África nossa

LIXEIRAS de materiais electrónicos e metais venenosos têm aumentado exponencialmente pelo mundo fora, sobretudo na África e nos países do Indo-Pacífico. Segundo o relatório publicado na semana passada pela ONU, o ritmo médio anual de crescimento dos resíduos electrónicos foi de 30 por cento entre 2010 e 2022, mostrando que os antigos impérios coloniais, além de continuarem a explorar as suas possessões perdidas para a independência formal, donde importam as suas matérias primas a muito baixo preço, também as utilizam como depósito final para os televisores, computadores, telemóveis e todo o tipo de máquinas de funcionamento electrónico que deixaram de servir.

Os africanos que em 2023 geraram, em média, por pessoa, 0,44kg de resíduos electrónicos recebem parte substancial dos 3,25kg que cada indivíduo produz no mundo desenvolvido.

Informa o relatório da UNCTAD que “os países em desenvolvimento suportam a maior parte dos custos ambientais da digitalização, ao mesmo tempo que colhem menos benefícios. Exportam matérias-primas de baixo valor acrescentado e importam dispositivos de elevado valor acrescentado, a par de um aumento dos resíduos digitais. (…) Constituídos por poluentes orgânicos e metais pesados como o mercúrio e o chumbo, os resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos são classificados como perigosos pela Convenção de Basileia.”

Em janeiro de 2023, a polícia espanhola desmantelou uma rede que exportou ilegalmente mais de cinco mil toneladas de resíduos electrónicos da Europa para a África Ocidental, através das Canárias.

A Comissão Europeia calcula que, dos dois mil milhões de toneladas de resíduos produzidos pelos países da União Europeia (95 milhões considerados perigosos), entre 15% e 30% são exportados ilegalmente por organizações criminosas para países da África, América Latina e Sudeste Asiático. Da exportação legal, que é muito mais volumosa, nada diz.

Compreende-se…

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Quando a escravatura foi abolida, houve países que se endividaram para pagar indemnizações, mas apenas aos proprietários de escravos. O que veio a seguir foi o trabalho forçado, que teve práticas diferenciadas em todo o ex-império português e culminou com o massacre da Baixa do Cassange, no sul de Angola, no dia 4 de janeiro de 1961.

Aí, cansados das condições de trabalho impostas pela companhia Cotonang, com apoio do governo da colónia portuguesa, milhares de trabalhadores angolanos dos campos de algodão lançaram-se num levantamento popular. A revolta foi brutalmente reprimida, tendo sido assassinados milhares de trabalhadores. Ainda hoje não se sabe quantos.

A Cotonang e as autoridades coloniais perpetraram então o que ficou para a História como o Massacre da Baixa de Cassange. Tratava-se de uma companhia luso-belga que obteve uma concessão para plantio de algodão nessa região e forçava os camponeses a cultivarem as fibras, sem receberem salário ou a vendê-las por um preço irrisório-

Os agricultores não tinham salário ou eram forçados a vender a sua produção por um valor muito abaixo do preço no mercado mundial. A obrigação de plantar algodão impedia as famílias de cultivarem seus próprios alimentos.

O poeta Arlindo Barbeitos, que lutou pela independência no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), descreve assim esta situação:

“As pessoas eram obrigadas a plantar algodão e era absolutamente indiferente que houvesse colheita de milho, massambala (sorgo), batata-doce, mandioca, feijão, aquilo que as pessoas comiam. Não importava, a colheita do algodão tinha que ser garantida. E o algodão só podia ser vendido a uma determinada empresa que tinha o monopólio, as balanças eram falseadas e o preço era baixíssimo. Se não produzissem o algodão devido, eram espancados. Isso são coisas que eu vi.”

Na revolta, os agricultores destruíram plantações, pontes e casas. A colônia reagiu enviando aviões da Força Aérea Portuguesa, que lançaram bombas sobre as pessoas. O número de mortes varia de mil até dez mil agricultores.

*

Fiquei com a pedra no sapato, ao ver o que substituiu a tão antiga, renovada e readaptada realidade da escravatura e, hoje, com o pé a doer cada vez mais, não descansei enquanto não fui mergulhar sem preconceitos óbvios nem certezas ingenuamente adquiridas nesse mar podre onde Gilgameche, Homero, Vigílio, Santo Agostinho, Averróis, Petrarca, Loyola, Camões, António Vieira, Fernando Pessoa e Hermano Saraiva, ministro de um ditador beirão e contador de histórias na TV, fizeram proliferar e repartir as águas por baleias, bacalhaus, sardinhas e medusas e alforrecas, com golfinhos de circo a entreter as academias e os patriotas da historiografia.

Quase me engasguei ao tentar saborear uma palavra que em absoluto desconhecia, chibalo, e até comecei por admitir que podia ser uma gralha arreliadora, já que tem uma fonética muito próxima um étimo moderno caçado aos espanhóis e muito em uso entre os jovens, chavalo. Provavelmente, 99,999 por cento dos humanos existentes nos dois hemisférios terrestres sabem tanto como eu sabia dos chibalos, aqueles infelizes que foram postos a substituir os escravos e os escravizados nas minas e nas plantações dos impérios coloniais.

Trata-se, afinal, segundo a Wikipédia, de “um conceito de servidão por dívida ou trabalho forçado no Ultramar Português (as províncias ultramarinas portuguesas na Ásia África), mais notadamente em Angola e em Portugal (ao contrário dos outros impérios europeus do século 20, as possessões portuguesas deixaram de ser consideradas legalmente colónias pela revisão constitucional de 1951, passando a ser designadas como províncias ultramarinas, parcelas de pleno direito do Estado Português, como forma de atenuar a pressão internacional para a descolonização). Em 1869, os portugueses aboliram oficialmente a escravatura, substituindo o escravo pelo chibalo foi usado para construir a infraestrutura das províncias africanas, pois apenas colonos portugueses e assimilados recebiam educação e estavam isentos deste trabalho forçado.”

Apesar de um pouco arrevesada, esta tradução wikipédica para o português, dá jeito utilizá-la, assim como a citação que faz do professor Motsomi Marobela: “No coração do colapso da agricultura na África Austral estava um desagradável sistema tributário colonial – o imposto sobre cabanas. Foi a introdução desse imposto que criou o que Marx chamou ’exército de reserva de trabalho’ e, que foi barbaramente explorado pelo capital de mineração. Foi esse trabalho forçado que trabalhou plantações e minas coloniais. Assim, de acordo com Seddon (2002), ‘o termo chibalo ou xibalo foi usado comumente na África Central e do Sul a partir do final do século XIX para descrever uma variedade de formas opressivas de trabalho introduzidas pelos europeus.’ Em Botsuana, por exemplo, diz-se que os homens que partiram para as minas sul-africanas foram para o makgoeng (para os brancos) por um período de seis meses como trabalhadores migrantes. Parte de seus pequenos ganhos foi para pagar o imposto. Mas as consequências de tal migração de mão de obra coagida foram profundamente prejudiciais para as economias nativas, que eram principalmente agrárias.”

Com Salazar, o chibalo foi usado em Moçambique para cultivar algodão, sendo “a Companhia do Niassa um exemplo do tipo de empresas que poderiam florescer desde que tivessem acesso a uma força de trabalho não remunerada. O investimento estrangeiro nas províncias ultramarinas portuguesas foi banido para que Portugal se beneficiasse diretamente. Todos os homens de idade adequada tiveram que trabalhar nos campos de algodão, que, por isso, se tornaram inúteis para a produção de alimentos, levando à fome e desnutrição.”

O chibalo substituiu a escravidão que apenas tinha sido abolida “em 1901, uma mera década e meia antes do final dos cinco séculos que abrangem o Império Português. No entanto, enfrentou forte oposição desde o final do século XIX de colonialistas e empresários portugueses, nomeadamente Theodorico de Sacadura Botte”, nas então províncias de Marracuene e Magude.

26 Jul 2024

O Clube da Luta (II)

“Pezeshkian might be able to bring some social freedoms. But he will be a weak president because Khamenei and his allies are much more powerful than the president.”

Sohrab Hosseini

A classe dirigente israelita está longe de estar convencida da ambição ou megalomania de Shiloah. Em torno de David Ben-Gurion, que governou o seu Estado como um quase ditador, os dirigentes trabalhistas da época tendiam para o não-alinhamento, ou seja, para a neutralidade. Pelo menos até 1956, quando, graças à guerra do Suez, o aventureiro Nasser desencadeia a vaga pan-arabista e se torna um defensor da resistência palestiniana, que organiza e promove. E aproxima-se da União Soviética.

Geopolítica dos três círculos, o árabe, muçulmano e africano, com o Egipto no centro. Perigo mortal para Israel, rodeado de árabes inimigos. Shiloah sugere a Ben-Gurion uma contra-estratégia em espelho e Israel como pivot de uma “Aliança da Periferia”, composta pelo braço Norte, com a Turquia e o Irão, e pelo braço Sul, com a Etiópia e o Sudão.

Encoberto, entendimentos bilaterais, baseados em informações (espionagem e operações especiais), comércio (ver as importações israelitas de hidrocarbonetos persas, também através da duplicação do oleoduto entre Eilat e Beersheba com a contribuição da companhia petrolífera nacional iraniana) e até produção de armas, incluindo um protótipo de míssil israelo-iraniano. Baile de máscaras. Tudo estrictamente secreto, muitas vezes salpicado de polémicas amargas sublinhadas pelos meios de comunicação social, porque as opiniões públicas respectivas e as potências opostas não apreciariam essas convergências incómodas. O que une o trio é a desconfiança em relação aos árabes e o medo do Egipto de Nasser, um cavalo de Troia soviético. Não uma verdadeira aliança. Em 29 de Agosto de 1958, numa reunião secreta em Ancara entre Ben-Gurion e o seu homólogo turco Adnan Menderes, com a presença de Shiloah, o patriarca israelita explicou que “Os árabes estão a fazer uma tal algazarra que o mundo inteiro pensa que o Médio Oriente é composto apenas por países árabes, mas isso não é verdade. Se formarmos este bloco de cinco países, poderemos garantir a nossa existência e independência, o que também terá efeitos no Norte de África”.

Pouco tempo antes, Ben-Gurion e o Xá da Pérsia trocaram missivas calorosas de entoação semelhante, com tons de intimidade multimilenar. O líder israelita recorda o que o rei Ciro fez pelos judeus, trazendo-os de volta a casa, e Mohammad Reza Pahlavi disse que “A memória do que Ciro fez pelo seu povo é-me cara e tentarei continuar esta antiga tradição”. O mesmo se passa com Haile Selassie, imperador da Etiópia, “descendente” do rei Salomão e da rainha de Sabá. Na frente dos serviços secretos, nasceu o “Trident”, um acordo de colaboração secreta entre a Mossad e os serviços correspondentes da Turquia e do Irão. A sede é em Israel, financiada pela CIA, com uma secção amarela para os turcos e uma azul para os iranianos, que depressa caiu em desuso e foi transformada num ginásio da Mossad. É impossível avaliar a extensão das trocas entre os membros da “Aliança da Periferia”, dado o grau de secretismo e informalidade. O impulso inicial perde-se rapidamente, ainda que a colaboração secreta de Jerusalém com Ancara resista entre altos e baixos até 7 de Outubro de 2023 e à escolha de campo de Erdoan a favor do Hamas, quando a tensão entre o secretismo do aparelho e a pressão da opinião pública parece esmagar as arquitecturas subterrâneas do semi-eixo turco-israelita.

O de Teerão sobrevive em parte à revolução de Khomeini, desenvolve-se na guerra Irão-Iraque (1980-1988), até ao advento do Pasdaran ao leme da República Islâmica. Dois objectivos principais unem o triângulo que é quebrar as ambições pan-arabistas de Nasser e dos seus emuladores; contar mais com a América. Atingido o primeiro objectivo mais devido ao irrealismo egípcio do que por mérito próprio, o segundo é progressivamente alcançado por Israel, ao ponto de, desde os anos de 1970, ter evoluído para uma quase simbiose. Na opinião do diplomata Gershon Avner “A aliança contribuiu para que nos sentíssemos como uma grande potência. Não somos apenas um mendigo sentado numa vala a ser alvejado em todas as direcções.” Talvez não compreendamos hoje o sentimento de precariedade que tirou o sono a Ben-Gurion e que continua a assombrar as elites mais conscientes do Estado judaico.

O fundador escreveu em 1963 ao Presidente Kennedy que “Pode não acontecer hoje nem amanhã, mas não tenho a certeza de que o Estado continue a existir depois da minha morte”. Equivalente ao roncado com que Ben-Gurion comenta a confissão do general Yehoshafat Harkabi, director dos serviços secretos militares de que “O que temos em comum é que nenhum de nós acredita que o Estado de Israel existe realmente”. Para a Turquia, que neste momento sofre por estar reduzida a uma sentinela no flanco sudeste da NATO, e para o Irão do Xá, que está menos esmagado por Washington do que parece, a “Aliança da Periferia” não é o bilhete privilegiado para o que espera o establishment americano. O quantum de influência de que o Estado judeu goza e que Ancara e Teerão esperam utilizar para os seus próprios fins não é o que Shiloah e companhia se gabam. Washington também não precisa de utilizar o canal israelita para negociar com Ancara e Teerão.

A CIA assegura que a troca de informações não excede um certo grau. Se se aproxima, Langley esvazia o depósito. Quanto ao Departamento de Estado, o lobby arabista iguala, se não ultrapassa, o lobby pró-israelita até aos anos de 1960. Hoje, os antigos aliados da periferia são adversários. E têm tendência para o parecer. Porque, enquanto o pan-arabismo já não tem vestígios e o espantalho do Ocidente é encarnado pelo jihadismo, se é que este serve para dividir a frente supostamente islamista, estes três continuam a presidir ao pódio dos desequilíbrios do Médio Oriente. Apostamos que continuarão a precisar uns dos outros. Talvez como inimigos acesos. Muitas vezes, a inimizade une mais do que a amizade. Até porque, em geopolítica, a primeira existe, a outra é digna de dúvida. Finalmente, e para já visível, a época das alianças, reais ou presumidas, passou e dificilmente voltará. No turbilhão do Médio Oriente, o menu é apenas à la carte. O império persa compreende, na sua actual forma informal, uma população multiétnica com uma maioria árabe agregada por líderes que se sacrificam diariamente a uma ideologia fundada no ódio contra Israel (Pequeno Satã) e o seu protector americano (Grande Satã).

Centrada na República Islâmica do Irão, fundada em 1979 pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini, governada, para além dos véus teocráticos, por uma oligarquia militar-policial centrada nos Guardiões da Revolução (Pasdaran) e nos paramilitares basiji. A sua ramificação em redes de clientes e milícias estende-se desde o oeste do Afeganistão (Herat) até ao Mediterrâneo oriental (Beirute), passando por Bagdade e Teerão. Penetração na Península Arábica, desde os Territórios Palestinianos Ocupados até à costa ocidental do Estreito de Ormuz e ao Iémen dos Hutis. O Irão acrescenta à sua aversão aos judeus e aos americanos a sua rivalidade geopolítica com a Arábia Saudita, que envolve as petromonarquias do Golfo, sobretudo os Emirados Árabes Unidos. O seu centro comercial e financeiro é Dubai, a lavandaria premiada de todos os tráficos iranianos e outros tráficos oblíquos. Para aqueles que resistiram desde o nascimento às sanções americanas e ocidentais, destinadas a esmagar as suas ambições nucleares e a cortar-lhes as asas imperiais, esta saída é essencial.

