E o amor?

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]amor, que já se tentou explicar na voz da literatura, da música, da arte e da ciência, gosta de se manter envolto em mistério. Por alguma razão que o conceito, talvez da mesma forma que o sexo, é um tópico de conversa desejado. Se não é amor no seu estado puro, fala-se bastante de relações humanas em geral. De como nos ligamos e desligamos dos outros, como nos mantemos ou como nos queremos alienar ou como podemos viver num mundo tão cheio de pessoas, que ao mesmo tempo é inundado pela nossa individualidade.
Perder-me em definições de amor talvez seja um processo sem sentido, porque, como qualquer outra emoção humana, há quem o viva de formas distintas em momentos distintos e em contextos culturais que moldam estas coisas românticas da nossa vida, de forma distinta. Acho que já faz parte do bom senso dos demais que existem vários tipos de amor. Focar-me-ei, portanto, no amor que interessará a esta sexanálise: o amor romântico.
O amor romântico é aquele que sentimos por alguém estranho a nós. O amor aproxima quem outrora foi um desconhecido mas que gradualmente se envolve nas malhas emotivas que nos tornam humanos. Esta forma de gostar de alguém, para além de pressupor companheirismo, amizade e compromisso, envolve sexo. A perspectiva moderna-naturalista trouxe (e ainda bem) uma visão alternativa do sexo, percebendo-o separado de tudo resto, como uma necessidade biológica, tal como comer e dormir (daí terem começado a surgir os tão convenientes amigos coloridos). Mas e o amor? Porque é que o acto de procriação está tão ligado a este sentimento, que uns sentem e outros dizem que não, mas que nos é impossível ficar indiferentes às suas insistentes formas sociais, discursivas e relacionais?
Apesar de existirem momentos onde o sexo e o amor são entendidos como mutuamente exclusivos, uma outra visão insiste na bidireccionalidade dos mesmos, e no seu constante sistema de alimentação, ou seja, sexo melhora o amor, e o amor melhora o sexo. Apesar de ser um sistema mediado por outras possíveis variáveis (nada no mundo é de tão directo efeito), os estudos mostram que, de facto, maior satisfação sexual, maior satisfação conjugal/relacional, e que das muitas fórmulas que tentam perceber como nos apaixonamos, o sexo está entre as prescrições para atingir o pico de sensação romântica. Não me parece totalmente descabido se pensarmos que sexo proporciona momentos de alto teor íntimo. Pessoas nuas, e por isso num estado de vulnerabilidade maior do que o normal, pessoas a quererem prazer e a oferecê-lo também. Se existe quem consiga ser especialmente egoísta no acto do sexo, o mais comum dos humanos tem uma missão altruísta, uma dedicação ao outro e do que o outro poderá sentir. Por isso o sexo, por mais preverso que possa ser percebido por camadas sociais mais púdicas, pode ser entendido como um acto de cuidado e de carinho que queremos oferecer a outra pessoa. Não é completamente à toa que são beijos, abraços e carícias que preparam a majestosa escadaria do orgasmo. Para além de que o ‘orgasmar’ em companhia, provavelmente, constitui um importante momento de revelação para si e para o outro. Mostram-se as manias, as caras esquisitas, os ruídos estranhos, todas aquelas coisas que acontecem quando se é atacado pela sensação de prazer e se perde o controlo sobre as coisas.
O amor e o sexo são amigos de longa data e disso a sociedade humana já entendeu. Se as representações de sexo já são complicadas de desconstruir pela negatividade que lhes é assumida, sejam pelos vocábulos que se utilizam ou pela simplicidade que lhe é negada, a discussão do amor encontra dificuldades muito diferentes. Se um é excessivamente negativo, o outro pode ser excessivamente positivo, ou vice-versa, porque há todo um mundo de perspectivas. Por isso misturá-los não é tarefa fácil, pelo menos dentro da dita diversidade. Porque no nosso íntimo, na nossa privacidade emotiva, há ideias de uma clareza tremenda. E isto há-de saber quem se apaixonou e teve o melhor sexo da sua vida.
O sexo é um acto de amor. Corrijo-me: o sexo pode ser um acto de amor (porque pode ser muita coisa, como tenho vindo a declamar ao longo de semanas). O sexo é um acto altamente social de possibilidade romântica porque constitui uma partilha e uma troca: de fluidos e de momentos. O meu lado hippie está neste momento a gritar pela uniformização e inclusão do amor no sexo. Óbvio que não se ama tudo o que se fode, mas, pelo menos, cuida-se e mima-se, nem que seja por umas horas somente. Se o amor está ausente, há um gostar simples e singelo. Se o amor atacou os corpos em contacto, bem-vindos ao momento mais espectacularmente belo e aterrador das vossas vidas.

10 Nov 2015

O desenvolvimento das economias emergentes

“Emerging markets are the financial markets of economies that are in the growth stage of their development cycle and have low to middle per capita incomes. Emerging markets possess a greater upside in the long term because of their strong economic growth. Specifically, they offer the best opportunity for higher returns and diversification. Emerging economies account for about two thirds of the world’s land mass-that’s a large part of the world that you can’t afford to miss out on!”
The Little Book of Emerging Markets: How To Make Money in the World’s Fastest Growing Markets
Mark Mobius,

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]desenvolvimento económico podia situar-se nos grandes mercados da Europa e América do Norte, mas nas últimas décadas surgiram atractivos emergentes na Ásia e América do Sul. As primeiras mudanças no poder económico global, uma mega tendência com efeitos directos no centro dos negócios começaram a dar-se. Mas enquanto as empresas se encontram a trabalhar para captar novos consumidores das regiões emergentes, as mudanças tecnológicas podem ser consideradas como outra mega tendência, que atinge todos os mercados e estão a transformar o consumo, numa experiência muito mais complexa, que exige novas respostas.
Tendo em consideração a aproximação ao novo cenário, o seu impacto nos negócios, as estratégias que as empresas estão a implementar e os casos de sucesso., a primeira conclusão que se pode retirar é de que a tecnologia não é um problema, e a título de exemplo, é de salientar que os países desenvolvidos e grande parte dos países em desenvolvimento registaram grandes progressos desde o inicio do nosso milénio na adopção de novos métodos digitais de comunicação, como telefones inteligentes ou Internet de banda larga.
A sustentabilidade ambiental é uma preocupação de longo prazo em muitos casos, que vão desde a necessidade de proteger as florestas tropicais amazónicas no Brasil e as preocupações sobre o aumento da intensidade de carbono na Índia e os altos níveis de poluição do ar e da água na China. Todavia, as ameaças mais importantes ao desenvolvimento económico apontam primeiro para a estabilidade económica e de seguida para as instituições políticas e sociais.
O aumento dos níveis da dívida, em particular, poderá produzir bolhas de crédito que eventualmente podem rebentar. É um facto também, que o crescimento da força laboral nos mercados emergentes irá abrandar à medida que as populações aumentem de idade, sobretudo na China e na Rússia, e se tivermos em consideração a pressão social por melhores salários, poderá esperar-se que os centros de produção se desloquem para locais de mão-de-obra mais baratos, ou que sejam realojados em mercados avançados da América do Norte e Europa. Daí o poder-se concluir que as instituições e as infra-estruturas necessitam de melhorar de forma significativa, em muitos países.
Os países do G7 têm os mercados plenamente desenvolvidos e mais importantes do mundo, que tradicionalmente têm dominado o poder económico e político mundial, e que é constituído pelos Estados Unidos, Japão, Itália, Reino Unido, França, Alemanha e Canadá. O grupo E7 é constituído pelas sete maiores economias emergentes do mundo, incluídos os BRIC, e que são a China, Índia, Brasil, Rússia, México, Indonésia e Turquia. É de prever que em 2030 situar-se-ão entre os doze maiores mercados do mundo. É de considerar os países do F7 ou de economias de fronteira, a partir de sete mercados pequenos e altamente dinâmicos que são a Nigéria, Colômbia, Peru, Marrocos, Vietname, Bangladesh e Filipinas. Este grupo tem rendimentos médios abaixo dos países do grupo E7, mas em muitos casos está a crescer mais rapidamente.
O futuro do poder económico global será disputado indiscutivelmente pelos actuais mercados emergentes. O grupo de países do E7 estava há vinte anos muito atrasado em relação ao G7, mas a distância encurtou-se consideravelmente e é de crer que em 2030, o grupo E7 será relativamente maior que o G7, em termos de tamanho das suas economias. Tendo por base estas perspectivas, as organizações estão a aumentar as suas operações nas regiões do grupo E7, uma estratégia conveniente, sem margem para dúvidas, mas que também poderá ser insuficiente se tivermos em consideração o longo prazo.
As empresas devem repensar as suas estratégias para mais além dos BRIC e do grupo E7, para procurar uma série mais ampla de oportunidades, e para tal existe o novo grupo F7. Trata-se de economias que pelo seu tamanho estão num nível imediatamente inferior ao do grupo E7 e dos BRIC, mas que continuarão a desenvolver-se nos próximos dez a quinze anos, e que se irão converter em grandes mercados de consumo.
As projecções de crescimento económico entre 2030 e 2050 para trinta e dois países que representam cerca de 85 por cento do PIB mundial, fazem antecipar que os países mais desenvolvidos, terão uma queda no seu crescimento, enquanto a maioria dos países em desenvolvimento e as economias emergentes aumentariam o seu crescimento. É de considerar também, que o rendimento médio “per capita” continuará a ser significativamente maior nas economias avançadas no fim da primeira metade do século, pelo que a actual separação com os países em desenvolvimento é demasiado grande para poder haver uma significativa aproximação nos próximos trinta e cinco anos.
A fim de analisar a partir de uma perspectiva holística as economias desenvolvidas e emergentes a empresa transnacional “PricewaterhouseCoopers”, líder prestadora de serviços nas áreas de auditoria e consultoria criou o denominado por “Índice ESCAPE2”, que combina vinte indicadores, em cinco dimensões, como o crescimento económico e estabilidade; progresso e coesão social; tecnologia das comunicações; instituições políticas, legais e regulamentares e sustentabilidade do meio ambiente. Quanto às economias do grupo E7, o índice identificou indicadores abaixo da média global no período de 2007 a 2013.
A China substituiu os Estados Unidos como a maior economia mundial em 2014 em termos de paridade de poder aquisitivo. Se for feita uma projecção, é de prever que o mesmo sucederá com o PIB à taxa de câmbio de mercado para o ano de 2030. É de prever que para 2030, sete das doze maiores economias do mundo provenham de mercados emergentes, do grupo E7. Seria desejável que 70 por cento das empresas tivessem pelo menos uma unidade global de negócios, com sede na Ásia antes de 2020.
É de esperar que o tamanho da classe média na região Ásia Pacífico, supere a Europa e a América do Norte, em 2015. É de prever que o grupo E7 superará o G7, em tamanho e poder aquisitivo (em termo de taxa de câmbio de mercado) em 2030. É de esperar que no prazo de cinco anos as economias de fronteira, as do grupo F7, sejam maior um terço. Os últimos anos foram penosos e a maior parte das empresas a nível global foram obrigadas a lidar com numerosos processos de melhoria da eficiência e contenção de custos para continuar a competir no mercado. No entanto, enquanto isso acontecia, o ambiente em que operam, mudou completamente.
A tecnologia tem transformado as relações, os clientes têm aumentado o seu poder, existem novos concorrentes, tudo acontecendo rapidamente, e se as empresas tivessem de escolher uma única constante, esta seria a alteração. Neste contexto, as empresas devem voltar a focar-se no crescimento, pois as peças chave do seu modelo de negócio, por vezes, não se encaixam bem, na forma a lidar com os novos desafios colocados pelo meio em que actuam.
A procura de crescimento tem levado as empresas a estar presentes em mais países, para expandir a gama de produtos, a ter mais canais, clientes, fornecedores e colaboradores, ao incorporar mais tecnologias e a fazer aquisições e alianças. Tudo isto gerou empresas maiores, mais complexas e que incorporam novos mecanismos de coordenação, que tendem a criar ainda mais complexidade.
Os negócios deixaram de ser simples, faz muito tempo, traduzido num mercado único para ser fornecido a partir da mesma área geográfica. Tudo mudou rapidamente e os negócios são internacionais. É comum que a expansão internacional se tenha realizado de forma acelerada, dando prioridade ao crescimento sobre a estrutura operativa e fiscal, criando um ecossistema complexo e difícil de gerir dada a abundância de empresas, organizações, estruturas e heterogeneidade de processos.
As empresas devem responder com mais rapidez e agilidade às contínuas mudanças do mercado, mas não têm muitas das vezes a informação necessária que necessitam para tomar decisões estratégicas com segurança, e tal acontece, porque os responsáveis pela tomada de decisões estão acorrentados ao enorme volume de dados, e carecem de informação rigorosa e útil que lhes traga um valor acrescentado aos negócios. É necessário que as empresas ao estabelecer-se em determinado mercado, e nomeadamente, nos países do grupo F7 possam contar com informação exacta, dinâmica, integrada e capaz de prever com rapidez o comportamento do mercado, devendo ser uma informação que seja partilhada por toda a organização e com um nível de alinhamento estratégico que exige o ambiente em que actuam.

10 Nov 2015

Homicídio numa Joalharia II

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 24 publicámos um artigo sobre a história de Miao Chunqi, um turista da China continental, espancado até à morte na sequência de um episódio de coacção ao consumo. O episódio aconteceu em Hong Kong, mais especificamente em Hung Hom. Depois da ocorrência deste crime o governo da Região Administrativa de Hong Kong decidiu acompanhar a situação.
Há dias o Observatório de Turismo de Hong Kong anunciou que iam ser tomadas medidas, de forma a proteger os interesses dos turistas. Aqui ficam alguns exemplos:

1. O Conselho da Indústria de Viagens divulgou o preço normal das viagens da China para Hong Kong. Se as agências forem obrigadas a anunciar o custo das viagens, haverá mais transparência. Os potenciais interessados, que possam consultar as diversas tabelas de preços, estarão melhor habilitados para fazer as suas escolhas. O número de viagens a “custo zero” pode, desta forma, ser reduzido.
2. As agências de Hong Kong ficam obrigadas a fornecer listas com os nomes dos turistas e dos responsáveis pelos grupos, antes da sua vinda, para escrutínio deste Conselho.
3. O Conselho apreciará cada lista e, se verificar que alguns nomes aparecem repetidas vezes integrando grupos diferentes, haverá razões para suspeitar que essas pessoas sejam o que se designa como, “turistas sombra”, indivíduos cuja função é pressionar as outras pessoas a comprar nas lojas para onde são levadas. Nesse caso o Conselho reportará estes nomes às autoridades continentais competentes, para que sejam tomadas medidas adequadas.
4. O Departamento Alfandegário de Hong Kong verificará o itinerário da viagem para prevenir casos de coacção ao consumo.
O comunicado adiantava ainda que o Secretário Para o Desenvolvimento do Comércio e da Economia, Greg So Kam-leung, se deslocará na próxima semana a Pequim, a fim de estudar com a Autoridade Chinesa para o Turismo, um conjunto de medidas que ajude a combater as más práticas que há longo tempo afectam o sector e permitem a coacção ao consumo.
Obviamente que esta deslocação vai ser de vital importância para a resolução do problema. Hong Kong não pode impedir a entrada de pessoas, só porque vêm cá com muita frequência. A cooperação do departamento chinês competente é necessária.
Mas será que estas medidas podem pôr fim à coacção ao consumo? De momento parece prematuro avançar com uma resposta, já que ainda estão em fase de preparação. O Observatório da Indústria Turística e o Governo de Hong Kong estão a trabalhar para a sua implementação. Não é, portanto, altura de discutir a sua eficácia.
Se olharmos para estas medidas com atenção, reparamos que não existe nenhuma alínea que se refira directamente à questão da reputação de Hong Kong. Mas, como parece que a estratégia adoptada pelo Governo e pelo Observatório aponta no sentido de pôr fim à coacção ao consumo, a reputação de Hong Kong fica automaticamente salvaguardada.
Como sabemos, a implementação deste tipo de medidas pede algum tempo. Não podemos esperar que medidas tomadas num dia tenham efeito imediato no dia seguinte. Mas aos poucos os efeitos fazem-se sentir e, por fim, a reputação de Hong Kong será reabilitada. No caso de Miao, houve graves danos, quer para a sua vida, quer para a reputação de Hong Kong. O caso está actualmente a ser julgado e, quando o julgamento terminar, o assunto estará encerrado.
No entanto, o mesmo não se pode dizer dos créditos de Hong Kong. É muito difícil criar uma boa reputação, mas é muito fácil destruí-la. Um dos assassinos de Miao é natural da China continental e o outro de Hong Kong. Como o caso ocorreu em Hong Kong, a cidade foi muito afectada. Se durante a visita do secretário Grey, a realizar na próxima semana, não forem tomadas medidas concretas para proteger a reputação de Hong Kong, a cidade continuará a ser afectada. A imagem que Hong Kong passa para o exterior não vai melhorar a curto prazo.
É provável que a forma mais eficaz de resolver a questão da coacção ao consumo seja voltar a ganhar a confiança dos chineses do continente. É preciso que fiquem a saber que este foi um caso isolado e, que a polícia de Hong Kong prendeu os suspeitos no próprio dia em que Miao foi atacado. Também devem saber que os suspeitos foram acusados de homicídio e que podem ser condenados a prisão perpétua. Esta informação pode, até certo ponto, abrandar a desconfiança e permitir que os continentais voltem a Hong Kong. Também funcionará como um aviso para que os prevaricadores se consciencializem de que estão a ser vigiados. 30_Minutes_or_Less_image Danny McBride and Nick Swardson
O próximo passo passará por implementar todas as medidas atrás mencionadas. Assim que o número de casos de coacção ao consumo seja reduzido a questão da reputação de Hong Kong estará salvaguardada.
O comércio direccionado a turistas é um negócio altamente lucrativo. É muito possível que algumas pessoas estejam dispostas a violar a lei e, que mesmo assim, continuem a participar nestes esquemas de coacção com mira nos lucros que daí podem advir. Acontece o mesmo com o homicídio e com a venda de drogas ilegais, existem leis que os condenam, mas estes crimes continuam a existir.
É possível que a tarefa mais importante do secretário Greg, durante a visita da próxima semana, seja deixar bem claro que o governo de Hong Kong encara muito seriamente o caso de Miao, para além, como é óbvio, de tratar das medidas conjuntas para combater este tipo de problemas. A menos que e, até que, o governo de Hong Kong restaure a confiança dos continentais, a reputação de Hong Kong não poderá ser reabilitada a curto prazo. Se o afluxo de turistas do continente diminuir, não haverá dúvida que a corrente de turistas de Hong Kong para Macau também será reduzida. Podemos assim concluir que, quer a China, quer Hong Kong, quer Macau, acabarão por sofrer os efeitos negativos da coacção ao consumo.

Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau

9 Nov 2015

Acima de tudo a liberdade

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] providência cautelar apresentada pelos advogados de José Sócrates é uma legítima medida de defesa do seu constituinte; a decisão judicial de impedir as publicações do grupo Cofina de falarem sobre o “caso Sócrates” coloca sérias reservas sobre o direito à liberdade de informação e tem implícito um princípio de censura que é inaceitável. shop-around-the-corner-1
Não queria sobre isto deixar qualquer hesitação: acima do meu próprio gosto ou desgosto pelo conteúdo das notícias e a sua forma, está a liberdade de informação e expressão. Sucede que eu sei o que é a censura prévia, por experiência directa, tendo tido artigos censurados e livros proibidos antes do 25 de Abril. 

A liberdade de expressão é em primeiro lugar para aquilo de que não gosto

Como na célebre Primeira Emenda da Constituição americana, o direito à liberdade de expressão faz-se exactamente para proteger aquilo de que não gosto. Eu não gosto que se bata em quem está em baixo, não gosto de campanhas contra pessoas, nem que se use amálgamas, factos sem enquadramento, condenações antes do julgamento. Mas uma coisa é não gostar de qualquer destas coisas, outra é proibir que outros, no exercício da sua liberdade de expressão, entendam que é legítimo fazê-lo, por causas que são suas, ou porque entendem que assim estão a lutar contra a corrupção e a travar um combate cívico. Ou porque não gostam da pessoa A, ou porque não gostam da política B, ou porque consideram que valem mais coisas do que aquelas que eu penso valer. O julgamento ético ou profissional (sobre a qualidade do jornalismo) é uma coisa, outra é a censura prévia. 

O exemplo que não vem de cima

Se o jornal e os seus jornalistas estiverem a cometer crimes, então que sejam punidos por isso. Se existe um crime de violação de segredo de justiça, os seus responsáveis devem ser por ele punidos, ainda mais se se verificar que se está a abusar da figura de se ser “assistente do processo” para os jornalistas obterem informações que violam as obrigações que têm para o serem. A verdade é que o exemplo não vem de cima, com um ministro deste governo breve a ser apanhado em flagrante delito de, enquanto director da Polícia Judiciária, passar informações aos jornalistas. Pelos vistos isso não afecta o currículo necessário para se ser ministro de uma área tão sensível como a justiça. 

A liberdade permite o abuso…

Porém, a decisão judicial cria o absurdo de todas as publicações do grupo Cofina estarem proibidas de falar do caso Sócrates enquanto as de quaisquer outros grupos de comunicação têm liberdade para o fazer. Além disso, o efeito é instituir uma censura prévia que torna um crime qualquer informação, mesmo que seja mais que justificada pelo interesse público. O facto de publicações como o Correio da Manhã terem publicado notícias especulativas e que o interesse público não justifica de todo – um exemplo é a conversa trivial entre Sócrates e Guterres que não devia sequer ter sido transcrita como escuta (e infelizmente muitas outras existem do foro pessoal e íntimo que vão acabar por sair cá para fora) –, pode fragilizar o órgão de comunicação, mas não justifica a medida judicial. 

…desde que não seja crime

O Correio da Manhã, que é o principal alvo da providência cautelar, é em parte, insisto em parte, feito pelo modelo da imprensa tablóide. Mas isso não implica, como aliás já o tenho escrito várias vezes, que não seja muitas vezes nessa imprensa menos convencional que se encontram informações de genuíno interesse público que a imprensa “de referência” hesita em dar, muitas vezes pelas piores razões. Porém há um passo jornalisticamente dúbio entre notícias, mesmo puxadas para a especulação, e uma campanha contra a pessoa.
É verdade que se soube através do Correio da Manhã de algumas coisas sobre o comportamento de José Sócrates que estão para lá do processo e que aí o jornal cumpriu a sua obrigação jornalística. A investigação que fez ao trem de vida de Sócrates quando este esteve fora de Portugal denunciava um facto relevante: que este vivia muito acima dos meios que tinha ao seu dispor e isso numa figura pública implica uma justificação. Sócrates nunca se retirou da vida política activa e isso tornava-o objecto de um escrutínio público, independentemente de se saber se tinha ou não cometido qualquer crime. 

Os seis telefones 
Mas, depois, o Correio da Manhã não se tem limitado a publicar informações retiradas do processo Sócrates, usa-as para “sugerir” determinadas conclusões. Infelizmente está a duplicar aquilo que muitas vezes é uma técnica usada por maus investigadores quando não encontram verdadeiras provas. Por exemplo, numa gaveta num armário ao lado da mesa em que estou a escrever eu tenho cerca de 10 telemóveis, todos os que usei na vida a começar por um grosso Nokia que era o state of the art muitos anos atrás, e vários que se lhe seguiram. Um comprei-o no estrangeiro, porque me esqueci do carregador, outros que se foram substituindo uns aos outros. Presumo que mais de metade deles estão operacionais, se os carregar devidamente e encontrar chips actualizados. Significa isso que os estou a usar para dificultar a vida às escutas policiais e organizar actividades criminosas? Se achasse que elas eram indevidas e abusivas, podia ser, mas mais do que isso é pura especulação. Por isso não sei se Sócrates ter seis telemóveis é relevante ou não, não sei se os usa todos ao mesmo tempo ou não, e só saberei se se passar além do número de telemóveis para saber se existe no processo mais do que essa constatação de facto. 

Não há necessidade 
O Correio da Manhã não precisa de nos convencer sobre as malfeitorias do eng. Sócrates – não me pronunciando eu sobre se essas são as de que é acusado criminalmente –, mas outras de vária natureza, de carácter político ou de abuso do poder quando era primeiro-ministro, pelas quais assino eu por baixo sem precisar das fugas de informação do jornal. Por isso tudo é desnecessária a campanha do jornal, embora eu esteja na primeira fila para defender, a meu contragosto, o direito de a continuar a fazer.

José Pacheco Pereira, na Sábado

9 Nov 2015

Os direitos dos portadores de passes mensais

Exmo. Senhor Dr. Carlos Morais José
Ilustre Director do Hoje Macau,

Sou detentor de passe mensal de um Parque de Estacionamento Público e, com enorme surpresa, fui informado telefonicamente por uma funcionária da empresa que gere o parque de estacionamento, que o meu direito ao dito passe deixará de ter efeito a partir de Janeiro p.f..
Considerando as notícias que fui lendo na comunicação social, parece-me tal comunicação sem fundamento e abusiva, sobretudo porque:
1- Não se trata de lugar fixo, mas apenas de garantia de um lugar.
2- Sendo portador de um dos primeiros passes emitidos por esse Parque, isso autentica a antiguidade do meu direito.
3- Tomei conhecimento pelo Hoje Macau de 19 de Outubro p.p. que, apesar da aprovação do debate sobre os passes mensais na AL, muitos dos deputados que pediram a palavra mostraram-se contra o término dos passes mensais, evocando os interesses dos residentes que já usufruem da medida.
“Não podemos tirar esse direito adquirido pelos utentes. Em 2012 criou-se uma lei que tirou os direitos aos mediadores (imobiliários) e sabemos que na altura votámos a favor da revisão da lei, mas o que visa este debate? Tem um objectivo contrário que é o de retirar direitos adquiridos pelos nossos residentes, por isso não apoio”, apontou Tsui Kwan.
4- Na sua edição do dia 29 de Outubro p.p., o Hoje Macau noticia em sub-título: DEBATE MANTIDOS PASSES MENSAIS. LEI PODE VIR A SER ALTERADA e continua:
O Secretário para as Obras Públicas e Transportes confirmou ontem na Assembleia Legislativa que vai mesmo manter em funcionamento os passes mensais emitidos até 2009, garantindo que “a curto prazo” não vai mudar a lei, mas que poderá ponderar alterações no futuro.
5- Do mesmo modo, o jornal Ou Mun de 29 de Outubro, noticia igualmente que os passes mensais não serão cancelados a curto prazo.
6- Saberá V.Exa. que, como cidadão, servi e sirvo Macau sem nunca me ter “servido”de Macau. Assim, não posso deixar de manifestar a maior das perplexidades e mesmo desconfiança por uma funcionária do referido Parque, me ter informado de algo que é contrário a todas as decisões.
Os direitos dos cidadãos são sagrados e crente nos valores da cidadania, em detrimento dos da ganância, oportunismo e lucro fácil à custa de direitos alheios, lutarei com as armas que tenho: a razão e a transparência da verdade. Gostaria, assim, que este assunto fosse alvo de informação clara por parte das autoridades, para que os cidadãos possam saber dos direitos que lhe assistem.
Com os melhores cumprimentos,
António Conceição Júnior

6 Nov 2015

O caso do caso

[dropcap style=’circle]C[/dropcap]laro que importa perceber em que circunstâncias morreu Lai Man Wa, directora-geral dos Serviços de Alfândega, titular de um alto cargo do território e com funções particularmente delicadas. Importa perceber porque é um assunto do interesse público. Por ser do interesse da população, fez bem o Chefe do Executivo em chamar os jornalistas para uma conferência de imprensa sobre o assunto, mesmo que essa conferência não tenha sido mais do que uma declaração, sem direito a perguntas e a respostas. Mas a convocatória para esta conferência de imprensa foi a única coisa que Chui Sai On fez bem no modo como geriu, em termos de comunicação, a morte de Lai Man Wa – o Chefe do Executivo quis antecipar-se a boatos.
Não vale a pena sequer recordar os detalhes das primeiras informações oficiais divulgadas apenas quatro horas depois da descoberta de um corpo não imediatamente identificado na casa de banho pública do jardim dos Ocean Garden. Desde o caso Ao Man Long que, muito provavelmente, o comum mortal de Macau não prestava tanta atenção aos pormenores das notícias, que reproduz com rigor nas conversas reais e virtuais que vai tendo sobre o assunto. Porque se trata de uma questão de interesse público, o público interessou-se.
O interesse do público não terá sido, no entanto, aquele de que o Governo estaria à espera.61115P21T1 Bastou a divulgação de dois ou três detalhes da morte de Lai Man Wa para que a desconfiança se tornasse generalizada: parece não haver vivalma que não tenha ficado de pé atrás com as declarações do Governo sobre a matéria – declarações estas que, admito, poderão corresponder à mais cândida verdade e serem de um enorme rigor científico. Mas a desconfiança não torna o caso mais simples.
Há um caso dentro do caso Lai Man Wa. O caso Lai Man Wa, que continua a suscitar pedidos de investigação aprofundada, é um; depois, há a desconfiança em relação à palavra do Governo, dos governantes e das autoridades policiais – uma desconfiança que não foi mantida em sussurro e, por isso mesmo, levou a uma nova conferência de imprensa e à revelação de vários detalhes sobre o que aconteceu, sem que tal tivesse, de modo algum, contribuído para serenar os ânimos, ou seja, para tornar toda esta história mais convincente.
O caso Lai Man Wa, independentemente do que ainda seja apurado, é preocupante: é de uma vida que estamos a falar e é, além disso, a vida de alguém que jurou servir o território.
O caso dentro do caso, de uma natureza diferente, também deveria levar os dirigentes da terra a dois minutos de reflexão, por ser revelador de duas realidades não menos chatas para quem governa a terra, sobretudo nos tempos que correm e com as tendências que chegam de Pequim para este Outono/ Inverno:
1) O Governo não domina a arte da comunicação. Não sabe fazer a filtragem que é essencial para que seja transmitida a mensagem correcta. Não sabe escolher o tempo certo para falar. Diz de mais para depois dizer de menos. Não é uma novidade. O caso Lai Man Wan só veio provar que se trata de um problema crónico.
2) Muitas das pessoas que vivem em Macau não acreditam na boa-fé do Governo, porque não acreditam na palavra dele. É nos momentos críticos que se testa a relação dos que mandam com os que são mandados. O caso dentro do caso Lai Man Wa não trará ninguém para a rua, não será motivo para manifestações, mas é mais uma pedra num sapato que há muito se tornou apertado.

6 Nov 2015

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA | Balanço a Meio dos Mandatos

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] Assembleia Legislativa retomou os trabalhos a semana passada. Nos próximos dois anos, até ao final dos actuais mandatos, é possível que os deputados discutam com maior entusiasmo os assuntos que venham a ser debatidos na Assembleia. Antes das eleições para a Assembleia Legislativa, em Setembro de 2013, a comunidade encontrava-se surpreendentemente serena e não existia, na altura, nenhuma controvérsia assinalável. O clima eleitoral que se viveu também não foi particularmente acalorado, já que os partidos aceitaram reduzir os temas controversos em debate. Durante as eleições a maioria das formações políticas lançou diversos slogans populistas e fez imensas promessas ao nível de um maior bem-estar social. O Festival do Meio do Outono desse ano foi especialmente jovial, com ofertas de presentes e distribuição de refeições. A população estava feliz. aproveitando as benesses que lhe eram oferecidas. Por outro lado, o Conselho Eleitoral e o Comissariado Contra a Corrupção não tinham muito em que se ocupar.

