma imposição do que como um futuro. Outras são positivas, como a pacificação de uma região turbulenta do mundo, mas pertencem ao passado. Outras continuam a ser interrogativas; a Europa, potência económica, irá deixar que continue a desenvolver-se no seu seio o mais grave dos males e também o mais pernicioso que uma democracia pode conhecer em tempo de paz que é o desemprego maciço? A Europa dos vinte e oito, encerrada nos seus egoísmos mas aspirando ao poder político, irá assistir passivamente à pauperização da Europa do Sul e Oriental, postergar a adesão dos países dos Balcãs, da Turquia e deixar morrer a Ucrânia dividida, à escalada dos nacionalismos, dos conflitos extremistas e étnicos e das divisões entres os seus Estados-membros, que tanto a fizeram sofrer no passado? Hoje, todas estas e outras conotações retiram ao conceito de Europa a sua modernidade. A construção europeia foi fértil nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial; permitiu aos Estados-membros enfrentar melhor o seu destino, porque era, simultaneamente, um projecto político, económico e social. Em pouco tempo, transformou-se numa das regiões mais ricas do mundo, mas também numa das regiões onde a protecção social estava melhor garantida. Daí em diante, tem vindo a perder fôlego, a cooperação necessária entre os países da Europa diminuiu nos momentos em que a sua necessidade mais se fazia sentir. Perante a adversidade, isto é, face aos choques múltiplos que caracterizaram as últimas décadas, a frente comum esboroou-se. O facto de os países europeus serem concorrentes na competição internacional fez muitas vezes esquecer que eram solidários, pela comunhão dos seus interesses a longo prazo e, .com ou sem razão, a Europa foi vista mais como um projecto financeiro virtuoso do que como um destino mobilizador dos povos. Isso é grave. Mais do que nunca, a Europa é um imperativo essencial. Se nos desviarmos dele, mesmo que, no imediato daí retiremos alguns benefícios, o futuro tornar-se-á mais sombrio, politicamente, mas também economicamente. Porque o mundo em que entrámos é um mundo em que as políticas nacionais têm cada vez menos efeito nos desequilíbrios nacionais. Quando o têm, é, quase sempre, em detrimento de outros países. O remédio é então ilusório, pois cedo ou tarde, os outros países retirarão as suas lições, e as suas reacções restabelecerão a situação, anterior na melhor hipótese e, na pior hipótese, agravá-la-ão. Uma casa só pode permanecer aberta se o ambiente exterior não lhe for hostil. O mesmo sucede com um país. O projecto comunitário convida os Estados-membros a dominarem conjuntamente o seu mundo exterior, dentro e fora da Europa, a controlá-lo melhor para, em conjunto, tirar dele melhor partido. As tendências do presente que se fazem sentir vão num sentido oposto. Como chegámos aqui? Seria ridículo afirmar que os governos europeus são os únicos do planeta que não são sensíveis ao agravamento do desemprego. Pelo contrário, tudo indica que se trata para eles de uma preocupação constante. Também não se tornaram repentina e dogmaticamente monetaristas. A hipótese a formular é que o cimento da construção europeia, na década de 1980, foi exclusivamente monetário; que a coordenação entre países europeus foi feita apenas em torno da manutenção das paridades fixas; que isso, evidentemente, era desejável mas que, por falta de coordenação dos outros elementos de política económica, só podia ser feita em detrimento do desemprego. É de ter consciência do carácter parcial, e por isso injusto, quiçá desta hipótese, na medida em que nada diz sobre as dificuldades reais das políticas nesse período, nomeadamente em função das estratégias de não cooperação conduzidas nas outras regiões do mundo, sobretudo nos Estados Unidos. Mas ela contém uma parte de verdade, pois no essencial, os países europeus só se puseram de acordo explicitamente e institucionalmente num único objectivo, a desinflação, e a partir daí, a construção europeia foi julgada apenas em função da satisfação desse objectivo. A Europa foi construída a partir do início da década de 1980 sob o signo do dinheiro caro. Há qualquer coisa de estranho, de surrealista mesmo, em pensar que os destinos dos seus povos ficava frequentemente suspenso do anúncio de decisões respeitantes à taxa de juro de uma instituição nacional cuja missão exclusiva era a de zelar pelos interesses nacionais pelos quais era responsável. A lição é dura e só se pode compreender o presente e preparar o futuro relembrando os erros do passado, que infelizmente muitos repetem-se, apesar de circunstancialismos distintos, mas a lição faz lembrar a fábula das abelhas de Mandeville em que a procura sistemática da virtude financeira tem-se revelado contraproducente. O que provocou a explosão do SME foi a obstinação em mantê-lo intacto por razões de credibilidade, muitas vezes contra o bom senso. Querer verdadeiramente a Europa implica que não nos enganemos de objectivo. Caso contrário, os acontecimentos se encarregarão de desfazer os dogmas, de fazer vergar as instituições que abanam, por muito inteligentes que sejam. A única, a verdadeira justificação económica da construção europeia, é que ela tem por desiderato aumentar o bem-estar dos povos, isto é, o seu nível de vida e as suas oportunidades de emprego. Não é procurar a virtude financeira em detrimento da coesão social.
Hoje Macau VozesEL Dorado Por Aurelio Porfiri [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]facto de estar actualmente longe de Macau dá-me uma certa vantagem, na medida em que me permite ter um distanciamento que acaba por ser saudável. Será que algum dia terei visto Macau como o El Dorado da eterna juventude? Certamente que não, mas um artigo de Kate Springer fez-me pensar sobre o assunto. O artigo publicado a 22 de Outubro, na secção de viagens em bbc.com, intitulava-se “Segredo chinês da longevidade” e, adivinhem só; Macau era o local onde procurar esta misteriosa “poção”. Segundo as mais recentes estatísticas, nas últimas décadas, Macau tem vivido um período de prosperidade sem precedentes, acompanhado por um aumento da esperança de vida, pelo que nos sentimos muito gratos. Mas as estatísticas apenas revelam parte da realidade. O artigo desenvolve-se em torno do Sr. Chan, de 90 anos de idade, habitante de Coloane. Este senhor está, basicamente, muito agradecido à indústria do jogo por lhe permitir manter o seu estilo de vida. Senão, vejamos: “Passei a maior parte da minha vida fora,” afirmou Chan, que tem oito filhos e dez netos. “Sento-me com a minha mulher no paredão e ficamos a admirar a paisagem. Passamos os nossos dias felizes.” Chan atribui a sua longevidade, a uma vida feliz e rotinas simples (e ainda a uma dieta rigorosa à base de arroz e alho) – e parece que este nonagenário está longe de ser um caso raro”. Assim, a tese da jornalista da BBC é a seguinte: o resultado do desenvolvimento, devido às verbas da indústria do jogo, é … poder viver uma vida bucólica. Mesmo que implique a degradação total da cidade. Mas, a imagem do velho Sr. Chan e da sua mulher a admirarem a paisagem, faz-nos esquecer as pessoas que se arruinaram por causa do jogo, uma cidade que para além do jogo não tem outros recursos de valor e, ainda, os jovens que só encontram significado no dinheiro e na ambição material. Claro que a longevidade é um factor positivo e, pessoalmente, desejo que o Sr. Chan e a sua esposa ultrapassem os 100 anos de idade. Mas detecto uma contradição na mensagem que passa no artigo; se uma maior riqueza serve para que tenhamos uma vida bucólica com estilo, não é necessário esforçarmo-nos para fazer evoluir a economia, podemos pura e simplesmente voltar ao campo. Será que o Sr. Chan (e a jornalista) sabe o preço que é preciso pagar para que, ele e a sua mulher, possam ter todos os dias arroz e alho? “Embora esteja actualmente numa curva descendente, o jogo manteve durante anos a economia à tona d’água. Só no ano passado as receitas do jogo representaram 80% do PIB e, os impostos pagos pela indústria, constituíram a grande fatia do bolo fiscal. “Todos os turistas que visitam Macau vão aos Casinos. O que é óptimo,” continua Chan. “É assim que o governo consegue tomar conta de nós”. Parece pois que as vantagens pessoais se sobrepõem às desvantagens colectivas. No artigo são ainda mencionados os netos e os sobrinhos-netos do Sr. Chan. A maior parte deles, se tiverem possibilidade, hão-de querer ir estudar para o estrangeiro e fugir a influências vindas do mesmo meio que permite ao Sr. Chan e à sua esposa continuarem a desfrutar de uma vida singela. Em termos de vida a quantidade é importante, mas a qualidade, não será também?