O leque de relações especiais é completado pela cooperação, não só energética e militar, com a Rússia, mestre das operações cinzentas, que, após a invasão da Ucrânia, arrebatou ao Irão a primazia de Estado mais sancionado do mundo. Selo de um entendimento pragmático entre impérios historicamente adversários. Para além da relação ambígua com a Turquia, rival geopolítico e ao mesmo tempo matriz genética relevante dos povos do Irão metade persas, um quarto de azeris e outros turcos, um décimo de curdos, muito poucos árabes, reflectida na parábola dos impérios persas, como testemunha a origem azeri do Guia Supremo, o turcófono Ali Khamenei; finalmente, o “olhar para Leste”, sobretudo para a China, para equilibrar a pressão americana. Para Washington, o Irão é um membro permanente de qualquer “Eixo do Mal”.

Do original, baptizado em 2002 por George W. Bush para classificar o Irão, o Iraque e a Coreia do Norte como patrocinadores do terrorismo jihadista, numa tentativa falhada de identificar os inimigos a vencer para erradicar essa raiz maléfica. E a mais recente, evocada pela administração Biden, alinhando China, Rússia, Irão e Coreia do Norte. Acusados, entre outras coisas, de conluio na produção de mísseis hipersónicos, a marca das superpotências nucleares. Os quatro cavaleiros do apocalipse estariam equipados com eles, incluindo o Irão com o seu último Fatah, os Estados Unidos ainda não. (perdoe-se a condicionalidade, mas a ideia de que a informação pública sobre armas estratégicas é real ultrapassa mesmo a nossa ingenuidade).

Além disso, os drones iranianos fornecidos aos russos estão a ajudar a afundar a Ucrânia e a aumentar o receio da Casa Branca de perder a guerra com a Rússia. Hipóteses impensáveis na actual revolução. Perante este cenário, conceber os conflitos do Médio Oriente como locais ou regionais, se não redutíveis à rivalidade Israel-Irão, é um erro crasso. Igualmente desviante é centrarmo-nos na competição ideológico-religiosa, numa região onde a legitimação divina do poder está em declínio com excepção dos extremistas religiosos do governo israelita enquanto as inclinações agnósticas, se não mesmo ateias, se propagam sobretudo entre os jovens (no Irão, a idade média é de 27 anos).

(Continua)

24 Jul 2024

As ideias absurdas de Kim Ki-duck e as diferenças de género no suicídio

O vereador de Seul, Kim Ki-duck, atraiu atenção mediática ao opinar sobre a taxa de suicídio entre os homens da cidade. Com um aumento acentuado, de 430 em 2018 para 1035 em 2023 (um aumento de 10 por cento no total), culpou prontamente a sociedade “dominada por mulheres”. Num relatório publicado no site do Concelho Metropolitano de Seul, o vereador sugere que a causa da diferença de género no suicídio é a competição das mulheres por bons empregos e a dificuldade acrescida dos homens em encontrar uma parceira para casar.

Foi com grande alegria que vi o público sul-coreano e a imprensa internacional condenarem as ideias do vereador. Muitos apontaram para o óbvio: a Coreia do Sul não é um paraíso de igualdade de género laboral. Certamente que levanta a questão de como as mulheres podem estar a competir pelos postos de trabalho que Kim Ki-duck sugere. Ainda assim, em todos estes relatos ficou por explicar o porquê da diferença de género no suicídio, um assunto demasiado sério para ser ignorado.

Será necessário olhar atentamente para a cultura local e realizar estudos mais aprofundados em Seul para entender as dinâmicas em jogo. Mas se é para atirar generalizações irreflectidas, ao menos que se fale de generalizações já bastante reflectidas e estudadas. Embora não possam explicar especificamente as dinâmicas de género em Seul, oferecem uma visão mais complexa sobre o suicídio e sua prevalência.

Salvo algumas excepções geográficas, esta é uma tendência global: os homens morrem mais por suicídio do que as mulheres, embora as mulheres sejam mais frequentemente diagnosticadas com depressão e tenham mais ideação suicida. Há uma diferença essencialmente nos métodos de suicídio escolhidos. Enquanto os homens optam por estratégias mais assertivas (e.g., atirar-se de uma ponte, usar uma arma de fogo), as mulheres utilizam outros métodos (e.g., overdose de comprimidos), que, se tratadas a tempo, podem ser revertidas e cuidadas a longo prazo. A incidência de depressão nas mulheres sugere também que lhes é prestada ajuda de forma mais atempada.

As representações e expectativas de género afectam a forma como os homens e as mulheres procuram ajuda. A masculinidade hegemónica tende a ditar que os homens não podem vulnerabilizar-se, o que contribui para maior isolamento social. Isto dificulta diagnósticos de saúde mental prévios, ou um acompanhamento mais aproximado em alturas de crise. Também ainda prevalece a crença de que os homens têm de garantir o sustento da casa, que, em situações de desemprego e precariedade laboral e social, pode suscitar os piores cenários. As mulheres, por outro lado, têm socialmente validado o contacto com as emoções, sendo mais propensas a falar sobre o que é difícil, partilhando com os outros as suas dores e desconfortos, diminuindo assim o isolamento. A causa para a disparidade de género do suicídio terá muito que ver com as representações rígidas de género que não permitem viver as dificuldades de forma acompanhada.

É importante também lembrar que, ao olhar para populações específicas, há grupos mais vulneráveis ao suicídio, exactamente por estarem em situações de precariedade mais extremas. Dentro do grupo das pessoas trans, nos EUA, 40 por cento já tentaram o suicídio. Este é o resultado das várias camadas de discriminação e exclusão social que enfrentam. É preciso preocuparmo-nos com valores absolutos, mas também é preciso analisar a propensão de forma relativa e comparada. Existem especificidades estruturais e culturais que fazem com que outras incidências se manifestem, que merecem todo o nosso cuidado e preocupação.

O suicídio é um assunto sério. É uma das principais causas de morte a nível mundial, segundo a Organização Mundial de Saúde. Macau, inclusive, tem registado um aumento no número de suicídios. No ano passado, Macau ultrapassou a média global ao registar 13 mortes por 100.000 habitantes, de acordo com fontes noticiosas locais. E porque não deveremos falar de assuntos extramente dolorosos e difíceis sem oferecer possibilidade de ajuda e resolução, aqui ficam contactos úteis para quem tem ideação suicida ou conhece alguém que tenha. Podem contactar a Caritas Hope for Life Hotline (2852 5777) para atendimento em português e inglês das 14h às 23h de domingo a terça-feira e das 9h às 18h de quinta-feira a sábado. Está fechado às quartas-feiras e em feriados nacionais. Para atendimento em Chinês (2852 5222) o atendimento é permanente (24/7).

24 Jul 2024

Cláusula de restrição ao comércio

Hoje em dia, a cláusula de restrição ao comércio, CRC, faz frequentemente parte dos contratos de trabalho e abrange várias indústrias. Habitualmente, este tipo de cláusula estipula que os trabalhadores não podem ser contratados por empresas do mesmo ramo depois de se despedirem, ou que não podem contactar os clientes dessa empresa se voltarem a trabalhar com outra do mesmo sector de actividade.

O objectivo da CRC é proteger os interesses comerciais dos empregadores e impedir que os empregados possam vir a competir com eles depois de deixarem o posto de trabalho. No entanto, também restringe inevitavelmente a liberdade de procura de emprego e a competitividade do mercado de trabalho. Que interesses comerciais é que o empregador precisa de proteger? Porque é que os trabalhadores ainda têm de ficar sujeitos a restrições depois de deixarem os seus empregos? Estas questões tornaram o CRC altamente controverso.

Recentemente, a United States International Trade Commission (FTC) anunciou que fará grandes ajustes no CRC. Esta posição da FTC, enquanto agência independente do Governo dos EUA que aplica as leis anti-trust e promove a protecção do consumidor, terá sem dúvida um profundo impacto no mercado de trabalho americano.

No passado dia 23 de Abril, os Estados Unidos aprovaram uma nova lei que estipula que os contratos de trabalho não podem ter a cláusula de restrição, incluindo aqueles que entraram em vigor antes da nova lei. A única excepção aplica-se aos que estabelecem um salário anual superior a 151.164 dólares.

Obviamente, são os altos executivos das empresas que recebem salários desta ordem de valor. A nova lei garante a vitalidade e a competitividade do mercado de trabalho e ao mesmo tempo assegura protecção adicional aos interesses empresariais, tendo em conta as informações empresariais confidenciais a que os executivos têm acesso devido ao seu estatuto especial.

Existem cláusulas restritivas semelhantes no Código Comercial de Macau, mas apontam em direcções significativamente diferentes. A nova lei americana de revisão à CRC define o âmbito de aplicação da cláusula através de um limiar salarial anual, enquanto o Código Comercial de Macau se centra mais em restrições específicas à categoria de «gestor».

Os Artigos 64 e 77 do Código Comercial de Macau dividem simplesmente os trabalhadores de uma empresa em duas categorias, “gestores’ e ‘pessoal auxiliar’. O Artigo 71, parágrafo 1, estipula que, sem o consentimento explícito de quem o nomeia, um ‘gestor’ não pode, enquanto exerce o seu cargo, trabalhar no mesmo ramo de actividade quer seja em negócio próprio, quer seja para terceiros.

No entanto, o Código Comercial de Macau não contém restrições em relação ao “pessoal auxiliar”. O disposto no artigo 71, parágrafo 1, destina-se obviamente a proteger os interesses do empregador e impedir os ‘gestores’ de administrarem negócios semelhantes de forma a evitar conflitos de interesses.

É importante salientar que embora o Código Comercial de Macau estabeleça cláusulas de anti-concorrência para os ‘gestores’ em funções, não regula esta questão após o termo do vínculo contratual. Por isso, em Macau, se os empregadores quiserem ver os seus negócios mais protegidos, podem considerar combinar a CRC dos EUA com o Artigo 71, parágrafo 1, para regular a atitude que os colaboradores em causa podem ter após cessar o seu contrato de trabalho.

Que interesses do empregador podem ser protegidos pela combinação da CRC americana com o Artigo 71 do Código Comercial de Macau? Tomemos a empresa Coca-Cola como exemplo. Assumindo que os trabalhadores tinham ficado a saber o segredo da fórmula desta bebida enquanto estavam ao serviço da empresa, o Artigo 71, parágrafo 1, do Código Comercial de Macau estipula que os colaboradores estão proibidos de ter negócios próprios ou por conta de outrem dentro do

mesmo ramo de actividade enquanto o seu contrato de trabalho está em vigor, para impedir conflitos de interesses. Quando esse contrato chega ao fim, a CRC americana pode alargar essa restrição impedindo que venham a trabalhar para outras empresas do mesmo sector, protegendo assim na totalidade os interesses da empresa Coca-Cola.

Combinar a CRC americana com o Artigo 71 do Código Comercial de Macau pode ainda vir a ajudar mais as empresas a lidar com a possibilidade da perda de clientes depois da saída dos trabalhadores. Porque enquanto exercem os seus cargos, os colaboradores constroem relações próximas com os clientes, o que lhes permite levar com eles parte da clientela habitual quando saem das empresas. De forma a impedir que isto aconteça, as empresas podem introduzir as cláusulas de restrição nos contratos de trabalho, impedindo os empregados de exercerem actividades comerciais dentro do mesmo ramo, no espaço de um determinado período de tempo após a sua saída da empresa, ou proibindo os antigos empregados de usar para o seu interesse pessoal a base de contactos do antigo empregador para evitar que as empresas percam clientes.

No entanto, a CRC não é perfeita. Embora possa conferir aos empregadores um certo grau de protecção, não pode proibir os clientes de terminarem a sua relação com a empresa e passarem a ter uma relação comercial com aquela onde passaram a trabalhar os antigos colaboradores. Caso isso aconteça, a empresa perderá alguns clientes.

A CRC é uma provisão altamente controversa. Se não for obtido um equilíbrio, o empregador tem muitas possibilidades de vir a beneficiar. Por conseguinte, as restrições impostas aos antigos colaboradores devem ser razoáveis e não devem ser exercidas por muito tempo. Em qualquer caso, se a cláusula de restrição constar do contrato de trabalho apesar de todas as polémicas os trabalhadores têm de a aceitar, e será inevitável que quando o vínculo com a empresa chega ao fim venha a haver conflitos e processos legais caso aconteça a quebra dessas cláusulas.

Portanto, a forma mais razoável de agir é procurar um equilíbrio entre os interesses dos empregadores e dos empregados. Os contratos de trabalho que têm cláusula de restrição, deverão ter disposições adicionais que compensem os empregados. Ou seja, a introdução da CRC não protege apenas os interesses da empresa, mas também limita o âmbito das actividades em que os antigos colaboradores se podem envolver após deixarem o emprego, por isso merecem ser compensados pelos seus antigos patrões .Por exemplo, se houver cláusulas de restrição no contrato de trabalho, significa que o trabalhador não pode trabalhar no mesmo sector nem contactar os clientes do antigo empregador nos seis meses que se seguem à sua saída. Então, o antigo patrão deve pagar uma soma adicional equivalente a seis meses de salário, na qualidade de compensação; ou então pagar-lhe uma quantia previamente foi acordada com o empregado. Neste sentido, tanto o empregador como o trabalhador podem ficar satisfeitos e sentir que o resultado final foi justo.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

23 Jul 2024

Um país sem sossego

Já nos bastava os problemas com os professores, com os agentes da PSP, com os militares da GNR, com os militares dos três ramos das Forças Armadas, com os Oficiais de Justiça, com os Bombeiros, com as urgências e certos serviços encerrados nos hospitais para agora ficarmos a saber que os médicos e enfermeiros vão promover greves.

Médicos e enfermeiros que juraram acima de tudo defender a vida dos doentes. Durante os dias de greve dos clínicos e enfermeiros morrem portugueses por falta de assistência médica. Será que estas duas profissões devem ter direito a fazer greve? Pela nossa parte, condenamos em absoluto e nunca nos passou pela cabeça que estas duas nobres profissões viessem a ser tão irresponsáveis.

Os portugueses vivem em sobressalto porque cada vez mais a sua vida fica com menos qualidade. Os preços dos alimentos aumentam semanalmente, o mesmo acontece com os combustíveis. Os crimes chegam ao ponto de menores já matarem menores à facada ou a tiro. Os acidentes rodoviários aumentam todos os dias. A este propósito, dizer-vos que têm morrido muitos jovens.

Na semana passada um jovem com apenas 20 anos e com a carta de condução apenas há um dia, despistou-se por perder o controlo do carro que ia a velocidade excessiva e faleceu. Num outro acidente, seis jovens, quatro raparigas e dois rapazes, o carro onde seguiam foi embater contra uma árvore explodindo e ardendo de imediato tendo morrido quatro dos jovens e os outros dois estão em perigo de vida. Aqui, cabe fazer um parêntesis para exigir às autoridades que ao informarem sobre os acidentes quando os veículos se incendeiam, que nos digam se os carros eram eléctricos ou a combustão.

