A pequena política

[dropcap style= ‘circle’]C[/dropcap]omo se fosse uma grande novidade. O Verão de Macau, que já começa a ser noticiosamente tonto, agita-se por estes dias com a condenação por corrupção de dois funcionários da associação que ajudou a eleger Chan Meng Kam e outros dois deputados da lista de Fujian. A associação chamou os jornalistas para dizer que está a ser alvo de pressão política, para dizer que é tudo mentira e para fazer ver, aos olhos do mundo, o quão injustiçada está a ser. Song Pek Kei, a menina Song, a terceira da lista de Chan Meng Kam, também já veio garantir que não houve qualquer ilegalidade eleitoral, que os votos nela depositados são do mais limpo que há. Pelo meio, a deputada deixa ainda acusações graves ao Comissariado contra a Corrupção. Ela lá sabe o que faz.
A justiça concluiu, por ora, uma coisa diferente. O tribunal entende que houve tentativa de compra de votos – votos que custam o preço de refeições, bebidas ou transportes grátis. Partindo do princípio de que a justiça está certa e de que aquilo que se ouve por aí na altura da campanha eleitoral corresponde à realidade, deste caso só é possível retirar uma de duas conclusões: a Associação dos Cidadãos Unidos de Macau tem funcionários extraordinariamente diligentes, cheios de iniciativa, que fazem tudo o que está ao seu alcance para que os homens que mais veneram politicamente sejam eleitos, incluindo gastar o dinheiro que tanto lhes custou a ganhar para angariarem votos sem que alguém lhes tenha encomendado semelhante tarefa; ou os três deputados com mandato válido até 2017 sabem perfeitamente dos métodos usados pela máquina que os elege.
Como se fosse uma grande novidade. Não é – este caso vem mostrar o quão frágil é a vida política de Macau. Tem razão Leonel Alves que, num comentário à Rádio Macau, destacou as características do eleitorado local: Macau tem um conjunto de eleitores com contornos muito específicos, por ser uma terra de grande mobilidade, terra de acolhimento de imigrantes que não trazem na bagagem a cultura da democracia. São eleitores para quem a política tem como principal função resolver os pequenos grandes dramas do quotidiano – aquilo a que chamaríamos a política de junta de freguesia.

[quote_box_left]Temos freguesias, mas não temos juntas; não temos câmaras nem assembleias municipais que se preocupem com as pequenas grandes coisas. Quem deveria ter outro tipo de causas e de discurso aproveita-se com facilidade destas fragilidades locais[/quote_box_left]

Dizem-me que Chan Meng Kam e os seus dois pares são bons na resolução deste tipo de dilemas junto da comunidade que os elege: o deputado tem dinheiro e ambição política também não lhe falta, pelo que, ao primeiro sinal de desagrado, manda alguém meter mãos à obra para que o seu eleitorado seja feliz. Numa cidade onde a política é um conceito muito peculiar, continua a faltar uma política de proximidade. Temos freguesias, mas não temos juntas; não temos câmaras nem assembleias municipais que se preocupem com as pequenas grandes coisas. Quem deveria ter outro tipo de causas e de discurso aproveita-se com facilidade destas fragilidades locais.
Atendendo às características de parte significativa do eleitorado de Macau – convém recordar que Chan Meng Kam tem os seus apoiantes concentrados na freguesia com maior densidade populacional de Macau, que parece fazer parte de outra cidade do que aquela onde fica a Assembleia Legislativa –, é impossível mudar, a curto prazo, a mentalidade de que o voto está para venda e tem um preço. Como diz Leonel Alves, de nada adianta proibir os jantares que se multiplicam por altura das eleições: se não puderem ser feitos cá, mudam-se para Zhuhai ou para as terras de origem.
Neste contexto, sendo muito difícil convencer cada eleitor de que o sentido de voto só a ele lhe diz respeito e que o voto é um exercício de liberdade, a solução tem de ser encontrada junto de quem pretende ser eleito. Esta semana ouvimos várias sugestões do que deve ou não deve ser feito: repensar a questão da imunidade é a que me parece, desde logo, mais eficaz. Se pessoas que trabalham na máquina eleitoral de candidatos a deputados são condenadas, a culpa não pode ser assumida apenas por quem agiu a mando, sem qualquer responsabilidade política.
Como se fosse uma grande novidade. O Verão vai passar e o tempo político talvez se torne menos tonto. E, como tudo, também isto vai cair no esquecimento. Gostava de estar enganada, mas os mecanismos de transparência que se prometem na revisão da lei eleitoral de pouco ou nada servirão. Em 2017 há mais eleições e vai ser tudo na mesma. Como se fosse uma grande novidade.

24 Jul 2015

Olhem de novo

Eduardo Flores*

[dropcap style= ‘circle’]B[/dropcap]oca amiga já mo tinha soprado à orelha. Duvidei, mas não muito. Tenho Macau entranhado na pele, como o sarro de um mineiro de carvão.
O Tap Seac é a Ágora cultural de Macau. Salvou-se de desaparecer por via de lhe cobrirem o relvado com a “coisa desportiva” – ou coisa assim – que afinal foi esmagar a Escola Sir Robert Ho Tung. Não se livrou, a Norte, felizmente com um bom desenho, da tampa do túnel. Que sanha haverá contra ele?
A seu tempo defendi que a nova Biblioteca Pública deveria ser uma ampliação para o outro lado da Praça. Mais tarde, quando o inevitável parecia aí, do mal o menos, por que não lá colocar a Escola Portuguesa, já com piscina e tudo? Talvez uma boa maneira de salvar a piscina. Piscina que é só mais um exemplo a precisar de reabilitação e restauro, não de liquidação.
Foi a Escola Sir Robert Ho Tung, a Escola Primária Oficial, o neo-mourisco das Conservatórias na Sidónio Pais e, aqui também, mas mais acima, as vivendas da “Secessão”. Sobra o edifício da antiga Escola Comercial Pedro Nolasco “preso pelos fios” que são a Escola Portuguesa. Sem falar no Jardim Vasco da Gama, “levantado do chão”. O pequeno bairro chinês da Av. Coronel Mesquita; no Porto Interior, o edificiozinho dos CTT, decadente e violentado no rés-do-chão… Claro que temos as raridades da Casa do Mandarim e da Casa do Loucau.
É muito longa a lista das pequenas peças do nosso importante património. Quase todas pequenas, modestas até, inclassificadas… Quase todas abatidas.
O “novo Estoril” (peço desculpa, é o que dizem, mas já duvidei do “diz que disse” que aqui me traz) vai ter o volume da “coisa desportiva”, sobretudo se a Piscina Municipal for mesmo à vida e incluída no plano do novo edifício. É mentira ou estão a esquecer-se de falar nisso? A relação ainda existente entre a Praça e a Colina da Guia desaparece, mas isso não é património de valor, parece.
Triste, desapontado mas, confesso, não demasiado surpreso.
Os Arquitectos não são advogados, (enfim… um pouco, por vezes, até somos) e é difícil, admitamo-lo, todos por lá passámos – muito difícil – recusar um contrato.
Mas não temos a obrigação sequer de fingir que acreditamos na causa. Cumprimos programas. Não nos podem obrigar a gostar deles.
E temos, isso sim, a obrigação do conselho crítico ao cliente.

[quote_box_left]Deixemo-nos de tretas, o Siza não gera controvérsia. É por valor próprio incontroverso. O prédio que ele ali fizer será, no mínimo, tão bom quanto o velho Hotel. A questão não deveria sequer passar por aí. É se deverá ali estar[/quote_box_left]

Sei-o por mim. Sei-o pelos meus pecados. Mas nenhum cliente me tratou mal ou me despediu por lhe dizer a verdade.
Podem “obrigar-nos” a defendê-los. Podemos querer defendê-los. Mas não devemos, que isso é muito feio.
Que fique claro, sou um simples e pequeno arquitecto, daqueles que vão morrer. Sei que falo para o Olimpo. De mim fiquemos por aqui. Hotel Estoril
São os Desígnios. Persistem os Desígnios Superiores, a que temos vindo a ser sujeitos, para suportar subtracções impunes à paisagem da memória. Da gratuita subtracção do edificiozinho dos Serviços de Meteorologia – substituição por pastiche, como também os do Largo de S. Domingos – ao prédio do Fai Chi Kei, ao… Hotel Estoril? Como disse, a lista é enorme.
O importante património de Macau é este, feito de pequenos edifícios e até pequenas memórias. Algo parecido com Grande Património temos as Ruínas de São Paulo. Talvez qualquer coisa mais, mas não me lembro.
Foi a opção incontroversa. Já a reconstrução da ardida Baixa de Lisboa foi assim.
Deixemo-nos de tretas, o Siza não gera controvérsia. É por valor próprio incontroverso. O prédio que ele ali fizer será, no mínimo, tão bom quanto o velho Hotel. A questão não deveria sequer passar por aí. É se deverá ali estar.
Não vai é ser a história do Estoril, épica e pecaminosa. Ombro a ombro com famílias em lazer de águas. A não contar história nem estória – a menos que seja esta, triste. Não vai ser uma forma identificadora assim tão cedo, se alguma vez o for.
Nem vai provocar a tristeza de um Dédalo, a quem estas asas queimadas nada dizem.
Não sei o que leva alguém a achar o Estoril abatível, nem de perto quanto mais assim à distância. Removível, sem mágoa, da memória, quando ele é memória.
Em fim de vida, o Estoril foi, eventualmente, o maior lupanar de Macau. Antes disso foi, para o melhor e, muito, para o pior, seminal na moderna indústria do jogo em Macau. Mesmo assim, e por isso tudo, merece o nosso respeito.
Além disso o prédio é bom. É delicado. Ao menos a fachada…
E a piscina – história, arquitectura e a importância de bairro – é para outra ocasião.
Ver a cidade como um amontoado de prédios, onde uns têm valor porque são plasticamente interessantes e os restantes não importam, não me parece um processo humanístico de construir e manter uma cidade. Mas o processo é, no fundo, confrangedoramente simples, só a ganância o complica.
Até há patrimónios artificiais que é preciso respeitar, como o memorial ao Dr. Sun Iat Sen (apesar de raramente se lembrarem do Dr.) e a casinha do General, na Coelho do Amaral. Mas isso é outra conversa, embora coubesse aqui, no nosso importante património.
Citando não sei bem quem: “o arquitecto Siza Vieira terá aconselhado o Executivo a demolir a fachada do espaço”; “aconselhou a que a fachada do edifício não fosse mantida”. Isto tudo após “trocar impressões sobre a protecção do património cultural”, e “porque considera que esta (fachada) não integra o importante património cultural de Macau.”
Esta declaração pública, da ausência de qualidade arquitectónica do velho Hotel e da sua insignificância destrutível, é agressiva, cruel e ofensiva. Do Siza?!
Reflecte a opinião dos que querem pensar assim, fazer pensar assim e dos convencidos a pensar assim. Se calhar, depois, até pensam que pensam mesmo assim. Complicada a frase? Esperem até ouvir os que pensam mesmo assim…
Parecem esquecer que o património edificado não se estabelece apenas na qualidade arquitectónica do construído – por aí, mais facilmente admitiria eu (mas não admito) que se demolisse o velho Tribunal – o Palácio (!) das Repartições, chamavam-lhe.
Aliás, vendo bem, tudo isto é difícil de acreditar. Vejamos o que dirá agora o Arquitecto Siza Vieira, quer se digne quer se indigne. Ainda espero que se indigne por a história estar mal contada, mesmo que seja também comigo.
Depois há o tempo e o dinheiro, que parecem escassos nesta rica cidade de tanto frenesim.
Dez anos a deixar apodrecer uma estrutura sem préstimo para de repente ser urgentemente necessária. E o Grande Hotel, para lá caminha?
O património sai caro? Pois sai, por aí era melhor nem ter havido candidatura a Património da Humanidade. E que tal poupar no património para se aumentarem ainda mais as participações pecuniárias?
Há pressões incomportáveis sobre a malha antiga? Já nos anos 80 se falava que se deveriam criar instrumentos legais que transferissem direitos das áreas históricas para as novas áreas de expansão. Entretanto passaram a Baixa da Taipa, a ZAPE, os NAPE, a Areia Preta, o COTAI e, agora, os Novos Aterros – 5 ATERROS. Cinco.
É, é de se ficar aterrado.

*arquitecto

24 Jul 2015

Carta de um fã

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]xistem dois tipos de pessoas no mundo: as que não gostam de mim, e depois o resto da humanidade, que desconheço e vice-versa. Isto não é necessariamente mau, pois não fazendo o mínimo esforço para agradar a ninguém, já me considero satisfeito por não ter a cabeça a prémio – um desempenho “positivo”, pode-se dizer. Mas nem tudo é tão simples, pois neste grupo de pessoas que ficaram por cativar há aquelas que não me interessam (muitas) e as que nem sempre tenho paciência para aturar (as restantes).

Como produto final ficam as que me detestam, e desses até só posso dizer maravilhas, pois mantêm-se à distância ou evitam cruzar-se comigo; as que já me conhecem, o que no fim acaba por ser uma coisa…não diria nem agradável, nem pelo contrário, mas antes “útil”; e finalmente os badamecos, aqueles mais rústicos a quem a minha presença incomoda, pois sabem que não conseguem conter a sua boçalidade a toda a prova, e eu vou lá estar para apitar para falta, ou algo do género. Se pelo menos para alguma coisa sirvo, é para que finalmente alguém se deixe de considerar uma dádiva de Deus ao mundo. Dependendo do grau, posso até nem dizer nada, mas de uma coisa tenho a certeza: se for um pantomimeiro especialmente esforçado, mas na mesma medida incompetente, e às vezes sem vergonha na cara, aconselho-o a que mude de carreira, antes que se enxergue tarde de mais, e acabe no chão a pedir esmola.
Por culpa da minha actividade de desanimador de festas e interruptor de orgasmos (tenho no próximo mês uma promoção em “bêbado de casamento” e “adulto chato em festa de aniversário infantil”), e cujo menu pode ser consultado no blogue Bairro do Oriente, ganho uma legião de fãs enorme! Os fãs de que eu parta uma mão e fique uma boa temporada sem escrever, e os fãs de uma boa peixeirada, onde participam tipos que passam a vida dizer que “detestam peixeirada”.

Quanto a essa matéria, recebi a carta de um fã, que demorei a entender por duas razões: a pobre ortografia, a falta de pontuação e o uso impróprio dos artigos, por um lado, e por outro lado a intenção daquela missiva, ou da própria mensagem em si. Ao fim de três leituras e muita decifração, cheguei à conclusão que o autor da carta será uma criança em fase de pré-escolarização, ou um adulto sofredor de retardação mental profunda – se não for como eu digo, peço desculpa, mas os conceitos ali expressos apontam para uma idade mental de não mais de seis ou sete anos de idade. O teor da carta é que me apanhou de surpresa. Parece que a intenção é dar-me a provar do meu próprio veneno, e “atacar-me”. É possível que queira alguns conselhos da minha parte, de como melhorar essa mixórdia de letras que acabou de fazer, mas isso seria uma perda de tempo. Posso no entanto apontar-lhe onde errou tragicamente: quase tudo. Para começar o texto tem três frases, quando as ideias lá contidas (mesmo as incompletas) fariam umas cinco seis. Vamos ver a primeira:

“Os Loucos como o Leocardo querem sempre estar à frente de todo o mundo, ganhar de todos o que lhe não pertence e ser primeiro que o outro, é definitivamente um louco infeliz.”

Isto aqui mais parecia um relato de futebol: “louco para mundo, que lateraliza para todos, dá de volta para muuuundo, remata e …golo!”. Os “loucos” são normalmente denunciados por um comportamento errático, mas quando se organizam para “ganhar de todos o que não lhes pertence”, isto cai mais no âmbito da invasão do planeta por uma frota intergaláctica. Se “louco” é suposto servir de insulto, não, é uma condição médica, e não faz lá muito sentido que o louco em questão se sinta “infeliz” após ter conquistado o mundo naquela renhida situação que descreve. Mas adiante.

“E(É) anti-social e não convive em sociedade vivendo e acreditando a sua própria loucura.

Esta é a frase mais curta das três, mas pode ser eventualmente umas das maiores do universo; depende de quanto tempo demora o autor a decidir-se entre anti-social e aquela outra alternativa, completamente antígona. Uma vez que se decida, o que se segue não é mau de todo – quem não gostaria de viver a própria loucura? A dos outros parece-me menos convidativo. Isto da loucura é um pouco como a roupa interior.

“Um sábio encara a competitividade sempre de uma forma positiva e dialoga sempre com palavras saudáveis, tem a haver com o superar a cada dia é faz de um homem um ser sábio!! Leocardo o egocêntrico a miséria do mundo!!”

Finalmente a conclusão daquilo que nunca chegou a ter início, e é mais do mesmo, mas com um toque de zen macrobiótico: o Sábio, que se percebe logo ser um monge budista devido às inúmeras referências ao “tofu”, “yoga”, “meditação” e outras palavras “saudáveis”, chega a CEO de uma multinacional alemã, devido à forma como “encara a competitividade de forma positiva” – e mais uma facadinha ou outra nas costas de alguém, claro. Só que mais à frente esbarra com o analfabetismo lusitano: ter e haver são dois verbos, e o que se segue não faz mais sentido, acabando o tal homem por não ficar mais sábio. A última parte são palavras completamente distintas, sem pontuação, e por isso ao mesmo nível do resto do texto que me mandou, mas que agradeço na mesma, pois terá lugar de honra na ala dos “burlões incompetentes”. Bom dia.