Fernando Eloy VozesDestrutivo, menos destrutivo e os diabos portugueses segundo barrica [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ui alertado nestes dias, sem dúvida com a melhor das intenções, por alguém dos que têm paciência para ler estes “textículos” que vou publicando nestas páginas, para o tom com que os escrevo. Ou seja, revelam-me como um tipo problemático, destrutivo, pelo que devia moderar, quiçá ser mais positivo, quiçá não falar das coisas que me desagradam mas sim das que me agradam, pois nesta terra a crítica é mal vinda e só me pode trazer problemas. Não devia chamar nomes feios às cadeiras (como fiz na passada semana) e fui mesmo confrontado com o princípio/interrogação “se não gostas, que estás aqui a fazer?” A minha reacção a este tipo de discurso é a seguinte: entre abrir uma ourivesaria para dourar pílulas e continuar a escrever como faço, prefiro a última e apenas faço esta referência por acreditar existirem outros que julgarão que nutro algum ódio de estimação por Macau, pelo governo de Macau ou por quaisquer outras pessoas ou entidades que foram, ou venham a ser, alvos da minha suposta raiva, ou ainda que imaginem que me alimento exclusivamente a sais de fruta, tamanha a acidez que por aqui vai. Pois bem, em relação ao nome chamado às cadeiras reconheço a minha indelicadeza, pois a culpa não foi delas, inanimadas que são não escolhem nem destino nem os rabos que acolhem, ao contrário dos da nossa espécie. Nesse sentido, peço desde já desculpa a todas as cadeiras que estiveram presentes na Fortaleza do Monte, respectivas famílias e móveis amigos. Em relação ao resto, não mudo nem uma vírgula, nem uma nota. Posso ser sarcástico mas não destrutivo ou, pelo menos, não é essa a minha intenção. Critico mas explico porquê. Sou assim, não sou de outra forma nem vou travestir-me de ourives para conseguir abrir putativas portas que, de outra forma, se manterão fechadas. A única coisa que deixamos nesta vida é memória e a escrita é um dos melhores repositórios dela, pelo que há-de fazer-me jus tal como sou, bom ou mau, com mais ou menos chá, sem favores nem salamaleques, sem vénias nem requebros, com pontos de exclamação e muitas interrogações, doa a quem doer. Mesmo que me doa a mim. Entendo também que só critica quem gosta, ou se preocupa, e a ideia do “se não gostas vai-te embora” é a negação de tudo em que eu acredito. É a própria negação de Macau que precisa dos que cá ficam e não dos que a usam como barriga de aluguer. Só criticamos quando nos preocupamos pois não há nada pior do que a indiferença. Macau não me é indiferente, muito pelo contrário. É a minha casa, é onde tento fazer a vida desde há 14 anos, é onde me alimento e durmo, tão bem quanto possível. Macau e a suas gentes, merecem-me o maior respeito e carinho. Para ambos desejo a melhor vida possível, mas rejeito subterfúgios; este mundo já está impregnado que chegue dessa forma execrável de expressão. Acredito também no princípio de “Um País, Dois Sistemas”, que nestas páginas já tive oportunidade de classificar como uma das ideias políticas mais brilhantes de sempre. Deng Xiao Ping quando a imaginou, com certeza não quereria a lei da rolha para Macau, não pretenderia que olhássemos para o lado quando o rei vai nu, não pretenderia que deixássemos de ser críticos pois a crítica abre as portas à criação, e no dia em que tivermos que deixar de ser nós próprios, no dia em que nos tivermos de calar por receio de eventuais poderes invisíveis que nos aferrolham portas, seja em Macau, ou noutro qualquer lugar, nada mais faz sentido. Pronto. Está dito. Voltando ao Festival de Artes de Macau, ou antes ao que o Festival poderia ser e não é, cabe-me reconhecer, por oposição, a Festa da Lusofonia organizada pelo IACM (entidade que já aqui critiquei fortemente em mais do que uma ocasião) como um dos melhores eventos que por cá vamos tendo. Ao passo que o Festival de Artes carece especialmente dos nomes que escolhe para actuarem, na Festa da Lusofonia é indiferente o elenco porque as pessoas encarregam-se de a fazer, em liberdade e à vontade como deve de ser. Foi um belo fim de semana! Obrigado IACM pela festa mas um pouco mais de tolerância com a hora de fecho não seria mau, pelo menos no sábado. Afinal de contas, andamos a vender a capital mundial do entretenimento ou a do recolhimento? Os diabos portugueses de barrica Como ser uma potencial persona non grata em Macau não me chega, para dar vazão à minha hiper-dimensionada bílis vou ter de ser mais ambicioso, chegar mais longe, para lá do mar, ainda para além da Taprobana e pegar nas palavras do Embaixador da República (Im)Popular de Angola em Lisboa, José Marcos Barrica, que disse, e cito: “O problema do cidadão Luaty é apenas um pretexto para fazer ressurgir aquilo que em Portugal sempre se pretendeu: diabolizar Angola”. Caro embaixador Barrica, em primeiro lugar devo dizer-lhe que esqueça o crocodilo Tic Tac porque é pura ficção e pense melhor na imagem que o mundo tem do seu patrão Gancho. Depois, caso não perceba, ou não queira perceber, e pegando no meu discurso anterior, só critica quem gosta ou se preocupa. Não conheço ninguém, ou nenhuma organização em Portugal, que tenha qualquer tipo de animosidade contra Angola, mas conheço muitos que detestam o governo que V.Exa. representa. O governo de um ditador que se pretende eternizar, o governo de um país que poderia ser grande mas é apenas um pastiche de democracia e um paradigma da desigualdade, um governo que prende músicos (esses grandes terroristas!), um governo que faz do nepotismo uma forma de estado, um governo que não suporta a crítica venha ela de onde vier e nos tons em que se apresentar, um governo que prende sem julgamento e chama diabo aos outros, esse ser mítico que afinal a revolução cultural angolana não apagou das mentes progressistas como a do caro embaixador Barrica. E olhe, caro embaixador, se acredita no diabo então acredite também que ele está em toda a parte e não apenas em Portugal. Está em Angola na pessoa de José Eduardo Agualusa, que afirmou, e bem, “que a tradição do governo português tem sido sempre de colaboração estreita com a repressão em Angola”, o diabo está também no Brasil na pessoa de Chico Buarque que esta semana assinou a petição que pede a intervenção do governo português na libertação de Luaty, o diabo está no mundo inteiro bem presente na agenda da Amnistia Internacional que já exigiu a libertação imediata de Luaty Beirão e em muitos outros lados, se calhar até na sua própria embaixada. É o diabo, senhor Barrica, é o diabo um regime que prefere fincar o pé a respeitar a vida humana. É o diabo, senhor Embaixador, ter um presidente que entende a crítica como a ameaça de um golpe de estado. Quiçá, terá ele alguma razão nos seus medos, pois só em países onde não se é livre se imaginam golpes de estado. Porque em Portugal, mesmo com diabos à solta, um presidente com tiques fascistas e governos incompetentes ainda podemos fazer música, ainda podemos criticar e não somos perseguidos pelas nossas ideias nem pensamos em golpes de estado. “Tic Tac!…” MÚSICA DA SEMANA Palavras serão Palavras (com Supremo G) – Ikonoklasta a.k.a. Luaty Beirão Deixem-me falar da minha revolução A minha revolução faz-se com amor Quem não consegue o meu empenho Partilhar com quem não tenho Um pouco daquilo que tenho Revolução não são apenas palavras Por isso a minha são sorrisos, gestos e abraços Esta é a minha crença Isso ninguém me tira Desacredito na política, a ciência da mentira Demasiadas acusações, poucas soluções (…) A vossas revoluções como em tudo são negócio. Por isso a minha revolução é o amor ao próximo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO reflexo de Vénus (Ou como Afrodite começou com aulas de kickboxing e tirou doutoramento em Física) [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]er mulher não é tarefa fácil. Quem já se perdeu em reflexões do género sobre o género há de ter percebido que nascer com uma vagina não é tarefa fácil. Não ter um pénis não deveria definir uma ausência. Não tendo um pénis tem-se uma vagina e isso faz-se pela diferença, pura e simplesmente. Isto são afirmações muito óbvias, poderão pensar. Estas vêm, contudo, responder o eco que se alastra (ou que se alastrou) da bela descrição de Freud de que as mulheres invejam um pénis e que se sentem revoltadas por terem sido castradas. Pois que não, não nos falta nada. Não há nada de biologicamente errado nas mulheres que possa limitar a sua experiência humana. Em contrapartida, há algo de místico, mitológico, científico, social e consequentemente pessoal que molda a existência feminina de formas menos justas, menos libertadoras e que não ajudam a atingir tudo o que se quer e merece. Estaremos nós activamente a reduzir vivências a caixinhas que dizem ‘homem’ ou ‘mulher’? Provavelmente sim, e de igual forma para os dois lados. Dos homens esperam-se certas características e das mulheres outras, até porque quem caia na zona cinzenta poderá ter alguma dificuldade em expressar-se (até semanticamente, quando somos forçados a usar um ou outro género a abordar alguém). Para mentes abertas não será um problema, para mentes não abertas poderá sê-lo. Tem tudo que ver com os limites mais ou menos flexíveis que estas caixinhas têm na cabeça de cada um. Dessa flexibilidade se vive o desenvolvimento social e, espera-se, algum awareness pela diversidade e a sua legitimidade no mundo. Por isso, tanto os homens como as mulheres vivem numa prisão do que é expectável, aceite e praticado em relação ao órgão sexual com que nasceram. Se expectativas de feminilidade e masculinidade afectam e contribuem para quem nós somos, e nos limitam de igual modo, como explicamos a desigualdade de género? E porque é que ainda é um problema no mundo ocidental? Porque a percepção de poder é totalmente diferente, entre um grupo e o outro. O poder é uma dimensão difícil de ser explicada e é muitas vezes esquecida na interpretação de fenómenos sociais, mas que na verdade são alicerces às práticas, crenças e vivências de comunidades ao longo de muitos anos. ‘Se as mulheres querem X, que o façam!’ Sim, certo, faz sentido. Há uma liberdade e poder inerente aos valores ocidentais que nos permite fazer tudo o que quisermos. O poder, contudo, entra na equação nas suas formas e práticas subtis, que são muitas vezes invisíveis, mas eficazes. Não se fazem as coisas só porque sim, vivemos em relação com outros seres humanos e o nosso livre arbítrio resulta da combinação do que queremos e do que somos, como nos vemos e em relação ao mundo em que vivemos. Conheci uma investigadora que num estudo neurológico estabeleceu diferenças entre cérebros masculinos e femininos. De facto, existem diferenças no cérebro dos homens e das mulheres – cérebros masculinos mostram uma maior aptidão para os números e os femininos mostram maior aptidão para as letras. Mas como explicar estas diferenças? Ouve um qualquer jornal que se chegou à frente e erradamente assumiu que estes resultados se devem a diferenças biológicas e inatas: inalteráveis. Assustador, não é? Se as diferenças de género chegam às capacidades cognitivas, não há nada a fazer em relação a isso. Temos que esperar uma mutação genética para esbater estas diferenças que o sexo trás. Errado. O cérebro é maleável que no seu pico de desenvolvimento (quando somos crianças) se influencia pelas nossa experiências, i.e., brincadeiras. Pensem lá nos brinquedos que os rapazes ganham e nos brinquedos que as meninas ganham. Pois. Ser mulher não é tarefa fácil. Tem que parir, manter a beleza perpétua, fazer depilação aos sovacos, ser bem sucedida e lutar pelo merecido empowerment. Ser homem também não é fácil, por tantas outras razões. A desigualdade ainda existe e as formas de contestação social que a abala: também.