É estranho, porque raramente um acidente de um carro que embate contra uma árvore se incendeia de imediato em explosão. Agora, com carros eléctricos, só nos EUA têm sido às centenas. O acidente com os seis jovens é um dos casos em que as autoridades deviam informar se se tratou de um carro eléctrico, visto ter explodido de imediato no momento da pancada contra a árvore. É importante que os amantes da modernidade e da falsa informação sobre os carros eléctricos saibam que as baterias que se situam por baixo dos assentos são de lítio e que ao mínimo embate explodem.

Se o país social vive sem sossego, o país político ainda está pior, ao ponto de um antidemocrata já fazer parte do Conselho de Estado. Facto, que há uns anos nem se imaginava ser possível. O Governo de maioria mínima apresenta-se ao povo de forma arrogante e anunciando medidas que serão impossíveis de comportar financeiramente sem que o défice nacional aumente.

A abordagem semanal na comunicação social traduziu-se na discussão sobre a forma como o Governo conseguirá aprovar o Orçamento de Estado para 2025. Não quer alianças com o Chega, apesar de a AD já namorar com o partido racista e de laivos fascizantes. O diálogo com o Partido Socialista é quase nulo e o secretário-geral do PS já afirmou que o primeiro-ministro apenas gere uma política de eu quero, posso e mando. Nestes termos, será horrível para o povo se o Orçamento não for aprovado, visto entrarmos continuamente no desassossego político e social.

Podemos ter um governo à base de duodécimos ou caminhar para novas eleições legislativas, quando os portugueses estão fartos de eleições, apesar de as sondagens actuais darem a vitória aos socialistas.

Portugal tem de mudar de rumo. Tem de ter estabilidade. Tem de ter um Governo que saiba ajudar um povo sem sossego, tem de resolver os problemas graves da Saúde e da Educação, não pode permitir que continuem a sobreviver miseravelmente reformados com um pecúlio de 200, 300 ou 400 euros mensais.

Há dias, um motorista de táxi com 30 anos de praça, no Porto, transmitiu-nos que se ia reformar por uma simples razão: cada vez tem menos dinheiro para sustentar a família devido ao aumento assustador de carros TVDE (Uber) que estão a tirar o negócio aos taxistas com condutores que nem sabem falar português e com cartas de condução falsas.

São exemplos destes que vão descontentando o povinho e inacreditavelmente já se ouve na esplanada do café, a propósito do atentado a Trump, que aqui em Portugal já há políticos a merecerem um tiro. Esta maneira de pensar é grave, intolerável, mas demonstra o estado de espírito em que vivem certos portugueses, ou seja, sem sossego.

Post scriptum (exclusivo) – Os ministros do Governo estão preocupados com a saúde do primeiro-ministro. No último debate na Assembleia da República sobre o Estado da Nação, Luís Montenegro estava com 39 graus de febre e encontra-se de baixa médica com uma infecção urinária grave.

22 Jul 2024

Tempestade política

Será que o tiroteio na Pensilvânia irá desencadear uma tempestade política na Europa e na Ásia, situadas a milhares de quilómetros da América?

A 8 de Julho de 2022, o antigo pimeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, foi assassinado quando participava num evento da campanha eleitoral na região de Nara. A sua morte representou uma perda importante para o Partido Democrático Liberal, então no poder. A tentativa de assassinato do ex-Presidente Trump num comício, terá um impacto decisivo na eleição presidencial que se realizará no próximo mês de Novembro. A reacção de Trump à agressão chamou a atenção dos tele-espectadores e dos eleitores americanos. Como as perspectivas eleitorais deste candidato parecem melhores do que nunca, é improvável que venham a ocorrer mais tentativas de assassinato. Se Trump for eleito, que alterações pode vir a haver nas relações sino-americanas e no conflito russo-ucraniano? Todos estes factores determinarão se pode vir a desencadear-se uma tempestade política.

Desde a eclosão da guerra comercial entre a China e os Estados Unidos, a situação no Estreito de Taiwan e os conflitos no Mar do Sul da China têm vindo continuamente a escalar. A operação militar especial levada a cabo pela Rússia na Ucrânia, em Fevereiro de 2022, transformou-se numa guerra de desgaste entre a Rússia e os países que integram a NATO. Quando os Estados Unidos são incapazes de mediar entre os dois maiores campos ideológicos do mundo, os conflitos são inevitáveis. O que importa é minimizar a gravidade dos danos provocados pelo conflito na medida do possível.

Os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936 foram realizados com sucesso, mas o espírito dos Jogos não foi transmitido aos líderes dos países participantes e a Segunda Guerra Mundial começou pouco tempo depois. Irão os Jogos Olímpicos de Paris, cuja cerimónia de abertura terá lugar a 26 deste mês, trazer um raio de esperança aos povos devastados pela guerra, ao contrário de inflamar ainda mais os conflitos? A procura da paz e de estabilidade para o futuro da humanidade deveria ser a aspiração comum dos líderes de todos os países. A violência política nunca resolve problemas; torna-os sim cada vez mais complexos.

Paralelamente à convocação da Terceira Sessão Plenária do 20.º Comité Central do Partido Comunista da China em Pequim, a eleição dos membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo da RAEM está marcada para 11 de Agosto, onde 344 dos 400 membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo serão eleitos. Os 348 candidatos inscritos foram avaliados pela Comissão de Defesa da Segurança do Estado da RAEM e todos cumpriam os requisitos de defesa da Lei Básica e de fidelidade à RAEM. Após verificação, o número de eleitores aptos excedeu os 6.200, mais do que os 5.700 das eleições anteriores. A Lei Básica da RAEM não prevê o sufrágio universal à semelhança da Lei Básica de Hong Kong. Seja qual for o método eleitoral usado, a escolha do Chefe do Executivo deverá resultar de uma ampla representação e de uma participação equilibrada, e um dos factores mais determinantes dessa decisão deverá ser a opinião pública. Embora a sociedade de Macau não tenha vivido grandes tumultos políticos desde o regresso à soberania chinesa, a prática do princípio “Um País, Dois Sistemas” evoluiu a par da situação de Hong Kong. Como Macau transitou do princípio “Macau governado pelas suas próprias gentes” para o princípio “Macau governado por patriotas”, a governação de Macau é actualmente caracterizada pela combinação de um “elevado grau de autonomia” com uma “governação abrangente do Governo Central”.

À primeira vista, a sociedade de Macau é estável, mas em termos de desenvolvimento, deve ainda envidar esforços para atingir o ritmo de recuperação económica de outras regiões, neste período pós-pandemia. Só quem enfrenta a tempestade tem capacidade para a acalmar!

20 Jul 2024

O Clube da Luta (I)

“Because with wise guidance you will wage war, and in the abundance of counselors is victory.”
Proverbs 24:6 (Mossad motto)

Em tempos de paz, a terra é para o homem; na guerra, o homem é para a terra. Onde o homem prevalece sobre a terra, há espaço para a verdadeira vida. No caso oposto, a morte triunfa. O homem acaba no subsolo, em um sentido físico e simbólico. Nós, europeus, ainda estamos convencidos de que habitamos a casa da paz eterna. A guerra não nos pode atingir. É por isso que, quando ela irrompe (em outros lugares), tendemos a retratá-la como uma sequência de crimes. Com uma grande quantidade de cenas horríveis. Um método contundente de não reconhecer o seu significado histórico, de abolir os seus contextos. O nosso labor é ligar os pontos cruzando as perspectivas dos protagonistas. Ler histórias na crónica. Há países em que esse exercício talvez não seja realista. As nossas ferramentas de investigação encontram resistência de culturas que parecem tão exóticas a ponto de serem impenetráveis. Por exemplo, o espaço centrado no planalto iraniano, entre o Mediterrâneo e a Ásia mais profunda, palco de milhares de anos de expansão e contracção de impérios grandiosos aos quais, para simplificar, atribuímos o título de iraniano.

Dentro e ao redor dele, populações de várias linhagens e religiões, entre as quais se destacam os árabes, os turcos e os judeus, juntamente com os persas. No último dia 7 de Outubro de 2023, mais uma carnificina sangrenta foi deflagrada ali, destinada a reordenar as cartas geopolíticas. Estamos nos espaços originais de nossa civilização, nada menos que exóticos dos quais sabemos pouco porque não ouvimos as vozes de dentro. Tentamos fazê-las ressoar. Porque temos curiosidade sobre elas. E porque, se as sufocarmos nos nossos autoproclamados esquemas universais, certamente não as entenderemos. Homenagem ao relativismo das “Cartas Persas”, com as quais Montesquieu pintou um retrato irónico das instituições francesas por meio dos olhos de dois visitantes persas imaginários em 1721. Paradigma inatingível. Mas um lembrete muito actual sobre a urgência de ouvir os outros antes de falar mal de nós mesmos, especialmente quando, por instinto, preferimos ouvir-nos.

Não existe a pretensão de desvendar os mistérios persas. Mas, assim como o mistério aumenta o fascínio, é interessante descobri-lo, apesar de tudo. Seguramente, não entenderemos nada desse teatro sem considerar as suas coordenadas sistémicas, que estão em rápida transformação. Estamos a vivenciar uma revolução geopolítica global marcada por quatro dinâmicas estruturais. Em ordem de importância, a transição dos Estados Unidos da dissuasão para a auto dissuasão; renúncia da Rússia e da China em integrar o sistema hegemónico americano e decisão de desafiá-lo em modos de guerra quente ou latente; redução drástica do Ocidente a uma minoria mundial em declínio, muito envelhecida e enfraquecida, desestabilizada pela crise de credibilidade de seu líder; emergência biológico-demográfica do “Sul Global”, jovem, disposto à violência, dividido em tudo, mas confraternizado pelo ressentimento anticolonial no estilo dos neo-destruídos da Terra.

Não há como voltar atrás, dada a profundidade da crise de identidade americana. Os danos podem ser limitados. Mas o tempo está a jogar contra o Ocidente, que prefere remover a realidade em vez de enfrentá-la. Para os Europeus, essa deriva é mortal. Os conflitos separam os nossos subúrbios do leste e do sul e expõem a nossa dependência de espaços antes protegidos pelo império americano, agora contestados. É também por isso que devemo-nos concentrar também na revolução nas áreas do Levante e do meio do oceano. Terrestre entre a Península Arábica e o planalto iraniano, marítima do Mediterrâneo oriental ao Mar Vermelho e ao Golfo Pérsico. Começando com a polaridade Irão-Israel. É necessária uma escavação profunda do império persa e uma investigação da sua relação paradoxal com o Estado judeu. Ontem era chamado de Grande Médio Oriente, agora é um objecto geopolítico não identificado.

Antes, cada um corria na sua própria pista, mesmo que morresse. Especialidade local em que os exercícios de movimento estacionário com acompanhamento musical forte. Hoje, há lutas sem regras. Os trilhos, assoreados, não podem mais ser vistos. Todos têm medo de descarrilar, mas não sabem como diminuir a velocidade. Os actores do Levante, equipados com máscaras multicoloridas adaptáveis a cada mudança de estação, lutam para se localizar geograficamente em tal confusão. Quem está com quem e onde? Faltam referências externas, as internas vacilam. Alguns duvidam da sua própria identidade. E se não sabe nem onde nem quem é, qual é o sentido de discutir estratégia? As revoluções são horrores para aqueles que as sofrem e despertares de consciência para aqueles que as observam. As chamas queimam e iluminam.

Desde 7 de Outubro de 2023, o antigo Grande Médio Oriente tem sido um hospício. Cartas fraudulentas estão a ser jogadas lá, e até agora nada de novo. Apenas o facto de que costumavam ser cobertas, mas agora são transparentes. Reveladoras. Três premissas são indispensáveis; a histórica, geopolítica e metodológica. Primeiro. Aqui, a Grande Guerra (2022-?) é mais uma fase da Grande Guerra ampliada (1914-2022). O jogo nunca foi encerrado. Conflitos gerados directamente do desmembramento dos impérios eurasiáticos, otomano, russo, francês e também do britânico. Fragmentação inacabada de poderes. Proliferação da impotência. Frequentemente vago. Segundo. A apatia americana não estratégica é agravada pela percepção dos actores do Médio Oriente, para quem a hora do vale-tudo chegou e passou. Actos que teriam parecido obscenos na alta temporada nas estrelas e listras, portanto reprimidos pelo Ocidente, ficam impunes.

É a hora dos oportunistas. E dos adversários dos hegemónicos como chineses, russos e outros que se infiltram nos espaços evacuados por europeus e americanos. Quanto a nós, seria uma oportunidade de nos tornarmos úteis como ocidentais, com ou sem razão, não percebidos como tal pelos locais e, portanto, facilitadores potenciais da paz. Terceiro. Muitos em guerra civil latente, alguns efectivos, outros em conflito directo ou indirecto com inimigos próximos e distantes Antecipemos a tese de para colocar esse caos sob controlo, as grandes potências não são nem serão suficientes. Na melhor das hipóteses, acompanharão a consolidação de actores estatais interessados em garantir um equilíbrio regional de facto, mesmo que ou porque estejam competindo entre si. Só os adversários com autoridade suficiente podem chegar a um acordo sobre uma ordem mínima. A alternativa é a penetração da Caoslândia na Europa, a começar pela Europa do Sul. Quem pode reordenar o Médio Oriente? No baralho de cartas manipuladas e expostas, três de naipe dominante são o Irão, Turquia e Israel. Estados reais. Dois impérios antigos e auto conscientes, de cultura muçulmana diferente e rivalidade comprovada.

Dotados da sabedoria que distingue a aristocracia imperial, base do reconhecimento da consanguinidade entre potências superiores. Mais o recentíssimo Estado judaico (1948), fundado menos na Shoah, mais no Livro. E em lendas históricas auto-legitimadoras ou bem inventadas. De matriz etno-religiosa refractária às tentações imperiais, ou seja, multiétnica, está em permanente emergência bélica. Hoje, paroxística. O senso comum diz que as três potências estão destinadas a entrar em confronto. Julgamento precipitado. A história não conhece cassações. Diverte-se a negar-se a si própria, para desespero daqueles que pretendem controlá-la. O passado deste triângulo é um jogo de sombras. Do amanhã não há certezas. Excepto que um certo equilíbrio do Médio Oriente depende em grande parte das suas cimeiras e das respectivas estratégias para o mundo pós-revolucionário em gestação.

Enquanto zombam e se cobrem de invectivas, israelitas, iranianos e turcos partilham dois instintos; o respeito mútuo e o desprezo pelos árabes. Serão eles, com a aquiescência de potências exteriores, que resolverão a contenda e exercerão um acto de equilíbrio de tom neo-imperial por falta de verdadeiras nações. Ou agravar o caos. O acordo entre as três estrelas rivais sobre os seus papéis e espaços respectivos é uma condição necessária para a reconstrução do Médio Oriente como uma região regida por um certo equilíbrio (e não desequilíbrio excessivo) de poder. Futura constelação de paz. O Irão, a Turquia e Israel são demasiado diferentes para uma aliança. Mas os seus interesses não impedem alinhamentos pragmáticos, reconhecidos pelo mundo. Terapias de choque contra a epidemia de loucura, se ainda for a tempo. Seguir o veneno pois estamos a lidar com amantes secretos que, embora se odeiem, se atraem mutuamente. Os amantes secretos são eternos. Sobretudo nos subúrbios. Daí a lembrança inoportuna.