23 Jul 2015

2015: Ano de todas as eleições

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]presente ano de 2015 é por razões do calendário político, o ano eleitoral na Europa. Já tiveram lugar eleições legislativas na Grécia, no Reino Unido, na Dinamarca, bem como eleições regionais em Itália. Estão agendadas eleições regionais na Catalunha em Setembro e legislativas em Portugal e na Polónia no mês de Outubro, concluindo-se o roteiro com as eleições gerais em Espanha em Dezembro.
O pesado calendário eleitoral ocorre quando o velho continente se confronta com inúmeras transformações e desafios ditados quer por circunstâncias internas quer externas. Entre as primeiras o enorme descontentamento que grassa nos eleitores na forma como a Europa tem sido gerida e como têm sido desenhadas prioridades tanto a nível do espaço comunitário como a nível nacional. Também a relativa surdez dos partidos tradicionais, à esquerda e à direita, aos apelos de mudança e de suavização das políticas macroeconómicas na União impostas pelo Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança da União Económica e Monetária. Já no campo das segundas os receios trazidos pela ameaça do expansionismo russo às fronteiras orientais da Europa e o cerco do terrorismo de inspiração islamita.
O ano de 2015 ficará, provavelmente, na história contemporânea europeia como o ano de todas as dúvidas, de todas as desilusões. O ano em que a percepção de um destino comum, de valores partilhados, de solidariedade europeia que pontua os tratados foi corroído pelos estritos cálculos do deve-haver ao sabor das tendências das praças financeiras e dos humores dos especuladores nas bolsas de valores. A política europeia tornou-se um jogo de cartas viciadas em que os políticos os governos nacionais se comprazeram a ter um papel meramente decorativo e a funcionar segundo os ditames de poderes ocultos que se mexem na sombra.
Saberemos nos dias finais do ano se as eleições em Portugal, na Polónia e em Espanha confirmam o apoio contrariado dos eleitores aos partidos tradicionais já visível nas eleições que tiveram lugar. Não creio que assistiremos, até por acontecimentos recentes, à repetição da vitória de um qualquer outro Syrisa europeu. Foi um fenómeno limitado que terá o seu acaso tão depressa como teve o apogeu.
Não significa isto que o paradigma bipartidário europeu criado na lógica do pós-Guerra, estruturado entre partidos à esquerda – socialistas e social-democratas e à direita -partidos conservadores, democrata-cristãos e populistas – esteja estabilizado. Sendo cada vez mais inverosímil a conquista, em eleições legislativas, de maiorias absolutas assistiremos a reagrupamentos, a cisões nos grandes partidos, à fusão de pequenos grupos e grupúsculos e à afirmação de plataformas radicais tanto à esquerda como à direita.
Historiadores, sociólogos e cientistas políticos têm alertado para a repetição das condições económicas, políticas e sociais que conduziram à explosão dos movimentos autoritários no velho continente na década de 1930 e à emergência dos fascismos, dos nazismos e de outras expressões políticas de xenofobia, racismo e extremismo. Segundo dados do Eurostat, de Maio de 2015, existem vinte e três mil milhões de desempregados na União Europeia, dos quais dezassete mil milhões na zona Euro. As maiores taxas de desemprego são na Grécia (25.6%), em Espanha (22.5%), a menor na Alemanha (4.7%). Em Maio de 2015, quatro mil e setecentos milhões de jovens (com menos de 25 anos) faziam parte deste enorme exército de desempregados. Em termos nacionais o desemprego jovem cifrava-se em 49.7% na Grécia, 49.3% em Espanha e 41.5% em Itália. 23715P15T1
É um enorme exército de desempregados, muitos desesperados, à disposição dos movimentos extremistas e disponíveis para embarcarem no primeiro projecto utópico que lhes for vendido, de forma convincente. Temos já uma primeira amostra desta ameaça preocupante pelo que se retira de relatórios sobre o recrutamento de europeus pelas organizações terroristas do Médio Oriente. Segundo o mais recente relatório da Europol “TE-SAT 2014’, a Al Qaeda e o ISIS mantêm intacta a sua capacidade de recrutarem jihadistas na Europa, aumentando a ameaça posta à Europa. Em 2014, diz o mesmo relatório, os estados-membros identificaram um crescendo de viagens de mulheres e crianças para a Síria e para o Iraque, o que indiciar o surgimento de uma nova geração de jihadistas na Europa. Também o número de combatentes que regressou à União Europeia vindo dessas paragens, aumentou significativamente. Tais combatentes adquiriram ali experiência de combate e operacional que os tornam ícones para jovens desempregados e socialmente desenraizados.
Mas não se limita a este tipo de movimentos a ameaça colocada à segurança europeia. Também em 2014 verificou-se um crescendo de prisões em Itália, Grécia e Espanha associadas a operações de grupos da extrema-esquerda e anarquistas. De acordo com o relatório citado, os grupos terroristas gregos mantêm ligações ao crime organizado para obtenção de armas e explosivos e estas conexões poderão reforçar a sua capacidade operacional em ambiente de instabilidade social ou pré-rebelião. O mesmo tipo de práticas (e associações) criminosas tem sido imputado à extrema-direita em França, na Polónia e em Itália visando a organização de atentados contra políticos, magistrados e polícias.
A Europa está assente pelas condições referidas num enorme paiol de pólvora à espera de ser incendiado. Daí que importaria que os dirigentes europeus tivessem uma outra visão, uma outra abrangência, ditada não exclusivamente por razões economicistas mas sobretudo pela gestão política e de segurança de uma situação que pode descambar, a qualquer tempo.
s

23 Jul 2015

Tsipras não é Teseu

“It is always a sure sign that corruption is institutionalized and culturally acceptable when there is a familiar, colloquial term in use for the act. In Greece, we have two. A fakelaki (literal translation: small envelope) is an accepted way of speeding up service in Greece. The term miza applies to kickbacks or introduction fees, typically for procurement- say a briefcase full of banknotes or a wire transfer. More than a million citizens paiy a bribe (fakelaki) last year for better service in the public sector, according to the latest survey of the Greek department of Transparency International.”
Greece’s ‘Odious5 Debt: The Looting of the Hellenic Republic by the Euro, the Political Elite and the Investment Community
Jason Manolopoulos

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]O primeiro labirinto de que fala a história é de um mito grego que teria sido construído por Dédalo, para o rei Minos, com o fim de prender, em Creta, o Minotauro, um monstro filho da sua mulher. Os historiados mais versados em mitologia grega, discutiram durante séculos se a lenda tinha por referência o palácio de Cnossos, uma construção tão imensa, como sofisticada e intrincada na gruta Gortina, nessa ilha do mar Egeu.
O monstro morava no labirinto, e exigia o sacrifício de sete jovens do sexo feminino e outros tantos do sexo masculino, destinados a ser devorados, como tributo que Atenas devia pagar, depois de ter perdido a guerra contra o rei Minos. A oblação ocorria a cada nove anos, até que Teseu, filho do rei Egeu, foi incluído entre os sete jovens, e apenas teve de desenrolar um novelo de lã, à medida que avançava no labirinto, e que Ariadne lhe ensinou e segurava à entrada do palácio, e ao matar o Minotauro, encontrou a saída da gruta e fugiu com a sua amada.
O primeiro-ministro grego, passados mais de quatro milénios sonhou ser o moderno Teseu que derrotaria o monstro tricéfalo, (FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu) e que conseguiria sair do labirinto no qual tinha entrado, quando prometeu aos gregos, o que nunca poderia cumprir, e que tudo complicou com a convocação de um referendo impossível de ser satisfeito.
O radical primeiro-ministro grego, não tem uma Ariadne, filha de Minos e de Pasífae, que lhe proporcionasse os meios, o fio, que o guiasse a sair do labirinto em que se meteu e ao seu povo, com um conjunto de restrições de tipo argentino, numa Europa do século XXI, nunca implantadas por outro anterior Governo no seu país e imposto aos seus cidadãos. O primeiro-ministro grego e o Syriza, independente da forma como terminasse a crise, com referendo positivo ou negativo, não é Teseu e tinha perdido a sua grande oportunidade.
Se tivesse aceitado a 1 de Julho de 2015, as condições que previamente tinha recusado, teria colocado o seu país e os seus cidadãos na pior situação de sempre, sem grandes benefícios. Se, pelo contrário, os gregos votassem favorável ou desfavoravelmente relativamente às propostas da “Troika”, denominadas de “Instituições”, também enfrentariam um dilema impossível, quer ganhasse ou perdesse o referendo, pelo que só existiam duas opções, a demissão, tanto a sua, como a do seu Governo, ou fazer sair a Grécia do euro, o que arruinaria os gregos durante uma ou duas gerações.
O desacordo num dos pontos quentes das negociações, era simples, ou seja, a aceitação das condições da “Troika” que resultaria num corte para os pensionistas de 2 por cento. A negativa no referendo, se acaso não tivesse claudicado o primeiro-ministro grego perante a famigerada “Troika”, a 13 de Julho de 2015, conduziria à saída do euro, o que representaria uma perda de riqueza para a Grécia de mais de 50 por cento.
O primeiro-ministro grego, obviamente, não sendo Teseu, nem tendo nenhum fio de Ariadne, por muito hábil que tenha querido ser, segundo os seus seguidores, aquando das negociações não conseguiu passar a cortina de aço da austeridade alemã, e de nada serviram os jogos malabaristas do seu ex-ministro das Finanças, que é um dos poucos políticos gregos que tem capacidade para subir a todos os palcos, porque sempre tem como opção, muito bem remunerada, de dar conferências pelo mundo para explicar como o seu modelo fracassou.
Ao fundo do túnel, não obstante, a trágica comédia grega sobressaem, além do caos e da corrupção na Grécia, os enormes receios que sempre teve e tem a extrema-esquerda europeia ao projecto e à realidade da moeda única, que tem defeitos óbvios de desenho, mas que foi um grande passo em frente, como o demonstra, entre outras situações, a animosidade que sempre despertou entre os peritos americanos, como Paul Krugman e Joseph Stiglitz inclusive, que não querem nenhum competidor, por novo que seja, do dólar.
O problema do primeiro-ministro grego e do Syriza é de que, apesar de tudo, os gregos têm por certo que fora do euro seriam mais pobres e viveriam pior. É a verdadeira linha vermelha que o primeiro-ministro grego não se atreveu a cruzar, ainda que lhe tivesse agradado, porque num país sem euro, com soberania monetária, poderia fabricar todo o dinheiro que quisesse, ainda que não tivesse quase nenhum valor, e continuar no poder.
É o modelo argentino e também o venezuelano, cujos resultados estão mais que experimentados, muito combatidos dado o desastre que provocaram, e os gregos, por muito que tenham sofrido durante a crise, não querem saber dessas falhadas experiências. É também a grande contradição de uma esquerda radical que durante décadas se proclamou internacionalista e que sonhou com palcos que soam demasiado a velhas autarquias que são inviáveis em pleno século XXI.
A Europa, o mundo, e em particular a Espanha e Portugal, no outro extremo do Mediterrâneo, perscrutaram a peripécia grega. Todos o negam, mas o desenlace da crise helena, qualquer que fosse, repercutiria nas próximas eleições espanholas e portuguesas. O primeiro-ministro grego e o Syriza demonstraram que uma compartimentação à moda argentina na Europa não é uma ficção científica e, por consequência, não é neutral. 21715P18T1
É o labirinto grego, que alguns querem tornar europeu, mas não sendo ninguém é Teseu, e o ponto de partida sendo diferente e no caso grego é o pagamento da dívida. Aquando do referendo as bolsas sofreram um golpe inicial que aumentou a volatilidade (subidas e descidas), deixando nervosos os investidores. A ideia antes do referendo era de que a crise iria durar semanas, e talvez não terminasse tão mal como pensavam os investidores e inclusive os gregos, pois podiam ser mais sensatos que o seu Governo. Se ganhasse no referendo com o “Sim”, tudo se ajustaria e se fosse o “Não”, a Grécia sairia da “Zona Euro”, mas não contagiaria o resto da Europa, sendo graves os precedentes que se criariam, dado pôr em dúvida o euro e todo o projecto europeu.
Após os avanços dos últimos anos (particularmente a União Bancária) e os compromissos para a construção do futuro, a “Zona euro”, encontra-se melhor preparada que em 2012 para fazer face uma possível saída da Grécia do euro. Ainda que não seja de menosprezar os riscos, reformas, ajustes e correcção de desequilíbrios realizados pela Irlanda, Portugal e Espanha nos últimos anos permitiam prever que o contágio e os efeitos sobre a recuperação dessas economias seriam mais limitados se o acontecimento tivesse ocorrido há três anos.
A crise grega tem como origem a necessidade de ajuda financeira porque o país não podia pagar a dívida pública assumida, pois teve que reconhecer que o deficit declarado, em 2010, era dez vezes inferior ao real. A partir desse momento os organismos internacionais, e com muito maior protagonismo o “Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEDE)”, foram injectando dinheiro na economia helena, a troco de reformas no país. As injecções financeiras fizeram que dos trezentos e doze mil milhões de euros da dívida grega, duzentos e cinco mil milhões de euros correspondentes a 66 por cento, são empréstimos concedidos pelo MEDE, FMI e créditos bilaterais feitos pelos seus parceiros da “Zona euro”.
O partido que suporta o Governo grego ganhou as eleições com a promessa de renegociar a dívida sem fazer mais reformas que originassem reduções nos gastos sociais. A Grécia vive do turismo e da agricultura e perdeu 24 por cento do seu PIB, e é um país em permanente instabilidade política e social. Os 68 por cento da dívida grega encontram-se nas mãos de instituições oficiais. Quem terá interesse em investir na Grécia, um país que se tem vindo a tornar em paradigma de trabalhar mal e do sofrimento não rentável de um povo metido num cúmulo de desgraças?
O Governo do Syriza levou a Grécia a dar um tiro no pé e a jogar cartas erradas depois de tanto orgulho bipolar. O acordo efectuado “in extremis” foi uma aposta que perdeu, ainda que fique a prazo na “Zona euro”, se não tiverem capacidade de mudar toda a sua mentalidade existencial e encontrarem um modelo sério de gestão das contas públicas e controlo orçamental.
A credibilidade do euro, da UE e de todos os seus parceiros na “Zona Euro” foi fatalmente prejudicada, a troco de mais melhoria nas ajudas financeiras que eram o objectivo do primeiro-ministro grego, depois de ter criado o espectáculo do referendo ultimato que a todos poderia ter poupado. A Grécia é um aluno falaz, porque carrega uma má previsão, se saísse da “Zona euro” seria um estorvo e ficando será um nó górdio, porque continuará a criar problemas no futuro, com uma dívida impagável e a necessidade de crescer a qualquer custo. O acordo aprovado pelo Parlamento grego, a 15 de Julho de 2015, sobre o acordo de princípio com o Eurogrupo que permitirá iniciar as negociações para um terceiro programa de assistência à Grécia colocou irremediavelmente o país à beira do precipício. O reconhecimento da “Troika” às más políticas de austeridade resultou hipocritamente em austeridade sufocante.
A Grécia recebe ajuda mas contínua a não fazer os deveres de casa. Se a Grécia não se aplicar e ajudar-se, de nada serve esta terceira ajuda concedida, pois será impossível sair do fosso que cavou. Na vida colhe-se o que se semeia, valendo quer para as pessoas, como para os países.

21 Jul 2015

Táxis de Macau

[dropcap style=’circle’]No[/dropcap]dia 6 de Julho deste ano, o jornal local “Hou Kong” publicou uma peça que continha a informação mais recente sobre a fiscalização efectuada aos táxis do território, tendo em especial atenção as recentes queixas de comportamento ilegal ou inapropriado por parte dos seus condutores.
Segundo a mesma notícia, durante a primeira parte de 2015, a Polícia Judiciária e o Departamento de Trânsito conduziram operações conjuntas de forma a combater os operadores de táxis ilegais. No total realizaram-se 3.037 processos judiciais, cobrindo ofensas diversas, conforme especificado na tabela abaixo:

Queixas apresentadas Número de casos processados Percentagem
Cobrar em demasia 730 24.04%
Recusar passageiros 919 30.26%
Utilização de outro veículo 124 4.08%
para transporte de passageiros
Recolha de passageiros 100 3.29%
em local indevido
Outras 1.164 38.33%
TOTAL 3.037 100%

A mais recente operação deste género destinava-se não só a combater a operação de táxis ilegais, mas também a realização de ofensas por parte dos condutores devidamente registados, para desta forma melhorar a imagem dos transportes públicos de Macau e ainda para garantir a defesa dos direitos dos utentes deste tipo de transporte.
Uma grande parte da população local tem vindo a manifestar o desejo de se proceder a uma maior inspecção e monitorização desta forma de transporte público. Nos meses transactos, tem sido praticamente impossível obter um táxi à noite, pois durante este período os condutores de táxis conseguem distinguir se o potencial passageiro é local ou porventura estrangeiro, grupo este que constitui o cliente preferencial dos taxistas, visto dirigem-se norma geral a um hotel, casino ou sauna, que são locais de fácil acesso. Já quanto aos residentes locais, nunca se sabe onde estes tencionam ir, e se surgir por exemplo a necessidade de se dirigirem ao Hospital Kiang Wu, o percurso já apresenta um maior número de problemas e de atrasos, tendo em conta as ruas apertadas e congestionadas que rodeiam este centro hospitalar local. Se a viagem for realizada durante o dia, podemos facilmente imaginar o condutor a reclamar, dizendo coisas como “não sei como, mas parece que segui pelo caminho errado, agora vamos ter de dar uma volta maior”. Este tipo de esquema costuma acontecer quando a tarifa a receber não cobre, no entender do taxista, todo o tempo despendido nessa viagem, facto que justifica este solicitar uma compensação maior, mas também por vezes resolvido com umas voltas adicionais de forma a encarecer o trajecto.
Agora, estou convicto que o serviço prestado por estes taxistas tem vindo a registar uma melhoria em virtude da fiscalização recentemente efectuada. Ao que parece, e até mais ver, a maioria dos táxis tem estado a obedecer à lei desde então.
Isto não quer dizer, contudo, que não possam ser feitas melhorias ao serviço, e para o efeito pretendo aqui fazer algumas observações que devem ser resolvidas no futuro. Em primeiro lugar, se observarmos a estação de táxis do Terminal Marítimo do Porto Exterior, assim como a que fica localizada nas Portas do Cerco, verificamos que os táxis seguem sempre em apenas uma faixa de rodagem, que é normalmente a do lado esquerdo. Assim, não é possível apanhar um táxi na faixa do lado direito, pois normalmente não se encontram aqui veículos a aguardar passageiros. Por estas razões, os taxistas costumam ter opiniões diversas sobre qual das duas faixas representa a possibilidade de maiores receitas, preferindo uns a faixa da direita e outros a da esquerda. Mas, regra geral, a faixa da esquerda é a mais procurada, pois regista um maior número de percursos longos, que são obviamente os mais rentáveis. Salientamos, porém, que isto não é uma regra matemática, nem sequer chega o Governo a fazer qualquer diferenciação, por meio de sinais, entre as duas faixas, depreendendo-se então que esta observação é derivada exclusivamente da experiência dos motoristas. Por fim, a dúvida permanece por esclarecer, não sendo possível determinar com exactidão qual das faixas permite um maior encaixe financeiro por táxi, nem sequer perceber se seria vantajoso ou não permitir a recolha de passageiros quer do lado direito como do lado esquerdo, ou se seria possível oferecer mais conveniência aos passageiros caso se invertesse a ordem agora verificada. taxis
Outro serviço que merece uma maior reflexão é o chamado tele-táxi. Muitos residentes têm manifestado o seu descontentamento por não conseguir a marcação de um táxi desta forma, apesar de inúmeras tentativas. Mas, após uma breve conversa com alguns motoristas locais, foi possível perceber as razões que impossibilitam uma melhor oferta deste tipo de serviço. Vamos aqui imaginar uma situação em que um passageiro telefona para reservar um veículo, sendo ao mesmo oferecido um táxi, aqui chamado de A. Porém, quando este chega ao local pré-determinado, este verifica que o passageiro em causa acabou na verdade por apanhar um outro táxi, B, que se encontrava vazio. Neste caso, é o passageiro que se encontra em falta, e não o táxi A. Mas o que pode ser feito para evitar a repetição deste tipo de situações? Se por um lado temos necessidade de combater aqueles motoristas que praticam ilegalidades, temos também a necessidade de recompensar aqueles outros que operam com rigor e pontualidade. Assim sendo, compreende-se que o passageiro em causa, que apanhou o táxi errado, deve naturalmente ser penalizado pelo incumprimento do contrato, mesmo que feito por via oral, pois tal facilitaria a repetição deste tipo de situações.
Ultimamente, um outro tipo de modelo tem vindo a aparecer nas ruas da RAEM, em que carros particulares são utilizados para o transporte de passageiros, em substituição dos tradicionais táxis. Isto é mais frequente em certas zonas da cidade, e varia conforme a hora do dia. Certas manhãs, nas Portas do Cerco, é possível encontrar vários carros particulares a transportar clientes de um lado para o outro, serviço este que é remunerado por via monetária, entrando estes em competição directa com os táxis. Enquanto que certos passageiros preferem esta opção, visto os carros serem na maior parte dos casos mais confortáveis do que os táxis, outros há que não aceitam este desenvolvimento, pois consideram que os tais carros particulares não têm licença para operarem de uma maneira comercial, como aqui mesmo descrevemos. Além disso, as apólices de seguro de um e de outro não são iguais, nem e custo nem no tipo de cobertura oferecida. Regra geral, o seguro de um carro particular não cobre os passageiros, e no caso de um acidente, este não recebem nenhuma compensação por parte da seguradora. Este pode sempre optar por abrir um processo judicial para o efeito, mas não é garantido que venha a receber nenhum dinheiro, mesmo caso o Tribunal lhe venha a dar razão. Tendo isto em conta, sou da opinião que as autoridades não devem permitir o uso de carros particulares para o transporte comercial de passageiros, pois estes não se encontram devidamente assegurados, e também por isto vir na verdade a prejudicar financeiramente os condutores de táxis propriamente licenciados.
Em forma de remate, acrescento aqui o meu agrado pessoal em verificar que a indústria de táxis de Macau está a ser fiscalizada, ao mesmo tempo que se têm verificado melhorias no serviço. Toda a população pretende ver a continuação desta tendência, pois não só os residentes como os próprios operadores de táxis só têm a beneficiar do adicional aperfeiçoamento da indústria.