Rui Flores VozesO que fazer com tantos refugiados? [dropcap style=’cirlce’]O[/dropcap]s números justificam a interrogação. Só no que diz respeito aos deslocados do conflito na Síria haverá neste momento mais de 10 milhões de pessoas longe das suas casas, 40 por cento dos quais no estrangeiro. Ao contrário da narrativa que alguma imprensa internacional tenta fazer passar e a ideia que a sucessão de cimeiras da União Europeia possa transmitir, a maior parte dos refugiados não está no interior das fronteiras da Europa. Segundo dados da Organização Internacional das Migrações (OIM), até Outubro terão chegado à Europa cerca de 650 mil pessoas, muitas oriundas da Síria e do Iraque, mas também da Eritreia, da Somália ou do Afeganistão. O país que mais refugiados acolheu até agora é a Turquia, onde se encontrarão à volta de 2 milhões de sírios. Este número explica a disponibilidade da União para custear parte da despesa de Ancara com os refugiados. A oferta de 2 mil milhões de euros teria um objectivo muito claro: garantir que os turcos mantivessem as fronteiras da Turquia com a Grécia fechadas a não europeus. Além da Turquia, onde estarão perto de 20 por cento de todas as pessoas que saíram da Síria desde o início da guerra civil, em 2011, só no Líbano, um Estado com pouco mais de 5 milhões de pessoas, haverá mais de 1 milhão de Sírios. Em termos globais, segundo dados do Alto do Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), ainda encabeçado por António Guterres, há por esta altura 60 milhões de deslocados em todo o mundo. Um número mais elevado do que em qualquer outro momento desde o fim da II Guerra Mundial, há 70 anos. A grande preocupação para muitos responsáveis políticos da União Europeia nos últimos meses tem sido a de travar a vaga tão grande de candidatos a asilo, mas também a emprego. Tem sido esse o sentido das decisões tomadas pelos 28 Estados-membros nas cimeiras, a começar pela mais recente, de “pagar” à Turquia para manter os refugiados fechados no seu território, ou a mais “antiga” de aceitar apenas 160 mil pessoas no interior da União nos próximos dois anos. Isto já para não mencionar as decisões individuais de países como a Hungria, que construiu vedações nas fronteiras com a Sérvia e com a Croácia. A União Europeia é naturalmente um destino atractivo, quer para refugiados, à procura de um local estável, desenvolvido, onde possam (re)encontrar a paz, quer para imigrantes económicos, a tentar uma nova vida, em países em que o trabalho é ainda bem pago e os apoios sociais existentes. A União corresponde à ideia idílica de paraíso na terra. A guerra está fora das suas fronteiras há 70 anos, o grau de integração política e económica fez da Europa um dos blocos mais poderosos do mundo. Esta atracção é explicada também por uma prática que não se consegue apagar de um dia para o outro, apenas por que o número de candidatos a asilo aumentou exponencialmente. Ao contrário de outros países, destinos típicos de imigrantes, como os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália, em que prevalecem mecanismos de quotas ou de sorteio, a União tem tido uma política de portas abertas aos imigrantes. O número total de autorizações de residência atribuídas pelos 28 Estados-membros da União Europeia foi, só no ano de 2014, de 2,3 milhões. No ano passado, foram admitidos pela primeira vez na Europa, para trabalhar, estudar ou por razões familiares, quase três vezes mais pessoas do que o número de candidatos a asilo que já chegaram ao continente europeu desde o início do ano. Os números, divulgados na semana passada pelo Eurostat da União Europeia, representam uma diminuição de 2.2 por cento em relação ao ano de 2013. E de 9 por cento quando comparados com os de 2008. Quase um terço das autorizações de residência foi concedido no âmbito de reuniões familiares, cerca de 25 por cento foram autorizações de trabalho e 20 por cento no quadro de autorizações para prosseguir estudos. Ucranianos, norte-americanos e chineses estão entre as nacionalidades que mais procuraram a Europa para residir. Tendo em conta estes números e a incapacidade de os Estados lidarem, por si só, com uma vaga tão grande de refugiados, sobretudo os países em redor da Síria e do Iraque, dois investigadores da Universidade de Oxford, Alexander Betts (especialista em imigrações) e Paul Collier (um economista bem conhecido pelo seu livro “The Bottom Billion” e as armadilhas ao desenvolvimento que têm afectado os países mais pobres do mundo onde vivem mil milhões de pessoas) acabam de propor nas páginas da Foreign Affairs a criação de zonas económicas especiais para refugiados, onde os deslocados poderiam desenvolver os seus negócios e contribuírem quer para o desenvolvimento dos países de acolhimento quer para a futura reconstrução dos seus países de origem. Ao contrário de pagarem as tendas miseráveis em que os refugiados são mantidos e os mantimentos que lhes são distribuídos, os Estados de acolhimento, com a ajuda das principais potências económicas, que já contribuem bastante para a manutenção das operações do ACNUR e de outras agências que trabalham com os refugiados, investiriam em bairros residenciais e em zonas industriais, ajudando os refugiados, nas palavras de Betts e Collier, a ajudarem-se a eles próprios. Não se julgue que isto é perpetuar uma situação que se quer provisória. Os estudos mostram que os refugiados (os tais que vivem nas tendas miseráveis) acabam por ficar, em média, 17 anos nos países de acolhimento. Todos os problemas podem ser vistos como situações, desafios ou oportunidades. O que parece é que muitos dirigentes políticos europeus ainda não passaram a fase de olhar para a vaga migratória como um problema.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesHomicídio numa Joalharia [dropcap style=’cirlce’]N[/dropcap]a passada Segunda-Feira, dia 19, um homem foi morto em Hong Kong. Miao Chunqi, um turista da China continental, foi atacado por quatro pessoas e acabou por morrer no Hospital Queen Elizabeth no dia seguinte. O ataque aconteceu numa joalharia em Hung Hom. Miao e uma companheira, Zhang Lixia, integravam um grupo de 19 turistas de Shenzhen, que tinham chegado a Hong Kong no domingo,dia 18. No dia seguinte, o grupo foi levado a uma joalharia, em Hung Hom, depois de ter visitado o templo Wong Tai Sin. Zhang não quis comprar nada na joalharia e teve uma discussão com a guia do grupo, Deng Haiyan, de 32 anos de idade. Miao tentou apaziguar a disputa entre Zhang e Deng, que alegadamente se tinham envolvido em confrontos físicos. Uma fonte policial afirmou: “A vítima tentou acalmar os ânimos, mas foi alegadamente atacada por um grupo de quatro homens. Investigações preliminares apuraram que foi arrastada para fora da loja e atacada de novo.” Os quatro atacantes fugiram antes da polícia chegar ao local, onde Miao foi encontrado inconsciente. Algumas horas depois dois homens foram presos – um natural de Hong Kong e o outro da China continental. Miao morreu menos de 24 horas depois de, alegadamente, ter sido espancado por quatro homens. Os dois detidos – com as idades de, respectivamente, 32 e 44 anos, compareceram ontem no Tribunal de Kowloon e foram acusados de homicídio. A Polícia também deteve as duas mulheres, Zhang e Deng, por terem lutado na via pública. Foram posteriormente libertadas sob fiança e estão sujeitas a posteriores investigações. O Director Executivo do Conselho da Indústria de Viagens, Joseph Tung Yao-chung, declarou que foi a primeira vez que um turista vindo do continente sofreu um ataque fatal e, demonstrou a sua preocupação por este caso poder demover outras pessoas de visitarem Hong Kong. Acrescentou ainda, “É sabido que muitos turistas continentais pagam algumas centenas de Hong Kong dólares para fazerem estas viagens. Sabe-se também que os guias recebem comissões das lojas para onde encaminham os grupos.” O Conselho da Indústria de Viagens, um organismo regulador da actividade, solicitou uma investigação à agência envolvida, Tian Ma International Travel, de Hong Kong. Este organismo tem recebido diversas queixas de turistas continentais que se sentiram pressionados a fazer compras. O responsável afirmou que os guias estão proibidos de coagir os turistas a comprar e que arriscam a licença profissional se forem apanhados a fazê-lo.” Em 2010, Chen You-ming de 65 anos, um antigo jogador da selecção nacional de ténis de mesa, oriundo da China continental, sofreu um colapso após uma discussão acesa com um guia que estava a pressionar os turistas a fazerem compras durante uma viagem a Hung Hom. Acabou por morrer devido a um ataque cardíaco. O artigo não revelava se a viagem era gratuita ou se era um viagem de baixo custo. Este é um dos pontos que estão sob a investigação do governo de Hong Kong. É evidente que se os turistas não pagam nada pela viagem, fica por esclarecer onde é que os agentes de viagens e os guias vão buscar os seus honorários. Como é que sobrevivem? A resposta é óbvia. Através das percentagens que recebem das “compras forçadas”. Embora a China e Hong Kong estejam empenhados em impedir este procedimento, os casos ainda existem. E não são só as agências que oferecem viagens grátis, mas também aquelas que oferecem viagens de baixo custo que estão envolvidas. O lucro proveniente das compras forçadas é obviamente alto. As “compras forçadas” são proibidas, quer na China quer em Hong Kong, mas ainda se praticam. Ninguém quer assistir a este tipo de situações. A morte de Miao fez sofrer a sua família e os seus amigos, mas também fez sofrer Hong Kong. Os familiares e amigos de Miao estão de luto, Hong Kong também está. A reputação de Hong Kong sai prejudicada com este acontecimento. O website “Yahoo, Hong Kong” publicou um poema escrito por uma pessoa que não revelou a sua identidade. Numa parte do poema lia-se, “Hong Kong é um paraíso de consumo. Mas se não comprares, és enviado para o céu”. O poema revela uma má imagem do turismo em Hong Kong. Todos os suspeitos deste crime devem ser encontrados e acusados para proteger a reputação de Hong Kong. O governo de Hong Kong deverá analisar este acontecimento detalhadamente. Pode originar mais uma crise, prejudicial ao relacionamento com a China. Como é que o governo vai lidar com a situação? É tempo dos responsáveis demonstrarem a sua competência política. * Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Paul Chan Wai Chi Um Grito no DesertoA culpa foi da fotografia [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á algum tempo criei com os meus alunos um grupo de chat no Wei Xin (uma aplicação grátis para mensagens de voz) onde fiquei conhecido por “Tofu Man”. A culpa desta alcunha pode ser atribuída a uma fotografia, onde apareço como meu carro e que publiquei no chat. Os alunos deram-me este nome por causa de uma personagem, dono de uma loja de tofu, do filme “Initial D” (sobre carros de corrida). Tirei esta fotografia à porta de uma garagem, no bairro Ilha Verde, com o carro que tinha há vários anos como se fosse um com velho camarada. O mecânico tinha-me dito que o carro estava tão velho que o problema já não tinha arranjo e que o melhor era mandá-lo para a sucata. Por isso tirei a fotografia antes de me desfazer dele. Os carros são bastante diferentes das pessoas, na medida em que as pessoas têm sentimentos e os carros são apenas objectos. Na verdade as pessoas nem deveriam nutrir grandes sentimentos por objectos. Mas de facto, às vezes, as pessoas são mais insensíveis que os objectos e estes são realmente fiéis aos seus donos. O carro era um Volkswagen em segunda mão, que já tinha sete ou oito anos quando o comprei. Grande parte dos Volkswagen fabricados nesta altura tiveram de ser remodelados devido a problemas na caixa de velocidade ou no sistema de ar condicionado. O meu carro não foi excepção e, as despesas que tive com arranjos ao longo dos anos, foram superiores ao que paguei para o comprar. As peças avariadas foram substituídas por outras retiradas de carros antigos. O mecânico tinha-me avisado para não comprar um carro europeu porque não são desenhados para o mercado asiático e a reparação das peças é muito cara. Com mais de 10 anos o meu velho Volkswagen começou a perder potência. Sempre que o conduzia tinha de ter muito cuidado, porque como andava tão devagar podia provocar acidentes no meio do trânsito. No entanto a condução era muito segura e sempre que tinha um problema com alguma peça dava sempre sinal. O chassi sólido transmitia uma sensação de calma e segurança. Não se recusava a sair mesmo que houvesse uma tempestade e acatava sempre as ordens do dono. Parava no meio da estrada para dar protecção à motorizada que tivesse caído à sua frente. Um carro consegue estas coisas, mas as pessoas nem sempre o conseguem. As pessoas, muitas vezes, dizem abertamente apoiar determinadas estratégias, mas na verdade, de forma encapotada, opõem-se à sua implementação. E em períodos de dificuldade é comum abandonarem-nos. De certa forma os carros são mais fiáveis do que as pessoas. O caso mais inesquecível que se deu com o meu Volkswagen foi precisamente há dois anos quando estava para ser enviado para a sucata. Foi a 15 de Outubro de 2013, no último dia em que exerci funções como deputado na Assembleia Legislativa. No mês que se seguiu após ter tomado conhecimento que não iria ser reeleito, continuava a apresentar-me no Gabinete de Deputados às sextas-feiras à noite. Embora só trabalhasse como professor a meio tempo, ofereci a este Gabinete metade do meu salário de Outubro como deputado e submeti interpelações escritas nesta qualidade. A minha última interpelação foi submetida a 15 de Outubro. Depois de ter cessado as minhas funções de deputado, não compareci à reunião habitual da Associação de Novo Macau que teve precisamente lugar na noite de 15 de Outubro. Pedi a uma pessoa para entregar a minha carta de demissão na Associação (pedia a exoneração do Comité Permanente) e fui dar uma volta de carro com a minha família à zona dos Novos Aterros do Porto Exterior. Quando o carro já estava estacionado no segundo andar do parque de estacionamento, fez um som como se se tivesse partido qualquer coisa e vi que o chão estava coberto por um líquido vermelho e branco. O depósito de água tinha-se partido. Liguei de imediato para o mecânico que, depois de o examinar, me disse que tinha de ser levado para a oficina. Vi o meu carro ser levado, um carro que tinha estado comigo durante tantos anos e que me tinha sempre sido leal. Ao início tinha intenção de o mandar arranjar independentemente dos custos. Mas o mecânico avisou-me que o depósito de água estava seriamente danificado. Como o carro era bastante antigo, mesmo que se substituísse por um depósito novo, não podia garantir que o problema não se voltasse a repetir. Levando em consideração quer a minha segurança quer a dos outros, acabei por concordar em enviá-lo para a sucata. A fotografia publicada no Weixin foi a última que tirei com o meu carro. Como não ganho muito dinheiro com o meu trabalho a meio tempo como professor, comprei um carro em segunda mão, com mais de 10 anos, para substituir o meu Volkswagen e que ainda hoje conservo. Pensei escrever uma história sobre o meu Volkswagen, mas depois achei que não era apropriado falar sobre os meus assuntos pessoais. Mais tarde li, num jornal mensal, uma entrevista a dois membros da Associação de Novo Macau. Na entrevista Ng Kuok Cheong afirmava “a luta pode ser uma forma de energia” ao passo que Cheang Meng Him declarava, “as lutas na Associação são uma perda de tempo”. Estes comentários fizeram-me lembrar as palavras de Mao Zedong, “da luta com a Natureza retiramos imenso prazer ; da luta com a terra retiramos imenso prazer; da luta com as pessoas retiramos imenso prazer”.