Entre os protagonistas do nascimento e do estabelecimento de Israel no cenário das nações, Reuven Shiloah é a personalidade mais misteriosa. Nasceu súbdito otomano em Jerusalém, em 1909, no seio de uma família de judeus ortodoxos, cujo pai era rabino. Como bom Sabra (judeu nascido na Terra de Israel antes da formação do Estado) criado no coração mais do que ortodoxo de Jerusalém, o bairro de Mea Shearim, Shiloah não goza da simpatia dos pioneiros de origem europeia que conduzirão o Estado judeu da infância à adolescência. Forjado na luta pela independência nesse ambiente laico e socialista, morrerá cinquenta anos mais tarde, em Telavive, a trabalhar. Por vocação e profissão, foi conselheiro do príncipe, embora, como muitos dos seus homólogos, tivesse preferido liderar. No entanto, faltam-lhe os talentos do homem público e alguns centímetros de estatura. Evita as recitações obrigatórias para o político e negligencia o gosto pela caneta que anima os espiões, sobretudo quando estão fora de curso e de facto, morre em serviço permanente.

Refratário à rotina é um homem de ideias, não de organização. Profeta febril da causa patriótica, não se sabe se teve um dia de folga ou uma paixão artística. Não se sabe se alguma vez foi ao cinema, talvez para um encontro clandestino. Capaz, em privado, de fascinar e comover os hostis, de contradizer calmamente e de reprogramar os seus dirigentes para os empurrar para onde eles não queriam. Sempre ocupado a tecer e a desfazer conspirações secretas em todo o mundo. Esgueira-se por todos os corredores, abre todas as portas se isso servir o país. O seu estilo de penetração diplomática; primeiro entra com a cabeça, depois com os pés. Depois, está feito. Quase desconhecido fora do santuário do Estado judaico, agente de influência e diplomata, Shiloah tem uma rede de relações ao mais alto nível, desde o Estado profundo americano até aos sofás orientais, de África às chancelarias europeias.

É o criador e primeiro director da Mossad (1949-1952). Instituição de nome e de facto. Na definição do mais próximo dos seus amigos poderosos, o ministro dos Negócios Estrangeiros e mais tarde chefe de governo Moshe Sharett que diria “Uma unidade de reconhecimento composta por ele próprio”. Shiloah tem um objectivo muito claro que é de fazer de Israel uma grande potência. Uma vanguarda ocidental do Médio Oriente contra a União Soviética, empenhada em desvendar as cabalas pan-arabistas do líder egípcio Gamal Abdel Nasser, um duplo inimigo mortal, na medida em que era hostil a Israel e sensível às sirenes de Moscovo. Como é que um pequeno país, quase estrangulado no berço pelos árabes durante a guerra de 1948-1949, pode aspirar a tanto? A resposta é de que tornando-se um agente secreto dos Estados Unidos na região e fora dela, depois aderindo plenamente à NATO ou, pelo menos, arrancando a Washington uma garantia directa e formal de protecção.

Com o tempo, na ideia de Shiloah, Israel ascenderia à proeminência global graças à primazia da inteligência, emprestada da abordagem “brain over brawn” típica da forma britânica de liderar os americanos por trás, diríamos como os gregos com os romanos. A sinergia com a diáspora é decisiva. Shiloah argumenta: “Haverá algum país no mundo onde não se encontrem israelitas e judeus, estreitamente ligados, com acesso privilegiado a um tesouro de informação, muitas vezes com a vantagem de ocuparem posições-chave no Estado e no sector privado, de onde podem manobrar as alavancas certas? Haverá algum país no mundo onde os judeus não tenham um poder real ou imaginário?”

18 Jul 2024

Doraemon

Para comemorar o 90.º aniversário de Hiroshi Fujimoto, um dos dois criadores do clássico de animação “Doraemon” (que usava o pseudónimo “Fujio Fujio”) a exposição itinerante “100% Doraemon & Friends” foi inaugurada em Hong Kong, no passado dia 13 de Julho. Seguidamente, no próximo dia 20, o espectáculo “Doraemon” com drones de luz será apresentado em Tsim Sha Tsui East, Hong Kong, proporcionando a todos fãs e amigos um festival visual inesquecível.

A exposição foi cuidadosamente planeada e está dividida em duas áreas, uma com acesso pago e a outra com entrada livre. No interior, o salão de exposições “100% Doraemon Animation Art Exhibition Hall” alberga oito sub-exposições temáticas, desde a sala de trabalho simulada de “Fujiko·F·Fujio”, passando pelo colorido corredor do Doraemon e pelas realistas personagens animadas. A mostra dos modelos em três dimensões com os seus adereços mágicos, como a “máquina do tempo”, é alucinante. O que vale particularmente a pena mencionar é o pequeno filme de animação com a duração de seis minutos, criado de propósito por uma empresa japonesa para uma estação de Hong Kong e que será exibido num teatro miniatura, dobrado em cantonês. Esta exibição faz com que a audiência se sinta imersa no mundo da animação.

Na entrada principal da “100% Doraemon Outdoor Exhibition Area”, um Doraemon insuflável de aproximadamente 12 metros de altura recebe os visitantes. Os fãs não podem de forma alguma perder esta experiência.

Falando sobre o propósito desta exposição, a segunda filha de “Fujio Fujio”, Katsu Mata, presidente da FUJIKO PRO, afirmou afectuosamente que o entusiasmo dos fãs de Hong Kong e as suas memórias comoventes da cidade fizeram-na planear uma exposição itinerante pelo estrangeiro e o local escolhido para a inauguração foi precisamente a encantadora cidade de Hong Kong.

A versão cantonesa de “Doraemon” pertence às memórias de infância de muitos residentes da Área da Grande Baía. O seu criador conquistou o afecto de uma vasta audiência com a sua criatividade singular, os temas positivos e as suas histórias calorosas e enternecedoras. A história começa com “Daxiong”, um homem azarado. Durante o seu crescimento, a família ficou pobre, e ele próprio foi pobre toda a vida tendo contraído muitas dívidas, o que veio a afectar o seu bisneto “Xiaoxiong”. Por causa disso, “Xiaoxiong” gastou o seu pouco dinheiro para comprar “Doraemon” o pior gato robot do séc. XXII, que o enviou para a década de 70 do séc. XX para ajudar “Daxiong” a mudar o seu destino e impedir que a família se arruinasse. Embora o gato robot fosse cometendo muitos erros ao tentar ajudar “Daxiong”, devido a problemas de desempenho, estes episódios trouxeram muita alegria e emoção às audiências.

“Doraemon” tornou-se um clássico não só pela excelente equipa que o produzia e pela soberba tecnologia de animação, mas também porque o tema que aborda vai ao encontro do desejo mais profundo de todos nós, o desejo de ajudar e de mudar os nossos destinos. Nesta história, a amizade poderosa, a coragem, os sonhos e a esperança são vividamente ilustrados. Estes elementos e a sua energia positiva atravessaram as fronteiras do tempo e do espaço e tornam-se uma ponte que liga as audiências de diferentes gerações, fazendo de “Doraemon” um sucesso a nível mundial.

Lin Baoquan foi o actor que dobrou “Doraemon”. Ele usava a sua voz única e contagiante para emprestar frescura e vitalidade à personagem. Quando faleceu, deixou inúmeros fãs inconsoláveis e a sua voz passou a fazer parte das memórias eternas que guardamos nos nossos corações.

“Doraemon” traz a todos riso, alegria, esperança e o seu tema musical é simples e profundo:

“Os desejos de todos podem realizar-se

A minha felicidade é tanta que chega ao céu

Todos estão felizes, felizes, têm sonhos lindos e encontram a beleza.”

Esta letra não só retrata a bela visão da animação, mas também ecoa as sinceras expectativas de todos. E a ressonância e emotividade que atravessam gerações, fazem com que esta animação que é transmitida desde os anos 70 do séc. XX, continue a ser profundamente acarinhada e permaneça intemporal.

No mundo da animação, “Doraemon” é um parceiro mágico que ajuda “Daxiong” a mudar o seu destino. E na vida real, quem é “Doraemon”? A resposta é na verdade muito simples, “Doraemon” é cada um de nós. Só através de esforços incessantes e persistência poderemos avançar passo a passo para o melhor nós próprios e tornarmo-nos donos do nosso próprio destino. Mudarmo-nos a nós próprios é a melhor forma de mudar o nosso destino. Todos podem tornar-se o seu próprio “Doraemon”.

“Os desejos de todos podem realizar-se A minha felicidade é tanta que chega ao céu. Todos estão felizes, felizes, têm sonhos lindos e encontram a beleza.”

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

16 Jul 2024

Tragédia no mar

Durante muitos anos a minha família passou as férias de Verão nas praias entre Vieira de Leiria e São Pedro de Moel. Conheço bem aquele mar e os habitantes de todos os locais plantados à beira-mar naquela região. Gente simples, pobre, dedicada à sua paixão: a pesca. Desde a Figueira da Foz até à Marinha Grande são centenas de pescadores, homens de barba rija e de mãos que parecem ter nascido já inchadas.

Uma profissão de risco elevado. Ao longo dos anos têm morrido no mar dezenas de pescadores. A sua vida é dura porque são o sustento da família. Por vezes, com a mulher incapacitada para o trabalho e com vários filhos para criar. A vida da pesca é algo assustador, especialmente quando o mar lhe dá para o torto e de ondas de dois e três metros passa para uma altura de oito e dez metros. Se acompanhado de ventania tempestuosa a faina pode ser uma tragédia e o naufrágio é inevitável. Não foi o que aconteceu desta vez.

Entre Vieira de Leiria e São Pedro de Moel com o mar brando, as traineiras saíram para a pesca da sardinha e não longe do areal, a cerca de duas milhas apenas. Sem qualquer explicação até agora, uma das traineiras virou-se e morreram seis pescadores. Salvaram-se 11.

A tragédia no mar foi estonteante, assombrosa e as famílias ficaram à beira de um ataque cardíaco. Três pescadores estiveram uma semana desaparecidos e as forças de socorro por ar, mar e terra não pararam um dia de procurar os corpos.

Uma equipa de nadadores-mergulhadores merece a nossa condecoração porque mergulharam constantemente durante uma semana, por vezes, com o mar a não permitir o mergulho. Andaram a vasculhar a traineira afundada de ponta a ponta e as notícias eram sempre negativas até que o comandante marítimo transmitiu aos jornalistas que os mergulhadores conseguiram entrar na parte mais difícil do barco e encontraram os três corpos. As famílias enlutadas, na profunda tristeza, respiraram de alívio porque já poderiam realizar o luto e os respectivos funerais.

Aqui é que está o problema: nas famílias. Podemos informar que as seis viúvas com os seus filhos estão na miséria, porque os maridos pescadores eram o sustento do agregado familiar. Ficaram sem qualquer pecúlio e não se vislumbrou qualquer apoio oficial por parte das mais diversas instituições no sentido de ouvirmos que essas viúvas e os seus filhos iriam ter apoio pecuniário das Câmaras Municipais de Leiria, Figueira da Foz ou Marinha Grande; do Governo; da Segurança Social; de uma qualquer Santa Casa de Misericórdia; da Igreja Católica, de ninguém.

Isto, não pode acontecer. Não é humano, não é justo. O sacrifício que os pescadores fazem para que nunca falte peixe nas mesas dos portugueses há muito que devia existir um departamento governamental para apoio a casos semelhantes. A tragédia no mar espalhou-se às residências de quem perdeu os seus maridos e pais. Desta feita, foram seis, mas muitos pescadores já morreram e as suas famílias ficaram à míngua dos amigos e vizinhos.

Uma situação grave e que tem de merecer a atenção das autoridades. Não basta a Presidência da República emitir um comunicado de condolências à semelhança do Gabinete do primeiro-ministro. As condolências de Lisboa não dão de comer e vestir aquela gente que ficou na miséria. Haja uma decisão rápida e contundente por parte das autoridades em apoio a estas famílias que choram vinte e quatro horas sobre vinte e quatro.

Os pescadores têm uma profissão arriscada, certo. Vão para o mar sem saber se regressam, certo. Algumas traineiras estão velhas e não têm manutenção eficaz, certo. A maioria dos armadores apenas se preocupa com o lucro da venda do peixe, certo. No entanto, os pecadores usufruem de um rendimento mínimo e ainda são eles que tratam do arranjo das redes piscatórias. Mas, os pescadores também merecem uma reprimenda: vão para o mar e não colocam os coletes de salvação. Desculpam-se que os coletes lhes dificultam os movimentos durante a faina. Não pode ser desculpa, porque primeiramente têm de pensar na sua sobrevivência e na família que deixaram em terra.

15 Jul 2024

Biografia do orvalho

Manoel de Barros leva-nos à ponte das Fadas, esse local lindíssimo numa localidade francesa, e no entanto ele é um poeta brasileiro do século XX, um modernista, fazedor de neologismos, que disse apenas ser de uma vanguarda primitiva. É um poeta do mais excepcional que os locais oníricos relembram como padroeiro, um talvez imenso duende que transformou a competência de ser numa alegria imprópria aos atormentados que se alongam nos mistérios sem a abrangência da maravilha. E este é o título da sua demonstração de poeta transfigurado.

As fadas aparecem quais gotas de orvalho aos primeiros raios da manhã fazendo da condensação notas musicais de suavidade quase imperceptível, caiem em ramos e folhas bem ao ritmo das suas intérpretes bretãs e germânicas que galvanizaram os seus feitos que tanto influenciaram a geração poética dos anos 30, estando este estatuto ainda quase imerso num envolvente e maravilhoso pansexualismo. Manoel de Barros foi criador de gado, aquelas culturas, criadoras de mitos, e todos eles se levantavam provavelmente ao despontar da alba retendo o embrião feérico dessa hora: as bênçãos do orvalho são ainda, e mais que tudo, as rosas «rosée» que quer dizer exatamente, orvalho. E quando pelas noites quente de Verão o feminino se delícia com este denominado vinho, é ainda um brinde às fadas que quer transmitir.

O nosso poeta pertenceu na adolescência à União da Juventude Comunista, e num imenso desaire persecutório apenas foi salvo por ter escrito uma coisa chamada «Nossa Senhora da escuridão» que fez balançar algozes e chorar simpatizantes, e só terá sido salvo por esta intercepção vinda da noite.- Já eram as Fadas! Aliás, ele viveu tanto, que só as pétalas das rosas contaram os seus dias. Mas fadas andam por todo o lado! Até Italo Calvino fez uma obra a partir de recolhas folclorísticas italianas para uma abordagem do conto popular onde vemos a importância da sua nomeação: «Sobre os Contos de Fadas» e será impensável não se mergulhar nesta obra com carácter de urgência. Ou então, nunca a conhecer. Vivemos aqui, na Terra, ninguém sabe quem são estes seres, e sobretudo, as novas gerações nem leram contos de fadas.

« Perdoai

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas»

Pessoa tê-lo-ia adorado neste poema, e como se de grandes feéricos aqui se tratasse, a borboleta da biografia do orvalho é a plena metamorfose do tempo que se transmuta: mas partamos de um paradigma inverso onde a coisa amada primeiro se possui, e só depois a temos de conquistar. A janela está sobranceira aos primeiros orvalhos matutinos, e toda a graça da ressurreição condensada vem por ela, mas o sono fundo faz sonhar com dias outros sem a fronteira de orvalhos que são lembranças de lágrimas não choradas, e caímos então num lodo de finitas competências que não contemplam alvoradas.