20 Jul 2015

Consequências do drama grego

[dropcap style=’circle’]Os[/dropcap] dias de tremenda tensão negocial à volta da grave crise financeira da Grécia vieram pôr em evidência algumas tendências da “nova” Europa. Principalmente três. As tensões nacionalistas estão a crescer por toda a Europa. Os partidos políticos pró-europeus, aqueles a que nos habituámos a chamar do “centrão”, preocupados com o crescimento dos extremismos, tanto à direita como à esquerda, foram criando as condições para que a coligação da esquerda radical grega (o Syriza) não conseguisse chegar a bom porto. A estrutura político-administrativa da União Europeia é incapaz de gerar consensos políticos.
Todas estas conclusões podem ser resumidas através de uma só ideia: a construção político-administrativa da União Europeia (UE) está em risco. A forma como os dirigentes nacionais vierem a lidar no curto prazo com os desafios que a crise grega lançou ditará o futuro da União.
A Europa institucional lidou com o Syriza com muita condescendência. Desde as primeiras reuniões em Bruxelas, nas quais participaram Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis, no início do ano, que essa condescendência é visível. Deram aos radicais gregos o tratamento que era dispensado aos “miúdos” traquinas pelos directores de turma de um certo período da história (representados pela imagem do tradicional professor da escola primária, de régua na mão, sempre pronta a usar, mas não para medir uma qualquer distância entre dois pontos). A imagem do Presidente da Comissão Europeia numa dessas primeiras reuniões, abraçado a Tsipras, a puxar a sua própria gravata para ocupar o vazio da ausência de uma no colarinho do primeiro-ministro grego, acaba por ser uma excelente síntese da relação recente entre a União Europeia e a Grécia. Para dançar tango é preciso que haja uma convergência de vontades das duas personagens envolvidas. No caso de uma revisão estrutural da dívida grega e do processo de refinanciamento do país proposto pelo governo grego, Tsipras dançou sempre a solo. A UE, enquanto tal, optou por tocar uma outra música: a do pagamento dos empréstimos, no calendário que havia sido acordado com a Grécia no âmbito do primeiro e segundo resgates.
Como se veio a ver mais tarde – através do olhar de fora da UE trazido para o debate político pelos relatórios do Fundo Monetário Internacional (FMI) – a ideia de uma reestruturação da dívida grega, leia-se perdão de dívida, não apenas fazia sentido como se tornou agora num imperativo que o FMI coloca como condição essencial para continuar a ser envolvido no affair grego. Como em quase tudo na vida, as análises externas dão-nos uma perspectiva muito mais realista sobre um qualquer conflito. É isso que explica, por exemplo, a popularidade dos conselheiros matrimoniais. Quando um casal deixa de conseguir lidar com as tensões internas e recorre a um serviço de aconselhamento profissional fá-lo, em muitos dos casos, para obter uma análise aprofundada das raízes do conflito na esperança de as poder resolver. Em muitas das situações – e não apenas na vida familiar –, essa perspectiva externa traz uma nova luz aos problemas, que as partes envolvidas, com interesses específicos no conflito, não conseguem ou não querem reconhecer.
Na questão da crise europeia espoletada pela pré-insolvência grega, as análises mais certeiras e desapaixonadas que tenho tido a oportunidade de ler provêm de fora da UE. O FMI é uma dessas leituras obrigatórias. Até porque estão desprovidas das mensagens que o tal “centrão” europeu quer fazer passar. A dissimulada condescendência tinha apenas como objectivo fazer o Syriza saltar fora na primeira curva da estrada. A bem da “normalidade” política europeia, do pagamento dos empréstimos e da estabilidade do euro. grécia
Mas o problema grego veio, ao mesmo tempo, exacerbar um conflito latente entre nortistas e sulistas. Há uma linha de fractura que se agudiza entre o Norte e o Sul da Europa. Uma linha que teve na questão grega um momento de expressão das dissensões sobre o conteúdo da própria UE. A Europa é cada vez menos a Europa da solidariedade. Há uma narrativa que perpassa no Norte da Europa contra um Sul, imaginado a trabalhar menos horas, num ritmo mais descansado e que tem no Estado uma espécie de santo protector contra todas as intempéries. Esta narrativa fez escola quer nas elites, quer nas opiniões públicas da Alemanha, Holanda, Finlândia e Eslováquia, por exemplo, e foi escutada nas reuniões do Conselho Europeu pelo discurso de que já chegava de apoiar a Grécia.
Este ressurgimento dos nacionalismos europeus não é de hoje. Agravou-se com a crise financeira que assola a Europa desde 2008. E põe autores credenciados a questionar se a Europa continuará em paz na ausência de prosperidade. O euro, infelizmente, ao contrário de ter aproximado as diferentes economias da Europa – ou as diferentes Europas – veio agudizar as diferenças entre elas. Em países onde o desemprego jovem chegou aos 50 por cento e a ausência de ocupação atinge um quarto da população, a crise potencia situações em que europeus acabam por ficar contra europeus. A tendência – com o aumento da dimensão eleitoral dos partidos nas extremidades do sistema – será a de o discurso contra a integração se tornar mais e mais popular.
O futuro da Europa joga-se muito na resposta que os principais líderes políticos nacionais venham a dar às consequências que a crise grega teve nas estruturas político-administrativas da União Europeia. O combate aos nacionalismos emergentes não será fácil, sobretudo porque, a um certo nível, a construção europeia tem exaltado a existência do Estado-nação. A profusão de Estados-nação interessa naturalmente ao centro político-administrativo da União para reforçar o seu papel de facilitador de consensos. Mas esse é um dos seus principais problemas. A União não tem conseguido gerar consensos – além do caso grego, com todas as suas consequências políticas, outro exemplo recente é a abordagem ao fluxo de imigrantes africanos na Europa, em que a proposta inicial da Comissão foi simplesmente destruída pelos Estados-membros. Juncker é um eurocrata experiente, mas acaba de chegar à presidência da Comissão Europeia. Poderá estar a pagar o preço de uma certa indefinição de estilo inicial, mas o seu mandato adivinha-se extremamente difícil. E, no fundo, é a sobrevivência da própria União, tal como a conhecemos hoje, que poderá estar comprometida.

20 Jul 2015

Terra de azar

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hama-se Chyn, tem três meses de existência incompletos e uma vida cheia de azares. A bebé que esta semana mereceu a atenção dos jornais nasceu com uma série de problemas de saúde – problemas graves de saúde. Tem síndrome de Down, malformação cardíaca congénita, deficiência na artéria do ventrículo direito e hipertensão pulmonar. Como se não lhe bastasse a má sorte de ter nascido frágil, Chyn teve ainda o azar de nascer em Macau. Um azar nunca vem só.
Chyn é filha de filipinos. Lia ontem num jornal que os pais vivem em Macau há mais de dez anos, um facto que não tem qualquer importância para o sistema. São trabalhadores não residentes e, nessa estranha condição em que se encontram, não têm direito a cuidados de saúde para a filha. Chyn precisou de assistência médica à nascença e continua a precisar. Pelo que sei, os pais necessitam de 300 mil patacas para que possa ser operada, para que tenha uma vida mais ou menos condigna, no quadro de azares com que nasceu. É dinheiro que não têm, dinheiro impossível de ganhar com os salários que lhes são pagos. Chyn nasceu em Macau mas não é de cá – o sistema não a reconhece como sendo de cá. Chyn não é de lugar algum.
Não aceito o argumento da abertura de precedentes: não me interessa se o caso de Chyn poderá causar um problema ao Governo. Esta bebé precisa de ajuda, precisa de assistência médica que os pais não podem pagar, e as autoridades de Macau devem apoiar esta família. É a obrigação moral de quem tem responsabilidades políticas.
Macau não pode continuar a ser a terra onde nascer pode ser sinónimo de azar. Cabe ao Chefe do Executivo e ao secretário para os Assuntos Sociais e Cultura definirem, com urgência, uma nova política de saúde para os trabalhadores não residentes e para os seus filhos. As consultas públicas sobre a matéria são perfeitamente dispensáveis: todos sabemos já que há uma série de deputados e alguns sectores em Macau que são contra um catálogo de direitos mínimos para os trabalhadores não residentes. Para as Ellas Lei desta cidade, os trabalhadores não residentes têm apenas o direito a serem remunerados pelo trabalho que fazem, de preferência a valores mais baixos do que aqueles que cá residem. O resto não interessa.
Porque a melhoria de condições para os trabalhadores não residentes jamais será motivada por uma mudança de mentalidades, por um apelo social mais ou menos generalizado, torna-se ainda mais importante que seja o Governo a tomar uma decisão política, por mais difícil que possa ser. A crise no jogo também não serve de desculpa: Macau continua a ter dinheiro para que possam ser respeitados os mais básicos direitos dos homens. 17715P17T1
É urgente inventar um sistema para que os trabalhadores não residentes tenham apoios diferentes das pessoas que estão aqui de passagem. Recorrendo a um jargão político muito apreciado localmente: o contributo dos pais de Chyn para Macau é muito maior do que o de um turista que passa uma noite na cidade, entre as Ruínas de São Paulo e um casino no Cotai. Trabalhadores com bluecard, crianças nascidas em Macau e turistas não podem ser metidos no mesmo saco no que diz respeito à saúde. Invente-se um sistema – e outro para que os filhos dos não residentes tenham acesso à educação.
O argumento da sobrecarga dos serviços – de saúde e de educação – também não me convence. A maioria dos trabalhadores não residentes opta por deixar os filhos no país de origem. Os custos da saúde e da educação contribuem para esta opção, mas as questões práticas da vida quotidiana pesam ainda mais. Macau não ia ter uma enchente de bebés filipinos na pediatria do São Januário se fossem alteradas as regras com que se joga com quem tem muito pouco.
Inventem um sistema qualquer. Já. Hoje, de preferência. Há uma bebé nascida em Macau ignorada por Macau – valer-lhe-á a solidariedade de Macau, da Macau dos cidadãos, não da Macau política, aquela que devia estar cá para todos os cidadãos, independentemente da cor do cartão que transportam na carteira.
Macau hoje envergonha-me. E sei que vai continuar a envergonhar.

17 Jul 2015

Devaneios fálicos

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]espedidas de solteira convidam a um exagero fálico, quer queiramos ou não. Tivemos a sorte de a meio da organização de uma despedida de solteira de referências sci-fi a pedido da noiva, caírem do céu uns bilhetes para um espectáculo musical com homens nus. Muito apropriado. Lá fomos ver e ouvir as danças e canções de um grupo de homens que orgulhosamente exibiam os seus pénis. Provavelmente foi esta a primeira oportunidade de ficar a admirar assim de certa distância pénis na sua pluralidade e diferença. Timidamente (a corar!) ficámos a calcular proporções entre alturas e tamanhos quando estrategicamente alinhados estes homens nus ficavam cantarolando versos contra o preconceito do nu masculino.

Tenho ideia que é generalizado que o pénis é objectivamente feio (note-se: a vulva também). Não erecto então, é ainda mais aborrecido, sem graça e sem jeito definido. Houve quem então se focasse nos rabinhos, outras nas barrigas semi-tonificadas ou tonificadas de todo. Um festival para os olhos, passe a expressão inglesa. E dançavam bastante, abanavam-se bastante. Enfim, foi tema de conversa para este grupo de mulheres todo um fim-de-semana. Devaneios fálicos na sua mais pura forma de partilhas e confissões que não o seriam de outra forma, se não tivessem um contexto tão óbvio. Desde pénis com formas de lápis invertido, virado para a esquerda ou para a direita, em todas as tonalidades de cor-de-rosa. Há de tudo.

[quote_box_right]Entenda-se que há mulheres para toda uma diversidade de critérios, por isso, e por razões óbvias, não há uma fórmula universal para uma masculinidade atraente, e é o que nos salva, porque senão andávamos sempre atrás dos mesmos espécimes[/quote_box_right]

Claro que estas conversas tiveram que passar pelas múltiplas definições de masculinidade e atracção. A conclusão a que chego é que nós (o nosso grupinho de mulheres) não precisamos de provas empíricas de um pénis lustroso e gigantesco para uma masculinidade assumida. O Paul Newman em “Cool Hand Luke”, parece que assume uma masculinidade normalmente entendida e suportada por homens, da qual eu pouco entendo. Quem conhece o filme há-de saber. O que há de heróico em comer muitos ovos de uma só vez? Não sei, digam-me vocês. Pelo Paul Newman derreto-me totalmente, mas pela sensibilidade e o sentido artístico que um actor de tamanhas proporções e tamanha beleza podem esperar. Mas esta sensibilidade artística a roçar o romântica já faz parte das expectativas de muitas mulheres, com mais ou menos legitimidade. Ou seja, se cruzarmos as expectativas de engate entre homens e mulheres muito provavelmente encontramos discrepâncias. Entenda-se que há mulheres para toda uma diversidade de critérios, por isso, e por razões óbvias, não há uma fórmula universal para uma masculinidade atraente, e é o que nos salva, porque senão andávamos sempre atrás dos mesmos espécimes.

Recentemente à conversa com uma conhecida numa festa qualquer, vim a descobrir que ela participava num fórum de ajuda aos homens. Nada de patológico ou especialmente grave, mas é qualquer coisa como uma plataforma onde homens expressam as suas dúvidas e pedem conselhos na busca de coragem – para abordar aquela gaja toda boa, com classe e confiança. Baixos, gordinhos, carecas, o que quer que seja. O objectivo é explicar ao sexo masculino sobre a atracção na mais óbvia das concepções, i.e., segurança e auto-estima. De bem verdade que há concepções masculinas sobre a masculinidade na minha opinião deveras preocupantes, e.g., os homens que se ficam na fundamental estupidez quando pensam que conseguem comprar alguém no séc. XXI no mundo ocidental. Talvez em países de percepção mais tradicional de género como, por exemplo, na China, onde se acredita que os homens mais ricos presenteiam orgasmos muito mais potentes – dizem os estudos “científicos” – nunca confessados na minha estadia na China continental. Uma apropriação evolutiva, quem sabe. E assim vos deixo com o Hallelujah na versão mangalho: Maaan-galho, maaaaan-galho, man-galho, man-galho, man-ga-lho-o!.

16 Jul 2015

Juvenis, Delirantes, Juvenis

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]oshua Wong Chi-Fung, natural de Hong Kong, 18 anos de idade, estudante e activista, doravante referido pelo nome de “Joshua”. Amos Yee Pang-San, natural de Singapura, 16 anos de idade, estudante, doravante referido apenas pelo seu nome inglês “Amos”. Dois jovens, duas caras larocas, duas cabecinhas pensadoras, só que muito confusas. Joshua e Amos são o paradigma do jovem ideólogo da burguesia nas cidades mais capitalistas da Ásia. Se no clássico de 1955 que o imortalizou, James Dean era o “rebelde sem causa”, estes serão com toda a certeza os “rebeldes sem causa alguma” – e andam desesperadamente procurando uma.
Joshua apareceu em 2011 durante os protestos contra o plano de Pequim de implementar nas escolas de Hong Kong uma disciplina de Educação Patriótica, algo que nesta região do sul da China tem inevitavellmente a conotação de “lavagem cerebral”. Com apenas 14 anos de idade na altura, o jovem Joshua destacou-se pela sua postura de confrontação com as autoridades, que muito provavelmente ficaram saber como lidar com a situação – afinal era uma criança que ali estava. Além da componente de “street fighter”, sempre de megafone em punho e rosto pueril, que mal consegue segurar os óculos, o activista adolescente destacou-se ainda pelos seus dotes de retórica, bastante desenvolvidos para a idade. Enquanto os outros jovens de 14 anos escutavam Justin Bieber e seguiam apaixonadamente a quadrologia “Twilight”, Joshua fazia activismo político, e chegou mesmo a fundar um movimento a que se deu o nome de “schoolarism”, e quando ouvi falar disto pela primeira vez, juro que pensei tratar-se de uma escola de pensamento já existente. Poucos se podem orgulhar de ter fundado uma ideologia antes de ter barba. james dean
Só que nem Joshua tem barba, nem a sua retórica pernas para andar. Foi um nascimento prematuro. Comecei a seguir de perto a sua actividade há pouco mais de um ano, e fiquei espantado com a forma como debita as frases feitas colhidas do jardim da pró-democracia chinesa, um eufemismo que designa o que não passa de oposição ao Governo Central, e ao próprio regime. Abandonado o plano de Pequim no sentido de “ensinar” aos patriotas de Hong Kong como a mãe deles é uma mãe, como tal deve ser respeitada, surgiu o fenómeno “Occupy Central”, que paralisou o centro financeiro de Hong Kong durante semanas em nome de coisa nenhuma, a não ser a prática de um desporto radical muito na berra aqui na região: “chatear a China”. Joshua exibiu o seu imberbe ego de uma forma que se pode considerar quase pornográfica, demonstrando muita vontade de derrubar, nenhuma de construir, e ainda menos em propor alternativas. O pináculo do ridículo deu-se quando levou a cabo uma greve de fome que nem chegou a cinco dias, pois aparentemente esta modalidade de activismo dá “fome” – o que ajuda a explicar o sentido do seu nome. O preocupante é a forma como fala de “desobediência civil”, que confunde com uma espécie de “birra do sono”. O melhor era alguém lhe explicar que se tudo o que se lê nos livros fosse aplicável por qualquer um, bastando para tal apenas “querer”, aprendia-se qualquer língua lendo uma vez uma vez um dicionário dessa mesma língua. Ou em alternativa podiam ver se ele tem chichi.

[quote_box_left]“Nem Joshua tem barba, nem a sua retórica pernas para andar. Foi um nascimento prematuro”[/quote_box_left]

Amos é uma variante de Joshua que se pode considerar na linha do “same same, but different”. Ambos adolescentes (Joshua é dois anos menos novo), ambos de etnia chinesa, ambos muito longe de saber o que implica nascer de etnia chinesa para um quinto da população mundial. A diferença entre os dois génios ingénuos? O “habitat”: o “quasi-homo protestis paranadis” conhecido por Amos move-se por Singapura, a cidade-estado por excelência, que para os olhos de muitos ocidentais é uma sociedade faraónica onde o povo leva chicotadas todo o dia, todos os dias, enquanto arrasta os blocos de pedra para construir as pirâmides. O “faraó”, para uns, e “pai de Singapura” para outros foi Lee Kuan Yew, desaparecido a 23 de Março último aos 91 anos, mais de uma década depois de se retirar da cena política. Enquanto primeiro-ministro de Singapura, Lee foi muitas vezes acusado de excesso de autoridade, ficando talvez um patamar acima do ditador comum, com a diferença dos singaporeanos que supostamente o deviam temer viverem uma vida consideravelmente próspera.
Se em termos de qualidade da democracia em Singapura, ou da falta dela, ninguém melhor que os próprios singaporeanos para julgar, e talvez a maior parte não tenha razão de queixa – digo eu, que não tenho percepção de qualquer estrangulamento das liberdades civis naquele local em particular, e mesmo tendo lá estado, não dei conta de um povo oprimido. Mas quem sou eu, quando Amos, que tinha cinco ou seis quando Lee saiu de cena, consegue em 15 segundos dizer dele o que nem o mais audaz dos seus opositores diria em dez anos? Decorriam ainda as cerimónias fúnebres do fundador da cidade estado, e este jovem, que chegou a ganhar um prémio de realização quando tinha 11 anos, faz um vídeo onde insulta Lee a um ponto que mesmo em qualquer democracia ocidental lhe valeria um belo sarilho. Não foi esfolado e mergulhado em sal, e foi necessário recorrer a uma tecnalidade para agir judicialmente contra ele. As imagens de Amos ao lado dos pais cada vez que vai responder a tribunal dizem tudo; um casal com um rosto pesaroso, furioso até, e ele sorridente, como quem pregou uma partida que fez toda a gente rir. Pobres pais.
É possível que muito boa gente com mais que idade para ter juízo aprecie este tipo de chicana política, e mesmo muitos jovens batem palmas a estes dois exemplares do que a “democracia” representa nesta região do globo. Para mim não passa senão de aparecer num jogo decisivo e da maior responsabilidade, a contar para o campeonato da gente grande, e apresentar em campo a equipa de juvenis. Sai goleada, certamente.