Fernando Eloy VozesAmorficidade [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abe aquelas ocasiões em que nos sentimos renitentes de ir a algum lugar ou de fazer alguma coisa inquietos pela possibilidade de desfazermos a magia de tempos passados ou de que a experiência nos faça mesmo arrepender? Um pouco como aquela ideia de não voltarmos onde fomos felizes. Não concordo em absoluto com ela pelo seu implícito determinismo, pois nem sempre assim é, mas acontece. Acontece por tendermos a querer repetidas as sensações daquela incrível e inesquecível vez. O bom senso, todavia, diz-nos para não cairmos nessa tentação, para baixarmos as expectativas sob pena de não nos abrirmos a novas possibilidades, para evitarmos as comparações. Mas, às vezes, mesmo com as cautelas todas de prevenção, mais valia não termos saído de casa. Tal como me aconteceu a passada semana quando as Danças Ocultas tiveram a gentileza de me convidar para assistir ao espectáculo deles na fortaleza do Monte. Não fosse isso e não tinha lá posto os pés porque as boas memórias passadas naquele lugar são preciosas demais para correrem o risco de serem ofuscadas por experiências menores; mas foi o que aconteceu; é como ver fogo de artifício depois de o ter admirado da melhor forma possível, como um dia aconteceu na ribeira de Lisboa: deitado, de barriga para o ar, com o fogo a rebentar lá em cima em ecrã panorâmico. Depois disso podem rebentar as canas que quiserem pois nunca mais vai ser igual. O fogo de artifício vê-se deitado. Ponto. Neste caso, o problema não era o espectáculo, longe disso, o problema foi o Festival de Artes de Macau, ou seja, a forma como agora é organizado, ou seja, tenho dúvidas porque ainda mantém a designação de festival. O problema foi o concerto ser na Fortaleza do Monte, ao ar livre. Estranho, não é? Passo a explicar: no geral e em particular. No geral a sensação que tenho, o leitor poderá ter outra evidentemente, é o que o Festival de Artes de Macau tem vindo a perder a piada e a questão não se prende com os artistas seleccionados mas com a forma amorfa como é organizado. Voltemos à Fortaleza do Monte. Em tempos que infelizmente já lá vão, era uma verdadeira festa. As pessoas passeavam livremente pelo espaço, fumavam, bebiam, riam-se, viviam o espectáculo e confirmavam a ideia de festival, numa palavra: conviviam. Já não. Agora é como ler o manual de uma máquina de lavar; o mesmo nível de excitação. Depois dos espectáculos, na Fortaleza ou noutro lugar, os músicos eram frequentemente conduzidos pela mão das saudosas produtoras do Festival, imiscuíam-se na vida local e andávamos todos em festa por estes dias. A ideia de levar parte do festival para a fortaleza foi excelente e era normalmente o ponto alto. Agora, ao revelar de forma lancinante a falta de espírito com que é organizado, é seguramente o ponto baixo. Foi arregimentado. As senhoras que vendiam bebidas lá em baixo, na porta dos fundos, foram proibidas de abrirem a porta. A zona de pé junto ao palco foi eliminada e substituída por uma amorfa plateia de cadeiras mal desenhadas que partem as costas a qualquer um ao fim de meia hora, estrategicamente colocada a uma distância “segura” do palco para inibir qualquer interacção mais íntima com os músicos, por isso não terá sido à toa que apesar do excelente espectáculo que as Danças e o Pedro Moutinho proporcionaram não se tenha ouvido um pedido de encore sequer! Estava tudo frio. O espectáculo começou com o anúncio de um rol de proibições: não se pode beber, não se pode comer, não se pode fumar (ao ar livre), não se pode fotografar, não se pode, não se pode… Não é mais um festival, é uma aula de escola primária chinesa. O moral que o mais ingénuo ainda poderia ter ao deslocar-se para uma festa é logo aniquilado ali. Depois o espectáculo segue sem erros nem convulsões com um público a amarfanhar e desejoso de sair daquelas putas daquelas cadeiras. Ainda se poderia pensar que as (mal)ditas estão ali por preocupação (legítima) para com as pessoas que não querem, ou não podem, estar de pé. Mas, se assim fosse, as escadas rolantes não estariam encerradas, nem as cadeiras eram tão más. Claramente o espectáculo na Fortaleza do Monte não é feito para pessoas de mais idade ou com problemas físicos, caso contrário não nos obrigavam a subir uma ladeira a pique ou a escadaria que não mais acaba para lá chegarmos. Um contra-senso sem nome de uma organização aberrante. Organizar um concerto ali ou no Centro Cultural é praticamente a mesma coisa com a vantagem das cadeiras do Centro serem muito melhores. Uma festival é (devia ser) uma festa. Uma oportunidade de contacto e confraternização que não obedece a estes estratagemas rígidos, e ridículos, que o Instituto Cultural tem vindo a implementar. Neste caso particular, o do concerto a que me refiro, não seria mais agradável as pessoas terem uns snacks, um vinho, uma laranjada à disposição e poderem desfrutar do prazer de um concerto ao ar livre? Acham que nessas condições os músicos teriam saído frustrados (como saíram) sem um pedido de encore? Não foi por falta de merecimento mas porque as condições não estavam criadas para que o público se envolvesse. E as meninas, coitadas, de mão em riste a darem-nos indicações… Credo! De vir às lágrimas. Mesmo! A seguir, porque a perspectiva actual do Instituto Cultural é claramente funcional, ninguém da organização quis saber dos músicos para nada, ninguém os guiou a lado nenhum, ninguém os levou para o contacto com a população… até o autocarro desapareceu deixando-os apeados. Austeridade, talvez… Serviço cumprido, cheque entregue, haveria com certeza mais cadeiras para montar algures. Triste, profundamente triste. Muita coisa mudou para pior em Macau nos últimos anos, algumas para melhor naturalmente, mas as mudanças para pior estão invariavelmente ligadas com a falta de espírito presente nas decisões burocráticas, ou com a aniquilação da alma da cidade. Não basta apregoar que Macau é diferente, tem mesmo de ser e não é com esta atitude cinzenta e fria do Instituto Cultural que essa diferença se assume. Antes pelo contrário. E não me venham com as leis disto ou daquilo, com as queixas, ou lá com o diabo que quiserem. Falta-vos atitude amigos do IC, faltava-vos atitude e calor humano. Um festival faz-se com pessoas que pensam para além das ordens de serviço, para além das horas extraordinárias, para além das propostas burocráticas. Um festival faz-se com alma e respeito pelo que a palavra quer dizer: festa! Talvez o problema esteja na expressão em chinês que aponta apenas para “época das artes”, talvez. Mas numa terra que se orgulha da transferência de culturas ao longo de séculos não pode ser assim. Nem na China assim é, ou já se dignaram a ir ao festival de praia do Dia da República que se organiza em Zhuhai todos os anos? Polícia a rodos, é certo, mas toda a gente pula, come, bebe e confraterniza. Na China avança-se, em Macau recua-se. Bem vindos ao centro MUNDIAL de lazer. Bem vindos ao império da frieza e do funcionalismo. Bem vindos à Amorficidade. MÚSICA DA SEMANA Velvet Underground and Nico – “I’ll Be Your Mirror” I’ll be your mirror Reflect what you are, in case you don’t know I’ll be the wind, the rain and the sunset The light on your door to show that you’re home When you think the night has seen your mind That inside you’re twisted and unkind Let me stand to show that you are blind Please put down your hands ‘cause I see you I find it hard to believe you don’t know The beauty you are But if you don’t let me be your eyes A hand to your darkness, so you won’t be afraid When you think the night has seen your mind That inside you’re twisted and unkind Let me stand to show that you are blind Please put down your hands ‘cause I see you I’ll be your mirror I’ll be your mirror
Leocardo VozesEstou assim meio…meh [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo os seguidores do blogue homónimo desta coluna devem ter percebido (os dois ou três desocupados que ainda me vão aturando) , com a dispersa e (muito) menos frequente actualização a que esse espaço tem sido vetado, ando com pouca “pica” para escrever ou comentar sobre seja o que for. Dá-me preguiça, sei lá, antes sentava-me e produzia um assassinato de carácter em dez minutos ostentando um sorriso nos lábios, ou deixava os dedos correrem pelo teclado e em menos de nada fazia nascer mais uma blasfémia, ou um belo monumento ao politicamente incorrecto. Actualmente para debitar meia dúzia de linhas sobre algo trivial como um jogo da bola, ou uma notícia da imprensa cor-de-rosa, chego a demorar qualquer coisa como três horas. Já tem acontecido deixar ideias a meio, ou não conseguir passar para texto outras já mentalmente elaboradas, com princípio, meio e fim, e nem faço um esforço suplementar para organizar os cacos da cuca, que por esta altura mais parecem as luzes da instalação de Natal, emaranhadas dentro da caixa de cartão onde foram enfiadas à pressa em Janeiro, tempo em que ainda estavam longe de voltarem a constituir um problema. Analisados os sintomas no consultório da razão, e feito o diagnóstico, cheguei a uma conclusão: estou “meh…”. Agora podia acrescentar algo do tipo “vejam só o que tinha que me acontecer”, mas ”meh…”. Como recebi eu esta notícia que me foi dada por mim mesmo? Indiferente, não estivesse eu completamente “meh…”. Se é grave? Se tem cura? Se é regressivo, ou se vou ficar cada vez mais “meh…” com o passar dos anos? Sei lá, e se soubesse era sinal que não estava assim tão “meh…” quanto isso. E o que ganhava eu em fingir que estou “meh…”, se a comunidade médica e científica ainda tem sérias dúvidas se não se trata apenas de uma condição meramente psicossomática, uma vez que não identifica um agente patológico que cause este “meh…”, e mais importante do que isso, não me passa um atestado médico? Podem pensar o que quiserem, que qualquer insinuação maldosa esbarra de frente em cheio com este “meh…”, e que me é igual ao litro. O “meh” forma uma carapaça de…o quê mesmo? Não interessa, pois mesmo para reagir a este diagnóstico de “meh…” sinto-me demasiado… “Meh…”. Não sei se este estado de “meh…” tem algum lado negativo, mas e se tiver? Leva com o mesmo “meh…” com que carimbei o lado positivo. Só sei que agora leio menos, os noticiários são “meh…”, e portanto escrevo menos, e nem sei bem se isso é bom ou mau. Ando menos informado, é verdade, mas também menos ignorante – este é o aspecto metafísico do “meh…”, que é algo, e se querem mesmo que eu vos diga, não passa de outro ”meh…”. Imaginem que só aqui há dois dias é que me apercebi o Festival da Lusofonia arrancava já este sábado. Até este evento, cuja simples antecipação tinha em tempos a particularidade de me estimular o tecido eréctil, não merece da minha parte mais que um flácido “meh…”. Gostava que me apetecesse por um segundo querer saber como é que apanhei este “meh…”; se foi através de contacto humano, da saliva, ou se o contraí na piscina, e se é ou não contagioso. Porque se for, só me preocupa ter de o partilhar com alguém, quando agora tenho todo o exclusivo de “meh…” – é meu e só meu, ouviram? Mas nem é preciso puxar muito pela cabeça, pois desconfio que o apanhei nas redes sociais (outra vez sem protecção, depois dá nisto, mas olha: “meh…”), e não me recordo de ter levado as mãos à boca, mas garantidamente perdi a conta das vezes que as levei à cabeça. Quanto à piscina, penso que fica eliminada como possível causa de transmissão de “meh…”, pois apesar do calor e das altas temperaturas que se sentiram neste Verão, foram mais os que trocaram os saltos para a piscina pelos saltos para conclusões precipitadas. O mais estranho é a apatia que este “meh…” provoca, como que uma anestesia geral, só que em pleno gozo de todas as funções cognitivas. Sinto-me como um fantasma, que em vez de assustar, é ele próprio o assustado. Assustado por exemplo com o destaque dado pelos media a certas e alegadas “agressões” que determinado candidato a um cargo público fez a um sistema “democrático” que de infalível tem muito pouco, e de impoluto nada tem (e ainda fica a dever, coitado). Por outro lado, ninguém deu um pio a propósito do suicídio de um funcionário público local, há exactamente uma semana hoje. O funcionário exercia funções, sem que tivessem ficado especificadas quais, num departamento que é amiúde foco de mediatismo pelas razões mais diversas, mas que se faça este “meh…” perante uma lamentável tragédia que, vendo bem as coisas, não acontece todos os dias e pode ter revelar um quadro de sintomas mais grave que um simples “meh…”, se tenha encolhido assim os ombros, gesto que passou a significar na linguagem gestual exactamente isso mesmo: “meh…”. Não aceito que me digam o que é mais ou menos pertinente, pois no referido caso do “atentado à democracia” ninguém morreu – ninguém foi eleito, quanto mais. E assim estou estes dias, a curtir discretamente a virose deste “meh…”, que me leva a que não me apeteça nada. Mas saibam que não é por nenhuma razão especial – lamento desiludir os meus queridos “inimigos de estimação”, que recebam sempre o dobro do que desejam para mim. Este estado cínico (não confundir com “clínico”) não se deve a uma qualquer condição biológica, ou “crise da meia-idade” – tudo charlatanices, como a cartomância, os esquemas financeiros em “pirâmide”, e o segundo sistema. Uma das vantagens em estar “meh…”, estado que se situa algures entre o estado de graça e o estado gasoso, é adquirir imunidade a certas distracções. Estar “meh…” é um pouco como ter dentadura postiça: é-se desdentado, certo, mas em contrapartida nunca mais se sentem as terríveis dores de dentes, que são mil vezes piores que estar “meh…”. E isto falando com experiência própria. Estar “meh…” não dói de todo, e só chateia um bocadinho. Nada a que já não esteja habituado, portanto, “meh…”.