«Vertido em seis pratos dispostos em forma de triângulo de fogo, o orvalho é agora exposto ao fluído cósmico, para aumentar a sua força (grego, «rosis»). E ao fundo as cortinas protectoras desapareceram das janelas».

12 Jul 2024

O uso ilimitado da força (III)

“In politics stupidity is not a handicap” – Napoleon Bonaparte

O “Mal da América”, também nosso, está todo aqui. Se não nos respeitarmos a nós próprios, não podemos exigir respeito aos outros. Fim da dissuasão. Para melhor compreender o que estamos a perder, um salto ao Ocidente primitivo, filho da Revolução Francesa. Quando a dramatização da história era ainda o alfa e o ómega da política e da pedagogia. “Vous êtes un homme!”. É assim que Napoleão Bonaparte, imperador dos franceses, recebe Johann Wolfgang von Goethe, talvez o maior génio literário de todos os tempos. “És um homem!” é a homenagem do novo Augusto ao Virgílio por quem está à espera de ser cantado. São 10 horas da manhã de domingo, 2 de Outubro de 1808. Estamos na sala de audiências do palácio barroco da tenência de Erfurt, uma cidade média da Turíngia, anteriormente pertencente à Prússia e recentemente incorporada pela França. O cenário é uma sala com 8,90 metros de comprimento, 6,45 metros de largura e 3,2 metros de altura. Os dois protagonistas são quase da mesma altura. Napoleão, 1,69 metros, Goethe, dois ou três centímetros mais alto. O primeiro, em sóbrio traje imperial-militar. O poeta com peruca empoada, elegante casaco bordado, calças até ao joelho, meias de seda, espada embainhada na anca, sapatos brilhantes com fivela. Napoleão fica surpreendido. Esperava um ser desleixado e desajeitado, de acordo com o seu estereótipo dos artistas alemães.

Toma o pequeno-almoço servido por um camareiro polaco gordo, partilhado com o seu braço direito sulfuroso, o duque Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, que consumava a sua traição naqueles dias, e alguns marechais. Antes de regressar à sala de audiências, um olhar sobre o contexto. Napoleão convidou o jovem czar Alexandre I a deslocar-se a Erfurt para o convencer a santificar a eterna aliança destinada a derrotar a Áustria e a Inglaterra, a que se seguiria a divisão do continente entre os dois imperadores. De 27 de Setembro a 14 de Outubro de 1808, uma testemunha ilustre, o poeta iluminista Christoph Martin Wieland, observou que “quatro reis germânicos, com um círculo de príncipes alemães reinantes e não reinantes, mais um número incalculável de carrascos e magnatas alemães, franceses e russos, giravam à sua volta para pôr fim, se possível, às velhas rixas de uma vez por todas”. O príncipe da Prússia e o enviado dos Habsburgos não faltam, misturados com uma dúzia de marechais napoleónicos recém-dotados de títulos de nobreza, mais cerca de cinquenta e sete mil soldados seleccionados para impressionar.

Uma encenação grandiosa. O rigoroso protocolo imperial, das audiências matinais do pequeno-almoço ao meio-dia, das festas de caça ao jantar na vizinha Weimar, é seguido de espectáculos teatrais representados pelas estrelas do “Théâtre français” com cenários originais vindos de Paris. Entre elas, destaca-se o célebre Talma, o Napoleão do palco adorado pelo verdadeiro Napoleão. A meia-luz das velas convida os espectadores a estudarem-se. Goethe aproveita para espiar as feições e os tiques do imperador, que também se vangloria de ter estado presente em Valmy, vitoriosa canhonada francesa que derrotou os exércitos contra-revolucionários a 20 de Setembro de 1792 e marcou a transição das guerras de rendas para os exércitos do povo bem como em Jena, a 14 de Outubro de 1806, onde arriscou a pele. O calendário dramatúrgico é fixado pelo próprio imperador, que não perde um espetáculo com Corneille, Racine e Voltaire sempre ao lado do czar. As regras são estritas, destinadas a solenizar a convenção. Um rufar de tambores assinala a chegada de um monarca, para os imperadores torna-se triplo. Quando os tambores dedicam por engano três sequências ao rei de Württemberg, o comandante fulmina dizendo “Calem-se, ele não passa de um rei!” O imperador está ocupado a convencer Alexandre do pacto entre os governantes do Oriente e do Ocidente.

O seu magnetismo parece intacto. Quase toda a gente que se cruza com ele pela primeira vez cai num desmaio, raramente por complacência. Mas, nos bastidores, acontece-lhe perder a calma. Dá-se ao luxo de ser grosseiro, sinal de que as más notícias vindas de Espanha, onde os franceses derrubaram os Bourbons mas continuam atolados na guerra de contra-guerrilha, lhe abalaram os nervos. A facilidade com que Napoleão rasga os tratados e impõe os seus parentes nos tronos das terras que conquistou, abala a sua reputação e a confiança dos restantes soberanos. De que serve estar de acordo com o imperador dos franceses? E depois Napoleão sofre as conspirações de Talleyrand, que na sombra desfaz o que tece com Alexandre, já tão obstinado como uma mula. Não se consegue obter mais do que vagos entendimentos. Fórmula privada de Talleyrand em conversas semi-clandestinas com o czar que afirma que “O povo francês é civilizado, o seu líder não; o líder das Rússias é civilizado, não o seu povo. Por isso, o czar deve aliar-se ao povo francês”.

O conselheiro camaleónico dos dois imperadores está convencido de que as verdadeiras fronteiras da França se situam entre os Pirinéus, os Alpes e o Reno. E o resto? Loucura de Napoleão que, num dos seus discursos, o apelidou de “excremento em meias de seda”. Estamos de novo na sala onde Napoleão recebe Goethe. O primeiro encontro entre o ainda jovem soldado corso, no auge da sua glória, e o sábio de mil talentos, aqui como conselheiro secreto do Duque de Weimar, permanece impregnado de uma aura misteriosa. Escassas notas escritas por Goethe em 1819 sob a forma de um esboço, bem como testemunhos enigmáticos recolhidos junto de amigos e confidentes, sugerem a metáfora da relação entre a história e a sua realização teatral. Para um duplo excesso de génio, Napoleão é demasiado reduzido para a fama do estratega militar, aquele que, reescrevendo a ordem do mundo, se preocupa em monumentalizar-se; Goethe, célebre ao ponto de as gazetas de metade da Europa difundirem imediatamente a notícia da sua audiência com Bonaparte, preocupa-se com o reconhecimento do imperador, não certamente com a urgência de lhe coser uma narração laudatória. O poder é domínio de produzir a representação de si próprio. Neste caso, o poder e o seu eventual cantor são tão excepcionais que não se podem complementar.

10 Jul 2024

Visão sábia

Ao início, o McDonald’s era apenas uma cadeia de restaurantes “drive-thru” situada ao longo das auto-estradas americanas. O cliente podia fazer a sua encomenda sem sair do carro. Quando estava pronta, recebia-a através da janela do veículo e seguia viagem. Actualmente, o McDonald’s é uma cadeia gigante de restaurantes fast-food de dimensão global e a influência da sua marca penetrou em todas as esferas do mundo dos negócios e tornou-se indispensável na nossa vida diária. O seu sucesso é indissociável da sua visão comercial.

A expansão mundial do McDonald’s ficou a dever-se a essa extraordinária visão comercial, inseparável do conceito de “adaptação aos hábitos locais”. Na China continental, um exemplo dessa adaptação está patente no McDonald’s de Chengdu, Sichuan, que serve hambúrgueres picantes e shoot rolls de bambu. Noutros locais da China, o McDonald’s também serve como petiscos nocturnos patas de galinha. Os menus adaptados aos hábitos de cada zona fizeram com que esta cadeia tivesse mais facilidade de se integrar nos mercados locais. No entanto, de todos os exemplos de adaptação, destaca-se o restaurante situado em Sedona, Arizona, EUA. À semelhança de outras filiais do McDonald’s espalhadas pelo mundo, serve o icónico menu, mas fez mudanças significativas. A alteração que mais salta à vista é a cor do logotipo, que, neste caso, passou a ter o fundo branco e o M em azul claro, ao contrário das cores clássicas, com o fundo vermelho e o M amarelo. Esta alteração deve-se a uma profunda reflexão comercial.

Segundo informação online, embora o vermelho possa estimular directamente o apetite, pode aumentar a excitação dos clientes e levá-los a comer mais depressa. O amarelo é brilhante e deslumbrante, simbolizando a luz, a vivacidade e a esperança. O logotipo vermelho e amarelo é não só chamativo, mas também confere uma infinita vitalidade à cultura McDonald’s. Por isso, o fundo vermelho com o M amarelo tornou-se desde o século passado a imagem de marca do McDonald’s.

No entanto, Sedona, está virada para a magnifica paisagem do deserto e a lei local exige que os edifícios sejam discretos de forma a não chamarem a atenção dos visitantes e ofuscarem o cenário natural. Portanto, o McDonald’s ajustou inteligentemente a cor do seu logotipo para branco e azul de forma a integrar-se nesta paisagem única. Não só cumpriu os regulamentos, mas também manteve a imagem de marca e interpretou com sabedoria o conceito de “adaptação aos hábitos locais””. O McDonald’s de Sedona mudou a cor do logotipo na placa e na louça. Com a sua frescura e singularidade, tornou-se um dos mais famosos pontos de check-in turístico na Internet.

Mas a sabedoria comercial do McDonald’s vai para além disto. Olhando para a sua história, não é difícil perceber que o McDonald’s sempre mostrou uma criatividade e uma visão extraordinárias na promoção dos seus produtos, na construção da marca e da sua responsabilidade social. Prática com a qual vale a pena aprender. Por exemplo, quando o McDonald’s voltou a vender o “General hamburger “, apostou numa campanha dirigida ao sentimento de nostalgia dos clientes e criou o poderoso slogan “O General hamburger está de volta!” e, ao mesmo tempo, explicou os objectivos da promoção, permitindo que os clientes ficassem a conhecer o produto num curto espaço de tempo e se entusiasmassem com a compra.

Além disso, o McDonald’s também sabe a combinar bem actividades comerciais com responsabilidade social. Recentemente, na promoção do hambúrguer Big Mac, escolheu o slogan “O teu hambúrguer Big Mac está de volta com o Big Mac de frango.” “Agora, por cada menu Big Mac vendido, o McDonald’s vai doar um dólar à ‘Hong Kong McDonald’s House Charity Foundation Second Home'”. Este anúncio não só promove o Big Mac e o Crispy Chicken Big Mac, mas também diz aos clientes que a política comercial do McDonald’s vai para além da obtenção do máximo lucro para a empresa. O McDonald’s leva a sério a responsabilidade social e é uma empresa cheia de amor. Esta estratégia de marketing não só satisfaz o paladar dos clientes, mas também toca os seus corações e sem dúvida que aumentou o reconhecimento e preferência pela marca.

O que é mais digno de nota é a capacidade do McDonald’s de usar estratégias de marketing inteligentes de forma a atrair a atenção dos clientes. Certa manhã, o McDonald’s anunciou subitamente no website oficial que o “McDonald’s ia suspender o café,” o que desencadeou uma onda de protestos na cidade. Todos concordavam que pequeno-almoço sem café não era a mesma coisa. Quando toda a gente falava do assunto, na parte da tarde desse mesmo dia, o McDonald’s escolheu habilmente o momento de fazer um novo anúncio, onde dizia que seria introduzido um café de maior qualidade. Este tipo de técnica de marketing, não só atrai com sucesso a atenção do público, mas também transmite inteligentemente a mensagem de actualização de um produto que é popular em toda a cidade. As pessoas têm de elogiar a publicidade bem-sucedida do McDonald’s.

A ascensão do McDonald’s, a cadeia global de restaurantes fast food, não pode ser dissociada dos seus métodos de negócio. A adaptação da estratégia da marca aos hábitos locais, as certeiras promoções dos produtos e a modelação da imagem de uma empresa preocupada com a responsabilidade social, fazem parte da sábia visão comercial do McDonald’s e do seu encanto único no mundo dos negócios. Esta sabedoria e experiência valiosas são dignas de referência e de estudo aprofundado.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

9 Jul 2024

A corrupção é generalizada

A procuradora-Geral da República aceitou deslocar-se à 1ª Comissão da Assembleia da República para prestar esclarecimentos aos deputados sobre a actividade do Ministério Público. Os casos de índole criminal ou de suspeição danosa para o Estado têm sido mais que muitos.

A demora da justiça, a quebra do segredo de justiça, as escutas a individualidades durante cerca de quatro anos têm deixado o povo sem acreditar na Justiça. No entanto, não se pode condenar o Ministério Público porque a falta de meios para levar a efeito a imensa quantidade de casos sob suspeita é uma realidade.

No cimo da lista das suspeitas judiciais está obviamente a corrupção. A corrupção que está generalizada pelas autarquias, deputados da Assembleia da República, governantes, assessores de governantes, presidentes de instituições estatais, gestores hospitalares e empresários da construção civil. Em suma, por todo o lado.

É um cancro sem cura e por mais que o Ministério Público tente realizar buscas domiciliária e não domiciliárias nunca irá acabar com a corrupção. Como dizia um comentador televisivo “está na massa do sangue”.

A corrupção verifica-se em todo o mundo, mas em Portugal, um país tão pequeno, está cada vez mais a ser notícia. No entanto, há casos em que a justiça é culpada de a situação não melhorar. Certos casos de grande importância chegam a aguardar por julgamento mais de 10 anos e outros prescrevem devido ao corrupio das defesas dos arguidos recorrerem para onde puderem provocando o arrastamento dos processos. Como se compreende o caso Sócrates? O caso Manuel Pinho? O caso Ricardo Salgado? O caso Granadeiro/Bava? O caso Joe Berardo? O caso Vale e Azevedo? E tantos outros.

Existe por esse país fora uma modalidade de corrupção fácil. Os baldios do Estado são vendidos a empresários de construção civil e a negociata corrupta movimenta milhões de euros e nunca se viu uma investigação que terminasse em sentença por os baldios irem desaparecendo. Neste particular, diga-se em abono da verdade que há um grupo de portugueses sérios que tem lutado com todos os meios para que os negócios obscuros dos baldios não se expandam.

Na semana passada, assistimos a mais uma operação da Polícia Judiciária (PJ) que movimentou mais de 100 agentes nas buscas realizadas no âmbito da operação “Concerto”, que envolve Luís Bernardo e João Tocha, suspeitos de corrupção activa e passiva, perante fortes suspeitas de favorecimento de empresas do sector da comunicação, publicidade, marketing digital e político, por parte de diversas entidades públicas, tendo esta dupla alegadamente ganho mais de sete milhões de euros só com o Estado.

A operação visou a execução de 34 mandados de busca e apreensão, 10 buscas domiciliárias e 13 não domiciliárias em organismos públicos, e 11 buscas não domiciliárias em empresas e edilidades como Lisboa, Oeiras, Mafra, Amadora, Alcácer do Sal, Seixal, Ourique, Portalegre, Sintra e Sesimbra. Isto é um descalabro e não existem agentes judiciais que cheguem para tanto delito.