16 Jul 2015

Pedaços do passado

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Tempo é Espaço onde a Memória reside, onde flui e se vivifica, ressurgindo como viagem dimensional para retomar o fio da meada, à maneira de Teseu.
Esse Tempo que tudo leva ou traz é, em si, o novelo que transporta o passado e com ele uma parte pequena do que era Macau:
O Hotel Riviera ficava na Rua da Praia Grande. Grandes arcos de volta perfeita, ornados de janelas em madeira escura, rematavam o rés-do-chão da fachada. Os dois pisos superiores tinham aprazíveis varandas que repetiam os mesmos arcos. A porta principal giratória dava para o salão de jantar, de sobrado escuro, onde, num palco à esquerda, uma orquestra tocava nas matinées dançantes. O ambiente era sombrio, apropriado a combater a canícula do verão. Silenciosas ventoinhas giravam no tecto. A área sob as varandas dos andares superiores era o lugar de eleição de tertúlias, que ali faziam os seus convívios frente à placidez da pacata Praia Grande e do aterro ainda parcamente povoado. Ao lado, entre o edifício do Tribunal e o Riviera, ficava uma simpática vivenda, sede da Sociedade de Abastecimento de Águas de Macau, propriedade de Pedro José Lobo.
Saindo pela porta lateral do Hotel Riviera, onde um balcão vendia famosos pães-de-leite, abria-se ao passeante o início da Avenida de Almeida Ribeiro e, defronte, o ainda sólido edifício do Banco Nacional Ultramarino.
Mais adiante, na esquina da Rua Central, um polícia mouro, turbante verde rubro com franjas da mesma cor, estrela de seis pontas no centro da atadura da cabeça e barba negra colhida numa rede, desenhava uma figura imponente que causava algum temor.
No quarteirão seguinte, antes de se chegar ao edifício do Leal Senado, uma porta dava acesso a um salão de bilhar no primeiro andar, funcionando no rés-do-chão o Café Ruby, onde a juventude se reunia, e que se distinguia pela coluna com um dragão de olhos acesos. Depois ficava a loja do senhor Lemos e uma outra do Paquistanês “Moosa & Cia.”. Pintada de cor creme, em estilo Art Deco, a Tabacaria Filipina oferecia cigarros, cigarrilhas, charutos, tabaco para cachimbo e toda a parafernália necessária. Seguia-se-lhe uma pequena banca, onde um homem baixo, de cabelo à escovinha, vendia cigarros, bebidas, pastilhas elásticas e tudo o que se desejasse para uma tarde no cinema Apollo.
Do outro lado da rua, no edifício dos Correios, viam-se pessoas nas janelas, recorrendo a umas maquinetas rolantes para dispensar goma-arábica para os selos das cartas, portadoras de saudades e notícias.
O edifício do Leal Senado, virado para o Largo onde a estátua do Coronel Mesquita ameaçava sacar da espada, com portas secundárias na fachada, permitia, a quem por lá passava, discernir, por uma, um posto de enfermagem e sua maca de grandes rodas, e, pela outra, um ar sombrio que o calor apertava e os fiscais revezavam-se a sorver a frescura do piso de granito.
O Long Kei como que acenava das arcadas do edifício no Largo Senado, chamando as gentes a saborear a cozinha cantonense. Outros, mais devotos à comida macaense, subiam a calçada do Tronco Velho para irem almoçar ao Clube de Macau, mesmo defronte à Igreja de Sto. Agostinho.

[quote_box_left]Não se trata de um antagonismo ao verdadeiro desenvolvimento. Trata-se, isso sim, do desejo que o desenvolvimento seja autêntico e em todas as frentes, preservando a identidade deste lugar e a sua história patrimonial, cuja existência futura depende inteiramente do que hoje se decidir[/quote_box_left]

A Pharmácia Popular, ao lado da Misericórdia, ali estava, o toldo abrigando dos raios solares. Os armários claros, com frascos de todos os tamanhos, ocupavam grande parte do espaço, competindo com uma belíssima caixa registadora, atrás da qual se sentava o senhor Ventura, homem de grande porte. No meio do silêncio, uma balança com pesos de correr constituía a maior atracção dos que lá entravam. Mais próximo da igreja de S. Domingos, debaixo das arcadas, um carpinteiro talhava, na madeira de uma arca, histórias de guerra da velha China, trabalhos então muito procurados pelos militares. Bem próximo estava a Po Man Lau, simultaneamente Livraria, Tipografia, Papelaria e Venda de produtos fotográficos.
De quando em vez, um autocarro, corpo pintado de rubro e tejadilho creme, passava pela Almeida Ribeiro e pelo Largo do Senado. Era escasso, escassíssimo, o trânsito no tempo do Hotel Riviera.
Muito do aqui narrado já não existe. Esfumou-se na voragem do tempo e da progressiva transformação da cidade.
O Largo do Senado, cuja identidade o actual governo protege, era o paradigma de uma praça portuguesa, como se pode ainda sentir no pavimento de calçada. Contudo, muito do comércio tradicional desapareceu, como a leitaria e outras lojas que davam ao largo um carácter próprio. Importa que este ressurja, porquanto também é parte do legado patrimonial, simultaneamente tangível e intangível. Fazem falta esplanadas a assumir a pedonização. Faz falta espaço a este espaço, para que respire no seu conjunto. Faz falta que certas actividades lúdicas sejam desviadas para outros lugares e deixem este núcleo do Centro Histórico, património que agora celebra o seu 10.o aniversário de classificação pela UNESCO, ser usufruído na sua inteireza.
Como dizia Fernando Pessoa, a Memória é a Consciência inserida no Tempo.
Não se trata de um antagonismo ao verdadeiro desenvolvimento. Trata-se, isso sim, do desejo que o desenvolvimento seja autêntico e em todas as frentes, preservando a identidade deste lugar e a sua história patrimonial, cuja existência futura depende inteiramente do que hoje se decidir.

15 Jul 2015

Dinheiro, Dinheiro e apenas o Dinheiro. Eles, sempre eles e… os SS

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]a crise grega à proibição do fumo em Macau, um denominador comum: o dinheiro.
O vil papel, que de ouro já nada tem e muito menos de metal, nem de papel, pois é mais números, serve de justificação para tudo, até para nos proibir de fumar.
Na Grécia depois de negociações mais difíceis que um divórcio litigioso daqueles bravos e depois de um referendo que serviu apenas para vender notícias, foi tudo reduzido ao que já se esperava à partida: ao poder do dinheiro, ou dos detentores dele, que assim ignoraram olimpicamente referendos ainda que atenienses e passaram por cima de toda a folha, que nem carro de assalto. Como dizia um deputado do Parlamento Europeu há uns dias, “vivemos os tempos do totalitarismo do capital”. Nem mais. Já nem sequer é capitalismo. Está muito para além disso. A culpa é de quem? De seres sombrios invisíveis acantonados em vilas remotas? Dos extraterrestres? De poderes ocultos emanados por sociedades ainda mais dissimuladas? Não, o problema é nosso. Da grande maioria de todos nós. Podemos barafustar contra a alienação motivada pelo lucro, contra os potentados económicos que nos disciplinam em favor dos seus desejos de controle global, contra os governos, esses corruptos danados que só estorvam, contra os carros e as indústrias que arruínam o nosso planeta… Podemos até protestar contra os que já morreram ou contra as dinastias passadas que nos deixaram nesta situação lastimável, mas esquecemo-nos de uma coisa fundamental: de olhar para o espelho. Nem os governos eram corruptos, nem as empresas perigosas máquinas imperialistas, nem os carros poluiriam tanto se nós, esses que protestam, não andássemos de carro por tudo e por nada, se nós não fossemos todos loucos por dinheiro, se nós não fossemos consumistas empedernidos e corruptos quando a ocasião propicia, se nós não poluíssemos os rios e as praias e as florestas que frequentamos com a famelga, se nós não fossemos uns anormais que passamos a vida a colocar a culpa “neles”. Eles! Esses sim, os verdadeiros bandidos que nos atormentam. Caso contrário, a nossa vida poderia ser um maná.
É por isso que os Serviços de Saúde, ou SS, pela facilidade e pela sigla muito a propósito, podem ter a lata para dizer que “fumar não é uma necessidade de vida”. Eles podem dizer este tipo de coisas porque vêm escudados no dinheiro. No caso vertente na “astronómica” quantia de 6 milhões de patacas, já com as adendas e as migalhinhas possíveis e imaginárias adicionadas (mas não especificam quanto desse dinheiro vai para as Nicorets oferecidas pelos SS) e partindo do princípio que os SS sabem fazer contas, porque de saúde… Mas dando de barato que até sabem, que são mestres em contas públicas, gostava agora que continuassem na sala da contabilidade e aproveitassem para fazer as contas aos prejuízos causados PELO FUMO DOS CARROS! E, já que estão a com a mão na massa, aproveitem e telefonem às Obras Públicas e ao IACM e eles que vos enviem os números dos impactos da poluição dos veículos motorizados no património edificado e na fauna e flora locais. Deve dar um número giro. Bem melhor que os vossos miseráveis 6 milhões. Porque ao fumo do tabaco normalmente consigamos escapar, mas o dos carros é penetrante além de ser muito mais e mais nocivo, atinge todos sem excepção (não apenas os croupiers) pois nem em casa se está a salvo. Não interessa, isto não interessa?… Pois… A culpa é deles, eu sei. joel-grey-liza-minnelli-cabaret
Os SS apenas podem vir para a praça pública defender a sua dama sem fumo porque surgem com o discurso politicamente correcto do dinheiro. Ao ouvirmos o tilintar mágico dos cifrões amochamos prontamente, damos umas palmadas nas costas aos SS e ainda agradecemos efusivamente aos benditos por nos pouparem o nosso rico dinheirinho, na esperança de que, talvez assim, consigam aforrar para construírem o tal do novo hospital e comprem as máquinas em falta no único hospital existente apesar de, no fundo, todos sentirmos que será mais fácil encontrarmos um melão fresquinho no meio do Saará.
Este tipo de mentalidade dinheiro-motivada provoca uma insensibilidade brutal para as diferenças, obriga-nos como sociedade a tornar-nos maniqueístas (onde tudo é branco ou preto) nuns freaks que passam por cima de tudo e mais alguma coisa se o belo do dinheiro estiver em causa, em sociedades amorfas alinhadas por um mesmo diapasão seja ele qual for. Por isso surgem insensibilidades práticas como a proferida pelos tais dos SS de Macau quando afirmam, no auge da sua prelecção aos peixes, que “fumar não é uma necessidade vida”. Mas quem são estes SS para dizerem uma coisa destas? Estão assim tão apaixonados pela sigla ao ponto de se porem a fazer propaganda barata? Só quem nunca fumou pode dizer uma coisa dessas, ou então um ex-fumador, duas das espécies mais tenebrosas ao cimo do planeta: os abstinentes e os ex. Uns fundamentalistas porque nunca experimentaram e têm medo de o fazer pois podem gostar, os outros porque experimentaram tanto e exageraram mais ao ponto de terem medo de voltar pois não têm um pingo de confiança neles próprios – para simplificar, burros, fanáticos e esquizofrénicos. Pois, caros amigos dos SS: estão completamente enganados! Fumar é uma necessidade de vida para milhões de pessoas desde há milénios e até muito antes de se inventar a saúde! Caso contrário, comer fast food também não é uma necessidade de vida, beber chá ou um café muito menos e então ingerir álcool nem se fala! Ainda por cima martelado como ele é em Macau… e vendido ao pé de paragens de autocarros e tudo!… Ou estão também a pensar aumentar os impostos sobre este tipo de produtos? Ou proibir cadeias de fast food junto das escolas e hospitais para evitar a tentação? Ou aumentar os impostos ao café e ao chá de tal ordem nos obrigue a pensar várias vezes no assunto antes de enfiarmos a cafeína pela goela abaixo? E o açúcar?!… E as carnes que congelam e descongelam nos nossos supermercados?… Enfim, esta página tem o tamanho que tem.
Que sabem vocês da vida SS?
Ah.. e já que gostam tanto de citar a OMS não se esqueçam que Macau é o 3º território no mundo com a maior esperança de vida e desde há muitos anos. Sim, nos tempos em que se fumava e tudo. Mas vou até mais longe e pergunto-vos: que é a vida para vós? Qual o sentido? Picar o cartão de segunda à sexta e aturar a família ao fim de semana? Dormir cedo, acordar cedo e respirar o ar puro dos lótus em flor pelos boulevards de Macau? Levar uma vida direitinha e controladinha para morrermos todos direitinhos e controladinhos e, de preferência, de uma doença aceitável para os vossos serviços? Pois bem caros amigos, eu pouco sei da vida mas pelo que fui vendo, é muito mais que um cigarro como também é muito mais do que um café ou até do que uma volta ao mundo. A vida é muito mais do que conceitos estreitos de moralidade e de comportamento como pretendem fazer crer. A vida faz-se de grandes e pequenos prazeres, de amores e de desamores. Por isso, caros SS, afirmações dessas soam a paternalismo, a fundamentalismo e são em tudo contrárias daquilo que, de facto, a vida deve ser: uma celebração de infinitas possibilidades. Talvez devessem especializar-se na morte, pois parecem perceber mais desse assunto.
Mas pronto, porque estou eu a encarniçar-me contra vocês? Eu sei… a culpa não é vossa. É deles. Pois… eu sei. Desculpem.

14 Jul 2015

Licença de parto  

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o dia 6 de Julho, o periódico local “Macau Daily Times” publicou um artigo sobre o pedido que a “Women’s General Association of Macau” apresentou junto do “Standing Committee for the Coordination of Social Affairs” (CPCS), para que a licença de parto seja aumentada de modo a passar a proporcionar um mínimo de 90 dias de férias, em vez dos 56 dias actualmente defendidos pela lei.
De momento, e segundo o artigo 54(1) da Lei de Relações Laborais de Macau nº 7/2008, uma mulher que trabalhe consecutivamente no mesmo local por mais de um ano tem direito a gozar de 56 dias de licença de parto.
Além do pedido para aumentar o número de dias de que a mulher dispõe para se ausentar do trabalho com salário pago, a Associação manifestou também a intenção de, no futuro próximo, poder passar a atribuir aos pais cinco dias de férias pagas para estes acompanharem as suas esposas durante o nascimento dos filhos. De forma a demonstrar que a ideia recolhe o apoio da população, a Associação recolheu 12,000 assinaturas junto de apoiantes desta iniciativa. Ao mesmo tempo, a “Women’s General Association of Macau” sugeriu às autoridades que ponderassem se deve ser o próprio Governo a oferecer este benefício aos trabalhadores, ou se por sua vez esta responsabilidade deva ser acarretada pela entidade patronal.
Para melhor auscultar a opinião da população, a Associação realizou um inquérito nas ruas do território, tendo para o efeito conduzido entrevistas junto de 3.017 residentes locais, todos do sexo feminino, tendo 85% dos inquiridos manifestado o seu apoio à proposta de alargamento do período de licença de parto, passando dos 56 dias actuais a 90 com a maior brevidade possível.
Wong Kit Cheng, o vice-presidente desta entidade, adiantou ainda na mesma peça que “vamos submeter os resultados deste inquérito ao Departamento de Relações Laborais assim como ao “Standing Committee for the Coordination of Social Affairs” (CPCS), para que estas entidades estejam a par da opinião pública quando procederem à próxima revisão da Lei das Relações de Trabalho. A maior parte dos inquiridos mostrou interesse em ver o pai da criança a ser igualmente beneficiado com alguns dias de férias pagas durante a altura do parto, além de desejarem poder beneficiar, no futuro, de 90 dias de licença de parto, tal como acontece em vários outros pontos do mundo”.
Quando um mulher dá à luz, aconselha-se que ambos desfrutem de amplo descanso. Assim, se a mulher tiver de comparecer no local de trabalho durante este período, facilmente se compreende que a sua saúde seria prejudicada. Além disso, caso o seu marido também tenha a possibilidade de gozar de uns dias de férias nesta mesma altura, a mulher beneficiaria de mais apoio durante esta fase tão importante.
Mas o bebé também beneficiará da eventual extensão do período de licença de parto, pois o ideal é este passar o mais tempo possível com a mãe, da qual o mesmo depende para tudo. Tendo tudo isto em consideração, sou da opinião que os pedidos da Associação são perfeitamente aceitáveis. 
Mas quem deve então suportar as despesas decorrentes da atribuição da licença de maternidade e de paternidade? No presente, a nossa sociedade apenas dispõe de subsídios para casamentos e nascimentos. Estes dois benefícios são os mais relevantes quando procedermos à análise da licença de maternidade e de paternidade. Se o Governo decidir suportar por si próprio estas despesas, isto seria o mesmo do que passar a incluir estes dois encargos nas provisões do nosso sistema de segurança social, pois estas férias passariam a fazer parte dos benefícios sociais a que os residentes de Macau estão intitulados. Mas, caso assim seja feito, será então necessário rever a política de atribuição dos subsídios de casamento e de nascimento? 
Para além disso, quando a licença de maternidade e paternidade passarem a ser incluídas no pacote de benefícios sociais da RAEM, estes passam então a assumir um carácter obrigatório. Quando o Governo incluir estas medidas na lei, qualquer residente permanente que preencha os requisitos legais tem então automaticamente direito a estas regalias. Mas nesse momento estas medidas passam também a ser um encargo financeiro para o nosso Governo. Torna-se assim necessário fazer a próxima pergunta – será que as nossas autoridades dispõem de verbas suficientes para realizar estes ajustes ao nosso pacote de benefícios sociais?
Uma outra opção seria pedir à entidade patronal que assumisse este encargo e suportasse por si própria a atribuição de férias pagas, tanto ao pai como à mãe, aos funcionários que tivessem acabado de ser pais. Mas esta alternativa acarreta também uma série de dificuldades acrescidas. Acima de tudo devido ao facto de qualquer companhia ser movida por interesses financeiros, e por isso mesmo se encontrar obrigada a registar lucros sucessivos de forma a continuar em operação. Mas se estes se encontrarem no futuro deparados com a obrigação de oferecer licenças de maternidade e de paternidade aos seus funcionários de modo a cumprir as suas obrigações legais e sociais, isto viria sem dúvida a aumentar os encargos financeiros destas mesmos empregadores. Atendendo a todas as dificuldades que os mesmos têm de enfrentar diariamente, seria então legítimo impor ainda mais esta obrigação às entidades profissionais da RAEM?
Talvez seja exactamente por esta razão que a maior parte das pessoas parece ser a favor de uma solução que estipule que o Governo venha a cobrir estes encargos em nome das entidades patronais, para que estas possam então oferecer as respectivas licenças de maternidade e de paternidade aos seus funcionários. Mas se considerarmos esta questão com mais atenção, vamos sem dúvida perceber que esta opção pode no entanto não ser a melhor solução. Pois, mesmo que os empregadores não sejam obrigados a suportar este encargo, visto o Governo estar disposto a reembolsá-los nessa eventualidade, os mesmos acabam sempre por sair lesados, visto serem obrigados a encontrar alguém que possa substituir os indivíduos que se encontrem de férias. E, se a licença de parto for aumentada para 90 dias, isto implica que o indivíduo em causa se ausente do seu local de trabalho por um período de três meses. Uma lacuna tão prolongada não é fácil de colmatar, ainda mais se os trabalhos tiverem forem altamente especializados ou dotados de uma forte componente técnica, pois nestas situações um trabalhador temporário dificilmente estará preparado para trabalhar por conta própria. 13710P18T1
E estas considerações são igualmente válidas para outras circunstâncias, fora do âmbito das licenças de maternidade e de paternidade. A 12 de Maio de 2014, publicamos aqui um artigo intitulado “Dia da Mãe”, em que mencionamos que as necessidades físicas de um homem e de uma mulher são na realidade bastante diferentes. Aí podiam os nossos leitores encontrar o seguinte parágrafo:
“As necessidades psicológicas e físicas de uma mulher diferem muito das de um homem, pois as mulheres estão sujeitas à menstruação. Durante este período de menstruação, uma mulher pode vir a sofrer de dores menstruais. Quando afligidas por este fenómeno, algumas mulheres não conseguem sequer comer nem beber, limitando-se assim a passar o tempo deitadas na cama. Por esta razão, as mesmas encontram-se impossibilitadas de trabalhar durante este período”.
De forma a poder oferecer mais protecção às mulheres, no dia 17 de Outubro de 2013 analisamos a possibilidade de criar legislações específicas para este mesmo efeito. Na altura, discutimos que Taiwan oferece um bom exemplo nesta matéria, visto este país ter implementado uma lei denominada “Lei para
a Igualdade dos Sexos no Trabalho”, que defende que uma mulher tem direito a solicitar baixa durante a sua menstruação. No total, esta lei estipula um número máximo de 12 dias por ano para estas situações, mas apenas três destes dias são pagos. A partir do quarto dia de baixa causada por menstruação, uma mulher pode na mesma gozar de férias mas o seu salário será deduzido de acordo.
Já que estamos a considerar a possibilidade de rever os parâmetros das licenças de maternidade, assim como de paternidade, talvez fosse boa ideia fazer um estudo sobre esta baixa devido a menstruação para as mulheres, de modo a que as mesmas gozem de protecção adequada nos locais de trabalho. Mas, seja qual for o caso, não nos podemos esquecer de analisar todos os pontos descritos neste artigo. O Governo têm a função de investigar e equilibrar as diferentes necessidades de um homem assim como de uma mulher, nunca se esquecendo dos requisitos do próprio empregador, assim como os das autoridades. Uma lei propriamente dita aparece assim como a fase final destas negociações entre as diferentes partes interessadas.
 