Cerca de duas semanas após a eleição, a Sociedade de Transportes Públicos Reolian anunciou a cessação de actividade. Este facto, juntamente com a proposta de Lei, –  “Regime de garantia dos titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos a aguardar posse, em efectividade e após cessação de funções” causou grande preocupação na comunidade. Dois anos depois, a imagem da Assembleia como “figura decorativa” permaneceu inalterável, com uma Oposição mais ou menos alinhada com o Governo. Ou pelo menos, desenvolvendo um tipo de acção pouco clara que nunca afecta quem está no poder. Na semana de abertura dos trabalhos da Assembleia Legislativa, a proposta de debate da Lei da Habitação Económica foi votada. Os deputados da oposição fizeram declaração de voto, ao passo que os deputados que apoiavam a proposta não a fizeram. Quererá isto dizer que votar a favor é apenas uma jogada regulamentar que dispensa qualquer sustentação? 61115P22T1
Nos últimos dois anos, o descontentamento público tem vindo a aumentar e os deputados dificilmente conseguem cumprir as promessas que fizeram durante a campanha eleitoral. No que diz respeito ao projecto de “todas as pessoas passarem a ser accionistas da indústria do jogo”, não houve desenvolvimentos assinaláveis. Não se registaram avanços democráticos e a Assembleia tornou-se cada vez mais esvaziada de poder, no seguimento da revisão do Regimento da Assembleia Legislativa. À medida que a activação das audições se torna mais rigorosa, a Assembleia Legislativa encontra-se cada vez mais no papel de “figura decorativa”. Volvidos dois anos, os cidadãos de Macau devem estar conscientes da importância do seu voto. Devem ponderar seriamente nas palavras e nos actos dos candidatos à Assembleia Legislativa, de forma a eleger deputados verdadeiramente empenhados em servir a comunidade e, não apenas, em fazerem-se eleger. Se os eleitores votarem sem grande critério, como tem sido habitual, o resultado das eleições, que se efectuarão daqui a dois anos, será o mesmo das edições anteriores. Desta forma o desempenho da Assembleia Legislativa não terá mais qualidade, já que os deputados eleitos também não a terão.
Como a proposta de reforma constitucional para 2017 não foi aprovada em Hong Kong, o desenvolvimento constitucional fica congelado. Da mesma forma em Macau, quer os parâmetros constitucionais, quer a metodologia para a composição da Assembleia Legislativa não terão qualquer hipótese de sofrer alterações a curto prazo. Segundo a actual metodologia para a composição da Assembleia Legislativa, os deputados eleitos por sufrágio directo estarão sempre em desvantagem. No entanto, isto não quer dizer que sejam totalmente impotentes, porque as suas lutas na Assembleia Legislativa também existem cá fora.
A proporção de deputados eleitos por sufrágio directo em 2013 é semelhante à actual. Como os deputados eleitos pela Associação Novo Macau trabalham em conjunto com esta Associação, os temas em discussão na Assembleia Legislativa resultam, frequentemente, em acções sociais com resultados positivos. Na medida em que estes deputados têm apoio e reconhecimento públicos, a frente maioritária da Assembleia Legislativa não ousa usar o voto para decidir sobre todas as matérias. Contudo, desde a altura em que surgiram problemas internos na Associação Novo Macau, o equilíbrio de poder na Assembleia Legislativa foi minorizado. Não importa que os deputados da oposição gostem ou não de ser classificados como “oposição fiel”, o que é um facto é que a actual situação faz jus ao nome. Em Julho de 2009, o jornal Southern Metropolis Daily, publicou uma entrevista a dois deputados da Associação Novo Macau. Na entrevista os deputados declararam expressamente a vontade desta formação política em assumir o papel de oposição na Assembleia Legislativa.
Não existe esperança para Macau, a menos que se abrace o caminho da reforma constitucional, aumentando os assentos dos deputados eleitos por sufrágio directo e, também, promovendo e ajudando a melhorar, a consciência cívica da população. Os pontos acima referidos influenciam-se e potencializam-se mutuamente. Em primeiro lugar, será possível, para as eleições de 2019 à Assembleia Legislativa, lutar para obter mais de 50% de lugares ocupados por deputados eleitos por sufrágio directo, com a condição de que o actual número de assentos não seja alterado? Em segundo lugar também é crucial a revisão da Legislação Eleitoral da Assembleia Legislativa e a implementação de medidas eficazes para combater a corrupção durante o processo eleitoral. Por último, é importante encorajar mais pessoas a candidatar-se às eleições directas, porque “juntos somos mais fortes”. Actualmente, pessoas vindas de diversos sectores estão a organizar-se em conjunto tendo em vista as próximas eleições. De entre estas, algumas concorrem às eleições na sequência das suas carreiras, ou por ser esse o seu sonho, ao passo que outras o fazem para salvaguardar os seus interesses pessoais. Seja como for, o processo eleitoral vai ser seguramente “distractivo”!

6 Nov 2015

Trabalho de casa

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]final a tal “Uber” tem rosto, ou melhor dizendo, “rostos” – é feita de pessoas, para as pessoas. Contudo não eram sorridentes, estes rostos da Uber. Longe disso, pois eram os rostos de quem tinha acabado de bater de frente com essa realidade singular em tantos aspectos que é Macau. Em suma, é gente que vem desse sítio que não é Macau, também conhecido por “resto do mundo”. Numa conferência de imprensa realizada esta terça-feira, os responsáveis da plataforma digital de aluguer de veículos com motorista privado vieram esclarecer que estão a operar legalmente no território, e que não vieram trazer para cá o seu “circo” – operam com empresas de transporte e outras agências já estabelecidas em Macau, e devidamente licenciadas. Posto isto, consideram “inadequado” o comportamento da Polícia de Segurança Pública, que na semana passada autuou dois motoristas da companhia em 30 mil patacas cada, e ainda apreendeu os veículos. Os responsáveis da Uber afirmam que estão em vias de apresentar queixa das autoridades juntos dos tribunais, e até do CCAC, e concluíram garantindo que “fizeram o trabalho de casa”, antes de se virem estabelecer em Macau. Será que fizeram mesmo? Bem vindos à RAEM, e boa sorte, pois vão precisar dela.
Os tipos da Uber que vimos naquela conferência de imprensa eram bem janotas, por sinal. Vê-se que é malta que foi muito para lá da escolaridade mínima obrigatória, com uma noção sóbria moderna de moda, e sem uma única cicatriz visível, quanto mais uma pala no olho e uma perna de pau. Cheguei a pensar que a Uber era obra um único adolescente norueguês maroto, que dirigia uma actividade económica paralela da cave da sua casa em Tromsø. É normal, esta minha confusão, pois as nossas sempre zelosas autoridades garantiram que a Uber “é ilegal”, e lembrei-me de outras plataformas digitais, neste caso o Napster, ou mais recentemente o PirateBay. Nestes dois exemplos que referi as “vítimas” eram músicos, actores de cinema, escritores e outros que viviam da criação intelectual e artística, que por culpa da partilha de ficheiros digitais contendo o seu trabalho, e sem receberem qualquer compensação inerente aos direitos de autor, eram depois obrigados a explicar aos filhos que já não iam mais comprar uma casa de praia em Malibu, e teriam que se contentar antes com um rancho em Hacienda, na Califórnia. Triste, tão triste.
As “vítimas” da Uber são os taxistas, essa classe que peleja dia-a-dia pelas ruas da cidade, e que luta, que sofre, constantemente exposta aos perigos da selva de cimento. Pensam que é fácil andar a evitar os tipos e as tipas que se metem à frente do carro, a pedirem que os transportem em troca de uma mísera tarifa estipulada por lei? Mas confesso que demorei a ligar os pontos, e não entendi como é que um serviço do tipo da Uber ia ser um problema, tratando-se de mais uma alternativa numa cidade congestionada, e onde a população e turistas se queixam da falta de táxis QUE OS ACEITEM LEVAR (não confundir com “número insuficiente de táxis”) – é porque têm mais que fazer, que bom para eles, benza-os o Buda. Sempre que comentava o assunto com alguém, era comum ouvir algo do tipo “sabias que uma licença de táxi chega a valer dez milhões de patacas”? Inicialmente pensei que estivessem a mudar de assunto, mas encaixando as peças, sendo a final o veredicto de que a Uber é ilegal “porque não é legal”, Eureka!, fiquei logo esclarecido. Foi como se tivesse uma epifania, revelada num brilho de luz verde em cima de capote preto pelos santos Dimas e Simas, o bom e o mau ladrão, respectivamente.
Para entender isto melhor, é preciso saber as regras do “legal/ilegal”, que ao contrário do que se possa pensar, não depende de todo de nenhum código ou legislação avulsa – muitos dos nossos deputados sabem-nas de cor, e é por isso que são deputados. O que não é legal e não vem regulado por, casos da Uber e do referendo civil do ano passado, só pode ser ilegal. Por outro lado a especulação, tanto a imobiliária como o fermento de banqueiro que eleva uma licença de táxis a dez milhões de “caricas”, não é em rigor proibida por lei, por isso “é legal”, e até se recomenda. Dominando essa tabuada se somar e sumir, fica mais fácil depois entender a outra lógica vigente: a Uber não é uma sociedade comercial registada no território, e por isso no estrito cumprimento da lei, não pode operar. Ponto. No entanto a “Dore”, que operava um esquema do tipo de pirâmide, e que se especula ter ramificações que se estendem até ao crime organizado, é porreira, porque dá massa à malta, é uma impressora de notas de mil! E se não der, podem sempre fazer queixa ao Governo, filho e pai, para “fazerem valer os vossos direitos”. Yupi!
Queria terminar elogiando a prontidão e eficácia com que as autoridades saíram para o terreno para deter as intenções da Uber, com um empenho e dedicação que se vêem habitualmente no combate a células terroristas, daquelas que violam avozinhas e virgens. Por isso só se pode explicar o insucesso em apanhar os taxistas infractores, e dos quais choveram e chovem queixas sem parar há vários anos: eles seguem um coelho branco apressado até à sua toca, enfiam-se lá dentro e vão parar ao País das Maravilhas, onde a polícia não consegue entrar (porque não é legal, e por isso…). Uma vez lá chegados, cobram mil patacas para levar a Alice até ao palácio da Rainha de Copas. Quando esta manda “cortar-lhes a cabeça”, há logo alguém que interfere, recordando que “uma licença de táxi chega a valer dez milhões de patacas”. Fizeram mesmo o trabalho de casa, senhores da Uber? Desconfio que até faltaram à aula, isso sim.

5 Nov 2015

Macau, Um Visão Metafísica

POR AURELIO PORFIRI

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m mais do que uma ocasião tive oportunidade de falar sobre a minha visão de Macau. É evidente que tenho uma ligação a esta cidade, mesmo que algumas pessoas pensem que o meu olhar crítico revela ingratidão ou quaisquer outras razões insondáveis. Todos temos o direito de opinião, mesmo que essa opinião não tenha uma aparente ligação a factos concretos.
Na verdade, tenho uma teoria sobre Macau: esta cidade deve ser entendida, não do ponto de vista materialista, mas do ponto de vista metafísico. E com isto quero dizer exactamente o quê? A Enciclopédia Filosófica Routledge apresenta a seguinte definição de Metafísica:
“A Metafísica é uma disciplina da Filosofia. Possui um campo de estudo alargado e caracteriza-se por duas análises fundamentais. A primeira pretende levar a cabo uma investigação, o mais detalhada possível, sobre a natureza da Realidade: haverá princípios que se possam aplicar de forma constante ao Real, a tudo o que existe? – se nos abstrairmos da natureza particular de todas as coisas que as distinguem umas das outras o que é que podemos ficar a saber sobre cada uma, baseando-nos apenas no facto da sua mera existência?

THE LAST EMPEROR, director Bernardo Bertolucci on set, 1987, (c) Columbia
THE LAST EMPEROR, director Bernardo Bertolucci on set, 1987, (c) Columbia

A segunda análise pretende revelar a essência do Real, dando frequentemente respostas que contrastam vivamente com o nosso entendimento empírico do mundo. Entendida em função destas duas questões, a Metafísica relaciona-se de perto com a Ontologia, que se interroga sobre a questão da natureza da existência (do Ser) e também sobre as diferenças fundamentais entre todos os seres.”
E em que sentido é que esta definição se aplica a Macau? No sentido em que, para entender a estrutura profunda de uma entidade, é necessário ir além da experiência do dia a dia; no caso de Macau a estrutura mais profunda é o conceito platónico de fusão entre o Oriente e o Ocidente, que efectivamente permanece mais como uma ideia metafísica do que como uma realidade palpável.
Muito poucas pessoas que tenham vivido em Macau poderão afirmar que este encontro de culturas se realizou em pleno, existem demasiadas diferenças de perspectiva sobre a vida, para permitir que uma fusão cultural seja bem sucedida. Não nos podemos esquecer que, quando os ocidentais vieram inicialmente para Macau tinham dois objectivos em mente: fazer negócio e converter as pessoas ao Catolicismo. Nenhum destes propósitos requer um encontro com a população e com a cultura local numa base de igualdade. Se os missionários quiseram converter a população à mensagem de Jesus foi porque acreditavam que esta mensagem salvadora podia proporcionar o que nenhuma outra cultura, fora do cristianismo, podia. Isto não quer dizer que depreciassem outras culturas. É sabido que missionários como Matteo Ricci, ou Alessandro Valignano, tentaram compreender a cultura chinesa. Mas, em última análise, o objectivo era a evangelização da população chinesa.
Ver Macau como um local onde o Ocidente e o Oriente se encontram é certamente uma ideia apelativa e, tenho a certeza que, em termos metafísicos, é muito interessante e com potencial para ser explorada. Mas, por favor, não usemos esta entidade metafísica para representar uma realidade que, nunca o foi, não o é, e pelo caminho que a cidade está a levar, provavelmente, nunca o será.

De Aurelio Porfiri

4 Nov 2015

Valerie a Týden divů, Jaromil Jires, 1970

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]alerie… é um filme que permanecerá sempre como algo de íntimo. Pode pensar-se que mais ninguém viu este filme e que aquilo que pensamos que ele é não passa, afinal, de um grande engano ou de algo que nos aconteceu na florescência da adolescência. Housu, de Nobuhiko Obayashi, também é assim – partindo do princípio que existe e que não é apenas uma alucinação.
Valerie… é a prova de que existem vampiros – e não apenas no cinema – e de que os padres e a religião são uma influência perniciosa para o crescimento. Assim, é um filme que sublinha um tipo de credibilidade. No que diz respeito ao crescimento e à função mágica da inocência estou preparado para acreditar mais neste filme que em qualquer outra fonte.
Seria tentador repetir algum texto que aqui já se ofereceu sobre a Nova Vaga checoslovaca mas não seria mais do que isso, uma repetição. Chegue recordar que na Checoslováquia se fizeram alguns dos mais interessantes filmes europeus dos anos 60 e 70.
Parte dos nomes mais conhecidos deste saboroso cinema já por aqui passaram, Jan Svankmajer (a propósito de um filme de 1994, Fausto), Vera Chytilová (o delicioso, voluptuoso, surrealista Sedmikrásky/Daisies, 1966) e Juraj Herz (o inquietantemente actual Spalovac mtrvol/The Cremator, 1969). gPWO7QIhpR-Zz3ZuLMe34T6RFgKkTVkXDGMRnh20qmLxSv-0EPI6-0qpTcdasvtVHPEdLjZ7lu06W1ZNBbaaMCMRgMAKppdZx4oFvDDkQhNJ-E6ivQmkwMGtfn5_gHYjvE3gkEYJRDXCsT-n6qAtaZrHhCMWrdCG8JEQnTiU4TLXeHp6es2xX_cH=s0-d-e1-ft
Lembrar que, para além dos filmes em cima indicados, o hilariante The Firemen’s Ball, de Milos Forman, o intrigante Closely Watched Trains, de Jiri Menzel e o extraordinário Marketa Lazarová, de Frantisek Vlacil (talvez o filme cujo desconhecimento geral mais me espanta) são dos anos 60, serve como alerta suficiente para a riqueza do cinema checoslovaco desta época de aberturas e repressões. Jan Svankmajer estava ainda a fazer apenas as muitas curtas metragens que o tornaram famoso e que não terão deixado de marcar toda esta geração. A sua primeira longa metragem, Alice, é de 1988.*
Valerie é a rapariga de 13 anos a cujo crescimento assistimos. O aparecimento da sua primeira menstruação marca o início de uma viagem em que ela se vê assaltada pelo mundo, num ambiente pagão e surrealista onde o sangue que os vampiros desejam tem uma marca central para além da marca da sua entrada no mundo adulto.
A jovem pende mais para a chegada de um grupo de actores que para a chegada (ansiosamente esperada pela erótica avó, fria como a neve) de um grupo de missionários. Esta avó, atraente lúbrica penitente, faz a ponte entre o universo virginal da jovem Valerie e o interesse material, sexual e monstruoso da classe clerical que invade a aldeia e a assedia constantemente. f0OnPMfTZtccOPpSuXQqlhlDqbzK-rXrBvfmet3vgVzEzyazOpycOSbo6QoYMg0SYmvM1vLfF5UvrViPaiuYv1JYt4ZVw437ng_-YqP-71-38qM4xqMJaB_B8OWxDPKTjWHkNuvFUYyo3sbTIkrOiVZ20ZxMwyp5UHY=s0-d-e1-ft
Muitos dos mistérios que se tecem ao longo do filme não alcançam resolução e esta fragmentação narrativa é uma das suas atracções. Aparentemente, os saltos e desvios que no filme se notam reproduzem os que se lêem no livro de Vitezslav Nezval em que aquele se inspirou.
De que serve saber quem é o verdadeiro pai de Valerie ou como é que esta sobrevive à fogueira a que o padre que a tenta molestar a condena, quando o que verdadeiramente desejamos é que Valerie olhe para nós de frente e nos assegure de que para lá do mal está a sua inviolável donzelice. No fim, a figura da pequena jovem sai vencedora de todas as ameaças vampíricas e clericais à sua integridade.
A opção onírico-vampírica que anima o filme de Jaromil Jires – seguindo uma tradição narrativa popular estabelecida no cinema da Europa de Leste que os vários regimes comunistas não viam como ofensiva – torna-se mais dolorosa se a virmos como um desesperado escape à repressão e ao obscurantismo que se seguiu às aberturas da Primavera de Praga. VFpojqZ4V3dUTFc8WK6IZXNeT5eWQCgeXNeHgdudyI5hX9KA0LJJhC3VVz0-NO4xiDEz4cNVYRFYuVx_jJVgnQ0dJeaqsYI1Sr6NW1QDtCxMpCfp3ZCLjZJn=s0-d-e1-ft
Explica Jana Prikril (autora do texto que acompanha uma edição recente do filme) num artigo constante de uma edição de início de Outubro de 2015 da NYRB, que esta é uma altura em que as autoridades checoslovacas baniram os filmes de alguns dos autores mais famosos mas se esforçaram, também, por manter a ilusão de uma cinematografia continuada e de sucesso. Ironicamente (veio a descobrir-se mais tarde), o poder via Menzel e Jires como dois realizadores capazes de fazer, com sucesso, filmes acessíveis ao público. Não foi isso que aconteceu com este filme que aqui se distingue.**
Com o onirismo e o cliché do filme de vampiros mistura Jires uma outra face pagã e lírica, e desta ousada fusão resulta um filme que os censores inexplicavelmente não proibiram – como acontecera com a sua longa metragem anterior, The Joke (1969), muito mais abertamente crítica e de um nihilismo mole humoristicamente contrário ao optimismo oficial dos inícios do comunismo da era do pós-guerra.
O absurdo de algumas das demonstrações de Valerie age eficazmente como exibição dos absurdos do regime mas os seus censores parece não terem entendido a sua mecânica. Passados quase 50 anos, Valerie a Týden divů torna-se cada vez mais delicioso e cada vez mais improvável. Ao contrário de Krik/The Joke ou Zerk/The Cry, a passagem do tempo tem-lhe trazido favores inesperados.