Hoje Macau VozesCristais * Rui Parada [dropcap style=’circle’]L[/dropcap]orde Gin, o vesgo prospectivo visionário apátrida, vindo temporariamente resfolegar ao Extremo-Ocidente por razões medicinais, e deitando um olho mercenário à indústria do comentário político que floresce para trás do Cabo da Roca, pôs-se a analisar as eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015, e eis, sem delonga, o que divisa: 1) Os portugueses que elegeram deputados do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda e do Partido Socialista, compraram realmente com seus votos um ímpeto de bipolarização final do sistema político. Isto é, uma definição entre esquerda e direita não só mais precisa, mas mais eficiente e duradoura. Uma definição que passe a traduzir, de uma vez por todas, os seus votos em termos de efectivo poder de governo. 2) A coligação PàF absorveu toda, ou praticamente toda, a direita do Partido Socialista. A sua vitória indica, na verdade, uma cristalização do Partido Socialista à esquerda; a expurga da maioria de uma minoria, salubre ou insalubre, que laborava no seu interior há muito. Ora, isto deveria ser lido pelo PS pós-eleitoral como um decisivo ganho de definição, um adumbramento das hostes do qual não deve ter medo. 3) A bipolarização que se avizinha será entre uma LD (Liga de Direita) e uma LE (Liga de Esquerda). 4) O sistema político português encontra aqui uma oportunidade rara de transitar para um xadrez inteiramente novo, ou seja, o de dois campos claros de disputa do poder. Campos claros, mas, sobretudo, campos representativos e justos. 5) Existirem dois campos de disputa política não significa necessariamente, em nenhum dos lados e em nenhum caso, uma perda de matizes. 6) O Senhor Costa vê-se confrontado com a História; tem nas mãos a responsabilidade de ligar a esquerda portuguesa. Não precisa sequer de sacrificar o seu partido. Isso já foi garantido pelos diversos rituais internos e pela afortunada, ou desafortunada, deserção daqueles que foram votar à sua direita – o que, desde logo, explica como ao cabo de anos de “tortura do povo“ a coligação PàF tenha conseguido a maioria dos votos. Ou seja, os traidores do PS, as it were, são também a explicação para uma espécie de covardia, ou amedrontamento, ou resignação, que teria confirmado a Coligação no poder. Os direitistas do PS, não os votantes no PPD e CDS, é que explicam a “derrota” de Costa, ou a sua suposta “incapacidade”. 7) A ser válida, a tese assente neste verosímil desejo de bipolarização, despida da mediação de partidos charneira, poderá ser o capitulo derradeiro da maturidade da democracia em Portugal. 8) O Sr. Costa ou se encosta nas bancadas do circo encenado pelo Grande Portas ou faz avançar o sistema político português, civilizando a suposta “barbárie” que incha, e tudo indica continuará a inchar, à sua esquerda. 9) Mais, e tempo permitindo, o apoio focado de uma eventual Liga de Esquerda a um só candidato presidencial (considerando também um investimento real numa campanha radicalmente inteligente e acutilante) poderá conservar, por muitos mais augustos anos, o simpático Sr. Sousa no seu jovial e dentuço plinto de plasma.
Arnaldo Gonçalves VozesEleições Legislativas: o ‘caso’ Macau [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o longo processo de apuramento dos resultados eleitorais das recentes eleições legislativas impõe-se um comentário focado nos círculos da emigração e em Macau. Não que os resultados determinem uma mudança de orientação ideológica dos eleitores mas apresentam algumas distorções das regras eleitorais que importaria de futuro remediar e acautelar. Os dados são claros. A Coligação obteve 43,95% dos votos da emigração elegendo os deputados José Cesário, Carlos Gonçalves e Carlos Páscoa, o PS recolheu 20.01% e elegeu Paulo Pisco. Já quanto ao Círculo Fora da Europa, Pereira Coutinho venceu com 2532 votos, seguindo-se a Coligação PSD-PP com 214, o PS com 97, a CDU com 27, o Bloco de Esquerda com 30. Qual a leitura que estes resultados sugerem? Três apontamentos. Em primeiro lugar, como havia anunciado vendo frustrada a possibilidade de se candidatar por um dos dois partidos do arco da governabilidade, Pereira Coutinho fez-se apadrinhar por uma força política que o ‘levou à boleia’ potenciando as aptidões de mobilização do deputado macaense. O partido ‘Nós Cidadãos’ foi o que se prestou a esse papel e a votação em Coutinho representa parte significativa da votação num partido cujas escolhas ideológicas são obscuras e que recolheu apenas 0.8% dos votos expressos nas urnas(21 000). Ainda assim abaixo do PNR, partido da extrema-direita que chegou a ser falado como o ‘chapéu eleitoral’ de Coutinho e que recolheu 27 000 votos. Os resultados mostram que a sua táctica foi ganhadora e que ele é um ‘brand name’ em que certos grupos de eleitores votam independentemente da mensagem programática e dos objectivos das eleições. Em segundo lugar, os resultados revelam um enfraquecimento significativo da capacidade de mobilização das secções do PSD e do PS em Macau que não lograram convencer o seu eleitorado tradicional a deslocar-se às urnas de votos. Trata-se de uma derrota dos presidentes destas secções partidárias. Antevisível, segundo alguns, mas que mostra que o trabalho político no círculo da emigração fora da Europa foi nulo ou inexistente e que há muito por fazer para reconciliar a comunidade da diáspora com a vida política na metrópole e com o debate das alternativas que se colocam periodicamente aos eleitores. Nesse particular, o PSD – força tradicionalmente mais votada em Macau- fracassou e seria importante que se tirassem ilações políticas, tanto a nível local como a nível nacional dessa situação. O terceiro apontamento diz respeito à atipicidade da campanha eleitoral e à avaliação de práticas de mobilização dos eleitores que sendo porventura comuns no panorama da Região Administrativa Especial de Macau não o são no que concerne ao combate político e à livre expressão dos eleitores, nas urnas, no sistema democrático português. Refiro-me, precisamente, a indicações expressas de voto no candidato Coutinho por parte da presidente da Assembleia Geral da ATFPM, designadamente na sua página do Facebook, e à participação do aparelho sindical da ATFPM na mobilização de eleitores chineses com passaporte português, que ao que se percebe ‘colaborou’ no preenchimento, na recolha e no envio de votos por correspondência. Ponho esta afirmação entre comas, mas seria importante que as autoridades portuguesas procedessem a uma investigação discreta desta ocorrência que à primeira vista conforma uma distorção das regras eleitorais. Parece-me excessiva a acusação de fraude eleitoral mas há algo neste processo que urge rever para que não se volte a repetir. As eleições por correspondência tiveram o seu papel mas seria a altura de o repensar. O voto em eleições livres e democráticas é um direito e um dever e não pode ser condicionado e manipulado por terceiros. Permita-se-me três notas adicionais. Desde logo, a clarificação de uma questão de identidade nacional que anda sempre subjacente e que vários actores políticos evitam tratar, pelo seu incómodo. Parte significativa dos cidadãos recenseados no Consulado de Portugal em Macau é formado por chineses que no período conturbado do fim da Administração Melancia viram conferida a cidadania portuguesa, por receios quanto ao que aconteceria na transição de Macau para a China. Lograram obtê-la por démarche junto das autoridades de Lisboa por parte do então secretário para a educação e assuntos sociais, Jorge Coelho. São pessoas de dominante cultura e educação chinesas também titulares de passaporte chinês e a que as autoridades de Pequim não reconhecem a dupla nacionalidade mas apenas a chinesa. Para essas pessoas, a ligação a Portugal não é imputável a uma identidade de ‘portugueses’ – que não se sentem – como acontece com a globalidade dos portugueses emigrados e da diáspora, mas é apenas um ‘seguro para más horas’, caso venham a ocorrer, no futuro, perturbações políticas na República Popular da China que ponham em causa a segurança das suas pessoas e bens. Não falam português, não sabem o hino português, nem conhecerão, na maioria, qual é a capital de Portugal. É um caso único, fruto da história que Portugal deixou em Macau e que tem honrado. Como lhe cabe, aliás. O segundo apontamento adicional é que em matérias de identidade não se pode tergiversar. A nossa língua pátria é o português e é natural que em questões que têm a ver com a afirmação da nossa cidadania a língua de comunicação seja o português. Seria estranho que os nossos concidadãos da América Latina cumprissem as suas obrigações de cidadania em espanhol, os de França, Bélgica e Luxemburgo em francês, os da Alemanha, da Áustria e da Suíça em alemão, os descendentes de goeses em hindu e por aí fora. O principal elemento que veicula a pertença a uma determinada comunidade política, que se congrega em nação, é exactamente a língua. E isso é muito importante para um povo que celebra dentro em pouco 900 anos de história e de independência. Esta não é uma questão negociável e partidarizável. É assim. O terceiro apontamento tem a ver com as relações entre as autoridades da República e as comunidades de Macau. Acentuou-se, nos últimos quatro anos, uma relação preferencial do responsável pela secretaria das comunidades portuguesas, Dr. José Cesário, com os responsáveis da ATFPM. Em circunstâncias várias o responsável político português reconheceu mesmo aos Drs Pereira Coutinho e Rita Santos um papel crucial na representação de Macau nas relações com Portugal, colocando em segundo lugar os interesses da comunidade expatriada em Macau e na Ásia. Como se cabesse às autoridades portuguesas fazer uma hierarquização dos interesses e da representatividade das associações. Sendo a questão da liderança política da comunidade macaense uma questão não resolvida, quinze anos depois da transição, foi pouco prudente favorecer o protagonismo de alguns em desfavor de outros, introduzindo factores de distorção que explicam o decréscimo de votação na Coligação Portugal à Frente. 214 votos é manifestamente aquém do que o centro-direita pode conseguir e isso deve-se em parte à imagem negativa que se criou à volta do Dr. José Cesário pelas que circunstâncias acima que esteve a 400 de votos de perder a sua eleição. Responsabilidade adicional tem a secção do PSD em Macau que sempre favoreceu e impulsionou as agendas políticas de Pereira Coutinho e da ATFPM. Ao tempo em que escrevo não se conhece a solução governativa que colherá as preferências do Presidente da República mas estou em crer que Pedro Passos Coelho será chamado a constituir governo. Teremos dentro em pouco o início de uma nova campanha que levará à escolha do novo Presidente de todos os portugueses. O circulo fora da Europa dará o seu contributo a essa eleição, com tranquilidade como é tradicional nas nossas comunidades da emigração. Os portugueses em Macau não deixarão de responder à chamada. Somos dois milhões de emigrantes fora do rectângulo pátrio e temos um papel fulcral na escolha das opções do país.