13 Jul 2015

Já não somos todos gregos, nem o Syriza

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão é viral, mas está disponível nas apostas online para quem gosta de arriscar. É possível fazer-se dinheiro com uma possível saída da Grécia do euro ou uma manutenção do status quo – uma continuidade, sublinhe-se, dramática para o povo grego, com mais medidas de austeridade, restrições à saída de capitais do país e introdução de uma nova divisa. No sítio de apostas online Betway, o principal patrocinador do clube de futebol West Ham da primeira liga inglesa, quem apostar quatro libras na saída da Grécia da zona euro ganha em troca sete libras, mais o valor da aposta inicial. Segundo um outro sítio online, o OddsCheckers, que faz a síntese das apostas disponíveis na internet com links para as casas de apostas, 55 por cento das pessoas que têm apostado na principal questão política europeia das últimas semanas crêem que a Grécia vai abanador o euro, contra os outros 45 que acreditam na manutenção de Atenas no clube restrito dos 19 países do Eurogrupo.
Como em quase tudo na vida, a realidade da política – da negociação entre o Eurogrupo, a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e o governo grego – parece suplantar a mais fantasiosa imaginação de uma qualquer aposta online. Cinco dias depois de os gregos maioritariamente terem dito não a mais austeridade, num referendo considerado pelo próprio governo como um exercício democrático que outros Estados-membros da União Europeia deveriam ter a coragem de imitar, eis que o governo grego apresenta uma proposta aos credores que responde positivamente a quase todas as exigências às quais, até então, os gregos tinham dito oxi (nunca em tão pouco tempo houve tanta gente a aprender grego como agora, sobretudo partidários de uma esquerda europeia saudosa de causas agregadoras e capazes de provocar mudança). Podemos, sim, foi a nova mensagem de Alexis Tsipras, condicionada a uma reestruturação da dívida, à qual a Europa – leia-se Alemanha – não estava nem nunca esteve inclinada a discutir.

[quote_box_left]Por mais que a Grécia tenha feito o seu caminho, alguns elementos chave do Eurogrupo têm muitas dúvidas sobre a capacidade deste grupo de homens e mulheres que governa hoje a Grécia em cumprir a palavra dada. E isso mina qualquer negociação e põe em causa qualquer futuro a 19. Pelo menos a 19.[/quote_box_left]

É evidente que a situação económico-social se agrava na Grécia a cada minuto que passa. E que o desespero forçou os governantes a avançarem para um pacote de austeridade mais ambicioso do que a última proposta dos credores – aquela que tinha sido rejeitada pelo governo grego antes do referendo e que fora também afastada pela consulta popular.
Independentemente do que vier a acontecer na cimeira de chefes de Estado e de governo da União Europeia deste domingo, 12 Julho, marcada para discutir pela enésima vez a crise grega (escrevo este artigo antes de a reunião ter começado), uma coisa é indubitavelmente certa: a União Europeia, enquanto projecto e entidade político-administrativa, sai desta crise muito enfraquecida. Este é um facto que parece dar razão àqueles que a criticam por ser extremamente burocrática, demasiado focada nas questões macroeconómicas e menos nos problemas e cada vez menos solidária, quer entre os diferentes Estados-membros quer entre as pessoas, os cidadãos da União – e desde 1992, com o Tratado de Maastricht, todos os cidadãos dos diferentes Estados-membros são cidadãos europeus, como atesta o passaporte de cada uma ou um. grécia
Para uma certa Europa, para a Europa que influencia a União Europeia e é capaz de determinar o seu rumo, a Grécia não é uma parte importante. Foi apenas até 2012, quando um segundo regaste financeiro teve de ser aprovado para salvar alguns bancos alemães e franceses de uma situação muito complicada – afinal eram eles quem tinha emprestado ao governo grego e estavam na contingência de não verem os seus créditos pagos, porque em apenas dois anos de austeridade imposta pela troika, o Estado grego estava de novo à beira do incumprimento.
Agora é oficial – diz o FMI e insistem os norte-americanos. Sabe-se que as medidas foram extremamente gravosas e que a Grécia não vai lá sem um terceiro empréstimo internacional nem um aliviamento (pleonasmo para perdão) das condições dos dois anteriores. Mas alguns países não parecem estar disponíveis para ceder. Falta-lhes vontade para atravessar a sua metade da ponte para encontrar o Syriza – a coligação da esquerda radical grega – e aceitar algumas das condições que estão agora sobre a mesa. Afinal, os últimos meses foram de avanços e de recuos. De ausência de boa-fé negocial. De reuniões gravadas às escondidas através do iPhone e depois transcritas na imprensa.
Por mais que a Grécia tenha feito o seu caminho, alguns elementos chave do Eurogrupo têm muitas dúvidas sobre a capacidade deste grupo de homens e mulheres que governa hoje a Grécia em cumprir a palavra dada. E isso mina qualquer negociação e põe em causa qualquer futuro a 19. Pelo menos a 19.
Ainda para mais, depois de todo este processo – haja ou não fumo branco em Bruxelas neste domingo –, o Parlamento alemão terá ainda de apoiar a decisão. E essa parece ser um cenário pouco plausível. Na última semana, a opinião publicada alemã apontava para um só caminho, apelando à chanceler Angela Merkel para ser firme e rejeitar um entendimento com os gregos.
O objectivo principal não é o de afastar o mercado de 10 milhões potenciais compradores das mercadorias alemãs. É o de punir os eleitores da Grécia por terem escolhido uma coligação de esquerda radical para governar o país e evitar que outros países sigam a mesma estratégia. O problema não é “apenas” o da Grécia sair. É sair e no curto prazo apresentar indicadores positivos, o que tornará o “crime” ainda mais apetecível. E isto não lhes sai da cabeça.

13 Jul 2015

A Grécia fora do euro

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]pesar da onda de solidariedade que a situação grega e o referendo de domingo passado suscitou por toda a Europa, pode dizer-se que se apresta a saída da Grécia do Euro e muito provavelmente o desmembramento da União Económica e Monetária(UEM).
O clima negocial em Bruxelas e nas principais capitais europeias não é de modo a aceitar – uma negociação realista da última proposta europeia apresentada os gregos. A única resposta que se espera deles é a capitulação e a rendição, sem reservas, às propostas que os magiares da União Europeia afirmam ser a única forma de se estar no Euro e de se convergir com as economias ricas da Europa. Isto é uma política de absoluta austeridade, de contenção severa das despesas públicas, de emagrecimento do Estado Social, de desestruturação, a final, das políticas de coesão que haviam sido aprovadas pelo Acto Único Europeu de 1986.
É fácil tentar imputar responsabilidades pela ruptura negocial entre Bruxelas e Atenas mas elas dificilmente são atribuíveis a uma só parte. Não há neste jogo santos e mártires mas apenas poderes (de distinta dimensão) que jogaram aquilo que têm à disposição para pressionar o adversário e prosseguir os seus interesses e prioridades. No caso dos administradores da UEM a convergência artificial das economias, o equilíbrio orçamental a qualquer preço, o garrote da despesa pública não referido ao desempenho do PIB. Foi este conjunto de prioridades que a Alemanha conseguiu instilar no Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança da UEM (2012) e que conduziu ao estado presente de estrangulamento da economia da União, expresso nos baixíssimos valores de evolução do PIB nesta década, na ordem média dos 0.36%.
No caso da Grécia a ideia, porventura infantil, que as economias ricas da Europa estariam disponíveis para injectar significativos montantes de financiamento que permitissem ‘segurar’ o essencial do estado social, em nome de um abstracto e insubstantivo valor de solidariedade europeia. Tornou-se claro que a posição dos credores é apenas um ‘take it or leave it’ e que não existe – como nunca existiu – margem significativa para negociar as várias metas. É, porventura, dramático que um governo democraticamente eleito pelos seus cidadãos em Janeiro e cuja posição negocial foi referendada, maioritariamente nas urnas, no domingo, se veja derrotado por instâncias que não foram eleitas mas cooptadas pela burocracia tecnocrática que dirige os destinos da União Europeia. Mas a política internacional nunca foi justa e quase nunca correspondeu a exigências de ética e elevação moral. Apenas, porventura, à saída da Segunda Guerra Mundial sob a protecção generosa do exército norte-americano.
Assistiremos, assim, nos próximos dias, à rejeição da posição grega, em nome da solidez e coerência da posição europeia. Dando acolhimento ao clamor dos eleitorados dos países do Norte da Europa que têm pressionado os governos para recusarem novos auxílios e deixarem os gregos à sua própria sorte. Na sequência da ruptura, a Comissão Europeia implementará medidas, já programadas, de desancoramento da Grécia à UEM e eventualmente um programa de assistência humanitária de urgência. Digo eventualmente, porque tenho dúvidas que os 15 países que estão em sintonia quanto à saída da Grécia da UEM ainda concedam essa ajuda de urgência. É, imaginam eles, a última estocada no moribundo que apressará a sua agonia.

[quote_box_right]Os campeões da União Económica Monetária acreditam que cortando um dedo asseguram a sobrevivência do corpo mas esquecem-se da gangrena que tomou já conta dos outros membros[/quote_box_right]

A saída da Grécia do Euro não é o fim mas é ao contrário a luz ao fundo do túnel. Permitirá ao governo grego, retomando a totalidade dos poderes soberanos sobre a gestão da economia, implementar as necessárias políticas económicas. Desde logo, a obtenção de socorro de emergência fora da União Europeia. A Grécia é o baluarte sul de defesa da Aliança Atlântica, uma peça essencial no seu dispositivo, num tempo de expansão do poder geoestratégico russo sobre os territórios vizinhos. É, também, um país vizinho da Turquia e essencial na contenção da ameaça islamita radical que está, pouco a pouco, a partir dos territórios que já dominam no Norte da Síria e do Iraque a sequestrar zonas do Médio Oriente que são vitais à defesa do Ocidente e ao aprovisionamento de matérias-primas.
Não é preciso fazer um grande exercício de imaginação para se perceber que os Estados Unidos não deixarão cair a Grécia na zona de influência da Rússia e da China. As ilhas helénicas dominam estrategicamente as rotas de navegação do Norte do Mediterrâneo e dão acesso ao também estratégico Canal de Suez. Mas ainda que a ajuda de emergência não seja totalmente assumida por Washington irão aparecer outros poderes disponíveis para cooperar. Isso era claro em artigo publicado esta semana no New York Times.
O segundo passo é a emissão da moeda nacional, o novo dracma, sob a tutela do Banco Central grego e a sua interligação à carteira de moedas internacionais. Retomando os poderes de gestão monetária que perdeu quando entrou na UEM, o governo grego estará agora livre para desvalorizar a nova moeda face ao Euro e ao dólar. O que irá estimular as exportações, o turismo (a principal indústria nacional) e a fixação de novos investimentos. Passará para a gestão nacional o controle da inflação, instrumento que tem sido mantido artificialmente baixo por condicionamento do Banco Central Europeu (entre 1% e 1.5%).
A situação da Grécia é muito difícil. Como referia o Prof. Jeffrey Sachs, da Universidade de Columbia, a economia grega encolheu 25% desde 2009, o desemprego atinge os 27% em geral e 50% na juventude. É ingénuo pensar-se que um terceiro pacote de assistência financeira ( o mecanismo ESM) irá resolver, significativamente, a aflitiva situação grega. Será um paliativo num doente já moribundo, destinado a assegurar o reembolso dos empréstimos concedidos pelos bancos alemães, franceses e britânicos aos falidos bancos gregos. Apenas uma pequena parte – menos de um terço – será destinado a aplacar a situação aflitiva dos segmentos mais depauperados da população.
Os campeões da União Económica Monetária acreditam que cortando um dedo asseguram a sobrevivência do corpo mas esquecem-se da gangrena que tomou já conta dos outros membros. As políticas em vigor no Tratado Orçamental estão desajustadas à situação presente da União. Foram criadas para responder a circunstâncias que já não existem. Se não forem revistas a União Económica morrerá e outros países sairão do Euro. É uma questão de tempo.

10 Jul 2015

Estoril, para que te quero?

* por Mário Duarte Duque

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]tempo de vida de um edifício é função da sua viabilidade física e da sua viabilidade económica.
A primeira extingue-se por colapso estrutural, a segunda extingue-se por já não gerar rendimento em moldes que justifique o seu uso e a sua manutenção. Por vezes também se extingue por inconformidade com standards técnicos mais actuais, como é o caso do emprego de materiais que se conheceram mais tarde serem tóxicos ou de não terem adequada resistência ao fogo.
Foi do conflito entre novas oportunidades e a responsabilidade institucional de manter um acervo arquitectónico e urbanístico significativo, que se desenvolveram fórmulas que permitiram prolongar a vida económica desses edifícios.
Para aquilo que foi primeiramente uma obrigação pública, a preocupação residia principalmente na integridade física dos edifícios. A fórmula convencional que assistia essa manutenção eram os fundos públicos e o pagamento de ingressos de visita, mas geralmente pouco significativos para não onerar outra obrigação pública, a função educativa. Outras fórmulas mais elaboradas foram já a conversão de alguns desses edifícios em equipamentos hoteleiros criteriosos, como é o caso das pousadas em Portugal e os paradores em Espanha. Admite-se que a pousada de S. Tiago tenha acontecido nessa continuidade.
Mas foi o reconhecimento da crescente gratificação que o uso desses edifícios gera tanto aos habitantes da cidade, generalizadamente mais instruídos, como aos seus visitantes, generalizadamente mais interessados, o que determinou fórmulas de alargada elaboração e extensão, nomeadamente estendendo-se a propriedades privadas onde também pendessem regras de salvaguarda.
Edifícios que até então eram vistos como empatados e que assim passaram a ser contemplados com um novo sentido de oportunidade.
Foi com essa alteração de circunstâncias que o que inicialmente era uma obrigação institucional, e um peso morto na maior parte dos casos, passou a revelar-se uma oportunidade.
O feliz advento foi também a condescendência dos governos ao liberalismo económico e o interesse desses agentes em administrar bens e atribuições públicas de rápida capitalização, como se anteviu ser a renovação urbana, e como é característica dos bens públicos que tendencialmente interessavam aos agentes do liberalismo económico administrar.
O preço a pagar foi a falta de comando público, e a contingência mais recorrente foi social.
Em verdade a maior parte das operações de renovação urbana não serviu aos usos e à população originária, mesmo quando isso era apanágio da operação, e muitos desses agregados populacionais extinguiram-se por via dessas operações.
A título de exemplo, a operação de renovação da ponte cais 16, em Macau, moveu-se suscitando e recebendo a confiança de que seria o motor de revitalização urbana de todo o Porto Interior. Na prática só retirou um fim de céu e de água à Av. Almeida Ribeiro.
Mas também uma alteração de modelo de gestão que determinou a necessidade de reformular conceitos. Tudo o que até à data cabia numa categoria única de “monumentos, edifícios, conjuntos e sítios classificados” onde não só estava vedado a sua demolição, como sequer os edifícios podiam “sofrer” outras operações que não fossem de restauro, subdividiu-se em outras categorias como a de “edifício de interesse arquitectónico” o qual já poderia “beneficiar” de operações de ampliação, consolidação, modificação, reconstrução e recuperação.
E tanto de que se tratou de uma significativa alteração de circunstâncias que a própria terminologia normativa também se alterou. As mesmas operações que eram contempladas como um sacrifício que os edifícios não podiam “sofrer”, passaram a ser contempladas por medidas que iria “beneficiar” esses edifícios. hotel estoril
E foi assim que em Macau, o edifício do Banco Nacional Ultramarino, que fora inscrito na lista de 1989 na categoria de “monumentos, edifícios, conjuntos e sítios classificados”, passou a figurar na legislação de 1992 na categoria de “edifício de interesse arquitectónico”, e assim pôde beneficiar de obras de ampliação.
Foi assim que intervenções, que antes não se admitiam noutras categorias que não fosse “restauro”, passaram a caracterizar-se em função da natureza da operação e dos trabalhos com designações do tipo “reabilitação”, “recuperação”, “reutilização”, “requalificação”, “revitalização”, “regeneração” ou “reestruturação”, todas pressupondo medidas de intervenção em preexistências urbanas e arquitectónicas de valor, com o intuito de lhes proporcionar uma nova viabilidade.
Em verdade, qualquer destas intervenções será sempre um sacrifício da substância arquitectónica originária, todavia o preço a pagar para que a mesma substância subsista e para que possamos melhor integrar essa substância nos usos contemporâneos da cidade.
Alguns sacrifícios são convencionalmente admissíveis porque dificilmente admitiríamos continuar a utilizar um edifício que não tivesse fornecimento de energia eléctrica ou que não estivesse equipado com instalações sanitárias.
Outros sacrifícios moderamos criteriosamente, admitindo prescindir de ar condicionado num edifício que originariamente foi dotado de volumes generosos de ar e de ventilação transversal, ou esforçamo-nos por configurar outras soluções melhor adaptadas a essas características que não passam pela redução dos volumes do espaço interior desses edifícios.
Mas também sacrifícios que são muito mais notórios quando passam pela mudança da finalidade dos edifícios, ou pela destruição da sua compartimentação original, para acomodar novas condições espaciais, como é caso recorrentemente.
Mesmo no pressuposto que na concepção arquitectónica de um edifício reside valor, não há nada que se possa retirar ou isolar do desenho desse edifício que retenha esse valor autonomamente, e que não se torne num mero fragmento uma vez isolado ou retirado, ou que deixe de ser função da finalidade originária desse edifício.
No que se prende com a fixação do valor urbanístico e arquitectónico as contribuições podem ser diversas, e todas contribuem para o conhecimento e para a compreensão da substância arquitectónica em causa. Compreensão que é a condição primordial e anterior a qualquer intervenção para que uma intervenção seja ponderada e avisada.
Infelizmente a realidade está repleta do contrário. A memória longínqua da nossa matriz cultural lembra-se de um centro comercial desastroso que foi feito na estação do Rossio em Lisboa e a memória próxima da mesma matriz cultural lembra-se do aumento de volume de construção, igualmente desastroso, do pequeno edifício Art Deco da Tv. do Paiva, afecto aos serviços administrativos do Palácio da Praia Grande.
Ou seja, duas contingências nefastas. Por um lado a contingência de se sacrificar, por outro a contingência de o acervo de conhecimento e de aviso disponíveis poder ser reduzido.
Mas também componentes que se formam pelo regime da razão, a qual, independentemente de poder ser mais ou menos apta, é também resultado das circunstâncias do momento.
Por isso, da maturidade que hoje já é possível reunir sobre regimes de intervenção em substâncias arquitectónicas e urbanísticas sensíveis, a regra de ouro não é protelar decisões à espera de melhor aviso. A regra de ouro é antes dar prioridade à manutenção dos edifícios afectos à sua finalidade original e configurar intervenções que possam ser reversíveis à luz de melhor conhecimento ou melhor aviso.
Modelo que assegura, mesmo na dúvida, que os erros não sejam reversíveis, e se formem opções técnicas e de desenho que assistam essas intervenções.
Intervenções onde a intenção não é de rotura com a obra original, mas também não é de continuidade do que originariamente foi feito.
Intervenções onde linguagens mais abstractas e neutras, que a estética moderna admite, revelam-se mais aptas em contribuir para que a substância arquitectónica original seja mais evidente.
E, umas vez que se conhecem os caminhos, a crise em torno do edifício do Hotel Estoril do Tap Seac fulcra-se antes no princípio da questão, isto é, na fixação do valor arquitectónico.
Em verdade, a razão por que os edifícios se classificam não é apenas para que se fixe o reconhecimento do seu valor, mas também para que o seu valor, uma vez fixado, não seja mercê de circunstâncias em que esse interesse ou esse reconhecimento possam não estar mais presentes.
Em boa verdade, nem mesmo uma classificação oficial é disso garante. E tanto que assim é que o edifício da Escola Comercial Pedro Nolasco (presentemente a Escola Portuguesa) que se incluía na lista de edifícios classificados de 1989, também deixou de fazer parte dessa lista na sua reedição de 1992.
Mas também não é por acaso que edifícios modernos são os que menos dominam ou perduram nessas listas. Em verdade não é tão fácil sustentar publicamente o valor de objectos de arquitectura modernos ou contemporâneos com é com edifícios históricos.
O acervo reunido num edifício histórico forma-se de diversas contribuições sendo as mais óbvias o virtuosismo da sua realização material, do seu detalhe, da sua figuração, muito mais óbvio que a concepção arquitectónica que lhe é subjacente.
Um edifício moderno, ao invés, é nivelado no seu detalhe, abstracto na sua linguagem, pelo que tudo nele se resume à sua concepção e aos modelos que formaram ou influenciaram essa concepção. Ou seja, resume-se àquilo que pode parecer muito pouco à vista desarmada.
Mas também são esses os edifícios que são verdadeiramente revolucionários em todos os pressupostos funcionais e estéticos, e que são a origem do nosso modo de habitar o espaço urbano de hoje. Modo cada vez mais deturpado nas adaptações que disso fazemos às circunstâncias actuais.
Ao contrário dos edifícios históricos, os edifícios modernos são edifícios que são efectivamente do nosso tempo, só que na forma mais originária, eventualmente mais genuína, desse tempo. Por isso, conteúdos que deveria merecer o esforço de se elucidar e de se disseminar conhecimento.
São também aqueles edifícios em que presentemente se fixa a nostalgia da modernidade. O sentimento que ciclicamente é fonte de gratificação para os humanos e o tempo a que os habitantes da cidade e os seus visitantes aderem, sempre que entram em défice de moldes de vida mais simples.
Nomeadamente em défice dos chamados equipamentos “normais”. I.e. coisas que todas as cidades têm, ou deviam ter, como um hotel no seu centro cívico e histórico. Ou mesmo uma residência para intercâmbio de estudantes ou de programas de aperfeiçoamento. Ou mesmo um albergue de juventude, em continuidade com todos os equipamentos afins que possam existir na mesma zona da cidade.
A instalação de outras finalidades não devem determinar a adaptação de um antigo hotel se unidades de hospedagem são necessárias no mesmo local.
A partir do momento em que seja possível fixar valor no edifício desse antigo hotel Estoril, como regra de salvaguarda, é à manutenção da finalidade original do edifício que se deve dar prioridade.