* ver as cerca de 15 curtas-metragens que Jan Svankmajer realizou nos anos 60 e 70 é um inestimável avanço no conhecimento do cinema checoslovaco destas duas décadas. Svankmajer continua em actividade e espera-se com ansiedade a conclusão de The Insects.

** O regime queria “filmes para o público, filmes para hoje, filmes para socialistas”. Quase 50 anos depois é espantoso e doloroso verificar que há países em que esta prática totalitária persiste e que filmes que deveriam ser orgulhosamente celebrados como exemplos de criatividade são, ao invés, escondidos da população ao mesmo tempo que os seus autores são perseguidos.

3 Nov 2015

Tachos de lata

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m 2011, Passos Coelho prometia não levar para o Governo “amigos, colegas ou parentes, mas sim os mais competentes”. Já depois de convocadas as eleições de 2015, o Governo PSD/CDS contornou as suas próprias regras e nomeou centenas de dirigentes para a Função Pública.
Em 2011, Passos Coelho prometia não levar para o Governo “amigos, colegas ou parentes, mas sim os mais competentes”. Para isso até criou a Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP). O leitor pode espantar-se, mas é esse mesmo Governo que acaba por fazer 14 nomeações definitivas para os Centros Distritais da Segurança Social, todas atribuídas a quadros do PSD e do CDS. E logo no Ministério de Mota Soares, campeão da demagogia anti-tacho.
O que é que aconteceu? Ao que parece, a incapacidade da CReSAP para realizar todos os concursos bastou para que fossem feitas várias nomeações de substituição, livres de quaisquer regras. Chegado o momento do concurso, esse tempo de substituição exercido nos cargos da Administração Pública contou como “experiência” no currículo destes militantes. tumblr_me1rofg5wQ1rovfcgo12_1280
Os cargos intermédios também estão fora do crivo da CReSAP. E por isso foi possível ao Governo, já depois de convocadas as eleições, contornar a suas próprias regras e nomear centenas de dirigentes para a Função Pública. Segundo consta, no Ministério da Defesa até foram criados novos cargos na semana anterior às legislativas.
Apesar de todo o seu moralismo e arrogância, Passos Coelho não cumpriu nada do que prometeu. Só a hipocrisia do discurso se tornou mais sofisticada.
A nomeação de fiéis do partido para lugares no Estado é uma forma de recompensa às tropas, mas não é só isso. Em áreas tão delicadas como a Segurança Social, o assalto às esferas de direcção possibilita a concretização de uma visão ideológica, sem escrutínio ou contestação. Por isso ninguém desafia ou denuncia, e por isso é tão difícil travar o desmantelamento dos serviços de protecção social ou a sua entrega a instituições privadas (também elas, muitas vezes, controladas pela Direita).
Saibamos separar o trigo do joio. A Administração Pública não se confunde com os “boys”, muitas vezes incompetentes, colocados pelos partidos nos cargos dirigentes. Além deles, existe o esforço dos seus trabalhadores. Funcionários e quadros que o Governo prometeu proteger para acabar com os tachos, vindo a fazer exactamente o contrário.

Mariana Mortágua, in Esquerda.net

3 Nov 2015

Casual

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] sexo casual define-se pela inexistência de sentimentos românticos pelo parceiro, que pode ser de curto ou de longo-prazo. Quando é de curto-prazo, i.e., uma única noite de loucura com alguém que acabámos de conhecer, é mais vulgarmente e internacionalmente conhecido como ‘one night stand’. O sexo casual de longo-prazo, refere-se a um relacionamento que pressupõem encontros sexuais regulares mas que não pressupõem qualquer actividade romântica, ou amor entre os envolvidos. Edward Zwick About Last Night
O sexo casual parece ser uma prática comum no século em que vivemos, com alguns fervorosos adeptos e outros menos. Diz a Psicologia Evolutiva que os homens têm mais queda para estas coisas casuais, especialmente as de uma noite, porque, assim, podem plantar a sua semente por um maior número de corpos, ou seja, aumentar a sua possibilidade de transmissão genética. As mulheres, por seu turno, irão preferir estratégias de acasalamento de longo prazo porque, pronto, se de facto quiserem deixar parte da sua carga genética ao mundo, implica um investimento de pelo menos 9 meses e não é um decisão que se tome de ânimo leve.
Por isso, de uma forma muito geral, isto vem justificar as nossas escolhas relativamente à natureza dos encontros sexuais que pretendemos com base no nosso passado animalesco que era, de facto, muito orientado para a procriação. Diria eu que agora, a dinâmica não segue tão estrita explicação porque, bem, acho que não víamos sexo a acontecer de todo. Há homens que escolhem ter mais encontros casuais porque há mulheres que os querem, e vice-versa. Diz a minha ingenuidade que há de haver gostos para tudo, entre homens e mulheres, para satisfazer a diversidade sexual de cada um.
Sócio-sexualidade é o conceito desenvolvido na comunidade científica para descrever uma maior queda para sexo casual regular. Não sei o porquê da escolha de vocábulo, talvez porque é preciso ser-se sociável, um ser extrovertido, para o sexo. Por isso, o sexo casual é para quem é socialmente aberto, e diga-se que é preciso muita lábia e técnica de engate para conseguir chegar à loucura que uma noite pode proporcionar. Percebemos, por isso, que sexo casual de curto-prazo é o resultado de uma atracção estritamente física que se quer ver satisfeita – na hora.[quote_box_right]“O cliché avisa-nos, contudo, que relações que duram no tempo e que se descrevem como exclusivamente sexuais são impossíveis de ser alcançáveis. Acabarão quando um dos dois se apaixonar”[/quote_box_right]
Entende-se de forma diferente os amigos coloridos, amigos com benefícios ou os ‘fuck buddies’, neste caso tratam-se de encontros entre dois conhecidos, amigos ou não, com o único propósito aliviar as gónadas, desenferrujar as dobradiças, lubrificar a máquina sexual. Trata-se de não só satisfazer desejo mas de manter a sexualidade aberta em actividade.
Esta é a visão puramente instrumental do sexo, i.e., eu quero, tu queres e por isso devemos aliviarmo-nos juntos. Sem complicações e sem o problemático amor envolvido, sexo parece ser muito simples de ser solucionado. As complicações que aparecem são de outra natureza, caem nos mal-afamados estereótipos e expectativas que põem os homens numa categoria de reis e as mulheres em categorias várias (mas que não são de rainha).
O cliché avisa-nos, contudo, que relações que duram no tempo e que se descrevem como exclusivamente sexuais são impossíveis de ser alcançáveis. Acabarão quando um dos dois se apaixonar. Alcançando, assim, o prólogo que eu pretendia com a reflexão que se impõe: como é que o amor se relaciona com sexo ou de que forma podem ser tratadas como exclusivas ou emparelhadas?
A casualidade, muitas vezes entendida como aleatória, oferece ao imaginário sexual uma novidade, uma excitação que depende do desconhecido e do desejo em alcançar mares nunca dantes navegados (apelando ao português que há em nós). Numa noite explora-se o que se pode, em encontros que se repetem no tempo talvez se explore um pouquinho mais, até porque o gradual à vontade vai permitir formas de comunicação sexuais cada vez mais sofisticadas.

3 Nov 2015

Um presunto e um galo

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Como se já não bastasse o ar que respiramos todos os dias. A Organização Mundial de Saúde veio esta semana dizer que as salsichas, o bacon e os enchidos são cancerígenos. A carne vermelha, às tantas, também faz muito mal. Mas certo, certo é que o presunto está no mesmo grupo de substâncias cancerígenas que o tabaco, o amianto e os gases de escape emitidos pelos motores a gasóleo. Quem diria.
Em Hong Kong, onde se fazem as contas às pessoas que morrem por ano vítimas da poluição, também há estudos sobre os hábitos alimentares: os residentes comem três salsichas e meia e quase duas fatias de fiambre por semana. Estão condenados, os pobres coitados. Como se já não bastasse o ar que respiram todos os dias.
Vivemos na era em que tudo faz mal. Comer vegetais faz mal, porque não sabemos de que é que são realmente feitos. Beber leite faz mal, porque não sei o quê. Comer carne faz mal. Comer peixe faz mal. Comer pão faz mal. E depois há ainda o glúten, a descoberta das mil e uma intolerâncias alimentares. E agora as alheiras e o salpicão e o presunto, bens essenciais que não me apetece dispensar – fazem parte do meu código genético. Fumar também faz mal, mas isso faz mesmo. Beber álcool também, embora hoje em dia o mundo científico nutra uma grande simpatia pelo vinho tinto. Em suma: viver faz mal.
Quem vive em Macau – assim como aqueles que vivem em Hong Kong – sabe desde o primeiro dia que corre sérios riscos, sendo que o problema não é o presunto importado, a rara alheira de Mirandela ou o enlatado manhoso. Mesmo que seja vegan, faça 30 minutos de exercício físico por dia e a hora de meditação ao entardecer o tenha tornado completamente impávido e muito sereno, incapaz de se chatear com o trânsito, com a inflação e o mutismo selectivo de parte da população, está condenado o triste residente das regiões administrativas especiais. O problema é mesmo a inevitável respiração – sair à rua é uma coisa complicada, sobretudo por estes insalubres dias. Crianças e velhos trancados em casa, os que têm problemas respiratórios também. Os outros que tenham paciência e respirem o ar insuportável a que temos direito.
Um dia destes o Governo faz um ano e começo a perder a esperança de que alguém se preocupe – a sério – com a poluição. Já sei que esta nuvem que nos cobre a cabeça e não é chuva vem de fora, que a culpa não é nossa, que estamos do Delta do Rio das Pérolas e por aí fora. Mas quem percorre o território diariamente não acredita na culpa externa: basta abrir os olhos e ver os autocarros velhos, as carrinhas e os camiões a desfazerem-se que andam por aí. São os tais gases de escape emitidos pelos motores a gasóleo – e frequentes vezes são gases que nem escape têm, que a viatura já deu o que tinha a dar. São salpicões sobre rodas, portanto.
As autoridades não parecem estar particularmente preocupadas com a situação. Nunca vi nenhuma fumarenta carrinha ser multada. Talvez porque a polícia se preocupa mais com os veículos parados, aqueles que têm donos que se esqueceram da moedinha no bolso, aqueles que têm donos que se esqueceram de acordar às 8 da manhã de domingo para não falharem o parquímetro que, à porta de casa, não lhes dá um dominical minuto de descanso, guardado que está por um zeloso agente das força de segurança.
Quanto ao Governo, falta alguém com vontade de tornar Macau numa cidade habitável, onde se possa respirar fundo e menos fundo, que imponha técnicas de conservação energética e essas invenções modernas que, dizem os especialistas dos outros países, fazem poupar na conta da electricidade, com as devidas consequências para uma vida um bocadinho melhor.

2. A semana começou mal: mais de uma centena de pessoas feridas num acidente com um jetfoil que viajava de Macau para Hong Kong. O barco embateu num misterioso objecto, embateu com força, e aquilo foi sangue por todos os lados. As imagens que nos chegaram são feias – e mais feias são porque podíamos ser nós. Quando a desgraça nos é próxima, torna-se mais forte.
Não foi o primeiro acidente com um jetfoil. Aqui há uns anos falou-se muito na necessidade de melhorar as condições de segurança dos barcos, mas o assunto caiu no esquecimento. Há jetfoils sem cintos de segurança. A maioria tem apoios para os braços feitos de metal. Há várias embarcações com bancos velhos, desconfortáveis, com as marcas de muitos corpos transportados. Não há cintos de segurança, nem sistemas pensados para o transporte de crianças – que pagam como gente grande assim que completam um ano de idade. Em caso de acidente, tudo isto conta. É diferente bater com a cabeça num bocado de ferro ou num pedaço de espuma.
Sabemos bem que o empresariado da região não se distingue por ser generoso nas actividades que desempenha profissionalmente, apesar de haver algum gosto por uma certa filantropia com fins meramente mediáticos. Mas falta a generosidade para com aqueles que sustentam os negócios: de um modo geral, o carpinteiro poupa na espessura da madeira dos armários e nas camadas de verniz, o empreiteiro economiza nos metros de fio eléctrico e de tubos, a companhia aérea da terra resolve o problema do catering com umas bolachinhas oferecidas em troca de publicidade.
A Shun Tak – a proprietária do acidentado jetfoil, com fortes interesses também no imobiliário – triplicou os lucros no ano passado, em relação a 2013. Não é propriamente uma pequena e média empresa com problemas financeiros. Mas é poupadinha nas condições que oferece aos seus clientes, depois de anos de monopólio, sem concorrência no transporte entre Macau e Hong Kong.
Porque o empresariado de Macau não é generoso, o Governo tem de o obrigar a ser, pelo menos, cuidadoso: talvez tenha chegado a hora de termos barcos com melhores condições, para que, da próxima vez, em vez de sangue sejam só galos na testa.

30 Out 2015

Um país, muitos sistemas

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stávamos na segunda metade dos anos 90 e não era, naqueles tempos, vulgar questionar-se o conceito do espaço Schengen, da moeda única e, enfim, todo o projecto europeu. Era tudo cor-de-rosa, fazia tudo sentido – qual crise económica, imigrantes do Leste ou refugiados Sírios.

É nesse contexto que um sábio amigo meu, numa conversa sobre o futuro de Macau, diz-me assim: “numa altura em que na Europa abolimos as fronteiras e usufruímos da livre circulação, com Macau e Hong Kong a China vai criar fronteiras dentro do seu próprio país”.

Essa observação, aparentemente simplista, tinha na verdade um significado bastante profundo. Possivelmente por essa razão tenha ficado bem guardada e fechada nas gavetas do meu pensamento para que, passados quase 20 anos, pudesse ser revisitada para uma nova reflexão num cenário completamente diferente e, então, inimaginável.

O que vou contar passou-se recentemente. A história em si de piada tem pouco, mas merece ser contada pela extrema absurdidade da coisa e como testemunho das bizarras situações que podem ser criadas dentro de um país que decidiu ter dois sistemas.

Éramos ao todo quatro colegas de serviço, a caminho de Zhuhai para uma reunião de trabalho. Foi tudo meticulosamente planeado e discutido com antecedência, nomeadamente a agenda da reunião e a língua a utilizar, que tivemos o cuidado de solicitar desde logo que fosse o cantonense, evitando assim qualquer tipo de desvantagem que o eventual uso do mandarim nos poderia trazer.

Logisticamente, a minha assistente teve o cuidado de organizar o transporte para as Portas do Cerco, definindo rigorosamente as horas de partida, de regresso e os respectivos pontos de encontro, uma vez tratando-se da fronteira com o maior movimento em toda a China.