António Conceição Júnior VozesA cultura, a criatividade e a economia [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m boa hora vem o Professor Augusto Mateus a Macau, a convite do Albergue SCM, para um Seminário sobre as Indústrias Criativas, no quadro de uma plataforma estratégica nas relações económicas entre a China, a União Europeia e os Países de Língua Portuguesa. Seria bom que o Seminário fosse integralmente traduzido para o chinês, e que exista suficiente público com maturidade para ouvir, fruir e reflectir. As Indústrias Criativas são, por natureza e definição, actividades de natureza eminentemente Económica! O facto de se poderem intersectar com actividades de cariz criativo não faz delas, apenas, indústrias para “recuerdos” e o mais que por aí anda. Quando me falam de indústrias criativas, as minhas referências vão para grandes conglomerados como a Zara e a Zara Casa ou a Giorgio Armani, Emporio Armani, AX e Armani Casa, ou para as indústrias da inovação como a Samsung, a Apple, a Sony e tantas outras. Numa recente leitura de um artigo, que noticiava o novo carro eléctrico da Tesla (sem dúvida assim nomeada em homenagem a Nikola Tesla), tomei conhecimento do quanto a Apple está interessada no veículo, a ponto de oferecer aumentos de 60% para cativar engenheiros da Tesla a transferirem-se para a base da Apple em Cupertino, na Califórnia. A Apple não precisa de apresentação, apenas relembro que depois de ter criado o Macintosh, o iMac, o iPhone, o iPad, o Apple Watch, o potencial iCycle, o passo seguinte será um carro eléctrico, amigo do ambiente, a próxima cereja no topo do bolo Apple. Noutros firmamentos, as consolas de jogos, como a PS4 ou a XBOXONE, disputam mercados, enquanto, anualmente, a engenharia electrónica dos telemóveis, câmaras digitais e um sem número de gadgets e apps invadem o mercado, após sujeitas ao necessário design, este apenas parte do todo. A grande questão em Macau é que o meio criativo, além de ser pequeno, parece desconhecer a articulação da criatividade com outras especialidades e dos reais objectivos e escalas das Indústrias Criativas. A escassas 40 milhas, Hong Kong é um dos grandes produtores mundiais de filmes. Articula as suas produções com Hollywood. A vizinha Região Administrativa Especial tem marcas, como a Shanghai Tang, Baleno, Bossini, Giordano, Crocodile Garments, G2000, Esprit, Joyce Boutique, entre outras . E nós? Nós vivemos no planeta do wishful thinking, do pequeno projecto de cada um, sonhando legitimamente com a lua e o universo. Há em Macau um hábito muito antigo: o desaproveitamento de talentos, por não se saber dirigir, gerir, potenciar. Macau não tem disseminado uma elite pensante em várias línguas. Macau debate-se com falta de “talentos”, que nunca existirão enquanto se mantiver a postura de dificultar a entrada de mais valias. Sem quadros capazes, não há boas intenções que valham. Perdoe-se-me a nota pessoal, mas em 1995 propus, ao Governo de então, que fosse lançada uma estrutura, a que chamei de Centro de Criatividade, onde pudessem convergir, vindos de todo o lado, cérebros que construíssem um centro de inteligência que pudesse pensar sobre estes assuntos, num momento que as indústrias criativas não eram ainda assim chamadas. As malhas de então fizeram o assunto cair no olvido. Poder-se-á argumentar que Macau tem uma identidade muito própria e que, por tal, haveria que utilizar essa marca nos produtos aqui gerados. Não vou discutir esta premissa, apenas dizer que há uns anos a Universidade de São José estava a trabalhar com a China em veículos eléctricos. Desconheço o actual estado deste projecto. A pergunta é: em que é que isso e outras coisas têm a ver com hibridez cultural? Tomando o Reino Unido como referência, e as exportações como objectivo, as Indústrias Criativas geram anualmente naquele país 76.9 mil milhões de libras, qualquer coisa como MOP1,194,180,000,000!!! Não admira, pois, que a R.P. da China fale de diversificação económica para Macau. Não está a falar em objectos “Love Macau” , está a falar em economia criativa. O Centro de Referência de tecnologia da UM e o de Medicina Chinesa em Henqin poderão vir a constituir caminhos. Pode parecer que estou a ser crítico em demasia. Darei a mão à palmatória quando vir Indústrias Criativas em Macau a constituírem uma alternativa económica à indústria do jogo que, em 2014, caiu para 44.1 mil milhões de patacas. Os assuntos respeitantes à cidade, no seu conjunto, são interactivos, fazem parte de um todo. Falo a um plano ético e moral. Aí, a cidade constituir-se-ia num aglomerado funcional e verdadeiramente cosmopolita, despojada de pensamentos xenófobos que liquidam, à nascença, qualquer possibilidade séria de desenvolvimento. Não é, assim, despiciendo lembrar que os Estados Unidos se fizeram com imigrantes, e que as grandes cabeças que lá vivem foram atraídas pelos grandes conglomerados, pelas grandes universidades. Steve Jobs era descendente de sírios e alemães. O Nobel da Química de 2015, Aziz Sancar, nasceu na Turquia. O Nobel da Medicina 2015, William C. Campbell, nasceu na Irlanda. O Nobel da Física 2014, Shuji Nakamura, nasceu no Japão, e os exemplos e listas continuam, intermináveis. Assim, enquanto houver quem aposte na discriminação, enquanto não houver grandeza de espírito para abertura ao mundo, a cidade está condenada a ser aquilo a que os chineses chamam, muito justamente, de “sapo no fundo do poço, olha o redondo do céu e pensa que é o universo”. Não me parece que seja nada disto que a poder central da China deseja quando lança a orientação da diversificação da economia. No que respeita à arquitectura, numa cidade onde uma das principais actividades é o imobiliário, o que se assiste, em muitos casos, é à construção baratinha, com pastilha na parede. Uma cidade não pode viver da especulação. Estas são preocupações de cidadão, iguais às de muitos outros. É o desenvolvimento do colectivo, da qualificação da cidade enquanto um todo habitado e habitável, que me impele à defesa da cidadania plena, da qualidade e critérios, que só podem existir quando se compreender, por via da cultura, que a economia tem de ser encarada como força criativa e não especulativa.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAvaliação de inglês na China [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a última sexta-feira, dia 16, o jornal de Hong Kong “South China Morning Post” publicou uma notícia sobre o sistema internacional de avaliação da língua inglesa, conhecido por IELTS exam, abreviatura de International English Language Testing System Examination. Este exame é reconhecido a nível internacional. Actualmente, quem desejar estudar no estrangeiro (especialmente na Europa ou nos Estados Unidos) terá que, na maioria dos casos, ser sujeito a um destes testes para avaliar o domínio da língua inglesa. O artigo avançava que 350 estudantes chineses, que nos últimos três meses tinham sido submetidos ao IELTS exam, viram as suas provas “definitivamente retidas” porque os avaliadores responsáveis concluíram que as regras do exame tinham sido violadas. Os responsáveis não indicaram claramente que regras tinham sido quebradas. Informaram apenas que encaravam de forma muito séria a responsabilidade de avaliar as provas e divulgar a sua classificação. Os resultados dos exames só são retidos caso haja fortes indícios de desrespeito do regulamento do IELTS exam por parte dos candidatos. Por obrigação de confidencialidade, os avaliadores responsáveis recusaram-se a fazer mais esclarecimentos. No entanto, era referido no artigo que no continente se adquirem facilmente manuais que contêm as perguntas e as respostas dos testes, o que permite que os estudantes menos honestos façam batota. Os avaliadores responsáveis afirmaram: “Nestes casos não podemos garantir que os resultados reflictam fielmente os conhecimentos dos candidatos.” Nos últimos meses muitos estudantes em Xangai, Nanjing, Changsha e em Chengdu queixaram-se que a divulgação dos resultados dos seus exames de inglês estava a ser deliberadamente atrasada por verificações de rotina. Estes atrasos prejudicaram os estudantes que procuravam obter vistos a fim de se deslocarem para os destinos onde pretendiam prosseguir com os seus estudos. Um agente chinês, cujo nome não foi divulgado na notícia, afirmou que um grande número de candidatos que se submeteram ao IELTS exam no passado dia 25 de Julho, foram seleccionados para estas verificações mais detalhadas. Os critérios para esta escolha terão sido um aumento significativo de resultados num curto espaço de tempo, ou ainda, um grande desequilíbrio de desempenho nas quatro secções que compõem o teste. Com base nesta notícia podemos afirmar que os resultados do IELTS exam são, até certo ponto, fiáveis. Pelo menos existe um sistema que permite monitorizar o desempenho dos estudantes nos testes. No caso dos resultados sofrerem alterações súbitas, a autoridade competente pode proceder a uma verificação. Além disso, se existirem fortes indícios de violação das regras, os resultados dos exames serão permanentemente retidos. O sistema de monitorização pode ajudar a estabelecer a confiança da população neste processo. O artigo referia, como foi dito, a existência de manuais que contêm as perguntas e as respostas certas dos testes do IELTS exam na China continental. Estes manuais podem permitir uma boa preparação para os exames. Mas de onde vêm estes manuais? Quem é o autor? Quanto é que custa cada exemplar? Estas perguntas são relevantes, no entanto o artigo não as esclarecia. É certamente muito pouco provável que um autor escreva um manual que apenas contenha as perguntas e as respostas exactas dos testes do IELTS exam. O que acontece verdadeiramente é uma venda de cópias das perguntas e respostas dos testes. A maioria dos compradores são os candidatos a estes exames. Na China existe uma disposição legal que se poderia aplicar nestes casos, a “Norma para Lidar com a Perversão nos Exames”. No entanto, se verificarmos esta Norma, não existe qualquer ponto sobre a compra e venda de soluções de testes, por isso não pode ser evocada para castigar quem tiver este tipo de comportamento. E o vendedor, quem será? O vendedor poderá ser a pessoa que compilou o manual, ou qualquer outra. Não sabemos. E como é que esta pessoa tem acesso aos testes? Mais uma vez o artigo não esclarece. O pessoal administrativo, por cujas mãos passam os testes, pode ser uma das hipóteses, pois tem acesso privilegiado às perguntas e às respostas exactas do IELTS exam. Estará correcta esta dedução? Ninguém pode saber. De qualquer forma voltemos à Norma. A secção 13(4) proíbe as pessoas que manuseiam provas de exame de passá-las a terceiros. A secção 14 (3) proíbe as pessoas que supervisionam os exames de criarem um ambiente propício a situações desonestas. Nenhuma destas secções fala directamente sobre a venda de perguntas e respostas de exames. Por outras palavras, mesmo que soubéssemos que o funcionário João vende as provas de exame à candidata Maria, não podemos castigar o João porque a Norma não proíbe directamente a venda de perguntas e respostas de exames. Além destas duas secções, a secção 2 aponta para um problema mais preocupante. Esta secção estabelece que a Norma só se aplica a: – Exames de Ensino Geral e Superior, – Exames de Admissão a Mestrado, – Exames Ad Hoc ao Ensino Superior O IELTS exam não cabe em nenhuma destas categorias, pelo que a Norma não pode regulamentar estas provas. Assim, quer o vendedor, quer o comprador, das respostas dos testes podem ignorá-la à vontade. Para ultrapassar o problema da “compra e venda” das respostas de exames, a Norma deveria sofrer uma Emenda. É, contudo, importante alertar os candidatos para a incorrecção deste comportamento. A Maria poderá comprar as respostas ao João e, portanto, ter um bom resultado no exame. Mas a Maria nunca terá um domínio do Inglês que lhe permita estudar e viver no estrangeiro. Como é que a Maria poderá obter um visto para estudar num País estrangeiro junto da respectiva Embaixada? O resultado do exame é só um certificado que pode ser facilmente alterado, mas a língua que se sabe é aquela que efectivamente se fala. Assim que a Maria falar, toda a gente fica a saber o nível do seu inglês.