Luís Bernardo é empresário de comunicação e foi assessor de José Sócrates enquanto primeiro-ministro e, mais tarde, director de comunicação do Benfica com Luís Filipe Vieira. Segundo a PJ, as diligências realizadas visaram consolidar a indiciação de que, às empresas referenciadas pela investigação, terão sido adjudicados contratos, por ajuste directo ou por consulta prévia, em clara violação das regras aplicáveis à contratação pública, designadamente, dos princípios da concorrência e da prossecução do interesse público, causando um elevado prejuízo ao Erário Público.

Imaginem que inclusivamente um dos casos de suspeita de viciação das regras da contratação pública até chegou ao Tribunal Constitucional. Isto tudo é muito grave, muito revoltante e o pior é que nem daqui a 10 anos esta gente, suspeita de corrupção e de falta de respeito pelo país que serve, terá um veredicto judicial. No caso do Palácio Ratton (Tribunal Constitucional) a comunicação foi entregue à sociedade de Luís Bernardo em 2021, por ajuste directo, mas o raio de acção do empresário é vasto e, no sector público, as suspeitas de corrupção estendem-se a contratos com diferentes entidades, como várias autarquias de norte ao sul do país, num alegado conluio entre autarcas. É caso para dizer que Portugal corrupto tem mais encanto…

8 Jul 2024

O que deve mover Macau?

Hong Kong celebrou o 27.º aniversário do Regresso à Soberania Chinesa a 1 de Julho, enquanto o Index Hang Seng continua a situar-se entre os 17.000 e os 18.000 pontos. Em resposta às perguntas dos jornalistas, o Chefe do Executivo de Hong Kong, John Lee Ka-chiu, declarou claramente que não vai proceder, durante o resto do seu mandato, à consulta constitucional em relação ao duplo sufrágio universal (para a eleição do Chefe do Executivo e para a eleição do Conselho Legislativo) tal como especificado na Lei Básica de Hong Kong, e que apenas se vai focar na revitalização da economia da cidade.

A economia de Hong Kong tem de recuperar e evitar tornar-se na “ruína financeira da Ásia”’. E quanto a Macau, como está a sua situação financeira?

Depois do Regresso de Macau à Soberania Chinesa, o Canídromo Yat Yuen encerrou e o Jockey Club passou à História. O desenvolvimento da diversificação adequada das indústrias “1+4” ainda não entrou em vigor e, por todo o lado, as lojas da cidade estão constantemente a ser vendidas ou alugadas. Mesmo que os casinos não ofereçam lanches, isso não vai aliviar as dificuldades sentidas pelas micro, pequenas e médias empresas ao terem de lidar com o impacto da “Circulação de Veículos de Macau na Província de Guangdong” e com a comercialização de produtos baratos na área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau.

A receita bruta do jogo de Macau apurada em Junho foi de 17,7 mil milhões de patacas, o valor mais baixo do corrente ano. Com a inauguração da ponte Shenzhen-Zhongshan, o projecto para a circulação no espaço de uma hora na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau foi basicamente cumprido. No quadro do desenvolvimento integrado a nível nacional, terá Macau vantagens próprias que possam atrair o investimento e trazerem novas oportunidades de crescimento? Depois do “Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau” ter sido rebaptizado com um nome chinês, que planos e estratégias tem em mente o Governo da RAEM para atrair o investimento?

A apresentação da candidatura às eleições dos membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo (CECE), encerrou no passado dia 2, assinalando oficialmente a contagem decrescente para as eleições ao sexto mandato do Chefe do Executivo. Já que as eleições deste ano para os membros da CECE foram adiadas dois meses, a Eleição do Chefe do Executivo está agendada para o próximo mês de Outubro. Ou seja, depois de estar em vigor o sexto mandato do Chefe do Executivo, sobrarão apenas dois meses para a nova equipa governativa se preparar devidamente para as tarefas futuras. Se o actual Chefe do Executivo Ho Iat Seng for reeleito, não se adivinham grandes problemas em Macau. Com base na experiência, a menos que surjam alterações inesperadas, a prática de reeleger o Chefe do Executivo em funções permanece inalterada.

Quando Ho Iat Seng tomou posse do cargo de Chefe do Executivo de Macau, teve de lidar com três anos de pandemia. A sua estratégia para fazer face a esta situação esteve alinhada com o Governo Central e os seus bons resultados foram reconhecidos. Mas como foi assinalado quando Ho Iat Seng foi eleito Chefe do Executivo de Macau, a capacidade da sua equipa administrativa era o mais preocupante. O Gabinete Geral do Comité Central do Partido Comunista da China publicou recentemente o “Esboço do Plano de Construção de Lideranças Partidárias e Governamentais em todo o País (2024-2028)”, onde se pode ler, “Para construir uma equipa de liderança sólida, foquemo-nos na escolha das pessoas certas, optimizemos a estrutura etária da equipa, aperfeiçoemos a composição profissional dos seus membros e tenhamos em conta as suas experiências e currículos.” Estes pontos chave devem também servir de referência para o sexto mandato do Chefe do Executivo

Nos últimos anos, tornou-se hábito criar narrativas favoráveis a Macau. Vários convidados populares do programa Phone-in da rádio TDM, com pontos de vista únicos desapareceram sem deixar rasto, ao mesmo tempo que alguns semanários deixaram de ser publicados e certos colunistas deixaram de escrever. À primeira vista, a sociedade de Macau é próspera, mas na realidade tem muitos problemas. Por isso, aquilo porque Macau deve lutar é, certamente, por encontrar líderes que possam conduzir os cidadãos no caminho certo.

5 Jul 2024

O uso ilimitado da força (II)

“Proportionality is a core legal principle that exists at all levels of international and domestic law. It provides that the legality of an action is determined by the respect of the balance between the objective and the means and methods used as well as the consequences of the action”.
Jeroen Van Den Boogaard
Proportionality in International Humanitarian Law: Refocusing the Balance in Practice

 

(Continuação da semana passada)

A luta pela África foi paralela à corrida ao Oeste americano e à sua unificação efectiva em 1865, depois à penetração japonesa no Sudeste Asiático, enquanto russos, britânicos, americanos e europeus se banqueteavam com os despojos da China. O período de trinta anos das duas guerras mundiais (1914-1945) retirou o Japão, a Alemanha e a Itália das fileiras das potências, completou a transferência da liderança de Londres para Washington e sancionou o fim da ordem eurocêntrica. Seguiu-se a Guerra Fria, quando os europeus vencidos, vencedores ou algures no meio (França), sob pressão americana, desmantelaram relutantemente as suas colónias para se concentrarem em conter a União Soviética e a doença comunista.

Regressa-se a uma ordem mundial, assente no Muro de Berlim (1945-1991). Mantendo-nos na lógica da bipartição simplificadora, observamos, nos quase dois séculos que separam o Congresso de Viena do suicídio da URSS, uma torção em ângulo recto do eixo estratégico mundial, da oposição Norte-Sul para Leste-Oeste. Seguiu-se a década unipolar (1991-2001), depois um período de vinte anos de ajustamento, chamado pós-Guerra Fria porque era impossível determinar o seu carácter.

A invasão da Ucrânia, ou o ataque deliberadamente provocatório da Rússia à América, seguido dos conflitos no Médio Oriente ao longo da linha de falha levantina que liga o Ocidente e o Sul Global/Maioria Mundial, cruza as duas direcções, que actuam a 360 graus, fora de qualquer paradigma e sem uma hegemonia reconhecida.

O giro unipolar é uma roda sem pivô e sem ranhura. Nunca estivemos tão longe da ordem mundial. A macro-falha a muito longo prazo continua a ser o Norte contra o Sul. É o nosso futuro próximo porque já é um passado distante. Se virmos bem, tal também era verdade no sistema soviético-americano. Organizado por potências do Norte que não podiam combater directamente, descarregavam a sua rivalidade na “Terra do Caos”. O Leste e Oeste são as duas faces do Norte divididas entre dois universalismos, mas unidas pelo pacto não escrito que permitia a cada uma delas gerir o seu império europeu, permanecendo o Sul contestável ou negligenciado.

A Guerra Fria foi a paz do Norte. Desfrutada por nós, europeus ocidentais, sofrida pelo Leste e despejada em grande parte do hemisfério sul. Hoje, os Estados Unidos, a China e a Rússia confrontam-se com todas as armas à sua disposição: militares, económicas, jurídicas, mediáticas e culturais. O único limite, por enquanto, é o confronto directo. Mas a guerra mundial, por acidente ou loucura, é uma perspectiva lógica.

Todos nós somos potenciais membros do clube da Caoslândia. Ninguém está a salvo. Outra paz, uma nova guerra fria, não está no horizonte. Os blocos já não existem, as alianças também não. Dissecados em alinhamentos provisórios, revogáveis conforme o momento e o caso. Os técnicos discutem a guerra mundial abaixo do limiar.

Jogos de palavras para encontrar sentido onde não há nenhum. Conflito de tudo numa escala planetária que ninguém quer. Mas toda a gente pensa que tem de se equipar para enfrentar a indefinível luta em curso. Só não sabem como, dada a imprevisibilidade das ameaças. O maior perigo é a excitação com que os protagonistas jogam a carta da propaganda, o outro nome da desinformação. Ao ponto de, consciente ou inconscientemente, acabarem por acreditar nela. Nenhuma trégua, nenhuma negociação real é possível senão a partir do princípio da realidade. Um exercício para o qual os poderes adultos foram outrora treinados.

Hoje, estão intoxicados pela nuvem de propaganda, que se mistura para formar um “cumulonimbus” difuso no espaço-tempo mediático. Antecipação de uma tempestade que já passou. Acontece quando se rejeita a realidade e se inventa uma realidade reconfortante. Sem nos apercebermos de que nos deixamos levar pela corrente. É aqui que reside o calcanhar de Aquiles da América. Na Grande Guerra, a sua narrativa está fora do tempo, fora do tom.

Deprimente ao grau académico-elitista, marcada pela neurose dos seus próprios cânones pretendidos universalmente, pela “reductio ad Hitlerum”, todos os líderes inimigos são Hitler, logo ninguém o é, com reabilitação póstuma do Führer até ao paradigma de Tucídides, um clássico mais citado do que lido de onde os augustos estrategas pretendem extrair a cifra secreta das guerras destinais, sem fim nem propósito. Não nos atrevemos a imaginar o que será desta anti-história para idiotas, quando a campanha contra os estudos clássicos que grassa nas universidades tiver dado frutos definitivos. Desde que se trate de comunicação de guerra, tudo bem. Mas o que está aqui em causa é o soft power, a mais eficaz das armas. Aquele que faz com que os outros, incluindo os inimigos, nos considerem dignos de imitação.

O poder que magnetizou povos de todas as latitudes durante as altas décadas da pós-II Guerra Mundial perdeu força. Caiu numa imitação pouco convicta de si próprio. Hollywood não se adapta ao clima pós-Hollywood. O vector imaginativo do sonho americano não funciona em casa e muito menos fora dela. A pedagogia cinematográfica e musical dos anos de 1950, uma década mágica na memória histórica das estrelas e riscas, é material de cineclube.

Os seus substitutos actuais são, na melhor das hipóteses, diversões. Todos os países que se prezam produzem as suas próprias séries de televisão, zonas de conforto feitas à medida e agregadores sociais. Espalham o sentimento de pertença necessário em qualquer competição, desde os Jogos Olímpicos à guerra. A cultura de massas, tornada imediata e difundida pela Net, ajuda a criar esferas de influência no mundo pós-americano em gestação. Na frente narrativa, a América já perdeu. E muitos satélites europeus, nem sequer estão a competir. Desintegração progressiva do demos pela proliferação de avatares egocêntricos. Nada mau, para quem gostaria de lutar pela democracia.

4 Jul 2024

Os populismos e a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável

Com a transição do milénio XX para o XXI, as Nações Unidas estabeleceram um conjunto de objetivos para a redução da pobreza e das taxas de mortalidade infantil, combate a epidemias, promovendo para esse efeito uma aliança à escala global para o desenvolvimento sustentável. Estes objetivos, designados por Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), constavam na Declaração do Milénio, assinada em 2000 por 189 países, tinham 2015 como limite para serem cumpridos.

Entretanto, perante a taxa de realização relativamente baixa dos ODM, começou-se a delinear, em 2012, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com base na qual se pretendia avançar na concretização de um mundo mais sustentável e próspero.

A Agenda 2030 engloba 17 objetivos, designados por Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS (“Sustainable Development Goals” – SDG), para a concretização dos quais foram estabelecidas 169 metas.
Todos os 193 Estados-Membros das Nações Unidas adotaram formalmente a Agenda 2030 em 2015, passando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável a substituir os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio. Os ODS são baseados no progresso previamente alcançado pela concretização parcial da Declaração do Milénio, tendo em vista o desenvolvimento sustentável à escala global, abrangendo aspetos sociais, económicos e ambientais.

São as seguintes as ODS:
1. Erradicação da pobreza;
2. Fome zero e agricultura sustentável;
3. Saúde e bem-estar;
4. Educação de qualidade;
5. Igualdade de género;
6. Água potável e saneamento;
7. Energia limpa e acessível;
8. Trabalho decente e crescimento económico;
9. Indústria, inovação e infraestrutura;
10. Redução das desigualdades;
11. Cidades e comunidades sustentáveis;
12. Consumo e produção responsáveis;
13. Ação contra a alteração global do clima;
14. Vida na água;
15. Vida terrestre;
16. Paz, justiça e instituições eficazes;
17. Parcerias e meios de Implementação.

Analisando o conteúdo dos ODS, é fácil constatar que há, e continuará a haver, grande resistência na sua implementação por parte de forças políticas, algumas já instaladas no poder ou em vias de o conseguirem. O avanço da extrema-direita à escala global representa uma ameaça à sua concretização, na medida em que a proteção do ambiente, o combate à perda de biodiversidade e as alterações climáticas não são assuntos que preocupem proficientemente essas forças, as quais estão mais preocupadas com êxitos económicos a curto prazo do que com a sustentabilidade do planeta a médio e longo prazo.

Com o avanço da extrema-direita na Europa e a possibilidade da eleição de Trump nos Estados Unidos da América, as perspetivas de progresso na implementação dos ODS nos próximos anos não são muito animadoras, principalmente no que se refere ao ODS nº 13 (Ação contra a alteração global do clima).

Apesar de todos os Estados-Membros das Nações Unidas se terem comprometido com os 17 ODS, alguns deles têm atuado frontalmente contra a sua implementação. Veja-se, por exemplo, no que se refere ao ODS nº 16, que engloba os conceitos de “paz” e “justiça”, o comportamento da Coreia do Norte. Este país tem atuado como um Estado-pária, visto que tem desrespeitado compromissos internacionais de maneira sistemática, nomeadamente no que se refere às resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Também a Federação Russa, com a invasão da Ucrânia e a cooperação com a Coreia do Norte, contrariando as sanções estabelecidas pelas Nações Unidas, tem agido de maneira a contrariar o ODS 16. No que se refere aos EUA, o apoio quase incondicional ao governo israelita de extrema-direita, contraria frontalmente o estabelecido na Agenda 2030 relativamente à manutenção da paz, fornecendo armamento com que Israel tem bombardeado a Faixa de Gaza, cometendo crimes que se aproximam do conceito de genocídio.