Tínhamos acabado de chegar às Portas do Cerco e, para qualquer pessoa de fora que olhasse para nós, não havia nada de invulgar no nosso grupo que se resumia a quatro sujeitos locais, todos falantes de cantonense, fisicamente orientais, com feições bastante semelhantes até, e que, por algum motivo, vão juntos à China saindo de Macau – tal como os milhares à nossa volta que, todos os dias, atravessam a fronteira de forma afogosa.

Só que afinal éramos todos diferentes.

Quando nos aproximamos dos balcões da migração, subitamente apercebemo-nos de algo que fomos incapazes de antecipar: cada um de nós ia, afinal, utilizar uma combinação distinta de documentos de viagem para sair de Macau e entrar na China.

O John (*), chinês natural de Macau, ia registar a sua saída com o BIR da RAEM e entrar na China com o wui heong cheng. (**)

O Brian, chinês de Hong Kong (aliás Hong Kong Citizen, conforme gostam de se denominar) ia com o BIR da RAEHK e o wui heong cheng, respectivamente.

Eu, maquista, tinha já na mão o BIR de Macau e o passaporte português com visto para a China de entradas múltiplas e prazo de dois anos.

E agora o over the top: o Albert que, apesar de ser chinês originário de Hong Kong, e tão local como qualquer um de nós, é na verdade natural de Londres, Inglaterra. Para todos os efeitos, é cidadão das terras de Sua Majestade e, como tal, para ambos os territórios ia utilizar o único documento de viagem que possui para o efeito: o passaporte da Grã-Bretanha. Com a particularidade de que, para entrar na China, ia até estrear um visto novo com direito a… duas entradas apenas!

Foi assim que no meio da típica confusão do primeiro andar do posto fronteiriço das Portas do Cerco, em que por alguma razão toda a gente atravessa a fronteira a correr – porventura com receio de uma eventual aparição do Coronel Mesquita liderando as tropas rumo à tomada do Passaleão – combinámos à pressa como ponto de encontro a zona logo à saída de Gongbei.

E separámo-nos.

Ora, o caríssimo leitor sabe muito bem o resultado dessas combinações feitas à pressa, pois certamente leu a edição anterior desta coluna em que me debrucei sobre a nossa abusiva dependência dos telemóveis para marcar encontros banais do dia-a-dia.

Quando cheguei a Gongbei e ao nosso suposto ponto de encontro, estava lá apenas o John. Foi o primeiro a despachar-se por ser portador dos documentos mais vantajosos para essa viagem em particular. Se o destino fosse a Europa, eu seria certamente o primeiro a chegar.

Ficámos então à espera dos outros dois que por alguma razão nunca mais apareciam. A dada altura veio um polícia que nos mandou embora, pois não podíamos permanecer ali parados à porta do posto fronteiriço de Gongbei. Pelo que descemos as escadas rolantes que dão acesso ao célebre centro comercial subterrâneo.

O que aconteceu nos 20 minutos seguintes podia facilmente figurar num filme do Woody Allen. A simplicíssima tarefa de comunicar a mudança do ponto de encontro aos nossos colegas Brian e Albert acabou por se tornar num verdadeiro bicho-de-sete-cabeças.

Excerto de diálogo entre o Brian e o John:

John: “Olha, estamos no centro comercial à vossa espera. Onde andam vocês? Sabes do Albert?”
Brian: “Eu já me despachei. O Albert, a última vez que o vi estava ainda na fila para foreigners… Centro comercial? Passei pelo centro comercial e não vos vi!”
John: “Passaste pelo centro comercial e não nos viste? Desceste as escadas rolantes?”
Brian: “Escadas rolantes? Não vi nenhuma escada rolante, estás na zona do tabaco duty free?”
John: “Não! Isso não é o centro comercial! Mas onde estás tu afinal? Já atravessaste a fronteira?”
Brian: “Estou numa praça e não vejo nenhuma escada rolante! Devo voltar para trás ou não? Passo pela migração outra vez?”
John: “Fica aí onde estás! Manda-me uma foto e já te dou indicações!”
Três minutos depois liga o Brian ao John:
Brian: “Não consigo enviar a foto! Estou com problemas de rede! Há pouco o Albert ligou-me, teve problemas porque preencheu mal a ficha! Mas fiquei sem perceber onde estava porque a chamada caiu!”
John: “Vai ao settings do telemóvel e liga o data roaming! Já deves estar com a rede da China! É por isso que não consegues enviar a foto!”
Brian: “Roaming? Mas aqui já conta como roaming?”

Depois de muitos telefonemas e finalmente reunidos, conseguimos ainda assim chegar ao local da reunião antes da hora. Pelo que decidimos ir tomar um café ao Starbucks para refrescar a cabeça e esquecer toda aquela desnecessária aventura transfronteiriça.

Do nosso pedido de macchiatos, lattes e frapuccinos em que identificámos as bebidas em inglês, a funcionária ao balcão pediu-nos que repetíssemos tudo, apontando para uma lista inteiramente escrita em chinês. Pois isto de se misturar cantonense com inglês é comum em Macau e em Hong Kong, mas na China nem tanto. E ela não percebeu nada do nosso pedido. “OK… Alguém sabe como se diz frapuccino em chinês?”

Naturalmente, viemos a ter a mesma dificuldade na nossa reunião. Felizmente, valeram-me os 12 anos em que trabalhei no Governo e aprendi a falar cantonense decentemente, comme il faut. Já os meus colegas não tiveram a mesma facilidade: habituados a misturar termos técnicos em inglês no meio do cantonense, em diversas ocasiões ficaram encravados. É de facto irónico, mas facilmente compreensível para quem conhece bem o nosso meio.

Apesar de tudo, a reunião correu bem e entendemo-nos perfeitamente. E a chave da questão está aqui: entendemo-nos porque nos quisemos entender; e ambas as partes fizeram um esforço para se entenderem.

Caríssimo leitor, raramente falo de política na minha coluna, mas hoje apetece-me afirmar com alguma firmeza que acredito verdadeiramente na fórmula “um país, dois sistemas”. Não me arrepia nem um pouco que dentro do mesmo país haja dois ou mais sistemas e uma grande heterogeneidade cultural entre as suas gentes.

Não vejo de facto problema nenhum e certamente não é isso que me faz sair à rua com a bandeira do antigo Leal Senado na mão a reclamar de forma bacoca o que quer que seja.

Estamos muito bem assim. E que venham outros 50 anos.

Sorrindo Sempre

Tanto build-up a antecipar a tão esperada conferência de imprensa da NASA, e afinal limitaram-se a anunciar – pela enésima vez – que existe água em Marte.

Só que desta feita, dizem eles, apresentam provas irrefutáveis: imagens espectaculares que mostram muita coisa. Excepto o essencial, que se calhar todos queríamos ver: a água propriamente dita.

Entre outros, a NASA demonstrou dominar a técnica do filme erótico-não-pornográfico, que mostra e não mostra.

A comunidade científica ficou excitada.

Eu também não.

Sorrindo sempre.

(*) Todos os nomes deste artigo são fictícios.
(**) Salvo-conduto emitido pelas autoridades chinesas.

30 Out 2015

A Lei? O gato comeu…

[dropcap style=’circle’]1[/dropcap])Decorreu no último fim-de-semana mais um Festival da Lusofonia, o Woodstock da comunidade portuguesa em Macau, que em termos do contexto do território onde está inserida, anda mais ou menos pela tabela do “Portuguese settlement” de Malaca – mas mais “chic”, com “c” na ponta. Assim tivemos as caipirinhas, que alguns “forasteiros” do universo da Lusofonia julgam ser a principal razão de ser do festival, uma amostra muito, mas mesmo muito simplista do que são os países onde se fala português, o palco com os concertos, o fumo do grelhador das febras a bater-nos nas ventas, o costume. Uma das atracções que vai ganhando mais destaque que os matraquilhos é o “muro das lamentações”. Sim, todos os anos crescem de tom as queixas por parte dos aficionados lusófonos que vão ali montar o estaminé, ora porque está tudo mais caro, o subsídio não chega para comprar os sacos do gelo, falta isto e aquilo, em suma, o primeiro directo para o Largo do Carmo na Taipa é uma autêntica purga que se faz dos obstáculos que a Lusofonia vai encontrando cada ano que passa . Mas também não consigo imaginar o que mais se podia dizer num directo destes, ou o que esperar para lá destes desabafos. Quem cantem uma morna ou dancem o samba? Assim por assim, fica-se pelo fado. E este ano a novidade do rol de pecadilhos até tem o seu ar de “perfídia” (fica assim, para se manter o nível semi-erudito): o Festival realizou-se pela primeira vez desde que entrou em vigor a lei do ruído, o que obrigou os luso-expositores a enxotar as luso-moscas e a fechar a luso-barraca às luso-onze horas. “Dura lex sed lex”, e o melhor mesmo é lusofonar baixinho, não vão incomodar os pintarroxos mandarins que estão acasalar no pântano anexo ao espaço onde se realiza o Festival. Ninguém ligou muito a este detalhe, e durante a maior parte do tempo todos comeram, beberam e divertiram-se à brava, e outra coisa não seria de esperar, mas ficou registado o facto, que causou algum desconforto inicial. Excesso de rigor? Talvez. Embirração? Possivelmente. Sacanice? Garantidamente. Um dia vamos aprender a ignorar a fobia, e antes aproveitar ao máximo a fonia.

[quote_box_left]O Festival realizou-se pela primeira vez desde que entrou em vigor a lei do ruído, o que obrigou os luso-expositores a enxotar as luso-moscas e a fechar a luso-barraca às luso-onze horas. “Dura lex sed lex”, e o melhor mesmo é lusofonar baixinho, não vão incomodar os pintarroxos mandarins que estão acasalar no pântano”[/quote_box_left]

2) E já que estamos na onda do escrupuloso e rigoroso cumprimento da lei, queria falar de José Pereira Coutinho, e da sua candidatura às eleições legislativas portuguesas do último dia 4 de Outubro, concorrendo a um dos dois mandatos pelo círculo de Fora da Europa. Como é do conhecimento geral (e se não for também não tem importância), o candidato Coutinho não conseguiu ser eleito, ficando apenas ligeiramente aquém dos votos necessários, mas conseguiu causar um furor maior do que se tivesse garantido o lugar na Assembleia da República. Tudo porque o presidente da ATFPM é também deputado pela AL local, e especulava-se sobre uma eventual incompatibilidade de funções, pois no caso de ser eleito, Coutinho estaria a acumular as funções de legislador em duas jurisdições diferentes: Macau e Portugal. Mas alto lá, pois TECNICAMENTE a R.P. China é também uma jurisdição diferente de Macau, certo? Ai não, desculpem que estou aqui a falar “do que não sei”, portanto ignorem o disparate. O que sei é que devido improbabilidade de uma situação destas ocorrer, e ao carácter quase único de Macau, que neste particular só encontra paralelo com a outra RAE da China, que é Hong Kong, não existe nada que inviabilize as pretensões do dr. Pereira Coutinho. Não se colocou essa possibilidade, portanto existe um vazio legal, e é por isso que nem a justiça é infalível, filosofando um pouco para relativizar esta grande desgraça. O que se tem observado ultimamente, e com mais incidência depois de se saber que o candidato não foi eleito, e portanto não ia existir nenhuma incompatibilidade, é um arraial de “mocada no Coutinho” que só fica mal a quem o perpetra – e olhem lá que se trata de alguém com elevadas responsabilidades, e que convinha ser ponderado nas afirmações que profere. Se não está a fazer nada de ilegal, o que justifica o conteúdo acusatório que tem sido propalado, inclusivamente nos média, a não ser uma antipatia pelo candidato, e sobretudo por aquilo que é a sua linha de acção política? São perguntas retóricas, estas, pois sei muito bem a resposta: nenhuma, tal como a incompatibilidade que chegou a estar em cima da mesa. O problema é que fico na dúvida se estamos a levar a sério e a cumprir o que ficou estabelecido nos inúmeros compromissos disto e daquilo, e que só parecem servir na hora de aplicar o conteúdo do capítulo V da Lei Básica, o tal que garante um sistema económico livre, capitalista, ou sem mais floreados desses, onde não seja preciso prestar contas a mais ninguém. E aparentemente esse é também o princípio e o fim de todas as coisas, o sol à volta do qual giram todas as restantes valências do segundo sistema. Quanto aos “lusófonos” críticos da candidatura de Coutinho, alegadamente por motivos que têm a ver com a ética, a moral, os princípios da democracia e tudo mais, foi apenas disso que falaram, ou melhor dizendo, cacarejaram. Não conseguiram foi evitar espumar da boca e fumegar das orelhas, de tão ressabiados que estavam, com ar de pindéricos pidescos. Mas esses contam? Se for depois das 11 horas, é ruído, apenas.

29 Out 2015

Que Europa se pretende?

“The European Union (EU) is going through hard times. Some would even go so far as to claim that it is in the midst of a serious survival crisis. There has also been growing apprehension regarding whether the euro itself, and the EMU of which it is the jewel in the crown, can survive. Moreover, many people and governments, especially in Germany, the Netherlands and the UK, are unhappy with the increasing number of immigrant workers coming to them from the new Member States.”
The European Union Illuminated: Its Nature, Importance and Future
Ali El-Agraa