Rui Flores VozesCombater a pobreza extrema [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] dia mundial da erradicação da pobreza foi comemorado no sábado. Numa altura em que a atenção da imprensa internacional está focada na crise dos refugiados que tem afectado a Europa nos últimos meses, passou um pouco ao lado o dia que as Nações Unidas escolheram para salientar os esforços que estão a ser envidados para melhor as condições de vida daqueles que normalmente não têm voz. Antecipando a comemoração, o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, anunciou que espera acabar com a pobreza no país em cinco anos. Para isso, vai adoptar medidas para ajudar a levantar do chão os 70 milhões de chineses que ainda vivem abaixo do limiar da pobreza. Desde a abertura económica preconizada por Deng Xiaoping, a China conseguiu operar aquilo que é entendido pelos analistas como um autêntico milagre. Seiscentos milhões de pessoas foram resgatadas da pobreza extrema. Um efeito sem comparação com qualquer outro no mundo. Nunca tantos em tão pouco tempo foram retirados do estigma da pobreza extrema. Quando se visita hoje a aldeia olímpica de Pequim, um dos bairros mais recentes de Xangai ou o centro de Cantão, não nos lembramos que o desenvolvimento exponencial chinês tem pouco mais do que 30 anos. No entanto, apesar de todo esse desenvolvimento, suportado em crescimentos anuais do Produto Interno Bruto (PIB) durante vários anos acima dos 10 por cento, a China continua em 2015 a ser um país de profundos contrastes onde coabitam muitos dos mais ricos multimilionários com – de acordo com os dados oficiais – 70 milhões das pessoas mais pobres do mundo. A pobreza extrema é uma daquelas coisas que precisa de ser sentida de perto para nos impelir a querer mudar o status quo. As notícias que são transmitidas pelos telejornais, ao final do dia, de uma forma estereotipada, asséptica, sobre a impossibilidade da vida em destinos tão improváveis como a Somália, o Sudão do Sul ou a Síria (só para dar três exemplos aleatórios), quando já não temos capacidade para assimilar o que se passa fora do ridículo bairro em que vivemos e queremos apenas saber se o melhor ponta-de-lança da nossa equipa já recuperou daquela mazela matreira que o deixou de fora dos convocados nas duas últimas semanas, não produzem qualquer efeito no cidadão médio quanto mais no político que tem nas suas mãos a possibilidade de produzir uma mudança. Felizmente, as funções profissionais que tenho desempenhado ao longo dos anos levaram-me a países extraordinários que me expuseram aos povos mais amáveis do mundo mas também aos mais pobres. São países tão exóticos quanto a República Centro-Africana. Quando falo da minha experiência profissional em Bangui muitas das pessoas, mesmo algumas daquelas que me são próximas, tendem inicialmente a pensar que me estou a referir a uma localização geográfica no continente africano e não efectivamente a um Estado. Mas de facto ele existe, embora com as dificuldades que podem ser elencadas a uma organização política que não está implantada por todo o território, que tem necessidades crónicas de cumprimento com as suas obrigações orçamentais e que se vê confrontada com desafios permanentes à sua integridade política por grupos estrangeiros que têm como objectivo final a apropriação dos recursos naturais abundantes. A República Centro-Africana, mas também outros países como a Serra Leoa ou Timor-Leste, pôs-me em contacto com uma realidade estranha a muitos de nós, as das pessoas que vivem apenas para… sobreviver. Estipulou-se para as Metas de Desenvolvimento do Milénio que as pessoas abaixo do limiar da pobreza seriam aquelas que viviam com menos de 1.25 USD por dia ou 37.5 USD por mês. Pouco mais do que nada. Quando se diz que estas pessoas (sobre)vivem com 300 patacas por mês, trata-se de uma falácia. Muitas destas pessoas continuam a viver num sistema de trocas directas. O documentário francês de 2013 “Sur le chemin de l’école” (No caminho para a escola) mostra isso com uma crueza que poucos filmes o fazem. Além de pôr em evidência as dificuldades que têm quatro grupos de crianças a irem para a escola na Argentina, na Índia, em Marrocos e no Quénia, mostra-nos quanto aquilo que temos por certo é afinal apenas uma figura de estilo. O “Sur le chemin de l’école” dá-nos a conhecer quatro retratos de quatro continentes. Não foi por acaso que o continente europeu ficou de fora dos exemplos escolhidos pelo realizador Pascal Plisson. Essa escolha lembra-nos que o mundo como nós o entendemos é, para mais de 20 por cento dos outros habitantes do Globo, muito diferente. Também não é por acaso que a Europa esteja a ser o destino de um número sem fim de candidatos a refugiados (600 mil desde o início do ano até agora). Viver abaixo do limiar da pobreza é uma dificuldade conceptual básica. Não se consegue imaginar. Vimo-la nos filmes, mas não queremos acreditar. Afinal essas são imagens criadas em Hollywood ou noutra qualquer Meca cinematográfica. Escolher como prioridade retirar 70 milhões de pessoas até 2020 – qualquer coisa como um milhão por mês – parece um objectivo ambicioso. Mas é uma meta na direcção certa.
Isabel Castro VozesA falta que faz uma BIC [dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Macau esteve quase, mas muito quase, a escrever mais um capítulo na sua fantástica história política: por pouco, os eleitores do território não elegeram um deputado à Assembleia da República Portuguesa que fez questão de esclarecer previamente que jamais iria ocupar o lugar. Portanto, uma espécie de Manuel João Vieira, mas com muito menos sentido de humor, menos capacidades técnicas ao bandolim, menos jeito para pintar e sem promessas de alcatifar Portugal. Pereira Coutinho não foi eleito mas, ainda assim, o movimento pelo qual se candidatou ganhou ontem projecção mediática em Lisboa, pelos piores motivos: o deputado do Partido Socialista eleito pelo Círculo da Europa, Paulo Pisco, veio contestar os resultados das eleições por causa de acontecimentos estranhos na mesa de Macau com os votos que, como todos nós sabemos, se preenchem em casa e são enviados pelo correio. Em causa estaria o preenchimento de vários boletins com a mesma esferográfica e até votos com documentos de identificação em anexo. Paulo Pisco – percebeu-se logo pela reacção da Comissão Nacional de Eleições – não vai longe nas suas reivindicações: os boletins escrutinados objecto de estranheza não foram colocados de lado, pelo que é difícil fazer uma investigação sobre o assunto. É, no mínimo, uma peculiar explicação para um esquisito método de lidar, oficialmente, com acontecimentos invulgares. Houvesse uma maior variedade de papelarias em Macau e não andávamos todos a roubar canetas uns aos outros e a escrever com material nada criativo. A culpa, no fundo, é do Governo de cá: as rendas estão altas, ninguém põe mão nisto, as papelarias são negócios pequenos sem capacidade para fazerem frente à ganância dos senhorios. Outra explicação para a monotonia na escrita eleitoral poderá ter que ver com a ausência de BICs no território, que há muito tenho vindo a defender, por jamais me terem deixado ficar mal: em futuro acto do género, recomendo vivamente a importação de duas caixas das clássicas, outras tantas de cristal soft, mais umas quatro das laranja e, para o eleitorado mais jovem, algumas shimmers perfumadas. As cristal finas, elegantes no traço, têm pouca visibilidade e ainda se falha o quadradinho. Porque sou sensível, ainda assim, às preocupações de Paulo Pisco, faço parte do grupo daqueles que acham que não custa nada – ou custa muito pouco – avançar para métodos de voto menos clássicos. O voto electrónico, conjugado com formas mais tradicionais para regiões do mundo afastadas das representações consulares, é capaz de ser uma boa ideia: a malta vai ali ao consulado e vota, sem precisar de BICs. Em Macau teremos, porém, uma nova exigência a fazer: a tradução para chinês dos boletins. É que, quando se vota no conforto do lar, o Google Translate está ali mesmo à mão de semear. E nós, cidadãos portugueses, não queremos que se perca o nível de envolvimento conquistado nestas eleições. Dos resultados que ontem ficámos a conhecer destaca-se uma grande novidade: há muitos portugueses de Macau que, apesar de não voarem todos os anos de férias para Lisboa e de eventualmente não dominarem a língua, acompanham avidamente a vida política portuguesa. 2. A semana de Macau fica marcada por um episódio quase tão invulgar quanto a quase-eleição de Pereira Coutinho para o Parlamento português: uma destas madrugadas, ia um camião do lixo ali na Avenida Rodrigo Rodrigues e, de repente, começaram a chover documentos do hospital, contendo dados de utentes do São Januário. Como há quem esteja sempre atento a acontecimentos inusitados, há registo em vídeo de folhas de análises e de outras coisas do género a serem levadas pelo vento. E ainda bem que alguém reparou: o hospital mandou funcionários apanhar os papéis que conseguiram encontrar. O caso foi, naturalmente, objecto de notícia. E alvo de uma imediata reacção do São Januário – reacção muito mais pronta e cabal do que noutras situações que, na minha perspectiva, mereciam reacções muito prontas e imensamente cabais. O hospital lá explicou o sucedido, a troca de cores dos sacos do lixo, isto e aquilo, parece que a culpa é lá de uns funcionários de um dos departamentos, o chefe da rapaziada nem sabia, claro que os chefes nunca sabem de nada, não há que levar a mal. O voo da papelada é chato, mas não vem dali qualquer mal ao mundo. Nas redes sociais, as críticas multiplicaram-se, sobretudo em relação a Alexis Tam que, nem de propósito, uns dias antes tinha vindo fazer um elogio rasgado aos Serviços de Saúde. Mistura explosiva, esta, a de um elogio precipitado (porque os elogios devem vir dos utentes e ainda não ouvi por aí nada que se assemelhe a um louvor) com um episódio que é sobretudo caricato. Não se espera, por certo, que um secretário seja capaz de controlar tudo, do papel que é rasgado ao material que é desinfectado. Por agora, e em relação ao caso em análise, fez o que podia fazer – pediu justificações e que a situação fosse corrigida. Nestas coisas da saúde, coisas tão sérias como a saúde, é bom não nos esquecermos do que é importante: o caso dos papéis ao vento ocupou muitas mais linhas de jornais do que os tratamentos que continuam a não ser disponibilizados, os médicos que ainda precisam de ser contratados, a educação para o que é servir um utente que continua por existir, uma página na Internet que se pareça com uma página na Internet de um hospital de uma terra civilizada, porque a falta de informação também tira anos de vida. Mas o que é caricato tem a capacidade de se sobrepor ao que é importante – é assim no mundo inteiro. Que o caricato não faça rolar cabeças.