10 Jul 2015

The Boys from Macau 2.0

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á duas semanas atrás aprendi que não devo abordar publicamente temas relativos à tutela onde outrora trabalhei, pois corro o sério risco de ser mal interpretado, conforme aconteceu com uma entrevista recente que dei. Tal foi a coisa que o Macau Concealers (*) até se deu ao trabalho de traduzir para chinês afirmações minhas tiradas fora do contexto e que, deste modo, se tornaram bombásticas e incoerentes com a minha pessoa. Conclusão: tive direito a uma valente sova no Facebook.

É pena, pois até gostava de abordar de uma forma construtiva a 3ª fase de auscultação pública do Plano Director dos Novos Aterros e dizer o que penso da proposta que é ora colocada para discussão.

Fica para outro dia. Mudemos de assunto.

Quando era miúdo, uma coisa que me dava particular prazer era acompanhar as histórias antigas de Macau contadas pelos amigos dos meus pais e avós. Uma que me despoletou particular interesse foi contada pelo tio Joca (**) no Solmar.

O tio Joca, tal como muitos macaenses nascidos na primeira metade do século XX, viveu e trabalhou uma temporada em Hong Kong.

[quote_box_left]A nossa hibridez cultural tanto pode beneficiar como prejudicar a nossa imagem e reputação, pelo que se torna fundamental sabermos onde nos queremos ou devemos posicionar do ponto de vista civilizacional[/quote_box_left]

Se o caríssimo leitor desconhecia esse fenómeno, fique então a saber que, nos tempos coloniais, chegou a existir uma forte presença portuguesa na vizinha cidade de Hong Kong. Sobre esse tema existe, inclusivamente, um livro muito interessante, da autoria de Luís Andrade de Sá, intitulado “The Boys from Macau” (***). Conforme se lê na contra-capa dessa publicação:

“ (…) Foi a Macau e aos seus portugueses que os britânicos recorreram para criar a administração pública e para montar as companhias comerciais quando foi fundada a nova colónia, em 1841. (…) Havia portugueses em todos os sectores – na justiça e na banca, na função pública, de armas na mão em defesa da colónia, no desporto, nos jornais e nas igrejas. (…) ”

O tio Joca trabalhou na banca em Hong Kong. No Solmar, enquanto tomava café com os meus pais e o meu avô Lourenço, contou-nos como na entrevista de trabalho foi posta à prova o seu domínio da língua inglesa; os calafrios que sentiu no primeiro dia de trabalho, quando engolido pelo grandioso lobby de entrada do banco; e, ainda, o bom relacionamento que conseguiu logo estabelecer com os executivos do banco, todos eles britânicos, de quem mereceu rapidamente a confiança, traduzindo-se em promoções sucessivas que inevitavelmente criaram inveja interna.

Assim termina a história do tio Joca? Não. As boas histórias têm sempre um final potente e essa não foge à regra. Mas já lá vamos.

Conforme é já sabido, recentemente desvinculei-me da função pública para aceitar um novo desafio numa das operadoras da indústria do jogo.

Tendo iniciado as novas funções há cerca de dois meses, algo que me surpreendeu desde logo foi o número de portugueses e de macaenses que trabalham na empresa. Foi para mim uma verdadeira e agradável surpresa.

Todos os dias falo português com alguns colegas meus e ouço falar português quando me cruzo nos corredores da empresa com funcionários portugueses e macaenses, sendo que alguns até conheço dos tempos do Liceu. Trata-se de um ambiente muito diferente do da função pública onde trabalhei nos últimos 12 anos.

Não pretende esta ser uma crítica ao Governo face ao reduzido número de portugueses que se tem vindo a contratar ou à falta de uso da língua portuguesa na administração pública. Nesse aspecto fui sempre muito frio e realista. Há coisas que temos de aceitar e essa é uma delas.

Com a excepção das áreas da justiça e do Direito, onde a presença da língua portuguesa é forte pelas razões óbvias que nem vou aqui mencionar, temos de aceitar que, com a transferência de poderes e a localização dos cargos de chefia, o chinês passou necessariamente a ser a língua veicular de trabalho. E com isso, naturalmente, a estratégia de contratação de pessoal tomou outro rumo e, acrescente-se, a cultura de trabalho passou também a ser outra. Para o bem e para o mal.

Precisamente por essa razão, pese embora tenha sido funcionário público ao longo de tantos anos, aos meus conterrâneos acabados de regressar do estrangeiro com um canudo na mão, sempre os aconselhei a procurarem alternativas na privada.

Sobretudo se não forem bilingues em pleno, com perfeito domínio oral e escrito da língua chinesa, pois actualmente o nível de exigência é outro. O chinês de rua, do tai má ti, chu tak ng chu tak, que antigamente servia para desembaraçar as chefias portuguesas, já hoje não serve.

Não tenho nada contra o Governo – que, aliás, foi para mim uma grande escola. Apenas me parece que está na altura de nós, portugueses em geral e macaenses em particular, abandonarmos a ideia de que na procura de emprego em Macau devemo-nos virar única e exclusivamente para o Governo.

E que o Governo tem a obrigação de nos contratar.

As coisas mudaram e temos de nos adaptar. A transferência de poderes e a abertura da indústria do jogo criaram um novo cenário. E se a função pública, antigamente, absorvia em grande quantidade a malta portuguesa e macaense, atrevo-me a dizer que, de certa forma, esse papel tem vindo a ser progressivamente desempenhado pela indústria do jogo, ainda que numa escala diferente.

Posso estar enganado pois ainda sou muito novo nessa área. No entanto, quer me parecer que poderão estar aqui novamente reunidas condições para demonstrarmos a nossa utilidade, embora num ambiente culturalmente mais diversificado e profissionalmente mais sofisticado e competitivo, onde o inglês é a língua principal de trabalho. Uma espécie de The Boys from Macau, versão 2.0.

Aparentemente, a nossa presença já se faz sentir. Ainda no outro dia fui apresentado da seguinte forma a um executivo da empresa: “This is Andre. He’s one of those locals who speaks all languages.”. Um reconhecimento dessa nossa particular qualidade e, simultaneamente, uma descrição simples e rápida do ser Macaense.

Voltando então à história do tio Joca. Num belo dia de trabalho, o tio Joca vê-se repentinamente confrontado pelos executivos do banco por terem recebido a seguinte queixa: alegadamente, terá ido jantar com alguns chineses a uma tasca onde se servia carne de cão.

Sentindo-se provocado e ofendido com a situação, por se ter apercebido do verdadeiro problema em questão, o tio Joca confirmou categoricamente essa ocorrência aos executivos, assumindo orgulhosamente a sua (outra) identidade cultural.

Eram tempos diferentes e os executivos, naturalmente, não ficaram bem impressionados com essa atitude. Calculo até que se tenham sentido de alguma forma traídos. O que é certo é que a partir desse dia as relações azedaram e não houve mais promoções.

Moral da história? A nossa hibridez cultural tanto pode beneficiar como prejudicar a nossa imagem e reputação, pelo que se torna fundamental sabermos onde nos queremos ou devemos posicionar do ponto de vista civilizacional.

Não me canso de afirmar que nós, Macaenses, somos uma grande contradição. Controlar a percepção que os outros têm de nós não é tarefa fácil. Contudo, é estrategicamente fundamental. Não existe uma fórmula universal para isso, pois trata-se de uma questão muito pessoal. Mas, antes de mais, somos nós próprios que temos de perceber quem somos e como queremos ser vistos pelos outros.

O problema é que tudo depende de que lado da cama acordamos.

Sorrindo Sempre

Tive duas semanas monocromáticas, nada de especial que mereça registo aqui neste espaço quinzenal. Assim, na ausência de uma história colorida para aqui contar, desta feita o Sorrindo Sempre assume um formato diferente, com rapidinhas curtas e boas:

Portanto, sorrindo sempre quando:

• Resisto à tentação de atropelar turistas que atravessam a rua de qualquer maneira;
• Mal as portas do elevador se abrem, pessoas cheias de pressa entram na cabine antes de me deixar sair;
• Sou tratado por “Sr. Engenheiro”, esclareço que sou arquitecto e respondem-me na tentativa absurda de remediar o embaraço: “mas engenheiro é melhor!”;
• Conterrâneos meus tentam convencer-me a tirar o wui heong cheng (****) afirmando com firmeza que ao portador desse documento não é atribuída a nacionalidade chinesa, pese embora na imigração fazerem fila para o guichet “chinese nationals”, e isto apenas para não mencionar o que vem contemplado nos diplomas legais aplicáveis que tive o cuidado de estudar;
• Deparo-me com ilustres que falam em termos absolutos e fazem acusações graves, quando na verdade não têm conhecimento de facto sobre o assunto em discussão;
• Estou carregado de compras e as chaves estão no bolso que dá menos jeito;
• …

Sorrindo sempre.

(*) 愛瞞日報 , espaço no Facebook onde são abordados temas locais de forma conspiradora e sensacionalista.
(**) Nome fictício.
(***) Edição da Fundação Oriente / Instituto Cultural de Macau. ISBN 972-9440-93-X.
(****) Salvo-conduto emitido pelas autoridades chinesas.

10 Jul 2015

O quarto com WC

[dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. Li esta semana no Facebook um anúncio que me deixou a pensar: uma portuguesa, residente em Cascais, anda à procura de uma “estudante” ou “profissional” para “housekeeping e babysitting” a partir das 18 horas, aos dias da semana, e aos sábados de manhã. Oferece, em contrapartida, um “bom” quarto “com WC”. Assim, sem mais – não há salário, dá-se apenas uma cama com roupa que a interessada ao cargo tem de lavar e passar a ferro.
Os comentários a este anúncio multiplicaram-se rapidamente e é nisto que as redes sociais são um instrumento interessante para se compreender o mundo através de quem vive nele. Não falta gente a achar que a proposta é uma excelente ideia, embora não esteja disposto a aceitá-la: a mulher de Cascais, que quer ter alguém que lhe tome conta dos filhos no período mais chato do dia e o jantar pronto à espera em casa, fica com o problema resolvido a custo zero. É gente que acha mesmo que a proposta é bonita do ponto de vista social, é uma ideia solidária, por se estar a dar a uma “estudante” ou “profissional” a possibilidade de ter um quarto onde dormir. Menos são aqueles que consideram que este tipo de anúncio representa um retrocesso.
Foi a isto que chegámos em países onde era suposto termos evoluído: no tempo dos nossos avós era normal os pais pobres entregarem as miúdas pobres às famílias com quartos vagos (na altura sem WC), às famílias ricas onde havia quartos e muitas crianças para tratar. Eram criadas a troco de quase nada – uma cama, comida, uns trapos para se vestirem. Era assim nos tempos dos nossos avós; é assim que hoje as coisas continuam a funcionar, nalgumas cabeças que acham bem que ao trabalho não corresponda um salário. Mais vale um quarto que nada; mais vale um quarto do que não ter onde dormir. Estranha ideia de generosidade.
 
2. Esta semana entrevistei um grego, numa conversa ao telefone, um grego que não conheço. O objectivo era saber como é que acompanha a embrulhada europeia em que o país dele – de onde saiu há 11 anos – está envolvido. Este grego que perdeu a esperança de um dia voltar a casa, à semelhança de muitos portugueses expatriados, falou-me da falta de investimento do país, dos salários que hoje se praticam e que são um quinto dos de antigamente, dos salários que hoje se oferecem e que não se podem recusar, porque pouco é melhor do que nada. Mais vale um quarto do que não ter onde dormir.
O meu entrevistado grego não é especialista em finanças. O meu entrevistado grego é da Grécia e tem amigos gregos e conhece o passado do país e o presente e sabe que as coisas não podem continuar assim, que não é com esmolas que o mundo evolui, que há alturas em que pouco não é melhor do que nada, porque pouco não vai resolver coisa alguma.
A Grécia vive dias difíceis naquela Europa que se inventou, apoiada num sistema financeiro que não existe. Temos especialistas em finanças e em política e em economia aos molhos, farto-me de ler que os gregos têm de pagar as dívidas, os portugueses também, como se todos os gregos e todos os portugueses tivessem culpa do estranho ordenamento em que o mundo se encontra, como se todos os gregos e todos os portugueses fossem culpados por tudo aquilo que está a acontecer.
No meio de tudo isto, temos uma Europa preocupada com o eleitorado que representa – com os vários eleitorados que representa, e aqui está um dos grandes problemas –, porque há eleições à porta e povos descontentes com a ajuda que se deu aos pobres, é melhor um quarto do que nada, o importante é que tenham onde dormir, vejam lá a generosidade, mais vale uns metros quadrados com WC do que nada.
Este mundo feito de economias e de empréstimos e de negociatas entre políticos tem de ser reinventado rapidamente. Assim não se vai lá.

[quote_box_right]Temos uma Europa preocupada com o eleitorado que representa, porque há eleições à porta e povos descontentes com a ajuda que se deu aos pobres, é melhor um quarto do que nada, o importante é que tenham onde dormir, vejam lá a generosidade, mais vale uns metros quadrados com WC do que nada[/quote_box_right]
 
3. Em Macau está tudo bem por enquanto, apesar de a bolha na China estar aí quase a rebentar, numa demonstração de que aquilo que o resto do mundo foi experimentando no passado não tem grande interesse nas decisões do país que quer ser grande, maior do que já é, o maior de todos. Mas por aqui tudo bem – a vida faz-se ao ritmo de sempre, com os tiques de sempre, com as figuras de sempre.
Desde que cheguei a Macau que, na minha condição de jornalista, vou a conferências de imprensa na Assembleia Legislativa. Acontecem depois das reuniões das comissões, têm o presidente da comissão em causa como protagonista, e são feitas à hora que calha, ou seja, quando as reuniões acabam. Os deputados saem, os jornalistas entram, 10 minutos de conversa e a coisa está feita. Nos últimos tempos – sobretudo desde que tomou posse o actual Governo –, criou-se o hábito de, em reuniões em que estão presentes representantes do Executivo, estes falarem à porta, antes das declarações do presidente da comissão, que espera confortavelmente sentado na sala pelos jornalistas que estão a trabalhar.
Esta semana, tive a oportunidade de assistir a um momento invulgar: depois de quase três horas a aguardar que uma reunião terminasse, e enquanto ouvíamos o representante do Governo que tinha acabado de sair do encontro com os deputados, o presidente da comissão em causa deu de frosques. Era quase uma da tarde, a fome aperta, os jornalistas que ali estiveram quase três horas à espera que a reunião acabasse que voltassem em melhor oportunidade. Disseram-me que não era a primeira vez que tal acontecia, que Chan Chak Mo já teve outro momento de iguais pressas.
O maior desrespeito do deputado não é pelos jornalistas – é pela Assembleia de que faz parte e pela população que os órgãos de comunicação social informam. Mas Macau é assim, as coisas aqui nunca são realmente importantes, as pessoas aqui nunca são realmente importantes, tudo passa, tudo fica bem e para a semana há mais. Há sempre mais.
 
 

10 Jul 2015

(Con)Tradições (Vivam as Forças Armadas!)