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] Itália, ao contrário de outros países europeus estava dividida em inúmeros Estados independentes. A marcha da História foi no sentido da unificação. Qual teria sido o poder de negociação da República de Veneza contra as potências que representavam nessa altura a França e a Grã-Bretanha? O mundo, presentemente, reduziu-se ainda mais, e põe directamente em relação económica, e concorrência social, grandes países, livres na sua política, e Estados médios, condicionados na sua.
O combate é desigual, a não ser que se criem regras de jogo tão claras que o intercâmbio comercial se torne leal. Mas essas regras implicavam uma única moeda ou um sistema de câmbios fixos, em que muitas vezes, com efeito, os desvios permanentes que se observavam nas paridades das moedas vinham confundir os valores relativos do trabalho dos homens. A experiência das décadas de 1980 e 1990 foi a de sobrevalorizações e subvalorizações sistemáticas das moedas nacionais.
A mesma exigência que levava à unificação dos países divididos em territórios independentes levou a pretender unir num conjunto homogéneo pequenos e médios Estados, para constituírem um espaço suficientemente poderoso para dispor de todos os atributos de soberania. A dinâmica era clara e foi no sentido da História. Mas o processo tem sido complexo, pois põe em jogo, simultaneamente, o político, o económico e o social.
A sua relativa rapidez fez com que a redistribuição dos poderes que implica surgisse à luz do dia. Como é possível imaginar que aqueles que detêm poderes, ou pensam detê-los, fiquem sem reacção? E pouco importa se trate de trocar um poder formal por um poder real. O simbólico é importante, e os atributos do poder contam mais, por vezes, do que o seu exercício real. Certas resistências à Europa explicam-se deste modo. Um segundo elemento, essencial, deve ser tomado em conta. Refere-se à filosofia que preside à unificação europeia. Que esta seja inevitável não significa que as suas modalidades sejam as únicas.
A unificação dos Estados foi um processo político, voluntarista, dirigista. A união económica e monetária, pelo contrário, provém de uma outra concepção. A revolução conservadora que se apoderou da Europa, na viragem da década de 1970 e 1980, levou à afirmação do primado do mercado sobre a vontade política, do liberalismo sobre a democracia.
A Europa seria um grande mercado como é; a teoria económica afirmava que dele adviriam grandes vantagens, em termos de eficiência, de factores de progresso e, consequentemente, de produtividade e competitividade. Era preciso organizar esse mercado segundo os cânones da concorrência e deixar à flexibilidade espontânea dos preços e dos salários o cuidado de regular os desequilíbrios. A opção era, pois, a de políticas virtuosas, não intervencionistas, financeiramente equilibradas. No frontispício de Maastricht encontravam-se abstracções como o mercado, a concorrência, a moeda, e proibições como a inflação e os défices públicos. Tratava-se sem dúvida, de uma magistral falha de comunicação.
Os povos esperavam ser aliviados das dificuldades da sua vida quotidiana, da ausência de futuro provocado pelo desemprego maciço. Em vez de lhes falar de melhoria do seu nível de vida, erradicação do desemprego, realização pelo trabalho, anunciava-se-lhes, como solução para os seus males, a moeda única, dizendo-lhes que a porta seria estreita e que haveria muitos candidatos mas poucos eleitos.
A moeda, por essencial que seja, é, como dizia Hegel a “abstracção de uma abstracção”, visto que é um equivalente geral, a abstracção concretizada de todas as necessidades humanas. Evidentemente que estas duas posições não são mutuamente exclusivas mas são complementares. Mas a moeda foi anunciada como algo prévio ao crescimento, a virtude como condição necessária, mas não suficiente, da solução para o problema do emprego.
Os mercados financeiros e cambiais, ao mesmo tempo, em busca de lucros fáceis, entregavam-se à especulação, retendo uma parte cada vez maior do esforço dos países. Faziam-se dançar as moedas, desfazendo, num instante, o resultado dos esforços de anos de rigor. Ao mesmo tempo também, cada um confessava a injustiça que constituía o nível historicamente elevado das taxas de juros: a miséria, o medo do desemprego, a estagnação do nível de vida, o marasmo dos negócios, tudo isso servia para distribuir rendimentos consideráveis aos detentores do capital financeiro.
É claro, a Europa era uma moda, uma meta que podia voltar a dar esperança às pessoas; a unificação é portadora de novas solidariedades. Mas poderia e deveria ter-lhe sido dado um rosto mais atraente. A palavra Europa está hoje, mais do que ontem, carregada de múltiplas conotações. Algumas são negativas, pois o período mais recente apresentou a Europa mais como uma imposição do que como um futuro. Outras são positivas, como a pacificação de uma região turbulenta do mundo, mas pertencem ao passado. Outras continuam a ser interrogativas; a Europa, potência económica, irá deixar que continue a desenvolver-se no seu seio o mais grave dos males e também o mais pernicioso que uma democracia pode conhecer em tempo de paz que é o desemprego maciço?
A Europa dos vinte e oito, encerrada nos seus egoísmos mas aspirando ao poder político, irá assistir passivamente à pauperização da Europa do Sul e Oriental, postergar a adesão dos países dos Balcãs, da Turquia e deixar morrer a Ucrânia dividida, à escalada dos nacionalismos, dos conflitos extremistas e étnicos e das divisões entres os seus Estados-membros, que tanto a fizeram sofrer no passado? Hoje, todas estas e outras conotações retiram ao conceito de Europa a sua modernidade.
A construção europeia foi fértil nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial; permitiu aos Estados-membros enfrentar melhor o seu destino, porque era, simultaneamente, um projecto político, económico e social. Em pouco tempo, transformou-se numa das regiões mais ricas do mundo, mas também numa das regiões onde a protecção social estava melhor garantida. Daí em diante, tem vindo a perder fôlego, a cooperação necessária entre os países da Europa diminuiu nos momentos em que a sua necessidade mais se fazia sentir. Perante a adversidade, isto é, face aos choques múltiplos que caracterizaram as últimas décadas, a frente comum esboroou-se.
O facto de os países europeus serem concorrentes na competição internacional fez muitas vezes esquecer que eram solidários, pela comunhão dos seus interesses a longo prazo e, .com ou sem razão, a Europa foi vista mais como um projecto financeiro virtuoso do que como um destino mobilizador dos povos. Isso é grave. Mais do que nunca, a Europa é um imperativo essencial. Se nos desviarmos dele, mesmo que, no imediato daí retiremos alguns benefícios, o futuro tornar-se-á mais sombrio, politicamente, mas também economicamente. Porque o mundo em que entrámos é um mundo em que as políticas nacionais têm cada vez menos efeito nos desequilíbrios nacionais. Quando o têm, é, quase sempre, em detrimento de outros países.
O remédio é então ilusório, pois cedo ou tarde, os outros países retirarão as suas lições, e as suas reacções restabelecerão a situação, anterior na melhor hipótese e, na pior hipótese, agravá-la-ão. Uma casa só pode permanecer aberta se o ambiente exterior não lhe for hostil. O mesmo sucede com um país. O projecto comunitário convida os Estados-membros a dominarem conjuntamente o seu mundo exterior, dentro e fora da Europa, a controlá-lo melhor para, em conjunto, tirar dele melhor partido. As tendências do presente que se fazem sentir vão num sentido oposto. Como chegámos aqui?
Seria ridículo afirmar que os governos europeus são os únicos do planeta que não são sensíveis ao agravamento do desemprego. Pelo contrário, tudo indica que se trata para eles de uma preocupação constante. Também não se tornaram repentina e dogmaticamente monetaristas. A hipótese a formular é que o cimento da construção europeia, na década de 1980, foi exclusivamente monetário; que a coordenação entre países europeus foi feita apenas em torno da manutenção das paridades fixas; que isso, evidentemente, era desejável mas que, por falta de coordenação dos outros elementos de política económica, só podia ser feita em detrimento do desemprego.
É de ter consciência do carácter parcial, e por isso injusto, quiçá desta hipótese, na medida em que nada diz sobre as dificuldades reais das políticas nesse período, nomeadamente em função das estratégias de não cooperação conduzidas nas outras regiões do mundo, sobretudo nos Estados Unidos. Mas ela contém uma parte de verdade, pois no essencial, os países europeus só se puseram de acordo explicitamente e institucionalmente num único objectivo, a desinflação, e a partir daí, a construção europeia foi julgada apenas em função da satisfação desse objectivo.
A Europa foi construída a partir do início da década de 1980 sob o signo do dinheiro caro. Há qualquer coisa de estranho, de surrealista mesmo, em pensar que os destinos dos seus povos ficava frequentemente suspenso do anúncio de decisões respeitantes à taxa de juro de uma instituição nacional cuja missão exclusiva era a de zelar pelos interesses nacionais pelos quais era responsável.
A lição é dura e só se pode compreender o presente e preparar o futuro relembrando os erros do passado, que infelizmente muitos repetem-se, apesar de circunstancialismos distintos, mas a lição faz lembrar a fábula das abelhas de Mandeville em que a procura sistemática da virtude financeira tem-se revelado contraproducente. O que provocou a explosão do SME foi a obstinação em mantê-lo intacto por razões de credibilidade, muitas vezes contra o bom senso. Querer verdadeiramente a Europa implica que não nos enganemos de objectivo. Caso contrário, os acontecimentos se encarregarão de desfazer os dogmas, de fazer vergar as instituições que abanam, por muito inteligentes que sejam.
A única, a verdadeira justificação económica da construção europeia, é que ela tem por desiderato aumentar o bem-estar dos povos, isto é, o seu nível de vida e as suas oportunidades de emprego. Não é procurar a virtude financeira em detrimento da coesão social.

28 Out 2015

EL Dorado

Por Aurelio Porfiri

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]facto de estar actualmente longe de Macau dá-me uma certa vantagem, na medida em que me permite ter um distanciamento que acaba por ser saudável. Será que algum dia terei visto Macau como o El Dorado da eterna juventude? Certamente que não, mas um artigo de Kate Springer fez-me pensar sobre o assunto. O artigo publicado a 22 de Outubro, na secção de viagens em bbc.com, intitulava-se “Segredo chinês da longevidade” e, adivinhem só; Macau era o local onde procurar esta misteriosa “poção”. Segundo as mais recentes estatísticas, nas últimas décadas, Macau tem vivido um período de prosperidade sem precedentes, acompanhado por um aumento da esperança de vida, pelo que nos sentimos muito gratos. Mas as estatísticas apenas revelam parte da realidade.
O artigo desenvolve-se em torno do Sr. Chan, de 90 anos de idade, habitante de Coloane. Este senhor está, basicamente, muito agradecido à indústria do jogo por lhe permitir manter o seu estilo de vida. Senão, vejamos: “Passei a maior parte da minha vida fora,” afirmou Chan, que tem oito filhos e dez netos. “Sento-me com a minha mulher no paredão e ficamos a admirar a paisagem. Passamos os nossos dias felizes.” Chan atribui a sua longevidade, a uma vida feliz e rotinas simples (e ainda a uma dieta rigorosa à base de arroz e alho) – e parece que este nonagenário está longe de ser um caso raro”. Assim, a tese da jornalista da BBC é a seguinte: o resultado do desenvolvimento, devido às verbas da indústria do jogo, é … poder viver uma vida bucólica. Mesmo que implique a degradação total da cidade. Mas, a imagem do velho Sr. Chan e da sua mulher a admirarem a paisagem, faz-nos esquecer as pessoas que se arruinaram por causa do jogo, uma cidade que para além do jogo não tem outros recursos de valor e, ainda, os jovens que só encontram significado no dinheiro e na ambição material.
Claro que a longevidade é um factor positivo e, pessoalmente, desejo que o Sr. Chan e a sua esposa ultrapassem os 100 anos de idade. Mas detecto uma contradição na mensagem que passa no artigo; se uma maior riqueza serve para que tenhamos uma vida bucólica com estilo, não é necessário esforçarmo-nos para fazer evoluir a economia, podemos pura e simplesmente voltar ao campo. Será que o Sr. Chan (e a jornalista) sabe o preço que é preciso pagar para que, ele e a sua mulher, possam ter todos os dias arroz e alho? “Embora esteja actualmente numa curva descendente, o jogo manteve durante anos a economia à tona d’água. Só no ano passado as receitas do jogo representaram 80% do PIB e, os impostos pagos pela indústria, constituíram a grande fatia do bolo fiscal. “Todos os turistas que visitam Macau vão aos Casinos. O que é óptimo,” continua Chan. “É assim que o governo consegue tomar conta de nós”. Parece pois que as vantagens pessoais se sobrepõem às desvantagens colectivas.
No artigo são ainda mencionados os netos e os sobrinhos-netos do Sr. Chan. A maior parte deles, se tiverem possibilidade, hão-de querer ir estudar para o estrangeiro e fugir a influências vindas do mesmo meio que permite ao Sr. Chan e à sua esposa continuarem a desfrutar de uma vida singela. Em termos de vida a quantidade é importante, mas a qualidade, não será também?

28 Out 2015

Destrutivo, menos destrutivo e os diabos portugueses segundo barrica

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ui alertado nestes dias, sem dúvida com a melhor das intenções, por alguém dos que têm paciência para ler estes “textículos” que vou publicando nestas páginas, para o tom com que os escrevo. Ou seja, revelam-me como um tipo problemático, destrutivo, pelo que devia moderar, quiçá ser mais positivo, quiçá não falar das coisas que me desagradam mas sim das que me agradam, pois nesta terra a crítica é mal vinda e só me pode trazer problemas. Não devia chamar nomes feios às cadeiras (como fiz na passada semana) e fui mesmo confrontado com o princípio/interrogação “se não gostas, que estás aqui a fazer?” A minha reacção a este tipo de discurso é a seguinte: entre abrir uma ourivesaria para dourar pílulas e continuar a escrever como faço, prefiro a última e apenas faço esta referência por acreditar existirem outros que julgarão que nutro algum ódio de estimação por Macau, pelo governo de Macau ou por quaisquer outras pessoas ou entidades que foram, ou venham a ser, alvos da minha suposta raiva, ou ainda que imaginem que me alimento exclusivamente a sais de fruta, tamanha a acidez que por aqui vai. Pois bem, em relação ao nome chamado às cadeiras reconheço a minha indelicadeza, pois a culpa não foi delas, inanimadas que são não escolhem nem destino nem os rabos que acolhem, ao contrário dos da nossa espécie. Nesse sentido, peço desde já desculpa a todas as cadeiras que estiveram presentes na Fortaleza do Monte, respectivas famílias e móveis amigos. Em relação ao resto, não mudo nem uma vírgula, nem uma nota. Posso ser sarcástico mas não destrutivo ou, pelo menos, não é essa a minha intenção. Critico mas explico porquê. Sou assim, não sou de outra forma nem vou travestir-me de ourives para conseguir abrir putativas portas que, de outra forma, se manterão fechadas. A única coisa que deixamos nesta vida é memória e a escrita é um dos melhores repositórios dela, pelo que há-de fazer-me jus tal como sou, bom ou mau, com mais ou menos chá, sem favores nem salamaleques, sem vénias nem requebros, com pontos de exclamação e muitas interrogações, doa a quem doer. Mesmo que me doa a mim. Entendo também que só critica quem gosta, ou se preocupa, e a ideia do “se não gostas vai-te embora” é a negação de tudo em que eu acredito. É a própria negação de Macau que precisa dos que cá ficam e não dos que a usam como barriga de aluguer. Só criticamos quando nos preocupamos pois não há nada pior do que a indiferença. Macau não me é indiferente, muito pelo contrário. É a minha casa, é onde tento fazer a vida desde há 14 anos, é onde me alimento e durmo, tão bem quanto possível. Macau e a suas gentes, merecem-me o maior respeito e carinho. Para ambos desejo a melhor vida possível, mas rejeito subterfúgios; este mundo já está impregnado que chegue dessa forma execrável de expressão. Acredito também no princípio de “Um País, Dois Sistemas”, que nestas páginas já tive oportunidade de classificar como uma das ideias políticas mais brilhantes de sempre. Deng Xiao Ping quando a imaginou, com certeza não quereria a lei da rolha para Macau, não pretenderia que olhássemos para o lado quando o rei vai nu, não pretenderia que deixássemos de ser críticos pois a crítica abre as portas à criação, e no dia em que tivermos que deixar de ser nós próprios, no dia em que nos tivermos de calar por receio de eventuais poderes invisíveis que nos aferrolham portas, seja em Macau, ou noutro qualquer lugar, nada mais faz sentido. Pronto. Está dito.
Voltando ao Festival de Artes de Macau, ou antes ao que o Festival poderia ser e não é, cabe-me reconhecer, por oposição, a Festa da Lusofonia organizada pelo IACM (entidade que já aqui critiquei fortemente em mais do que uma ocasião) como um dos melhores eventos que por cá vamos tendo. Ao passo que o Festival de Artes carece especialmente dos nomes que escolhe para actuarem, na Festa da Lusofonia é indiferente o elenco porque as pessoas encarregam-se de a fazer, em liberdade e à vontade como deve de ser. Foi um belo fim de semana! Obrigado IACM pela festa mas um pouco mais de tolerância com a hora de fecho não seria mau, pelo menos no sábado. Afinal de contas, andamos a vender a capital mundial do entretenimento ou a do recolhimento?

Os diabos portugueses de barrica

Como ser uma potencial persona non grata em Macau não me chega, para dar vazão à minha hiper-dimensionada bílis vou ter de ser mais ambicioso, chegar mais longe, para lá do mar, ainda para além da Taprobana e pegar nas palavras do Embaixador da República (Im)Popular de Angola em Lisboa, José Marcos Barrica, que disse, e cito: “O problema do cidadão Luaty é apenas um pretexto para fazer ressurgir aquilo que em Portugal sempre se pretendeu: diabolizar Angola”. Caro embaixador Barrica, em primeiro lugar devo dizer-lhe que esqueça o crocodilo Tic Tac porque é pura ficção e pense melhor na imagem que o mundo tem do seu patrão Gancho. Depois, caso não perceba, ou não queira perceber, e pegando no meu discurso anterior, só critica quem gosta ou se preocupa. Não conheço ninguém, ou nenhuma organização em Portugal, que tenha qualquer tipo de animosidade contra Angola, mas conheço muitos que detestam o governo que V.Exa. representa. O governo de um ditador que se pretende eternizar, o governo de um país que poderia ser grande mas é apenas um pastiche de democracia e um paradigma da desigualdade, um governo que prende músicos (esses grandes terroristas!), um governo que faz do nepotismo uma forma de estado, um governo que não suporta a crítica venha ela de onde vier e nos tons em que se apresentar, um governo que prende sem julgamento e chama diabo aos outros, esse ser mítico que afinal a revolução cultural angolana não apagou das mentes progressistas como a do caro embaixador Barrica. E olhe, caro embaixador, se acredita no diabo então acredite também que ele está em toda a parte e não apenas em Portugal. Está em Angola na pessoa de José Eduardo Agualusa, que afirmou, e bem, “que a tradição do governo português tem sido sempre de colaboração estreita com a repressão em Angola”, o diabo está também no Brasil na pessoa de Chico Buarque que esta semana assinou a petição que pede a intervenção do governo português na libertação de Luaty, o diabo está no mundo inteiro bem presente na agenda da Amnistia Internacional que já exigiu a libertação imediata de Luaty Beirão e em muitos outros lados, se calhar até na sua própria embaixada. É o diabo, senhor Barrica, é o diabo um regime que prefere fincar o pé a respeitar a vida humana. É o diabo, senhor Embaixador, ter um presidente que entende a crítica como a ameaça de um golpe de estado. Quiçá, terá ele alguma razão nos seus medos, pois só em países onde não se é livre se imaginam golpes de estado. Porque em Portugal, mesmo com diabos à solta, um presidente com tiques fascistas e governos incompetentes ainda podemos fazer música, ainda podemos criticar e não somos perseguidos pelas nossas ideias nem pensamos em golpes de estado. “Tic Tac!…”

MÚSICA DA SEMANA
Palavras serão Palavras (com Supremo G) – Ikonoklasta a.k.a. Luaty Beirão
Deixem-me falar da minha revolução
A minha revolução faz-se com amor
Quem não consegue o meu empenho
Partilhar com quem não tenho
Um pouco daquilo que tenho
Revolução não são apenas palavras
Por isso a minha são sorrisos, gestos e abraços
Esta é a minha crença
Isso ninguém me tira
Desacredito na política, a ciência da mentira
Demasiadas acusações, poucas soluções
(…)
A vossas revoluções como em tudo são negócio.
Por isso a minha revolução é o amor ao próximo.