Carlos Morais José A outra face VozesNo século XXI, o mundo será solidário ou não será [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando António Costa surgiu no fim da noite das eleições, o seu discurso sugeria que o PS iria admitir ou até apoiar um governo de direita. Na verdade, até ele pareceu ter-se deixado embalar pelos principais meios de comunicação social, que se apressaram a dar a vitória ao PAF, sem se preocuparem em fazerem as reais contas. E estas diziam que a direita não atingiu a maioria, portanto não pode, à partida, governar, a não ser que os socialistas assim o quisessem e permitissem. E, a julgar pelo discurso de Costa, tudo indicava que assim seria. Baseado neste facto, a quente, escrevi que se trataria da última traição do PS e que uma colagem à direita significaria a sua pasokisação. De facto, se no momento em que o povo português, por confortável maioria, rejeita as políticas neo-liberais de austeridade, os socialistas virassem as costas à vontade popular e apoiassem um governo Passos & Portas tal seria uma traição e um suicídio político. Repare-se que foi exactamente isso que se passou na Grécia e em França. Pelo contrário, existe neste momento uma tendência para voltar à esquerda (ou se quisermos, manter o centro) na política do hemisfério ocidental, com Corbyn na liderança dos trabalhistas em Inglaterra e a ascensão de Bernie Sanders nos Estados Unidos. Estará realmente iminente o perigo de governos radicais, dispostos a alterar o sistema democrático-liberal e extirpar o capitalismo? Claramente não. O que se passa é uma reacção aos excessos que o neo-liberalismo implementou na última década, nomeadamente o excesso de impunidade dos mercados, a falta de respeito pela mão-de-obra, a destruição do Estado Social, as privatizações sem sentido, as falcatruas/crises sucessivas do sistema financeiro e bancário, as verdadeiras causas da crise, entre outros desmandos. Esta reacção, este voltar à esquerda, não imporá nenhum regime outro, simplesmente tentará inverter este ciclo autofágico que conduz a uma infame plutocracia, com desrespeito pelos mais elementares direitos humanos. O que se pretende, na verdade, é voltar ao centro, a uma democracia liberal preocupada com as pessoas e não com o lucro. Isto não significa uma mudança de regime, mas a sua moralização e, sobretudo, uma definição clara do seu sentido último. Por tudo isto, é lógico que o PS tenha entendido que chegou a altura de compreender que o Muro de Berlim caiu em 1989 e que à sua esquerda ninguém pretende, de um lustro para o outro, rasgar o cartão de membro da União Europeia, sair do euro ou da NATO, se não existirem motivos dramáticos que o exijam. E compreendido também que não se corre o perigo de alguém passar segredos militares à União Soviética. As questões são realmente outras e o barulho que se faz à volta daquelas não passa de uma cortina de fumo retórica para distrair do que realmente poderá unir a esquerda portuguesa, a saber, a luta contra o neo-liberalismo e as suas metamorfoses lusitanas. No entanto, não é ainda líquido que o PS forme um governo à esquerda. Existem internamente várias vozes discordantes, cujas ligações são conhecidas e cuja posição é perfeitamente normal. É a estas vozes que os media dão mais projecção. De forma, aliás, vergonhosa. Pode também dar-se o caso de António Costa surgir no fim de todas estas reuniões e encontros para nos dizer que não foi possível chegar a um acordo que garantisse um governo de esquerda por quatro anos e que, por culpa do BE e da CDU, terá de viabilizar um governo Passos & Portas, aceitando os enfeites que a PAF lhe quer dar. Seria um triste fim para ele e, provavelmente, para o PS. Uma hábil cambalhota política, pensaria, pois passará a imagem de que “fiz os possíveis…”. Quem for lúcido, sabe perfeitamente que um governo do PS, com o apoio, do BE e da CDU, poderá mudar muito pouco, atado que estará aos compromissos europeus e à dívida. Por outro lado, enfrentará a má disposição dos principais representantes dos interesses transnacionais, a quem não fechará a porta. Mas poderá, aos poucos, ir mudando o rumo do navio, no sentido de um farol que aponte para uma democracia mais justa, mais próspera, mais solidária, mais ética e transparente. Pensando bem, a TINA (there is no alternative) está deste lado, do nosso… Do outro, existe uma estranha autofagia, capaz de devorar povos, de arrasar o ambiente, de não respeitar os idosos e as crianças, de fomentar guerras, lucrar com elas, que nos arrasta de desastre em desastre. No século XXI, o mundo será solidário ou não será.
Leocardo VozesOs enfimadores [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]emos assistido a uma nova moda, moda não, eu diria antes “praga” nas redes sociais e quejandos que consiste em terminar os comentários com um ambíguo “enfim…”. São os “enfimadores”, um novo tipo de pseudo-intelectual, que num tom a atirar meio para o paternalista, mas completamente para o idiota, deixam aberta uma linha de pensamento que eles próprios iniciaram – sem que ninguém lhes tivesse pedido coisíssima nenhuma, note-se. É mais frequente encontrar este tipo de barata tonta nos comentários a notícias com factos que podem ser interpretados de forma diversa, ou temas fracturantes, e em alguns casos sensíveis, e cujas posições de uns podem entrar em rota de colisão com a posição de outros, e mesmo constituir um insulto à dignidade de quem, ENFIM, optou por dar à vida um tempero diferente (reparem como demonstro aqui um uso correcto para este infame “enfim”). Chamar à posta de pescada que o enfimador arrotou “opinião” é elevar a sua presunção ao estatuto de qualquer coisa digna de registo; normalmente tudo o que antecede aquele “enfim…” é verborreia da mais mal cheirosa, daquela que dá vontade de repreender o indivíduo que se atreveu a emfimar mesmo ali à nossa frente, sem pedir autorização a ninguém, ou perguntou se estávamos com vontade de aturar os seus obtusos enfins. Uma opinião, como o nome indica, é uma constatação do foro pessoal, nunca de carácter vinculativo, é refutável, e acima de tudo mutável – mudar de opinião não significa necessariamente que se é um vira-casacas, mas manter a mesma opinião apesar de todos os indícios do contrário é asinino: uma convicção só o é quando se trata de algo de plausível e concretizável. O facto de anteceder um monte de barbaridades com “eu acho”, ou acrescentar “…na minha opinião” no final dessas mesmas barbaridades não faz delas “opinião”. É o mesmo que colocar uma sombrinha em miniatura numa taça de urina de burra e chamar-lhe um “cocktail”. Os enfimadores são os chicos-espertos das absurdas asserções que se querem fazer passar por opiniões; com aquele “enfim…” estão a querer dizer-nos que estão cobertos de razão, e só não elaboram o esterco literário que acabaram de produzir porque nos “nunca íamos entender”, pois “vai para além da nossa capacidade”. Nisso até podem ter alguma razão, pois sempre tive alguma dificuldade em entender jumentês. Alguns enfimadores terminam o seu acto de masturbação mental (isto em frente a senhoras e crianças, imaginem) com um daqueles emoticons com um sorrisinho pateta, como quem demonstra condescendência pela nossa “inferioridade” intelectual (estes casos mais frequentes se a discussão é sobre religião). Mas olhem, sabem o que podem fazer com essa atitudezinha imbecil, as sombrinhas em miniatura, os emoticons e o “enfim…” em geral? Enfi(e)m-no no…exactamente, vêem como nem foi preciso acabar com “enfim…”?
António Conceição Júnior VozesAs nozes e as vozes [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o período pós-eleitoral, Portugal debate-se com a questão da indigitação de Cavaco, buscando delimitar alternativas com base nas questões estruturantes do País. Assiste-se nos media a debates sobre questões estruturais e estruturantes, envolvendo partidos que discutem situações com sustentabilidade ou não. Formam-se facções, fortalecem-se opiniões, e comentadores prós ou contra a esquerda ou a direita manifestam-se abundantemente. O que porém ressalta como imediata conclusão é que existe um grau de inteligência em todos os quadrantes políticos e as tomadas de posição exprimem posições mais claras enquanto outras se mantêm reservadas, aguardando ocasião mais propícia. Assim é a característica do exercício político. Ainda assim existem um palco, uma audiência e uma consciência ao nível dos protagonistas. Sucede que por cá o protagonismo desenrola-se de maneiras peculiares. O calculismo, em Macau, não é uma questão renal. O calculismo é, em Macau, um gato escondido com o rabo de fora. Mas também de ambições pessoais. E também do exercício do nonsense! Veja-se o que se propõe a debate na primeira sessão de trabalhos da Assembleia Legislativa da RAEM, a arrancar na próxima sexta-feira. A questão primeira e suprema vai ser colocada através de uma pergunta: “Por forma a aumentar a rotatividade nos parques de estacionamento públicos, o Governo deve ou não cancelar os respectivos passes mensais, permitindo que o público utilize os lugares de estacionamento em causa?”. Debrucemo-nos sobre este debate que, para o ser, não se deveria iniciar com uma pergunta de resposta sim ou não, por muito que o Cantonense use a afirmativa e a negativa. Uma posição começa com um ideário consistente, que se firma numa ideia coerente, organizada, o que parece não ser o caso. Pede-se que as medidas (leia-se cancelamento de passes mensais) a tomar para os parques, que são públicos, permitam ” que o público utilize os lugares de estacionamento em causa”. A questão é redundante, mas, assim posta, faz pensar se porventura os passes mensais são detidos por abusadores TNRs, turistas do Continente em trânsito, ou jogadores temporários de salas VIP. Alguns senhores do hemiciclo estão sinceramente preocupados com o estacionamento, mas não gostam daquela parte do público que possui legalmente passes, que tem direitos adquiridos. Pensam que os carros tranquilamente estacionados deveriam formar uma espécie de carrossel, em permanente movimento, talvez para reforço da ideia de cidade de entretenimento e lazer! Contudo, não se conhece uma proposta fundamentada de circulação periférica, de controlo de viaturas em circulação, de limitação da entrada de novas viaturas neste “carrossel” ou “poço do inferno”. Também nada se ouve sobre a eventual obrigatoriedade de todos os prédios em construção terem parques para todos os condóminos. Esses senhores deputados estão interrogativamente preocupados com os passes, não com os seus portadores, não com a poluição dos veículos, não com a enxurrada de carros que ao longo dos últimos anos verteu sobre Macau. Seria de esperar um pouco mais. Seria de esperar que para o debate inicial da legislatura fossem apresentadas ideias e propostas de defesa do interesse público, a começar por políticas ambientais, problema premente aqui e na arena internacional. Seria de esperar que fossem apresentadas medidas e soluções para o trânsito caótico e consequente falta de qualidade de vida. Mas não, estão preocupados com os passes dos parques públicos. Tout court. Aplaudo entusiasticamente a ideia do senhor deputado Chan Meng Kam em se construírem parques inteligentes como existem noutras paragens. É, indubitavelmente, um contributo para a solução do problema, ao contrário da proposta do carrossel apresentada pelos seus colegas. A este propósito, indago-me se seria oportuno perguntar se também alguns dos senhores deputados não deveriam dar lugar a outros, seguindo o sistema de rotatividade. Perdoe-se-me a pergunta, mas é tão legítima como a outra.