Recordo-me de quando tinha os meus sete ou oito anos os meus avós levarem-me à Tourada, na Praça de Touros Amadeu Gaudêncio, no Montijo. Recordo-me ainda de ter adorado lá ir, de berrar tantos “olés” que demorava dias até recuperar a voz. Depois deixei de ir, por razões várias, mas continuaria a tomar contacto com a Tourada através da televisão, e já mesmo antes de entrar na adolescência, não conseguia perceber o que me tinha levado a berrar aqueles “olés” todos durante a infância – será porque no pequeno ecrã a sensação é diferente do que ao vivo, na Praça de Touros? Foi já em 1996, em Macau, que voltei a ir à Tourada, na arena improvisada montada no antigo Campo dos Operários, exactamente no mesmo local onde se situa hoje o Grand Lisboa, e mais uma vez, nada. Nem um olézinho para a mostra, e saí dali com a mesma sensação de quem vai ao futebol e o jogo termina a zeros, sem uma única oportunidade de golo para ambas as equipas.
Cheguei à conclusão que se calhar não gosto de Tourada. Enfim, não me enche as medidas, e se me fazia vibrar quando tinha sete ou oito anos, talvez seja um espectáculo indicado para essa idade, não sei, pelo menos para mim foi assim, e pode ser que haja algo ali que me tenha escapado. Ou então faz apenas parte daquilo que eu sou, e se mais ninguém tem nada a ver com isso, também não me assiste o direito impor isso a ninguém. Só que aos olhos do politicamente correcto, pós-moderno, neo-higienista e afinal-quando-é-que-estes-gajos-se-calam, no momento em que eu tomo consciência de que não gosto de Tourada devo, aliás tenho a obrigação de exigir o fim desse espectáculo – o que não pode ser bom para mim, não pode ser bom para ninguém, é claro. É? Claro que não. Que soberba mais fascista seria essa, da minha parte.
Mas à revelia, ou ao “que se lixem” os tipos que até gostam de ver a besta ali às voltas com um cavalo e um indivíduo montado nele trajando uma indumentária sexualmente ambígua, há outros que também pensam deste modo, e em Portugal algumas celebridades juntam-se ao coro da indignação anti-Tourada, exigindo o fim das transmissões televisivas das mesmas (um pequeno passo para acabar com a programação medíocre, bastando para tal exigi-lo?), bem como o aumento da idade mínima para se poder entrar num destes espectáculos, que é actualmente de seis anos. Valham-nos as celebridades para nos dizer como devemos agir e pensar. Afinal, os pais e encarregados de educação daquele país não têm o discernimento ou bom senso para determinar ao que devem os seus filhos assistir, ou não. Se calhar não sabem o que passa na Praça de Touros, e julgam tratar-se da distribuiçāo gratuita de rebuçados! E de facto nem eu pensava estar exposto a tal violência naquela idade tão sensível, em que as crianças são tão influenciáveis. Devia ser uma criança problemática, visto que após ver uma tourada não tinha vontade de espetar bandarilhas nos costados dos meus amiguinhos, nem marrar com a professora, lá na escola. 9715P15T1
Não posso ser a favor da Tourada, pois além da componente sádica, o espectáculo em si é um tanto ou quanto rústico, a atirar para o marialva e para o chuleco. Mas também já não há tantas corridas de touros como havia antigamente; há 20 anos havia mais, há 50 muito mais e há 100 nem se fala, e não foi graças ao activismo que o número se tem vindo a reduzir. Estive em Barcelona há coisa de seis ou sete anos, e pela cidade via-se cartazes anunciando uma dessas corridas, e actualmente as Touradas estão banidas em toda a Catalunha, e não se realizam em muitas outras províncias de Espanha, supostamente por falta de interesse. Assim é, uma vez que o público se vai tornando mais consciente e exigente, além de ter dois olhos na cara para constatar o óbvio, sem que ninguém os oriente, como se fossem invisuais ou retardados mentais. É a evolução natural das coisas, para quê apressar? Porque é mais divertido confrontar, molestar e insultar quem (ainda) gosta?
Não dá para alinhar com os partidários da anti-Tourada, e especialmente por esse mesmo motivo: julgam-se os donos e senhores do bom gosto, o pináculo da modernidade, dispostos a mostrar o caminho certo como quem toca uma manada. Fazem-se comparações absurdas com o Circo Romano ou o sacrifício de Virgens, outras “tradições” do passado, segundo eles, mas talvez fosse bom lembrar que até 1948, data em que se assinou a declaração universal dos direitos do Homem, com a carta da ONU, não havia assim tanto respeito pela vida humana como se vê hoje de entusiasmo pela taurina. Quiçá os touros precisam da sua própria organização, a “Omuuu”.
E é um animal que teima em não colaborar, aquele. Apregoa-se a “horrível crueldade” que o espectáculo representa, mas depois de levar com o primeiro ferro no lombo, o bicho continua para ali a correr como se nada fosse, quando o ideal seria ficar no chão a mugir de dores, tão alto que não deixasse ninguém indiferente. Parece que logo aí acabam as comparações com os humanos, que nem com dois ou três casacos de cabedal aguentariam uma investida deste tipo na coiraça. Os indecisos juntam à indecisão também alguma estupefacção: “Afinal onde é que está a hedionda tortura? É muito pior assistir a um frango degolado a estrebuchar”. Ah, mas aí justifica-se, pois é para comer! Que alívio, e assim até parece que a criatura que ali está a desesperar enquanto se desvanece o seu sopro de vida fica sorridente e tudo. Da única vez que tive curiosidade em saber para onde vão os touros depois da lida, disseram-me que “iam para o matadouro”, e mais tarde a sua carne seria “oferecida a um orfanato”. Parece-me bem, pois assim as refeições dos pequenotes menos afortunados variam do habitual pão…que o diabo amassou.
Caminhamos a passos largos para a ditadura das boas vontades, atrás de elites de arengue que só botam faladura, e ainda se aproveitam da facilidade com que as massas se agitam, sem procurar ir ao fundo das questões – afinal são tantas, desde o franguinho da guia que passou a “cadáver” até mais recentemente aos caracóis, que levaram a que um grupo de alucinados protestasse a favor destas criaturas exibindo cartazes onde se lia “E você? Gostava de ser cozido vivo?”. Demos graças pelas Forças Armadas, pois por muito que não simpatizemos com a ideia, são o único garante da democracia, dotando-nos de protecção contra esta corja de mortos-vivos. Olé!

9 Jul 2015

Apetites Sexuais

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]xistem expectativas (talvez demasiadas) para a intensidade do desejo sexual de acordo com género, orientação sexual e faixa etária. Estamos habituados a pensar na sexualidade dos jovens adultos como o vibrante tempo de um apogeu sexual sem igual, que mais tarde entra em declínio. Por razões de cariz biológico e social, há quem se veja menos inclinado à dita actividade quando rugas e momentos de impotência atacam. Compreensível. Nas minhas viagens já comuns e tempos de lazer obrigatórios à frente de um ecrã cheio de possibilidades cinematográficas, vi-me especialmente interessada nestas representações de amor e de sexo na terceira idade quando surgiu a oportunidade de rever os meus queridos Shirley Maclaine e Christopher Plummer num romance-drama septuagenário. Uma apaixonada por cinema de algumas décadas atrás como sou e conhecedora das suas carreiras no seus tempos áureos, ver dois grandes actores nos seus corpos actuais, que lembram o da minha avó (por razões óbvias), foi estranho, mas ainda assim, agradável de se ver. Surpreendeu-me especialmente a tentativa de recriação da famosa cena na Fonte de Trevi do filme La Dolce Vita de Federico Fellini, enquanto viajavam em Roma, no seu momento de loucura ‘carpe diem’. Com uma sexualidade assumida e um decote de dimensões invejáveis, Maclaine e Plummer vibram com a possibilidade de um final feliz, para todo o sempre e além. Com aquele brilhozinho nos olhos que persiste há décadas.

Apesar de diversas fontes de entretenimento terem-se debruçado sobre esta temática da sexualidade dos mais velhos (vários filmes e séries ultimamente), muitos ainda atribuem o rótulo de tarados a quem se considera que a vontade para sexo já deveria ter caído em desuso. Está mal, porque a fornicação não é coisa dos mais novos. Até mesmo aqueles com distúrbios na aprendizagem, a sexualidade e o desejo existem e não são fáceis de explicar nem eles próprios do entenderem. Muitos são os técnicos que trabalham com esta população e que tentam incutir a uma sociedade superficial e dada à juventude que todos eles têm certas vontades. Parece que a taradice também fica para quem não se enquadra nas expectativas do indivíduo ‘funcional’ (seja lá o que isso for). Em Londres trabalha uma amiga onde se estabelecem programas de educação sexual para pais de jovens com dificuldades mentais, também sugerindo o recurso a profissionais do sexo, ademais a formação destes prestadores de serviços para lidar com os desafios das pessoas diferentes, com concepções sexuais diferentes, mas deveras com o mesma vontade de sexar como qualquer um de nós.

Isto das expectativas lixam-nos a vida, sem dúvida. Vai dos homens serem ‘uber’ sexuais e estarem sempre prontos, a mulheres serem recatadas e constantemente com dores de cabeça. E se o contrário acontecer é porque os homens são impotentes e as mulheres uma safadas. Por mais críticos que sejamos relativamente à sexualidade em geral, parece impossível não nos deixarmos infectar com estes macaquinhos na cabeça. Quantas (quantas!) vezes não ouvi das minhas queridas amigas discursos que os perpetuam? Eu incluída. Há um sentimento de surpresa e confusão se um homem está sem vontade. Proveniente de muitas coisas, muitas vidas. Mas confusão porque nos põe num papel de pro-actividade que nos torna nas taradas da relação. Se mentes tradicionais vêem promiscuidade, eu vejo empowerment. Porque se há injustiça neste mundo, são destas mesmas mulheres que se vêem numa encruzilhada moral por quererem mais sexo e não se sentirem na posição de incitar. Um empowerment sexual genuíno de consequências, às vezes, frustrantes, mas possíveis de serem solucionadas. A forma mais original li de alguns terapeutas sexuais que sugerem dar de comer um ao outro (literalmente, dar comida à boca) para a restabelecer o apetite sexual no casal. A ligação que não me foi muito clara, mas de apetite em apetite alguma coisa se arranja.

9 Jul 2015

Ego

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]iddhartha Gautama Shakyamuni (o sábio dos Shakyas) viveu entre os séculos VI e IV a.C., não se sabendo ao certo a data do seu nascimento ou morte. Sabe-se apenas que era filho de rei e que se fez pobre e sábio, acabando por atingir a iluminação debaixo de uma figueira.

Curiosamente, a Bíblia é omissa quanto à vida de Yehoshua Ben Yosef – da tribo de David, aspirante a carpinteiro – dos doze aos 30 anos. Algumas teorias dizem que o jovem que discutia no templo com os doutores da lei foi levado para a Índia por um dos viajantes indianos que cruzavam aquele território, onde terá sido exposto ao hinduismo e, necessariamente, ao budismo, tendo ficado conhecido por Issa.

Quando regressa à sua terra, inicia a sua prática e os seus sermões, seleccionando gente a quem faz o velho desafio “larga tudo e todos e segue-me”, tão à maneira dos mendicantes budistas.

O momento que atravessamos assemelha-se à adoração dos ídolos de ouro que Moshe veio encontrar quando descia do Monte Sinai com as tábuas da Lei.

É o culto das ilusões, da eleição da matéria, do ganho, do Eu acima de todas as coisas.

Assim, e porque o mundo vive uma enorme crise, manchada pelo materialismo e pelo Egoísmo, parece oportuno transcrever, retirado da obra “Buda e os seus Ensinamentos” de Samuel Bercholz e Sherab Chodzin Kohn, os ensinamentos do Mestre Tibetano Chogyam Trumpa (1940-1987), um dos primeiros da sua tradição a assimilar plenamente a mentalidade ocidental. Deste modo, foi capaz de formular os ensinamentos budistas tradicionais de uma forma nova, falando directamente ao ocidental. Temos assim uma lição da psicologia básica budista.

“Uma das ideias budistas mais centrais é a de que o eu não existe. O sentido do eu a que ingenuamente nos agarramos é visto pelo olho nu da meditação como sendo apenas uma amálgama ténue, sempre mutável de elementos psicológicos, conhecidos tradicionalmente como os cinco skandhas ou «montões»”. Aqui, Trungpa apresenta-os como forma, sentimento, percepção, conceito e consciência e fornece um íntimo relato interior do seu desenvolvimento.

“Um ponto-chave é a dualidade que se ergue ao nível do primeiro skandha, forma. A dualidade é uma descrição da característica mais básica do mundo confuso do ego, o bloco rudimentar edificador do mundo sofredor do samsara. É o sentido fundamental de que há «algo mais». O sentido desse «algo mais» torna consciente o aspecto directo e primordial do aqui e agora. Percebe o «outro» e, em pânico, percebe-se a si próprio como um outro oposto ao outro. Neste ponto, temos uma situação de dualidade, do eu e do outro, e assim começa a luta de se relacionar com um mundo estranho que deve ser captado, contra o qual se deve defender ou que deve ser ignorado”. Trungpa relaciona este facto com o momento do nascimento do tempo.

”Penso que seria melhor começar com algo de muito concreto e realista, o campo que vamos cultivar. Seria loucura estudar assuntos mais avançados antes de nos familiarizarmos com o ponto de partida, a natureza do ego. No Tibete, temos o ditado de que, «sem a cabeça estar bem cozida, não vale a pena comer a língua». Qualquer prática espiritual precisa desta compreensão básica do ponto de partida, o material com o qual vamos trabalhar.

Se não conhecermos o material com que estamos a trabalhar, então o nosso estudo é inútil; as especulações sobre o objectivo tomam-se mera fantasia. As especulações podem assumir a forma de ideias avançadas e de descrições de experiências espirituais, mas exploram apenas os aspectos mais fracos da natureza humana, as nossas expectativas e desejos de ver e ouvir algo de interessante, algo de extraordinário. Se começarmos o nosso estudo com estes sonhos de «iluminação» extraordinária e experiências dramáticas, então iremos edificar as nossas expectativas e preconceitos de tal maneira que, mais tarde, quando estivermos realmente no caminho, as nossas mentes estarão grandemente ocupadas com o que será em vez de com aquilo que é. É destrutivo e injusto para as pessoas brincar com as suas fraquezas, as suas expectativas e sonhos, em vez de lhes apresentar o ponto de partida realista daquilo que elas são…

Fundamentalmente, há apenas espaço aberto, o terreno básico, aquilo que realmente somos. O nosso estado de mente mais fundamental, antes da criação do ego, é tal que há abertura básica, liberdade básica, uma qualidade espaçosa; e temos agora, como sempre tivemos, esta abertura. Tome-se, por exemplo, a nossa vida do dia-a-dia e os padrões de pensamento. Quando “vemos um objecto, em primeiro lugar dá-se uma percepção que não tem de modo nenhum qualquer lógica ou conceptualização com ele; apenas percebemos a coisa em terreno aberto. Depois, entramos imediatamente em pânico e apressamo-nos a tentar acrescentar-lhe alguma coisa, ou procuramos encontrar-lhe um nome ou tentamos receptáculos em que o possamos localizar ou categorizar. Gradualmente, as coisas desenvolvem-se a partir daí.

Este desenvolvimento não assume a forma de uma entidade sólida. Pelo contrário, este desenvolvimento é ilusório, a crença errada num «ego» ou «eu». A mente confusa inclina-se a ver-se como uma coisa sólida, contínua, mas ela é apenas um conjunto de tendências, acontecimentos. Na terminologia budista, designamos este conjunto como os cinco skandhas, ou cinco montões. Analisemos, então, esses cinco skandhas.

[quote_box_left]O momento que atravessamos assemelha-se à adoração dos ídolos de ouro que Moshe veio encontrar quando descia do Monte Sinai com as tábuas da Lei. É o culto das ilusões, da eleição da matéria, do ganho, do Eu acima de todas as coisas[/quote_box_left]

O ponto de partida é que existe espaço aberto, não pertencente a ninguém. Há sempre inteligência primordial ligada ao espaço e à abertura, vidya – que significa «inteligência» em sânscrito, precisão, nitidez, nitidez de espaço, nitidez do espaço onde colocar as coisas, onde trocar as coisas. É como uma sala espaçosa em que há espaço para aí se dançar, onde não há perigo de se derrubar as coisas ou de se ir contra elas, pois há um espaço completamente aberto. Nós somos esse espaço, somos um com ele, com a vidya, a inteligência e a abertura.

Mas se somos sempre isso, de onde vem a confusão, para onde foi o espaço, o que aconteceu? De facto, nada aconteceu. Tornámo-nos simplesmente demasiado activos nesse espaço. Como é espaçoso, inspira-nos a dançarmos nele; mas a nossa dança torna-se demasiado activa, começamos a girar mais do que o necessário para expressar o espaço. Neste ponto, tornamo-nos auto-conscientes, conscientes de que «eu» estou a dançar no espaço.

Neste momento, o espaço deixa de ser espaço enquanto tal. Torna-se sólido. Em vez de sermos um com o espaço, sentimos o espaço sólido como uma entidade separada, tangível. Esta é a primeira experiência da dualidade – o espaço e eu, eu estou a dançar neste espaço e este espaço é uma coisa sólida, separada. A dualidade significa «espaço e eu», em vez de sermos completamente um com o espaço. É o nascimento da «forma» do «outro».

Então ocorre uma espécie de blackout no sentido em que nos esquecemos do que estávamos a fazer. Há uma pausa súbita, uma paragem; e viramo-nos e «descobrimos» o espaço sólido, como se nunca antes tivéssemos feito fosse o que fosse, como se não fôssemos os criadores de toda essa solidez. Há um intervalo. Tendo já criado o espaço solidificado, então ficamos esmagados por ele e começamos a sentir-nos perdidos nele. Dá-se um blackout e depois, repentinamente, um despertar.

Quando despertamos, recusamo-nos a ver o espaço como abertura, recusamo-nos a ver a sua qualidade suave e arejada. Ignoramo-lo por completo e a isso se chama avidya. A significa «negação», vidya significa «inteligência», pelo que estamos a falar de «ininteligência». Como esta inteligência extrema se transforma na percepção do espaço sólido, como esta inteligência enquanto qualidade luminosa aguda, precisa e fluente ficou estática, é, portanto, chamada avidya, «ignorância». Ignoramos deliberadamente. Não nos satisfazemos em apenas dançar no espaço mas queremos um parceiro e assim escolhemos o espaço como nosso parceiro. Se escolhemos o espaço como parceiro da dança, então naturalmente queremos que ele dance connosco. A fim de o possuir como parceiro, temos de o solidificar e de ignorar a sua fluência, a sua qualidade aberta. Isso é avidya, ignorância, ignorar a inteligência. É o culminar do primeiro skandha, a criação da ignorância-forma.

De facto, este skandha, o skandha da ignorância-forma, tem três diferentes aspectos ou estágios que podemos examinar através do uso de outra metáfora. Suponhamos que no início há uma planície aberta sem montanhas ou árvores, terra completamente aberta, um simples deserto sem qualquer característica particular. É assim que somos o que somos. Somos muito simples e básicos. E, no entanto, há um Sol que brilha, uma Lua que brilha e há luzes e cores, a textura do deserto. Haverá também algum sentimento da energia que se manifesta entre o céu e a terra. E isto continua sem parar.

Então, estranhamente, alguém de repente repara em tudo isso. É como se um dos grãos de areia tivesse esticado o pescoço e começasse a olhar à sua volta. Somos esse grão de areia, chegando à conclusão da nossa separação. É o «nascimento da ignorância» no seu primeiro estágio, uma espécie de reacção química. A dualidade começou.

O segundo estágio da ignorância-forma chama-se «a ignorância nascida por dentro». Tendo notado que somos separados, então adquirimos a sensação de que sempre o fomos. É uma grosseria, o instinto virado para a auto-consciência. É também a nossa desculpa para permanecermos separados, um grão individual de areia. É um tipo agressivo de ignorância, embora não exactamente agressivo no sentido da ira; não se desenvolveu a esse ponto. É antes agressão no sentido em que nos sentimos desequilibrados, desajeitados e tentamos segurar-nos ao nosso chão, criar um abrigo para nós próprios. É a atitude de sermos um indivíduo confuso e separado e que é tudo quanto somos.

Identificamo-nos a nós mesmos como separados da paisagem básica do espaço e abertura.