28 Out 2015

O reflexo de Vénus

(Ou como Afrodite começou com aulas de kickboxing e tirou doutoramento em Física)

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]er mulher não é tarefa fácil. Quem já se perdeu em reflexões do género sobre o género há de ter percebido que nascer com uma vagina não é tarefa fácil. Não ter um pénis não deveria definir uma ausência. Não tendo um pénis tem-se uma vagina e isso faz-se pela diferença, pura e simplesmente. Isto são afirmações muito óbvias, poderão pensar. Estas vêm, contudo, responder o eco que se alastra (ou que se alastrou) da bela descrição de Freud de que as mulheres invejam um pénis e que se sentem revoltadas por terem sido castradas. Pois que não, não nos falta nada. Não há nada de biologicamente errado nas mulheres que possa limitar a sua experiência humana.
Em contrapartida, há algo de místico, mitológico, científico, social e consequentemente pessoal que molda a existência feminina de formas menos justas, menos libertadoras e que não ajudam a atingir tudo o que se quer e merece. Estaremos nós activamente a reduzir vivências a caixinhas que dizem ‘homem’ ou ‘mulher’? Provavelmente sim, e de igual forma para os dois lados. Dos homens esperam-se certas características e das mulheres outras, até porque quem caia na zona cinzenta poderá ter alguma dificuldade em expressar-se (até semanticamente, quando somos forçados a usar um ou outro género a abordar alguém). Para mentes abertas não será um problema, para mentes não abertas poderá sê-lo. Tem tudo que ver com os limites mais ou menos flexíveis que estas caixinhas têm na cabeça de cada um. Dessa flexibilidade se vive o desenvolvimento social e, espera-se, algum awareness pela diversidade e a sua legitimidade no mundo.
Por isso, tanto os homens como as mulheres vivem numa prisão do que é expectável, aceite e praticado em relação ao órgão sexual com que nasceram. Se expectativas de feminilidade e masculinidade afectam e contribuem para quem nós somos, e nos limitam de igual modo, como explicamos a desigualdade de género? E porque é que ainda é um problema no mundo ocidental? Porque a percepção de poder é totalmente diferente, entre um grupo e o outro. O poder é uma dimensão difícil de ser explicada e é muitas vezes esquecida na interpretação de fenómenos sociais, mas que na verdade são alicerces às práticas, crenças e vivências de comunidades ao longo de muitos anos. ‘Se as mulheres querem X, que o façam!’ Sim, certo, faz sentido. Há uma liberdade e poder inerente aos valores ocidentais que nos permite fazer tudo o que quisermos. O poder, contudo, entra na equação nas suas formas e práticas subtis, que são muitas vezes invisíveis, mas eficazes. Não se fazem as coisas só porque sim, vivemos em relação com outros seres humanos e o nosso livre arbítrio resulta da combinação do que queremos e do que somos, como nos vemos e em relação ao mundo em que vivemos.
Conheci uma investigadora que num estudo neurológico estabeleceu diferenças entre cérebros masculinos e femininos. De facto, existem diferenças no cérebro dos homens e das mulheres – cérebros masculinos mostram uma maior aptidão para os números e os femininos mostram maior aptidão para as letras. Mas como explicar estas diferenças? Ouve um qualquer jornal que se chegou à frente e erradamente assumiu que estes resultados se devem a diferenças biológicas e inatas: inalteráveis. Assustador, não é? Se as diferenças de género chegam às capacidades cognitivas, não há nada a fazer em relação a isso. Temos que esperar uma mutação genética para esbater estas diferenças que o sexo trás. Errado. O cérebro é maleável que no seu pico de desenvolvimento (quando somos crianças) se influencia pelas nossa experiências, i.e., brincadeiras. Pensem lá nos brinquedos que os rapazes ganham e nos brinquedos que as meninas ganham. Pois.
Ser mulher não é tarefa fácil. Tem que parir, manter a beleza perpétua, fazer depilação aos sovacos, ser bem sucedida e lutar pelo merecido empowerment. Ser homem também não é fácil, por tantas outras razões. A desigualdade ainda existe e as formas de contestação social que a abala: também.

27 Out 2015

O que fazer com tantos refugiados?

[dropcap style=’cirlce’]O[/dropcap]s números justificam a interrogação. Só no que diz respeito aos deslocados do conflito na Síria haverá neste momento mais de 10 milhões de pessoas longe das suas casas, 40 por cento dos quais no estrangeiro. Ao contrário da narrativa que alguma imprensa internacional tenta fazer passar e a ideia que a sucessão de cimeiras da União Europeia possa transmitir, a maior parte dos refugiados não está no interior das fronteiras da Europa. Segundo dados da Organização Internacional das Migrações (OIM), até Outubro terão chegado à Europa cerca de 650 mil pessoas, muitas oriundas da Síria e do Iraque, mas também da Eritreia, da Somália ou do Afeganistão.
O país que mais refugiados acolheu até agora é a Turquia, onde se encontrarão à volta de 2 milhões de sírios. Este número explica a disponibilidade da União para custear parte da despesa de Ancara com os refugiados. A oferta de 2 mil milhões de euros teria um objectivo muito claro: garantir que os turcos mantivessem as fronteiras da Turquia com a Grécia fechadas a não europeus.
Além da Turquia, onde estarão perto de 20 por cento de todas as pessoas que saíram da Síria desde o início da guerra civil, em 2011, só no Líbano, um Estado com pouco mais de 5 milhões de pessoas, haverá mais de 1 milhão de Sírios. Em termos globais, segundo dados do Alto do Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), ainda encabeçado por António Guterres, há por esta altura 60 milhões de deslocados em todo o mundo. Um número mais elevado do que em qualquer outro momento desde o fim da II Guerra Mundial, há 70 anos.
A grande preocupação para muitos responsáveis políticos da União Europeia nos últimos meses tem sido a de travar a vaga tão grande de candidatos a asilo, mas também a emprego. Tem sido esse o sentido das decisões tomadas pelos 28 Estados-membros nas cimeiras, a começar pela mais recente, de “pagar” à Turquia para manter os refugiados fechados no seu território, ou a mais “antiga” de aceitar apenas 160 mil pessoas no interior da União nos próximos dois anos. Isto já para não mencionar as decisões individuais de países como a Hungria, que construiu vedações nas fronteiras com a Sérvia e com a Croácia.
A União Europeia é naturalmente um destino atractivo, quer para refugiados, à procura de um local estável, desenvolvido, onde possam (re)encontrar a paz, quer para imigrantes económicos, a tentar uma nova vida, em países em que o trabalho é ainda bem pago e os apoios sociais existentes. A União corresponde à ideia idílica de paraíso na terra. A guerra está fora das suas fronteiras há 70 anos, o grau de integração política e económica fez da Europa um dos blocos mais poderosos do mundo.
Esta atracção é explicada também por uma prática que não se consegue apagar de um dia para o outro, apenas por que o número de candidatos a asilo aumentou exponencialmente. Ao contrário de outros países, destinos típicos de imigrantes, como os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália, em que prevalecem mecanismos de quotas ou de sorteio, a União tem tido uma política de portas abertas aos imigrantes.
O número total de autorizações de residência atribuídas pelos 28 Estados-membros da União Europeia foi, só no ano de 2014, de 2,3 milhões. No ano passado, foram admitidos pela primeira vez na Europa, para trabalhar, estudar ou por razões familiares, quase três vezes mais pessoas do que o número de candidatos a asilo que já chegaram ao continente europeu desde o início do ano.
Os números, divulgados na semana passada pelo Eurostat da União Europeia, representam uma diminuição de 2.2 por cento em relação ao ano de 2013. E de 9 por cento quando comparados com os de 2008. Quase um terço das autorizações de residência foi concedido no âmbito de reuniões familiares, cerca de 25 por cento foram autorizações de trabalho e 20 por cento no quadro de autorizações para prosseguir estudos. Ucranianos, norte-americanos e chineses estão entre as nacionalidades que mais procuraram a Europa para residir.
Tendo em conta estes números e a incapacidade de os Estados lidarem, por si só, com uma vaga tão grande de refugiados, sobretudo os países em redor da Síria e do Iraque, dois investigadores da Universidade de Oxford, Alexander Betts (especialista em imigrações) e Paul Collier (um economista bem conhecido pelo seu livro “The Bottom Billion” e as armadilhas ao desenvolvimento que têm afectado os países mais pobres do mundo onde vivem mil milhões de pessoas) acabam de propor nas páginas da Foreign Affairs a criação de zonas económicas especiais para refugiados, onde os deslocados poderiam desenvolver os seus negócios e contribuírem quer para o desenvolvimento dos países de acolhimento quer para a futura reconstrução dos seus países de origem.
Ao contrário de pagarem as tendas miseráveis em que os refugiados são mantidos e os mantimentos que lhes são distribuídos, os Estados de acolhimento, com a ajuda das principais potências económicas, que já contribuem bastante para a manutenção das operações do ACNUR e de outras agências que trabalham com os refugiados, investiriam em bairros residenciais e em zonas industriais, ajudando os refugiados, nas palavras de Betts e Collier, a ajudarem-se a eles próprios. Não se julgue que isto é perpetuar uma situação que se quer provisória. Os estudos mostram que os refugiados (os tais que vivem nas tendas miseráveis) acabam por ficar, em média, 17 anos nos países de acolhimento.
Todos os problemas podem ser vistos como situações, desafios ou oportunidades. O que parece é que muitos dirigentes políticos europeus ainda não passaram a fase de olhar para a vaga migratória como um problema.

26 Out 2015

Homicídio numa Joalharia

[dropcap style=’cirlce’]N[/dropcap]a passada Segunda-Feira, dia 19, um homem foi morto em Hong Kong. Miao Chunqi, um turista da China continental, foi atacado por quatro pessoas e acabou por morrer no Hospital Queen Elizabeth no dia seguinte.
O ataque aconteceu numa joalharia em Hung Hom. Miao e uma companheira, Zhang Lixia, integravam um grupo de 19 turistas de Shenzhen, que tinham chegado a Hong Kong no domingo,dia 18.
No dia seguinte, o grupo foi levado a uma joalharia, em Hung Hom, depois de ter visitado o templo Wong Tai Sin. Zhang não quis comprar nada na joalharia e teve uma discussão com a guia do grupo, Deng Haiyan, de 32 anos de idade. Miao tentou apaziguar a disputa entre Zhang e Deng, que alegadamente se tinham envolvido em confrontos físicos.
Uma fonte policial afirmou:
“A vítima tentou acalmar os ânimos, mas foi alegadamente atacada por um grupo de quatro homens. Investigações preliminares apuraram que foi arrastada para fora da loja e atacada de novo.”
Os quatro atacantes fugiram antes da polícia chegar ao local, onde Miao foi encontrado inconsciente.
Algumas horas depois dois homens foram presos – um natural de Hong Kong e o outro da China continental. Miao morreu menos de 24 horas depois de, alegadamente, ter sido espancado por quatro homens. Os dois detidos – com as idades de, respectivamente, 32 e 44 anos, compareceram ontem no Tribunal de Kowloon e foram acusados de homicídio. A Polícia também deteve as duas mulheres, Zhang e Deng, por terem lutado na via pública. Foram posteriormente libertadas sob fiança e estão sujeitas a posteriores investigações.
O Director Executivo do Conselho da Indústria de Viagens, Joseph Tung Yao-chung, declarou que foi a primeira vez que um turista vindo do continente sofreu um ataque fatal e, demonstrou a sua preocupação por este caso poder demover outras pessoas de visitarem Hong Kong. Acrescentou ainda,
“É sabido que muitos turistas continentais pagam algumas centenas de Hong Kong dólares para fazerem estas viagens. Sabe-se também que os guias recebem comissões das lojas para onde encaminham os grupos.”
O Conselho da Indústria de Viagens, um organismo regulador da actividade, solicitou uma investigação à agência envolvida, Tian Ma International Travel, de Hong Kong. Este organismo tem recebido diversas queixas de turistas continentais que se sentiram pressionados a fazer compras. O responsável afirmou que os guias estão proibidos de coagir os turistas a comprar e que arriscam a licença profissional se forem apanhados a fazê-lo.”
Em 2010, Chen You-ming de 65 anos, um antigo jogador da selecção nacional de ténis de mesa, oriundo da China continental, sofreu um colapso após uma discussão acesa com um guia que estava a pressionar os turistas a fazerem compras durante uma viagem a Hung Hom. Acabou por morrer devido a um ataque cardíaco.
O artigo não revelava se a viagem era gratuita ou se era um viagem de baixo custo. Este é um dos pontos que estão sob a investigação do governo de Hong Kong. É evidente que se os turistas não pagam nada pela viagem, fica por esclarecer onde é que os agentes de viagens e os guias vão buscar os seus honorários. Como é que sobrevivem? A resposta é óbvia. Através das percentagens que recebem das “compras forçadas”. Embora a China e Hong Kong estejam empenhados em impedir este procedimento, os casos ainda existem. E não são só as agências que oferecem viagens grátis, mas também aquelas que oferecem viagens de baixo custo que estão envolvidas. O lucro proveniente das compras forçadas é obviamente alto. As “compras forçadas” são proibidas, quer na China quer em Hong Kong, mas ainda se praticam.
Ninguém quer assistir a este tipo de situações. A morte de Miao fez sofrer a sua família e os seus amigos, mas também fez sofrer Hong Kong. Os familiares e amigos de Miao estão de luto, Hong Kong também está. A reputação de Hong Kong sai prejudicada com este acontecimento. O website “Yahoo, Hong Kong” publicou um poema escrito por uma pessoa que não revelou a sua identidade. Numa parte do poema lia-se,
“Hong Kong é um paraíso de consumo. Mas se não comprares, és enviado para o céu”.
O poema revela uma má imagem do turismo em Hong Kong. Todos os suspeitos deste crime devem ser encontrados e acusados para proteger a reputação de Hong Kong.
O governo de Hong Kong deverá analisar este acontecimento detalhadamente. Pode originar mais uma crise, prejudicial ao relacionamento com a China. Como é que o governo vai lidar com a situação? É tempo dos responsáveis demonstrarem a sua competência política.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