Note-se que tanto os EUA como a Federação Russa são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, o que lhes deveria conferir maior responsabilidade no que se refere à manutenção da paz. Relativamente a organizações como o Hamas (que significa em árabe Movimento de Resistência Islâmica) e o Hezbollah (Partido de Alá), ambos grupos radicais islamistas, respetivamente sunita e xiita, não é de estranhar o não comprometimento com os ODS, uma vez que não se trata de organizações oficialmente reconhecidas pelas Nações Unidas, e cuja atuação é altamente criticável, pois operam utilizando frequentemente o seu próprio povo como escudo.

Além do ODS 16, alguns dos outros objetivos estão longe de serem acarinhados por forças populistas, que têm vindo a ter cada vez mais vitórias eleitorais em democracias liberais, exercendo, em alguns Estados, lugares cimeiros.

É o que acontece na Argentina, onde o Presidente Javier Milei professa ideias que contrariam alguns dos ODS, como o número 13 (Ação contra a alteração global do clima) e, por arrastamento, os ODS 14 e 15 (respetivamente “Vida na água” e “Vida terrestre”), na medida em que a não tomada de medidas para o combate às alterações climáticas implicará graves consequências nos ecossistemas marítimos e terrestres.

Milei, que se autointitula anarcocapitalista, expressa frequentemente opiniões contrárias ao cientificamente comprovado relativamente às alterações climáticas, que classifica como sendo “mais uma das mentiras do socialismo”. Em outras democracias europeias têm ocorrido avanços de forças políticas retrógradas, sendo os lugares cimeiros em alguns desses Estados ocupados por presidentes ou primeiros-ministros de extrema-direita e, consequentemente, pouco solidários com os ODS. A este respeito, a primeira-ministra de Itália, Giorgia Meloni, não é tão assertiva como Milei, visto que não nega essas alterações, mas é muito cautelosa no que se refere à necessidade da sua mitigação.

Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, tem posições análogas às do presidente argentino, acusando a União Europeia de ter planos para combater as alterações climáticas que designa como um «devaneio utópico» que só serve para aumentar os preços da energia. São também preocupantes os avanços de forças populistas na Alemanha, Espanha, Finlândia, França, Portugal e Sérvia, onde têm alcançado êxitos eleitorais assinaláveis. No que se refere à França, o “Rassemblement National”, partido liderado por Marine Le Pen, preconiza o abandono do Pacto Ecológico Europeu. Nos EUA, a possível reeleição de Trump poderá significar um provável novo abandono do Acordo de Paris. Enfim, os êxitos recentes dos movimentos de extrema-direita não são animadores quanto à aplicação das medidas preconizadas pelas instituições e programas que zelam pela sustentabilidade do nosso planeta, nomeadamente a Organização Meteorológica Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente e o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas.

Entretanto, estamos a meio caminho do prazo para o cumprimento da Agenda 2030, e o relatório sobre o progresso das ODS (“The Sustainable Development Goals Report”), publicado em 2023 pela ONU, não é otimista.

Segundo este relatório, mais de metade do mundo está a ficar para trás no que se refere à implementação da Agenda 2030; o progresso em mais de 50% das metas dos ODS é fraco e insuficiente; em cerca de 30% das metas houve estagnação ou mesmo inversão, nomeadamente no que se refere a metas-chave em matéria de pobreza, fome e clima. No prefácio deste relatório constata-se que «A menos que atuemos agora, a Agenda 2030 poderá tornar-se um epitáfio para um mundo que poderia ter sido ».

*Meteorologista

4 Jul 2024

Assange e Costa

MEU caro Julian Assange, não terás nunca o meu perdão e é com o coração partido que te digo isto. Tal como os biltres que te prenderam e te mantiveram tantos anos no limbo da vida, cumprindo as normas que os regem, também tu, neste acordo, te declaraste culpado, em vez de satisfeito, por teres exercido o teu múnus com coragem, dignidade e consciência dos riscos a correr.

Deixa-me dizer-te que a Humanidade não deve precisar de mártires para subsistir e evoluir, mas não pode prescindir de os ter e de os honrar, sempre que as condições concretas os imponham, como é o teu caso.

Os biltres que agora chegaram a acordo contigo parecem arrependidos de serem o que são. São biltres que se arrependem de ter feito o que o seu ofício determina que façam, covardes biltres exercendo o arrependimento como salvaguarda da dignidade que lhes falta. E tu, ao chegares a acordo como eles, absolve-los, isto é, condescendes deploravelmente em abdicar da razão que tens – o teu dever de ofício foi cumprido, ao investigares o que suspeitavas existir, e, perante as certezas confirmadas, publicaste as tuas descobertas.

Também sou jornalista, também estive preso até ao dia 26 de Abril de 1974 e também não me perdoo a mim o não ter compreendido e, logo, perdoado o que idênticos biltres me fizeram, precisando agora da tua atitude para perceber que estive do lado oposto ao dos meus biltres, a fazer o que me parecia necessário, cumprindo o meu dever cívico e profissional, assim como eles julgavam necessário o seu ofício e aceitavam as respectivas regras, cumprindo-as contra mim, sem alguma vez me haverem perdoado, até quando, julgo eu, pude vingar-me e não o fiz.

Não abdico de pensar que, ao oferecerem-te o acordo para a libertação, te devias ter declarado de consciência tranquila e disposto a pagar o que fosse preciso para não te igualares aos biltres em atitude de concessão.

É claro que compreendo o teu cansaço na desgraça e o sofrimento dos teus que queres aliviar, mas nunca te aplaudirei por assumires culpas que não tinhas, embora também eu sofra só de saber isto e perceber que o mundo esteja como está, só porque foi, ao longo dos séculos, o terreno de combate entre biltres necessários e necessários heróis.

*

CONTEMPLA o rosto afável da serpente, enquanto escutas o verso mais longo de Walt Witman e zune aos teus ouvidos o vento podre das planuras estéreis. Repara no brilho húmido da sua língua bífida como a luz dos faróis noturnos, trémula e apontada aos teus lábios entreabertos de espanto. Também ondulam, à volta dos seus olhos, amáveis sombras agradecidas aos odores que emanam dos teus sonhos. As pupilas diamantinas da imensa cobra que te mede com minuciosa avaliação, para saber como acolher-te na frialdade do seu sangue ofídico, são gotas de sol incansável, eterno, comovido. É sempre assim o amanhecer da ira. Porque as guerras não param e são incontáveis as pessoas ao alcance da morte.

*

LAVEI os olhos com vinho branco, na noite passada, porque me lembrei de uma certa manhã em Genebra, quando tive de apanhar o comboio, a caminho de Paris, e porque, de facto, sem ter de me levantar do cadeirão, diante do mísero final da partida Portugal-Geórgia, era esse o líquido inglório de que restavam algumas gotas no fundo do copo que estava mesmo ao alcance do meu braço.

Nesses recordados tempos remotos de Genebra, quando ainda eram poucos os portugueses que iam para a Suíça trabalhar, a taxista, estranhando a minha pronúncia e mirando o meu bigode de circunstância, perguntou-me se eu era georgiano e a verdade é que eu não me ofendi, como certamente aconteceria se essa pergunta me fosse colocada agora ou há umas horas atrás.

Note-se que esta manhã, no meu café do costume, o ambiente era lutuoso. Só vi semblantes carrancudos e havia ácido intrínseco em todas as conversas. Nos copos apenas cerveja, até ao momento em que um fulano meu desconhecido foi ao balcão e pediu um copo de tinto.

Este súbito desalinhado, após avaliar o panorama à sua volta, ficou de pé, a beber a sua exceção. Sozinho, porque não havia mesas vagas. Se fosse vinho branco, o mais certo era eu convidá-lo para a minha mesa, mas preferi não correr o risco de atiçar todos os olhos contra mim.

Como alguém diria, tinto sim, mas só na hora certa.

*

ANTÓNIO Costa foi escolhido pelos altos poderes formais de Bruxelas para suceder, na presidência do Conselho Europeu, ao sacristão neoliberal francófono Charles Michel que antes fora o primeiro-ministro da Bélgica.

A escolha de qualquer destes dois atletas estava coroada de vitória ainda antes do tiro da partida, porque ambos dispunham do principal trunfo para as jogadas em perspetiva – o de pertencerem, pela sua irrelevância e pelo consequente desprezo dos vários valetes do baralho, ao grupo dos impotentes excelentíssimos, os utilitários de circunstância que nem sequer tentariam levar interesses próprios para as decisões do Conselho.

Com as últimas girândolas do S. João ainda a estralejar no céu lusitano, é de prever que o foguetório do orgulho nacional e do homérico triunfo da nossa pequenez possam ficar por mais uma semana ou duas a dar o tom aos arraiais noturnos e diurnos dos areópagos políticos do centrão e à agenda inebriante dos meios de comunicação social.

Gloria in excelsis, Costa, et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Laudamus te. Benedicimus te. Adoramus te. Glorificamus te. Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam, Costa.

2 Jul 2024

O caso do cadáver dentro da caixa

No passado dia 27 de Junho, a Hong Kong TVB apresentou um documentário intitulado “Guess Who I Am” (“Adivinha Quem Sou”), sobre o caso do cadáver escondido numa caixa de cartão, que chocou Hong Kong em 1974. O protagonista deste caso faleceu devido a doença em 2020, aos 74 anos de idade.

Os mais jovens podem não estar a par dos detalhes do caso do cadáver escondido na caixa. Antes de o analisarmos a fundo, vamos primeiro dar a conhecer este estranho caso a partir de informação recolhida na Internet.

Este homicídio foi o primeiro caso na história judicial de Hong Kong em que o tribunal condenou o réu baseando-se apenas em provas forenses e circunstanciais, na ausência da determinação do motivo, de testemunhas e de identificação de impressões digitais.

No dia 11 de Dezembro de 1974, uma funcionária de limpezas descobriu o corpo nu de uma rapariga, abandonado dentro da caixa de um televisor em Happy Valley, Hong Kong. Os exames forenses determinaram que a vítima tinha morrido por asfixia, devido a estrangulamento. Os mamilos tinham sido cortados com um instrumento afiado e os pelos púbicos queimados com um objecto que produzia altas temperaturas. O hímen ainda estava intacto, o que provava que nunca tinha tido relações sexuais.

Durante a investigação, a polícia descobriu que a parte inferior da caixa de televisão usada para esconder o cadáver tinha ligeiras marcas que indicavam que tinha sido arrastada. A polícia também analisou 50 carros particulares que estacionavam habitualmente no mercado e descobriu que em nenhum deles havia espaço suficiente, quer nos bancos traseiros quer no porta-bagagens, para colocar a caixa de televisão que continha o cadáver. A partir daí, a polícia concluiu que a cena do crime se encontrava provavelmente perto do local onde a caixa tinha sido encontrada.

Além disso, a polícia também investigou mais de 750 funcionários de lojas de electrodomésticos das proximidades, tentando descobrir se o motivo do homicídio teria sido a rejeição de um avanço sexual, mas não conseguiram encontrar provas conclusivas.

No final de Dezembro de 1974, um agente entrou numa loja de gelados onde o assassino trabalhava. Enquanto estava a comprar um refrigerante, descobriu acidentalmente que a loja tinha um sótão. A polícia investigou o sótão e descobriu uma grande quantidade de material eléctrico e de caixas de cartão empilhadas, indícios de uma ligação ao caso. Posteriormente, ficaram a saber pelos colegas da vítima que ela frequentava esta loja de gelados. De seguida, a polícia verificou as escalas dos trabalhadores da loja e verificou que na noite do crime só estava a trabalhar um deles e esse homem foi detido.

Entre as provas fornecidas pela equipa forense ao tribunal, conclusivas para a condenação do réu, encontravam-se pedaços de tecido encontrados no corpo da vítima, no sótão e em casa do criminoso. Continham todos dois pedaços de fibra de cor verde e origem desconhecida. Além disso, as fibras encontradas sob as unhas da vítima correspondiam às fibras do fato do réu. No julgamento, o agente da polícia afirmou, “Um só indício não é esclarecedor, mas muitos são.” Com isto quis dizer que muitas provas ligadas entre si formam um conjunto esclarecedor. O conjunto de provas fez com que fosse difícil o criminoso escapar à justiça.

Embora o réu tivesse insistido que não tinha intenção de matar, não podia ser condenado apenas com base nas provas relacionadas com as fibras, os fios de cobre, os pedaços de papel, etc. Mas o tribunal acabou por considerá-lo culpado do crime.

Desde que a pena de morte foi abolida em Hong Kong em Dezembro de 1966, o Governador da cidade, MacLehose, alterou este castigo para prisão perpétua. Na década de 90 do século passado Hong Kong permitiu que os prisioneiros condenados a prisão perpétua saíssem em liberdade condicional e foram libertados em 2002.

A estação Hong Kong TVB filmou o documentário “Missing Person” em 2020. Os responsáveis entraram inicialmente em contacto com o assassino e todo o processo de entrevistas demorou quatro anos. O entrevistado continuava a afirmar a sua inocência, mas dizia que havia poucas hipóteses de reverter a sentença no actual quadro jurídico. Como não queria que a família fosse afectada, pediu à TVB que só transmitisse o documentário depois da sua morte.

O caso do corpo escondido na caixa gerou uma enorme polémica porque ao abrigo da common law, a condenação do réu deverá ser feita de forma a que “não reste qualquer dúvida razoável”. No entanto, à época, a acusação não tinha provas conclusivas que apontassem diretamente para o réu e não apontou um motivo convincente para o crime. Todos estes factores fizeram com que a sociedade de Hong Kong ficasse com algumas suspeitas sobre este caso.

Cinquenta anos depois do sucedido, o caso do cadáver escondido na caixa de cartão continua a dar que falar em Hong Kong. Independentemente do veredicto, este caso tornou-se um importante marco na história do sistema jurídico da cidade, lembrando-nos que temos de procurar alcançar a justiça e o rigor em todos os julgamentos. Para que um réu seja condenado, não pode “restar qualquer dúvida razoável.” Quanto mais provas conclusivas existirem, menores serão as dúvidas e as questões e mais justos serão os julgamentos em Hong Kong.

A vítima do caso de que vimos a falar tinha apenas 17 anos. Esperemos que em breve venha a descansar em paz.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

2 Jul 2024

A saúde continua doente

Há muitos anos que o povo português tem vindo a sofrer com a falta de organização, gestão, dinheiro e profissionais na Saúde. Construíram-se novos hospitais e centros de Saúde, mas o serviço aos utentes deteriorou-se de ano para ano. Assistimos ao trabalho dos mais diversos ministros da tutela, cada um com a sua ideia, mas a situação foi piorando. Houve até quem se tivesse demitido depois de ter feito um bom trabalho durante a pandemia da Covid 19.

Aponta-se o dedo fundamentalmente a dois factores: falta de meios para os médicos e enfermeiros e má gestão dos estabelecimentos hospitalares. O actual Governo veio com um plano de emergência, mas nada melhorou e na semana passada a presidente da Federação Nacional dos Médicos veio, mais uma vez, chamar à atenção que as lacunas continuam a ser graves.

O povo continua a deparar-se com serviços encerrados e especialmente as mulheres grávidas continuam sem saber concretamente onde podem ter os filhos perto de casa. Já ouvia dizer o meu avô que “com a saúde não se brinca”. No entanto, o que se passa nesta área parece o jogo do gato e do rato, com a agravante de aumentar a toda a hora os casos de negligência sem que as investigações terminem em sanção para o prevaricador.