O terceiro tipo de ignorância é a «ignorância auto-observadora», que se observa a si própria. É o sentimento de nos vermos como um objecto externo, que conduz à primeira noção do «outro». Começamos a ter uma relação com o chamado mundo «exterior». É por isso que estes três estágios de ignorância constituem o skandha da ignorância-forma; começamos a criar o mundo das formas.

Quando falamos de «ignorância», não nos referimos à estupidez em si. Em certo sentido, a ignorância é muito inteligente, mas é uma inteligência completamente biunívoca. Isto é, reagimos puramente às nossas projecções em vez de simplesmente vermos o que é. Não há uma situação do «deixar ser», porque durante todo esse tempo ignoramos o que somos. Essa é a definição básica de ignorância.

O passo seguinte é o estabelecimento de um mecanismo de defesa de protecção da nossa ignorância. Este mecanismo de defesa é o sentimento, o segundo skandha. Como ignorámos o espaço aberto, a seguir, gostamos de sentir as qualidades do espaço sólido, a fim de realizarmos completamente a qualidade de posse que estamos a desenvolver. Claro que o espaço não significa apenas espaço vazio, pois contém cor e energia magníficas. Há tremendas e magníficas manifestações de cor e energia, lindas e grandiosas. Mas ignorámo-las totalmente. Em vez disso, temos apenas uma versão solidificada dessa cor, e a cor transforma-se em cor capturada e a energia transforma-se em energia capturada, porque solidificámos o espaço inteiro e transformámo-lo no «outro». Assim, começamos a tentar sentir as qualidades do «outro». Ao fazer isto, garantimos a nós mesmos que existimos. «Se posso sentir algo lá fora, então eu devo estar aqui.»

O mecanismo seguinte no estabelecimento do eu é o terceiro skandha, percepção-impulso. Começamos a ficar fascinados com a nossa própria criação, as cores estáticas, as energias estáticas.

Queremos relacionar-nos com elas, e por isso começamos gradualmente a explorar a nossa criação.

Se sentimos a situação e a consideramos ameaçadora, então, afastamo-la de nós. Se a consideramos sedutora, então atraímo-la a nós. Se verificamos que é neutra, tornamo-nos indiferentes. Esses são os três tipos de impulso: ódio, desejo e estupidez. Assim, a percepção refere-se à recepção de informação do mundo exterior e o impulso refere-se à nossa reacção a essa informação.

O desenvolvimento seguinte é o quarto skandha, conceito.

A percepção-impulso é uma reacção automática à sensação intuitiva. Contudo, este tipo de reacção automática não é uma defesa realmente suficiente para proteger a nossa ignorância e garantir-nos segurança. A fim de realmente proteger-nos e enganar-nos completa e adequadamente, precisamos do intelecto, da capacidade de dar nomes e categorias às coisas. Assim, etiquetamos as coisas e acontecimentos como «bons», «maus», bonitos», «feios», etc., de acordo com o impulso que achamos apropriado.

Assim, a estrutura do ego torna-se gradualmente mais pesada, mais forte. Até este ponto, o desenvolvimento do ego tem sido puramente um processo de acção e reacção; mas, a partir de agora, o ego desenvolve-se gradualmente para além do instinto animal e torna-se mais sofisticado. Começamos a experimentar a especulação intelectual, confirmando ou interpretando-nos a nós mesmos, colocando-nos em certas situações lógicas, interpretativas. A natureza básica do intelecto é muito lógica.

Em certo sentido, deve dizer-se que a inteligência primordial está sempre em operação, mas está a ser utilizada pela fixação dualista, pela ignorância. Nos estágios iniciais do desenvolvimento do ego, esta inteligência opera com a agudez intuitiva da sensação.

Mais tarde, actua na forma de intelecto. Realmente, parece que afinal não existe ego; não existe o «eu sou». É uma acumulação de uma porção de material. É uma «brilhante obra de arte», um produto do intelecto que diz: «Vamos dar-lhe um nome, vamos chamar-lhe qualquer coisa, vamos chamar-lhe “eu sou”», o que é muito inteligente. O «eu» é o produto do intelecto, a etiqueta que unifica num todo único o desenvolvimento desorganizado e disperso do ego.

O último estágio do desenvolvimento do ego é o quinto skandha, consciência. A este nível, ocorre uma amalgamação: a inteligência intuitiva do segundo skandha, a energia do terceiro e a intelectualização do quarto combinam-se para produzir pensamentos e emoções. Assim, ao nível do quinto skandha, descobrimos os seis domínios bem como os padrões incontroláveis e ilógicos do pensamento discursivo.

Este é o quadro completo do ego. É a este estado que todos chegámos no nosso estudo da psicologia e meditação budista.”

E nestas breves mas longas deambulações se introduz a complexidade simples dos mecanismos que o budismo, naquela busca próxima do descascar da cebola, vai operando para o homem se perceber a si mesmo.

8 Jul 2015

Agitpop?

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Devemos estar mais vigilantes… e colocar nas nossas mentes a necessidade de prontidão para combate.” Esta é uma das várias afirmações que o General Cai Yingting, Comandante da Área Militar de Nanquim do Exército Popular de Libertação (EPL) assina em conjunto com o seu comissário político Geral Zheng Weiping num artigo de 5,000 palavras do Diário de Povo, onde pedem ainda que “o Exército fortaleça a suas capacidades de guerra no mar e o estado geral de prontidão para combate”, alertando para o risco de “estados de guerra à porta de casa”.
Segundo estes dois generais,”aconteceram mudanças profundas nas disputas territoriais nas periferias do país, além de clivagens étnicas e religiosas. As tensões e os pontos quentes estão também em crescimento e o risco de caos e Guerra à nossa porta aumentou.”
Um texto, dizem os autores, “destinado a aumentar a consciência no EPL e no público para necessidade premente de um sistema de defesa aperfeiçoado e preparado para uma luta prolongada pela integridade territorial chinesa.”
O artigo destes dois generais é referenciado no South China Morning Post onde o observador militar Liang Guoliang afirma considerar “um acto muito raro” ver um comandante e um comissário político repartirem um artigo sobre estratégia de guerra.
Raro e, seguramente, preocupante. Não por serem dois, mas por um deles ser comissário político. Porque uma coisa é ter um militar a querer mais bombas, outra é ter o lado político a alinhar pelo mesmo discurso. E “uma luta prolongada pela integridade territorial chinesa”? Que quer isto dizer?

A China tem medo de ser invadida por quem? Pelos japoneses a tentarem equilibrar as contas? Pelos Filipinos que mal conseguem suster-se? Ou será que apontam a ameaças mais distantes?… Ou mais próximas… Ou nada disso?…
Naturalmente, não existirá nada pior para um militar do que uma carreira sem uma guerrinha que seja para ganhar umas medalhas a sério. Nada pior para um militar do que ter tantos brinquedos novos e só poder utilizá-los em exercícios. É como “coiso” e depois não conseguir “coiso”. Mas quando vemos o poder político envolvido ficamos preocupados. Pode não ser mais do que uma manifestação de força, ou uma manifestação de gases, no sentido arcaico de demonstração de poder dos Estados através do tamanho do seu exército. A cena fálica…. mas isto não afecta apenas chineses – faz parte da epidemia mundial de valores que consideramos como certos.
Ao mesmo tempo, a China prepara-se para celebrar em grande o 70º aniversário do final da II Guerra Mundial com um formidável desfile militar marcado para Pequim no dia 3 de Setembro. Dizem que as tropas há três meses não param de exercitar-se. Quais os convites endereçados a chefes de estado estrangeiros permanece incerto mas já se lê aqui e ali que várias potências ocidentais poderão não estar presentes e, muito menos, o conservador primeiro ministro japonês que terá sido convidado.
A ser assim, é pena. É pena que o mundo não consiga reunir-se para celebrar o fim de uma guerra, é pena que o fim de uma guerra seja celebrado com os preparativos para uma próxima, sabe-se lá onde ou porquê.
Claro que do outro lado temos uma Europa autofágica, cada vez a funcionar menos em bloco, ainda ignorante do que a crise grega significará, de facto, para a Comunidade, ameaçada pelas migrações do norte de África, pela tentativa de dissensão da Inglaterra e pelo terrorismo, o que constituem motivos suficientemente encorajadores para um realinhamento de forças no xadrez internacional. Mas é apenas isso, China? 7715P14T1
Seja qual for a razão, este toque a reunir da China “arautado” por estes dois generais no período conturbado que se vive, apenas serve para adensar climas e a consciência dos cidadãos, por muito preocupados que os dois generais estejam com a segurança. Esta chamada às armas pode apenas criar engulhos na relação da China com o resto do mundo e surge no sentido inverso do que os povos por todo o mundo clamam, ou seja menos armas, menos tensão, menos demonstrações de força.
Na minha modesta opinião de observador, a China tem algo a superar: A China tem de livrar-se do complexo de inferioridade. Em primeiro lugar porque não lhe dá saúde, depois porque às vezes transmuta-se em actos típicos de um complexo de superioridade com tons pouco garridos. A China tem de acreditar mais nela, e tem todas as razões para isso, no poder da sua cultura, da sua capacidade de relacionamento com outros povos, da sua sabedoria. Este complexo de superioridade manifesta-se, por exemplo, nesta necessidade de mostrar os brinquedos.
Mas convenhamos: A China levou nas trombas do mundo. Repetidas vezes. De vários lados. Obrigaram-nos a drogarem-se, invadiram-nos, partiram-lhes a casa, até lhes mudaram a forma de vestir… Foram ao fundo, emergiram. Estão num caminho completamente novo. Enfim… A China é como aquele puto que todos tínhamos na escola, a mula de carga, o tolo sempre alvo de “mimos” e “piropos”. Só que o puto cresceu, o “geek” ficou rico e os “bullies” batem-lhe à porta, sorridentes – agora querem quotas de mercado. Eu também me armava em bom. Honestamente… dá vontade. Mas temos de desmultiplicar. Todos. Temos de parar de mostrar a pilinha uns aos outros ou não vamos a lado nenhum. Cuidar da Terra e da nossa vida requer união e concentração absolutas. Requer acordos internacionais vastos, boas relações. Se continuamos a perder tempo não vamos lá.
O mundo pede uma China moderna e construtiva como tem vindo dando mostras que pode ser. Por isso, prefiro acreditar que estas ejaculações de militares frustrados, que não contribuem nada para o sossego das gentes, nem para qualquer formulação de harmonia ou progresso, sejam apenas ruído ou, pelo menos, agit-pop.

MÚSICAS DA SEMANA
Agitpop – “Stop Drop and Roll”
Yoko Ono – “Give Peace A Chance (Remix) 2005”
… Mas nada muda since 1969.
Aprecie a semana, caro leitor. É o que nos resta.

7 Jul 2015

Extremismo, o combate que falta

Três raparigas foram atacadas a caminho da escola, no Afeganistão, por dois homens numa motorizada que lhes atiraram ácido à cara. Duas delas estão em estado crítico

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]autoproclamado Estado Islâmico divulgou imagens de um massacre de 25 soldados sírios perpetrado por crianças e adolescentes, que terá ocorrido no anfiteatro romano de Palmira, na Síria. Segundo o jornal Público, o vídeo de quase 10 minutos mostra os prisioneiros a serem conduzidos, por extremistas adultos, para o palco do anfiteatro romano e feitos ajoelhar, mãos atadas atrás das costas. Os jihadistas dão então lugar a um grupo de jovens, aparentemente com idades entre os 10 a 15 anos. Estão armados com pistolas e a cada um é atribuído um dos 25 prisioneiros, que serão depois executados.

Neste fim-de-semana, o extremismo revelou, uma vez mais, como leva à prática de actos absolutamente hediondos. Faltam adjectivos para classificar este grau de loucura.

Do lado dos que tentam fazer frente aos extremismos, há um tema que parece unir alguns especialistas em terrorismo que se dedicam a opinar sobre o que é que os Estados – particularmente os ocidentais – devem fazer para travar ameaças como as que colocam o Estado Islâmico: o combate ideológico.

O combate ideológico não está a ser feito pelas principais potências – as que têm capacidade para travar militarmente o avanço do Estado Islâmico, por exemplo, ou de outros extremismos – escuta-se. A frase é catchy (diriam os anglo-saxónicos) e os especialistas repetem-na com preocupação.

A necessidade de se travar o combate ideológico – o terrorismo não é apenas alimentado pelo dinheiro de alguns financiadores, mas também, ou sobretudo, pelas ideias que o motivam – leva alguns autores a proporem campanhas suportadas pelas máquinas administrativas dos Estados – campanhas na comunicação social, apoio financeiro a muçulmanos que se opõem à Sharia e à osmose entre Estado e religião. É verdade que a crueldade das imagens que o Estado Islâmico vai colocando na internet potencia uma qualquer campanha contra os extremistas. A morte banalizada – sem qualquer conteúdo – não consegue justificar uma qualquer luta. Mas as palavras também contam. E nesta guerra das ideias, as mensagens contam muito. Bem como quem as tenta fazer passar.

Esta necessidade de combater a ideologia extremista fez capa, por exemplo, há quatro anos na The Economist. ‘Now, kill his dream’ (agora matem o seu sonho) escreveu a revista londrina na edição a seguir à morte de Osama Bin Laden. Mais do que a eliminação física de Bin Laden, era essencial aniquilar as ideias que a Al Qaeda parece defender.

No seguimento destas ideias, Ayaan Hirsi Ali, uma antiga deputada holandesa, escreve na mais recente edição da Foreign Affairs (Julho-Agosto 2015), que, à imagem do apoio financeiro, material e moral que Washington deu aos desalinhados do antigo bloco soviético, seria necessário uma estratégia semelhante de apoio aos muçulmanos – líderes religiosos, intelectuais – que procuram reformar o Islão por dentro. Hirsi Ali sabe do que fala. Nasceu na Somália e foi, ao longo dos anos, perdendo a fé na religião muçulmana. O Estado holandês concedeu-lhe asilo para fugir a um casamento arranjado, em 1992. Vive agora nos Estados Unidos onde expressa frequentemente as suas opiniões contra a mutilação genital feminina e o Islão. Ela parte da ideia – expressa por outros especialistas – de que falta acontecer ao Islão o processo de reforma religiosa que ocorreu na Europa, no Século XVII, e que opôs católicos e protestantes e que contribuiu para a separação formal da religião do Estado.

É difícil imaginar – como escreve aliás William McCants, antigo assessor do Departamento de Estado norte-americano na área do combate ao extremismo violento, numa resposta ao programa anti-terrorismo proposto por Hirsi Ali – que os Estados Unidos alinhem num combate que os colocará numa posição ainda mais difícil no mundo árabe. Por outro lado, o envolvimento de agentes associados a Washington no apoio a dissidentes – estudiosos do Islão ou religiosos moderados – que surjam na comunicação social propondo uma narrativa pró-ocidental pode ter consequências devastadoras para a imagem dos Estados Unidos, que seriam vistos como um Estado tomando parte numa guerra religiosa. Algo que a administração norte-americana não estará de todo inclinada a aceitar.

Independentemente das considerações geopolíticas e de um eventual envolvimento dos Estados Unidos – assuntos que pouco ou nada dizem às raparigas do Afeganistão ou às famílias dos soldados xiitas e alauitas que combatiam no exército de Bashar al-Assad –, o combate ideológico é, pois, uma necessidade crescente. Hirsi Ali teve o mérito de o procurar elevar a política de Estado.

7 Jul 2015

O grau de felicidade

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“Country Well-Being Rankings Report” para o ano de 2014 foi publicado a 26 de Junho deste ano. Tal como no anos anterior, este estudo baseou-se no “Gallup-Healthways Global Well-Being Index” de forma a apurar o grau de satisfação dos residentes de 145 áreas e países diferentes, fazendo esta edição o segundo ano consecutivo em que este relatório foi publicado.
Desta feita, foi o Panamá que obteve a primeira posição nesta compilação, tendo 53% dos seus residentes dado nota máxima no inquérito a três ou mais categorias diferentes. Pela sua vez, Hong Kong não consegui mais do que a posição 120, enquanto que Macau não chegou sequer a fazer parte dos países analisados.
Este “Global Well-Being Index” constitui então uma espécie de barómetro sobre as percepções dos indivíduos abrangidos relativamente à qualidade de vida em diferentes sítios e é na verdade o maior estudo do género realizado na actualidade. Esta última edição engloba 145 países ou regiões diferentes, incluindo um universo de 146 mil participantes em 2014. A informação está dividida em cinco áreas diferentes.
Além da óbvia pontuação geral obtida no estudo, queria ainda mencionar aqui algumas notas interessantes que observei no relatório. Primeiro, os residentes do Panamá obtiveram a pontuação mais elevada relativamente ao grau de motivação das suas vidas (60.5% – próspera) e quanto ao seu bem-estar físico (52.2% – próspero). Porém, no que concerne à qualidade das suas redes sociais e também das suas comunidades, a sua pontuação foi a mesma do que alguns dos outros inquiridos.
Em segundo lugar, Porto Rico, Noruega e Sri Lanka são os outros países que figuram no topo da tabela, tendo obtido as pontuações que se seguem:
• 63.3% dos habitantes de Porto Rico disfrutam de uma rede-social próspera
• 68.9% da população da Noruega tem uma situação financeira próspera
• 50.1% dos naturais do Sri Lanka consideram viver numa comunidade próspera

Em terceiro lugar, os países europeus são os mais prováveis de beneficiar de uma situação financeira próspera, sendo que nove dos 10 países com melhor classificação nesta categoria estão localizados no continente europeu. E no norte da Europa este facto é ainda mais acentuado, visto que dois em cada três residentes da Noruega (68.9%), Suécia (67.9%) e Suíça (66.1%) declaram gozar de uma situação financeira próspera. Singapura (52.4%) é o único país não-Europeu em que a maioria da sua população beneficia das mesmas condições.
Hong Kong e Macau devem tirar conclusões distintas deste relatório. No que diz respeito a Macau, e tendo em conta que o relatório nunca discute o território, não há comentários a fazer de momento. Mas, se desejarmos ver Macau incluído neste estudo no futuro, seria melhor que fossem feitas preparações antes que isso se verificasse. Tudo para garantir que Macau receba comentários favoráveis quando esta inclusão se tornar realidade.
Já quanto a Hong Kong, a fraca classificação registada neste estudo indica que os residentes da RAEHK se confrontam com inúmeras situações insatisfatórias. Como os problemas a ser combatidos com maior urgência, devíamos considerar os seguintes:
1. o preço elevado das rendas dos apartamentos, que fazem com que um cidadão normal não seja capaz de comprar um apartamento ou casa como residência pessoal (incluído no relatório na categoria referente à área financeira)
2. os pacotes de reforma não satisfazem as necessidades actuais dos reformados (categoria alusiva à comunidade)
3. os comerciantes envolvidos em importação paralela prejudicam o relacionamento entre os residentes de Hong Kong e os de Shenzhen (área social)
4. os longos horários laborais impossibilitam a realização de actividades lúdicas (motivação)
5. a pouca quantidade de terrenos disponíveis juntamente com a alta densidade populacional resultam numa fraca qualidade do ar, o que por sua vez afecta negativamente a saúde da população (saúde física)

Todavia, nenhum inquérito do género é perfeito, e este relatório não constitui excepção à regra, tendo limitações óbvias. Contudo, se atendermos a todas as reclamações aqui cobertas, não podemos também deixar de aceitar que, regra geral, este reflecte a realidade actual de uma forma correcta e fidedigna.
Mesmo que todas as insatisfações expostas venham a reduzir o grau de satisfação pessoal dos residentes da RAEHK, já faz tempo que tanto o Governo como a própria população local devem começar a elaborar estratégias de forma a combater estes problemas de uma forma eficiente. Vamos então continuar a prestar atenção ao desenvolvimento de Hong Kong de forma a acompanhar o progresso verificado nestas áreas, visto a tarefa não apresentar resolução fácil.

6 Jul 2015