26 Out 2015

A culpa foi da fotografia

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á algum tempo criei com os meus alunos um grupo de chat no Wei Xin (uma aplicação grátis para mensagens de voz) onde fiquei conhecido por “Tofu Man”. A culpa desta alcunha pode ser atribuída a uma fotografia, onde apareço como meu carro e que publiquei no chat. Os alunos deram-me este nome por causa de uma personagem, dono de uma loja de tofu, do filme “Initial D” (sobre carros de corrida).
Tirei esta fotografia à porta de uma garagem, no bairro Ilha Verde, com o carro que tinha há vários anos como se fosse um com velho camarada. O mecânico tinha-me dito que o carro estava tão velho que o problema já não tinha arranjo e que o melhor era mandá-lo para a sucata. Por isso tirei a fotografia antes de me desfazer dele. Os carros são bastante diferentes das pessoas, na medida em que as pessoas têm sentimentos e os carros são apenas objectos. Na verdade as pessoas nem deveriam nutrir grandes sentimentos por objectos. Mas de facto, às vezes, as pessoas são mais insensíveis que os objectos e estes são realmente fiéis aos seus donos.
O carro era um Volkswagen em segunda mão, que já tinha sete ou oito anos quando o comprei. Grande parte dos Volkswagen fabricados nesta altura tiveram de ser remodelados devido a problemas na caixa de velocidade ou no sistema de ar condicionado. O meu carro não foi excepção e, as despesas que tive com arranjos ao longo dos anos, foram superiores ao que paguei para o comprar. As peças avariadas foram substituídas por outras retiradas de carros antigos. O mecânico tinha-me avisado para não comprar um carro europeu porque não são desenhados para o mercado asiático e a reparação das peças é muito cara. Com mais de 10 anos o meu velho Volkswagen começou a perder potência. Sempre que o conduzia tinha de ter muito cuidado, porque como andava tão devagar podia provocar acidentes no meio do trânsito. No entanto a condução era muito segura e sempre que tinha um problema com alguma peça dava sempre sinal. O chassi sólido transmitia uma sensação de calma e segurança. Não se recusava a sair mesmo que houvesse uma tempestade e acatava sempre as ordens do dono. Parava no meio da estrada para dar protecção à motorizada que tivesse caído à sua frente. Um carro consegue estas coisas, mas as pessoas nem sempre o conseguem. As pessoas, muitas vezes, dizem abertamente apoiar determinadas estratégias, mas na verdade, de forma encapotada, opõem-se à sua implementação. E em períodos de dificuldade é comum abandonarem-nos. De certa forma os carros são mais fiáveis do que as pessoas. Herbie_car
O caso mais inesquecível que se deu com o meu Volkswagen foi precisamente há dois anos quando estava para ser enviado para a sucata. Foi a 15 de Outubro de 2013, no último dia em que exerci funções como deputado na Assembleia Legislativa. No mês que se seguiu após ter tomado conhecimento que não iria ser reeleito, continuava a apresentar-me no Gabinete de Deputados às sextas-feiras à noite. Embora só trabalhasse como professor a meio tempo, ofereci a este Gabinete metade do meu salário de Outubro como deputado e submeti interpelações escritas nesta qualidade. A minha última interpelação foi submetida a 15 de Outubro. Depois de ter cessado as minhas funções de deputado, não compareci à reunião habitual da Associação de Novo Macau que teve precisamente lugar na noite de 15 de Outubro. Pedi a uma pessoa para entregar a minha carta de demissão na Associação (pedia a exoneração do Comité Permanente) e fui dar uma volta de carro com a minha família à zona dos Novos Aterros do Porto Exterior. Quando o carro já estava estacionado no segundo andar do parque de estacionamento, fez um som como se se tivesse partido qualquer coisa e vi que o chão estava coberto por um líquido vermelho e branco. O depósito de água tinha-se partido. Liguei de imediato para o mecânico que, depois de o examinar, me disse que tinha de ser levado para a oficina. Vi o meu carro ser levado, um carro que tinha estado comigo durante tantos anos e que me tinha sempre sido leal. Ao início tinha intenção de o mandar arranjar independentemente dos custos. Mas o mecânico avisou-me que o depósito de água estava seriamente danificado. Como o carro era bastante antigo, mesmo que se substituísse por um depósito novo, não podia garantir que o problema não se voltasse a repetir. Levando em consideração quer a minha segurança quer a dos outros, acabei por concordar em enviá-lo para a sucata. A fotografia publicada no Weixin foi a última que tirei com o meu carro. Como não ganho muito dinheiro com o meu trabalho a meio tempo como professor, comprei um carro em segunda mão, com mais de 10 anos, para substituir o meu Volkswagen e que ainda hoje conservo.
Pensei escrever uma história sobre o meu Volkswagen, mas depois achei que não era apropriado falar sobre os meus assuntos pessoais. Mais tarde li, num jornal mensal, uma entrevista a dois membros da Associação de Novo Macau. Na entrevista Ng Kuok Cheong afirmava “a luta pode ser uma forma de energia” ao passo que Cheang Meng Him declarava, “as lutas na Associação são uma perda de tempo”. Estes comentários fizeram-me lembrar as palavras de Mao Zedong, “da luta com a Natureza retiramos imenso prazer ; da luta com a terra retiramos imenso prazer; da luta com as pessoas retiramos imenso prazer”.

23 Out 2015

Amorficidade

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abe aquelas ocasiões em que nos sentimos renitentes de ir a algum lugar ou de fazer alguma coisa inquietos pela possibilidade de desfazermos a magia de tempos passados ou de que a experiência nos faça mesmo arrepender? Um pouco como aquela ideia de não voltarmos onde fomos felizes. Não concordo em absoluto com ela pelo seu implícito determinismo, pois nem sempre assim é, mas acontece. Acontece por tendermos a querer repetidas as sensações daquela incrível e inesquecível vez. O bom senso, todavia, diz-nos para não cairmos nessa tentação, para baixarmos as expectativas sob pena de não nos abrirmos a novas possibilidades, para evitarmos as comparações. Mas, às vezes, mesmo com as cautelas todas de prevenção, mais valia não termos saído de casa. Tal como me aconteceu a passada semana quando as Danças Ocultas tiveram a gentileza de me convidar para assistir ao espectáculo deles na fortaleza do Monte. Não fosse isso e não tinha lá posto os pés porque as boas memórias passadas naquele lugar são preciosas demais para correrem o risco de serem ofuscadas por experiências menores; mas foi o que aconteceu; é como ver fogo de artifício depois de o ter admirado da melhor forma possível, como um dia aconteceu na ribeira de Lisboa: deitado, de barriga para o ar, com o fogo a rebentar lá em cima em ecrã panorâmico. Depois disso podem rebentar as canas que quiserem pois nunca mais vai ser igual. O fogo de artifício vê-se deitado. Ponto. Neste caso, o problema não era o espectáculo, longe disso, o problema foi o Festival de Artes de Macau, ou seja, a forma como agora é organizado, ou seja, tenho dúvidas porque ainda mantém a designação de festival. O problema foi o concerto ser na Fortaleza do Monte, ao ar livre. Estranho, não é? Passo a explicar: no geral e em particular. No geral a sensação que tenho, o leitor poderá ter outra evidentemente, é o que o Festival de Artes de Macau tem vindo a perder a piada e a questão não se prende com os artistas seleccionados mas com a forma amorfa como é organizado. Voltemos à Fortaleza do Monte. Em tempos que infelizmente já lá vão, era uma verdadeira festa. As pessoas passeavam livremente pelo espaço, fumavam, bebiam, riam-se, viviam o espectáculo e confirmavam a ideia de festival, numa palavra: conviviam. Já não. Agora é como ler o manual de uma máquina de lavar; o mesmo nível de excitação.
Depois dos espectáculos, na Fortaleza ou noutro lugar, os músicos eram frequentemente conduzidos pela mão das saudosas produtoras do Festival, imiscuíam-se na vida local e andávamos todos em festa por estes dias. A ideia de levar parte do festival para a fortaleza foi excelente e era normalmente o ponto alto. Agora, ao revelar de forma lancinante a falta de espírito com que é organizado, é seguramente o ponto baixo. Foi arregimentado. As senhoras que vendiam bebidas lá em baixo, na porta dos fundos, foram proibidas de abrirem a porta. A zona de pé junto ao palco foi eliminada e substituída por uma amorfa plateia de cadeiras mal desenhadas que partem as costas a qualquer um ao fim de meia hora, estrategicamente colocada a uma distância “segura” do palco para inibir qualquer interacção mais íntima com os músicos, por isso não terá sido à toa que apesar do excelente espectáculo que as Danças e o Pedro Moutinho proporcionaram não se tenha ouvido um pedido de encore sequer! Estava tudo frio. O espectáculo começou com o anúncio de um rol de proibições: não se pode beber, não se pode comer, não se pode fumar (ao ar livre), não se pode fotografar, não se pode, não se pode… Não é mais um festival, é uma aula de escola primária chinesa. O moral que o mais ingénuo ainda poderia ter ao deslocar-se para uma festa é logo aniquilado ali. Depois o espectáculo segue sem erros nem convulsões com um público a amarfanhar e desejoso de sair daquelas putas daquelas cadeiras. Ainda se poderia pensar que as (mal)ditas estão ali por preocupação (legítima) para com as pessoas que não querem, ou não podem, estar de pé. Mas, se assim fosse, as escadas rolantes não estariam encerradas, nem as cadeiras eram tão más. Claramente o espectáculo na Fortaleza do Monte não é feito para pessoas de mais idade ou com problemas físicos, caso contrário não nos obrigavam a subir uma ladeira a pique ou a escadaria que não mais acaba para lá chegarmos. Um contra-senso sem nome de uma organização aberrante. Organizar um concerto ali ou no Centro Cultural é praticamente a mesma coisa com a vantagem das cadeiras do Centro serem muito melhores.
Uma festival é (devia ser) uma festa. Uma oportunidade de contacto e confraternização que não obedece a estes estratagemas rígidos, e ridículos, que o Instituto Cultural tem vindo a implementar. Neste caso particular, o do concerto a que me refiro, não seria mais agradável as pessoas terem uns snacks, um vinho, uma laranjada à disposição e poderem desfrutar do prazer de um concerto ao ar livre? Acham que nessas condições os músicos teriam saído frustrados (como saíram) sem um pedido de encore? Não foi por falta de merecimento mas porque as condições não estavam criadas para que o público se envolvesse. E as meninas, coitadas, de mão em riste a darem-nos indicações… Credo! De vir às lágrimas. Mesmo! A seguir, porque a perspectiva actual do Instituto Cultural é claramente funcional, ninguém da organização quis saber dos músicos para nada, ninguém os guiou a lado nenhum, ninguém os levou para o contacto com a população… até o autocarro desapareceu deixando-os apeados. Austeridade, talvez… Serviço cumprido, cheque entregue, haveria com certeza mais cadeiras para montar algures. Triste, profundamente triste. Muita coisa mudou para pior em Macau nos últimos anos, algumas para melhor naturalmente, mas as mudanças para pior estão invariavelmente ligadas com a falta de espírito presente nas decisões burocráticas, ou com a aniquilação da alma da cidade. Não basta apregoar que Macau é diferente, tem mesmo de ser e não é com esta atitude cinzenta e fria do Instituto Cultural que essa diferença se assume. Antes pelo contrário. E não me venham com as leis disto ou daquilo, com as queixas, ou lá com o diabo que quiserem. Falta-vos atitude amigos do IC, faltava-vos atitude e calor humano. Um festival faz-se com pessoas que pensam para além das ordens de serviço, para além das horas extraordinárias, para além das propostas burocráticas. Um festival faz-se com alma e respeito pelo que a palavra quer dizer: festa! Talvez o problema esteja na expressão em chinês que aponta apenas para “época das artes”, talvez. Mas numa terra que se orgulha da transferência de culturas ao longo de séculos não pode ser assim. Nem na China assim é, ou já se dignaram a ir ao festival de praia do Dia da República que se organiza em Zhuhai todos os anos? Polícia a rodos, é certo, mas toda a gente pula, come, bebe e confraterniza. Na China avança-se, em Macau recua-se. Bem vindos ao centro MUNDIAL de lazer. Bem vindos ao império da frieza e do funcionalismo. Bem vindos à Amorficidade.

MÚSICA DA SEMANA
Velvet Underground and Nico – “I’ll Be Your Mirror”
I’ll be your mirror
Reflect what you are, in case you don’t know
I’ll be the wind, the rain and the sunset
The light on your door to show that you’re home
When you think the night has seen your mind
That inside you’re twisted and unkind
Let me stand to show that you are blind
Please put down your hands ‘cause I see you
I find it hard to believe you don’t know
The beauty you are
But if you don’t let me be your eyes
A hand to your darkness, so you won’t be afraid
When you think the night has seen your mind
That inside you’re twisted and unkind
Let me stand to show that you are blind
Please put down your hands ‘cause I see you
I’ll be your mirror
I’ll be your mirror

22 Out 2015

Estou assim meio…meh

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo os seguidores do blogue homónimo desta coluna devem ter percebido (os dois ou três desocupados que ainda me vão aturando) , com a dispersa e (muito) menos frequente actualização a que esse espaço tem sido vetado, ando com pouca “pica” para escrever ou comentar sobre seja o que for. Dá-me preguiça, sei lá, antes sentava-me e produzia um assassinato de carácter em dez minutos ostentando um sorriso nos lábios, ou deixava os dedos correrem pelo teclado e em menos de nada fazia nascer mais uma blasfémia, ou um belo monumento ao politicamente incorrecto. Actualmente para debitar meia dúzia de linhas sobre algo trivial como um jogo da bola, ou uma notícia da imprensa cor-de-rosa, chego a demorar qualquer coisa como três horas. Já tem acontecido deixar ideias a meio, ou não conseguir passar para texto outras já mentalmente elaboradas, com princípio, meio e fim, e nem faço um esforço suplementar para organizar os cacos da cuca, que por esta altura mais parecem as luzes da instalação de Natal, emaranhadas dentro da caixa de cartão onde foram enfiadas à pressa em Janeiro, tempo em que ainda estavam longe de voltarem a constituir um problema. Analisados os sintomas no consultório da razão, e feito o diagnóstico, cheguei a uma conclusão: estou “meh…”. Agora podia acrescentar algo do tipo “vejam só o que tinha que me acontecer”, mas ”meh…”.
Como recebi eu esta notícia que me foi dada por mim mesmo? Indiferente, não estivesse eu completamente “meh…”. Se é grave? Se tem cura? Se é regressivo, ou se vou ficar cada vez mais “meh…” com o passar dos anos? Sei lá, e se soubesse era sinal que não estava assim tão “meh…” quanto isso. E o que ganhava eu em fingir que estou “meh…”, se a comunidade médica e científica ainda tem sérias dúvidas se não se trata apenas de uma condição meramente psicossomática, uma vez que não identifica um agente patológico que cause este “meh…”, e mais importante do que isso, não me passa um atestado médico? Podem pensar o que quiserem, que qualquer insinuação maldosa esbarra de frente em cheio com este “meh…”, e que me é igual ao litro. O “meh” forma uma carapaça de…o quê mesmo? Não interessa, pois mesmo para reagir a este diagnóstico de “meh…” sinto-me demasiado… “Meh…”.
Não sei se este estado de “meh…” tem algum lado negativo, mas e se tiver? Leva com o mesmo “meh…” com que carimbei o lado positivo. Só sei que agora leio menos, os noticiários são “meh…”, e portanto escrevo menos, e nem sei bem se isso é bom ou mau. Ando menos informado, é verdade, mas também menos ignorante – este é o aspecto metafísico do “meh…”, que é algo, e se querem mesmo que eu vos diga, não passa de outro ”meh…”. Imaginem que só aqui há dois dias é que me apercebi o Festival da Lusofonia arrancava já este sábado. Até este evento, cuja simples antecipação tinha em tempos a particularidade de me estimular o tecido eréctil, não merece da minha parte mais que um flácido “meh…”.
Gostava que me apetecesse por um segundo querer saber como é que apanhei este “meh…”; se foi através de contacto humano, da saliva, ou se o contraí na piscina, e se é ou não contagioso. Porque se for, só me preocupa ter de o partilhar com alguém, quando agora tenho todo o exclusivo de “meh…” – é meu e só meu, ouviram? Mas nem é preciso puxar muito pela cabeça, pois desconfio que o apanhei nas redes sociais (outra vez sem protecção, depois dá nisto, mas olha: “meh…”), e não me recordo de ter levado as mãos à boca, mas garantidamente perdi a conta das vezes que as levei à cabeça. Quanto à piscina, penso que fica eliminada como possível causa de transmissão de “meh…”, pois apesar do calor e das altas temperaturas que se sentiram neste Verão, foram mais os que trocaram os saltos para a piscina pelos saltos para conclusões precipitadas.
O mais estranho é a apatia que este “meh…” provoca, como que uma anestesia geral, só que em pleno gozo de todas as funções cognitivas. Sinto-me como um fantasma, que em vez de assustar, é ele próprio o assustado. Assustado por exemplo com o destaque dado pelos media a certas e alegadas “agressões” que determinado candidato a um cargo público fez a um sistema “democrático” que de infalível tem muito pouco, e de impoluto nada tem (e ainda fica a dever, coitado). Por outro lado, ninguém deu um pio a propósito do suicídio de um funcionário público local, há exactamente uma semana hoje. O funcionário exercia funções, sem que tivessem ficado especificadas quais, num departamento que é amiúde foco de mediatismo pelas razões mais diversas, mas que se faça este “meh…” perante uma lamentável tragédia que, vendo bem as coisas, não acontece todos os dias e pode ter revelar um quadro de sintomas mais grave que um simples “meh…”, se tenha encolhido assim os ombros, gesto que passou a significar na linguagem gestual exactamente isso mesmo: “meh…”. Não aceito que me digam o que é mais ou menos pertinente, pois no referido caso do “atentado à democracia” ninguém morreu – ninguém foi eleito, quanto mais.
E assim estou estes dias, a curtir discretamente a virose deste “meh…”, que me leva a que não me apeteça nada. Mas saibam que não é por nenhuma razão especial – lamento desiludir os meus queridos “inimigos de estimação”, que recebam sempre o dobro do que desejam para mim. Este estado cínico (não confundir com “clínico”) não se deve a uma qualquer condição biológica, ou “crise da meia-idade” – tudo charlatanices, como a cartomância, os esquemas financeiros em “pirâmide”, e o segundo sistema. Uma das vantagens em estar “meh…”, estado que se situa algures entre o estado de graça e o estado gasoso, é adquirir imunidade a certas distracções. Estar “meh…” é um pouco como ter dentadura postiça: é-se desdentado, certo, mas em contrapartida nunca mais se sentem as terríveis dores de dentes, que são mil vezes piores que estar “meh…”. E isto falando com experiência própria. Estar “meh…” não dói de todo, e só chateia um bocadinho. Nada a que já não esteja habituado, portanto, “meh…”.

22 Out 2015