China: sem “ismos”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssinalou-se no passado fim-de-semana o 67º aniversário da implantação da R.P. China. Estávamos em 1949, e não fosse por um outro estado situado algures no Médio Oriente que tem o condão de se expandir em território sem que para isso seja necessário a intervenção da mãe natureza, e que havia sido reconhecido meses antes, eu diria que a República Popular foi “o menos consensual” dos estados inaugurados nesse ano. Assim, foi com redobrado interesse que assisti no último Domingo ao debate tripartido no programa “Contraponto”, onde o ilustre painel de comentadores se debruçou sobre o tema da China actual, presente, passado e futuro, tudo bem, óptimo, tinham toda a razão – e nenhuma. Não me levem a mal, pois eu próprio não faço a mínima ideia do que estou aqui a falar, mas é que quando se fala da China convém preencher alguns requisitos básicos, como por exemplo “ser chinês”. Mas chinês a sério, tão a ver? Com um pai, avô, bisavô e etcetera que também eram chineses? Comprar nacionalidades para se encostar a tachos políticos não conta, portanto.
Podem não ter reparado, os ilustres elementos que compõem o painel do programa de debate da TDM, ou se calhar repararam mas estão-se nas tintas, não sei, mas quando falam da China a um chinês, a tendência é para que este faça um ar algo “enfadado”, desate a olhar para cima, suspirando enquanto pensa: “lá vai este ‘kwai-lo’ falar do que não sabe”. Aplicar conceitos como “capitalismo”, “marxismo” e outros “ismos” à China é um bocado como tentar encaixar um volume esférico num orifício quadrangular. A China é o que é e o que sempre foi desde há cinco mil anos, e as únicas diferenças são as mesmas que encontramos em toda a parte; hoje têm automóveis, electricidade, saneamento básico…espera lá, nem todos têm. E talvez seja exactamente por esse motivo que na China ninguém é Marxista, capitalista, democrata-cristão ou adventista do sétimo dia – mesmo que ostentem uma farda ou um crachá qualquer. Na China são chineses, e isso é já é uma ocupação em “full-time” que lhes deixa pouco tempo para se dedicarem a passatempos, especialmente aqueles que implicam debitar retórica que daria para encher o rio Yangtze.
Facto: a China NUNCA será uma democracia parlamentar, e NUNCA se realizarão eleições directas pelo método do sufrágio universival. Ou melhor, talvez, quem sabe um dia, mas NUNCA sem que antes seja derramado tanto sangue que daria para encher…o rio Yangtze (peço desculpa, mas não conheço muitos rios chineses, e a minha musa metafórica encontra-se a gozar as férias da “semana dourada”). Quando alguém me vem com uma conversa de que é possível implementar na China uma democracia de matriz ocidental, com eleições livres firmadas no princípio de “uma pessoa, um voto”, faço cara de caso. A mesma cara que qualquer um de vós faria se alguém vos tomasse por imbecis, ou retardados mentais, estão a perceber? É que nem uma criança de 8 anos acredita que depois de tudo o que tem sido feito no sentido de derrubar o regime, os eventuais novos líderes fossem realizar “eleições”, arriscando perder o poder como quem aposta as pratas da tia-avó numa volta da roleta no casino. A sério, eu mais do que duvidar de tamanho delírio, sinto-me ofendido.
E no fundo tudo se resume a isso mesmo: o poder. Não é por inércia ou falta de tacto que o regime estagnou, ou que se inibe de levar a cabo as tão necessárias reformas que tornem o seu totalitarismo mais digerível: estão demasiado ocupados a segurar o poder. A História da China tem sido fértil em exemplos; cada vez que se mudava de dinastia, mudava-se de moeda, de caligrafia, de capital, de medidas de capacidade, distância e peso, do nome dos dias da semana, de tudo, de modo a deixar o menor rasto possível dos seus antecessores. O novo rei desconfiava de tudo e todos, até dos que o auxiliaram na tomada do poder. E tinha razões para isso, pois aqueles mais próximos do monarca não hesitariam em destroná-lo, e bastava uma oportunidade.
E assim tem sido até aos dias de hoje, o que talvez ajude a explicar a rigidez do regime em certos aspectos, e por vezes ao ponto de chegar a cair no ridículo, tal é a insistência em manter algumas directivas bizarras. Não é que eles não queiram fazer certas concessões, mas preferem não arriscar: qualquer cedência pode ser entendida como um sinal de ruptura dentro do partido único, e juntando a isto o pressuposto da “face”, tão importante para os chineses, temos então a “chave do mistério”. Mesmo em Macau temos o caso da Assembleia Legislativa. Se um dos deputados do grupo dos “não alinhados” apresentar uma proposta de lei, é rejeitada sem apelo nem agravo, mas se o Governo apresentar a mesma proposta, palavra por palavra, é aprovada sem pestanejar – mesmo que quem vota a favor seja contra o seu conteúdo, como tem acontecido com as sucessivas restrições ao tabagismo.
O partido, esse, está bem e recomenda-se. De facto existe o tal “risco de implosão”, e fricções internas a rodos entre os diferentes núcleos regionais do PCC, e convém “distribuir o mal pelas aldeias” – que neste caso é um “bem”. Contudo, não há que temer as ameaças externas, desde que a economia continuar a todo o vapor. Enquanto houverem “charters cheios de chineses”, citando o imortal Paulo Futre, a aterrar em Paris para “limpar” as lojas da Dior e da Channel, não há contra-revolução que resista. Na China há pessoas inteligentes e ábeis capazes de tocar o país para a frente, mas é preciso ser mais do que apenas a mulher de César. Não existe propriamente o conceito de “meritocracia”, e permitam-me que use outra o “apparatchik” local como exemplo, nomeadamente na trapalhada que fizeram com aquela noção de “talentos”. Sim senhor, o menino é muito bom, mas antes de mais nada vamos lá saber quem são os seus pais, os seus avós, amigos, com quem anda e onde vai, em que escola estudou e se existe algum historial de “dissidência”, nem que seja uma mera menção, ou algum comentário infeliz durante um momento menos “zen”. Isso do “talento” fica lá para o fim da lista, relegado para “critério de desempate”.
Finalmente, Mao Zedong. Não quero que pareça que estou aqui a dar sermões seja a quem for, mas parece-me de má tez mencionar os erros do grande timoneiro no contexto do Dia Nacional. A imagem de Mao neste dia é o equivalente ao desenho do bolo de aniversário que aparece no perfil do Facebook de alguém no dia do seu aniversário: não nos diz se é boa ou má pessoa, mas apenas que “faz anos” – toca a dar-lhe os parabéns, então? Quanto ao resto, de mal a mal vamos a caminho das sete décadas de socialismo na China. E sabem o que mais? De todos os “ismos” penso que foi aquele que realmente fez algum bem à China. Pensem o que pensaram, milhão de mortos a mais, milhão a menos, o socialismo tem valido à China aquele que é provavelmente o seu mais longo período de paz social em séculos. E são 1300 milhões de alminhas, meus senhores. É preciso não esquecer esse precioso “detalhe”.

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