Em Viana do Castelo aconteceu um caso que chocou o país e que não tem qualquer desculpa para ficar impune. Um homem de 57 anos, pai de dois filhos, andava há dias a queixar-se à mulher de que sentia umas dores no peito e no movimento dos braços, principalmente quando tinha de guiar o tractor.

O caso piorou e a sua mulher levou-o para o hospital. Na triagem um enfermeiro (?) ou um chamado técnico de enfermagem (o que é isso?) colocou-lhe uma pulseira de cor verde, que significa a menor gravidade. A mulher do paciente tentou dizer ao tal “especialista” que entregou a pulseira verde que o caso poderia ser grave e relacionado com o coração.

O “especialista” nem a deixou falar e apenas balbuciou: “Isso é uma virose”. O doente esperou sete horas sem ninguém o atender e, no fim, quando já estava muito mal foi levado para os cuidados intensivos e veio a morrer, concluindo a autópsia de que se tinha tratado de um ataque cardíaco. Os familiares mais próximos iam morrendo incrédulos com o que tinha acontecido. A mulher não sabe o que fazer à vida para criar os filhos porque a vítima era o grande amparo familiar.

O hospital de Viana de Castelo mandou levantar um inquérito e agora, pasmem: o relatório concluiu pelo arquivamento do processo. Arquivamento? Então a incompetência e a negligência morrem solteiras desta forma? Um doente à beira de um ataque cardíaco, diagnosticam-lhe uma virose, aguarda sete horas sem tratamento, morre e o hospital arquiva o inquérito? Para além de desumano é crime e a merecer uma sentença pesada. Nada acontece.

Na opinião do referido hospital tudo foi executado dentro das regras. Revoltante, obviamente que por essa razão, a família vai accionar um processo em tribunal. Esperemos que a Justiça seja diferente das conclusões do inquérito hospitalar e que os responsáveis pela morte do doente sejam punidos judicialmente.

Casos semelhantes têm acontecido neste país e as queixas maiores vão direitinhas para quem executa as triagens dos doentes que chegam aos hospitais. Algo de diferente tem de ser revisto e não, dizer-se apenas que faltam médicos ou enfermeiros, que ganham mal, que não têm condições de trabalho e que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) precisa de mais investimento. Não se compreende como é que alguns centros de Saúde funcionam maravilhosamente e outros têm uma gestão de trazer por casa…

O SNS tem bons profissionais, tem melhorado no atendimento e nas cirurgias, apesar de se esperar quase um ano por uma consulta de Reumatologia, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O SNS não precisa que a tutela se decida pela paridade de serviço com hospitais privados.

Os privados são para os ricos e o SNS tem de servir cada vez melhor a maioria do povo. O investimento estatal tem de ser uma realidade e a ministra da Saúde não pode, como o fez na semana passada, cancelar uma reunião de suma importância que estava agendada com a Federação Nacional dos Médicos. Não pode desprezar os profissionais mais importantes numa cadeia de socorro a quem lhe bateu à porta uma doença grave.

A ministra da Saúde tem de saber que os médicos estão a ficar traumatizados pelo cansaço, pelo salário ridículo, se contarmos as horas extraordinárias não pagas que os obriga a preferirem os privados e a ficarem fartos de ver-lhes morrer pessoas nos braços porque estiveram nove, 12 ou 20 horas à espera numa maca para serem atendidas. Onde está, afinal, o humanismo tão apregoado destes governantes? No cofre das Finanças? Para se desculparem que o orçamento não dá para tudo? Antes de se decidirem pelos aeroportos, comboios de alta velocidade e novas pontes, pensem antes nas pessoas e na área da Saúde que é sem dúvida a mais necessitada para bem do povo. O contrário é demagogia, fingimento, promessas vãs ou contratos chorudos que deem algum rendimento às empresas dos amigos.

Post scriptum – Saudavelmente, Portugal reagiu com regozijo pela nomeação de António Costa para o alto cargo de presidente de Conselho Europeu.

1 Jul 2024

Livro Negro

Há cada vez mais cortejos de fétidas tendências desembocando nas agruras da edição, que provocam calafrios, e um mais que hediondo arbitramento autoral à mistura com editoras que não passam de pólos terroristas do conceito literário e, com toda esta superabudância de vacuidade degenerativa, não andamos longe de uma vingança gratuita feita paulatinamente por todos aqueles que em vórtice convocam as Nações para a morte do poeta.

Só que ele ficará. Aliás, mais nada restará que a visão do Poeta, esse Felino que olha do cimo da Árvore da Vida, frondosa e alta, toda a existência a passar de um ângulo quase intangível – um gato também não dirige o seu olhar a partir de baixo, mesmo em doméstica convivência irá sempre para o cimo das estantes contemplar a disposição humana na arquitetura da sala.

Sabemos muito bem que não somos guindastes, e por mais que transformemos em altura as nossas arquiteturas, fazemo-lo no estrito conceito de casulo, que a vertigem augura sempre na espécie razões de sobra para grandes projeções que se equiparam a Ícaros na ânsia terráquea por se lançarem no sol(o) onde estas agoras gentes não passam de seres paisagísticos, bilhetes-postais para tráfico de venda das suas próprias raízes, onde neste assistir do contrabando auspicioso se espelham ainda com sorrisos triunfalistas que selam o fim de uma civilização por alienação sem paralelo no tempo dos “autores” indutores… Induzimos os seres a sentirem-se estranhos em seus corpos, a procurarem a sua alma, as suas reminiscências, a mudarem, em vez de conservar, corrigir, adaptar. Impulsionamos a desordem biológica, o fim do contributo distributivo da espécie, e há agendas que pagam fortunas para estas manifestações e que esquecem a justiça social de uma outra humanidade explorada nos afãs de um jogo obscuramente propagandístico.

Lemos este embuste como nos tirassem a luz das coisas começadas, dos mais belos instantes em que o espírito ganhou aquelas asas prestes a cruzar o Bojador da nossa ignorância, ultrapassando os nossos medos

E

No Livro

Dizemos:

Nós somos os povos do Livro. Inadiáveis, traumatizados, confusos, hierárquicos, suspensos, em transe. Ele se fez Negro pela opaca interpretação dos séculos, e nós, transgressivos sem causa, muito embora lembrando as fontes remotas da linguagem – esse sopro – língua escrita, fascinante código: chegámos ao atoleiro das frágeis reservas individuais ao serviço de pontos de vista, sentimentos, especulações e engrenagens. Estamos quase a dizer adeus ao primeiro parágrafo do Livro, e numa incongruente, demagógica e infernal tendência do culto da personalidade, ele é agora, e mais que nunca, inundado por pragas bem à porta de um outro patamar onde deve começar a sua acção: a linguagem telepática!

O Livro vai mudar. Esta nossa etapa tão escapatória, escatológica, improvável, vulnerável, não será inscrita na sua proeza, a dos registrados. Para trás, lindos seres, belas fontes, e grandes, todas as experiências…

Mas o Livro é apenas um. Nós achamos que ele é Negro como todos os buracos que engolem galáxias inteiras por este universo fora, mas também há homens que têm medo da penetração tal como qualquer estrela que não deseja dissipar-se, que o ser que penetra entrará para sempre na combustão do desaparecimento. E há ainda no Livro esse insidioso pecado de Onã.

28 Jun 2024

O uso ilimitado da força (II)

“Proportionality is a core legal principle that exists at all levels of international and domestic law. It provides that the legality of an action is determined by the respect of the balance between the objective and the means and methods used as well as the consequences of the action”.

Jeroen Van Den Boogaard, Proportionality in International Humanitarian Law: Refocusing the Balance in Practice

Em vez de nos induzir à modéstia, ao estudo da realidade e à procura de compromissos, convida à proliferação de conflitos sem fim (no duplo sentido). A guerra transforma-se em massacre. Sangue por sangue. Segundo duas tipologias dominantes, prelúdios possíveis da III guerra mundial pretendida; o conflito mais ou menos indirecto, através de clientes (proxies), ver Ucrânia; e a guerra ao terror, à maneira de Israel contra o Irão. Sobre a utilização de clientes ou mercenários para poupar forças, a primeira e última palavra foi escrita “ante litteram” por Hegel na “Fenomenologia do Espírito”, descrevendo a dialética servo/mestre.

O patrão encontra-se dependente do trabalho do servo, de modo que tende a abandoná-lo antes de ser consumido por ele. A chamada guerra contra o terrorismo oferece a vantagem da revogação a qualquer momento, enviando o terrorista emancipado para Oslo, onde receberá o Prémio Nobel da Paz, a não ser que seja redemonizado quando necessário. Pode, no entanto, ter o efeito de rebaixar o Estado antiterrorista à categoria de terrorista, porque o objectivo declarado de ambos é matar todos os inimigos. Os Estados Unidos experimentaram choques entre as duas tipologias, por exemplo, ao mobilizarem parceiros atlânticos ou ocasionais contra a Al-Qaeda e o regime talibã, a quintessência do terror jihadista, apenas para se desgastarem e fugirem de Cabul. Na síntese lúcida de Osama bin Laden, referindo-se a Bush filho diria que “Foi fácil provocar esta administração e levá-la até onde queríamos. Basta-nos enviar dois mujahidin ao Extremo Oriente para levantar um cata-vento da Al-Qaeda para que os generais se precipitem, aumentando assim as perdas humanas, financeiras e políticas, sem fazer nada de extraordinário, excepto obter alguns benefícios para as suas empresas privadas”.

As neuroses auto-destrutivas de nós, ocidentais, europeus, americanos e oceânicos, sem considerar japoneses e sul-coreanos, como quer o cliché washingtoniano, encorajam a desordem. E encorajam os rivais. Assim, Xi Jinping observa que “a caraterística mais importante do mundo actual é, numa palavra, o “caos”. E esta tendência parece estar a continuar”. Depois, dirigindo-se às câmaras com Putin ao seu lado que diria “Estamos a viver mudanças que não víamos há cem anos. E estamos a conduzi-las juntos”. Numa lógica de soma zero que contempla a hipótese da astúcia superior do nosso campo, poderíamos entender os nossos próprios objectivos tácticos como máscaras para convencer os nossos concorrentes de que o Ocidente está moribundo, de modo a que eles se aventurem a dar passos que não podem suportar e se prejudiquem a si próprios. Putin a marchar sobre o banco dos réus de Kiev. Mas atribuiríamos os excessos de astúcia aos nossos estrategas sem estratégia.

A quem, quando muito, parece aplicar-se a filosofia flippista do Pato Donald, ilustrada por Carl Barks numa célebre banda desenhada, segundo a qual, na vida, é melhor contar com o lançamento de uma moeda ao ar. No globo astronómico, a geopolítica ocidental é a “nottola de Minerva”. Levanta-se ao pôr-do-sol, contempla os fragmentos do cenário planetário conflituoso e, idealmente, volta a juntar as peças, remendando a caixa de Pandora estilhaçada para recomprimir os males do mundo. São três os pontos de vista dos protagonistas; resignados, resistentes e oportunistas. Os primeiros, europeus veteranos acompanhados pela maré crescente de americanos entristecidos, mais intelectuais alienados de todas as cores, sentem o declínio imparável e adoptam o uniforme de Orwell pois estamos envolvidos num jogo que não podemos ganhar; alguns fracassos são melhores do que outros, é tudo. Os outros, os imortais neoconservadores estrelados, os britânicos tardios de olhos arregalados, os franceses educados para parecerem mais do que são, os vanguardistas anti-russos da Europa de Leste que selam os seus cavalos para a investida final sobre Moscovo esperam virar a mesa.

Para preservar a sua própria paz relativa e descarregar os custos sobre os chamados “Remain”, a esmagadora maioria dos seres humanos, os sete mil milhões em oito do igualmente chamado Sul Global. Finalmente, as potências intermédias que, na crise do Ocidente, sentem a oportunidade de expandir a sua esfera de influência como turcos, indianos, polacos, japoneses hoje, depois de amanhã talvez brasileiros, nigerianos e coreanos juntos. Há uma constatação que tanto angustia como entusiasma os inteligentes das famílias acima referidas, pois pela primeira vez na história universal, o jogo está realmente a ser jogado à escala mundial. Mas a Grande Guerra ainda não é redutível a uma única equação. A fórmula brilhante do Papa Francisco de que a “terceira guerra mundial em pedaços” não deve ser tomada à letra. As guerras mundiais são conjuntos variáveis mas coerentes. Aqui, as peças do puzzle não são compostas em torno de um centro, pelo que não são periferias, mas potenciais centros regionais em (re)formação devido ao declínio da intencional ecúmena repleta de estrelas.

Pedaços de terra e mar que a América em retirada estratégica não pode e/ou não quer manter no seu império. Desglobalização e desamericanização são as duas faces de uma crise anunciada que apanha o “Número Um” desprevenido. No entanto, os primeiros alarmes tinham soado há vinte anos a partir de “Beltway”, quando uma parte do Estado Profundo ainda funcionava e diagnosticava o império mundial como insustentável, uma armadilha para a qual o Soviete suicida o tinha arrastado involuntariamente. O resultado é uma fragmentação geopolítica desgovernada. Inimigos e amigos são categorias provisórias, e as cartas são baralhadas nos vários teatros de tensão onde a América se confronta com os seus maiores concorrentes, a China e a Rússia, um falso casal destinado a rebentar se Washington alguma vez escolher um para combater o outro. Nós, europeus e euro-asiáticos, ainda não terminámos as guerras de sucessão produzidas pela desintegração dos nossos grandes impérios.

A Ucrânia e Israel/Palestina são terramotos produzidos, respetivamente, pelo cruzamento das falhas sísmicas russo-alemã-Habsburgo e anglo-otomana. Podemos imaginar a ressecção do império americano a ser produzida em paz? Actualmente, a divisão verdadeiramente relevante à escala global separa aqueles que estão dispostos e são capazes de lutar daqueles que não podem ou não querem. O poder não depende tanto dos arsenais e tecnologias militares, e muito menos do volume de produção auto-certificada através de um PIB improvável, mas sim da vontade de uma comunidade de lutar. Com armas. E em todas as dimensões dos conflitos actuais. Os factores determinantes são a demografia e a identidade partilhada. Ou seja, populações jovens dispostas, em casos extremos, a morrer pela sua pátria. Neste cenário, as macro-categorias do Ocidente e do Resto do Mundo valem pouco, o primeiro nada do segundo. No teste da guerra na Europa, confirma-se que os europeus estão divididos entre si e numa relação diferente com o líder americano. Quanto ao Resto, não é o anti-Ocidente. Se não no sentido dessa vaga fraternidade anti-colonial que junta africanos, asiáticos e latino-americanos.

Tudo ferve na panela dos “Brics” em expansão. Na antecipação oportunista de espaços de soberania em disputa, tornados contestáveis pela retracção americana. O que resta do Ocidente está a atravessar três crises. Psicológica, na medida em que é constituído por potências que dominaram os últimos cinco séculos de história e temem não conseguir governar o sexto; humana, dada a escassez numérica e cultural de forças dispostas a combater; estratégica, dada a divergência de interesses num campo mantido unido, e é tempo de o admitir pelo inimigo soviético e muito menos por uma empatia de valores. Nós, europeus, passámos a modernidade a massacrarmo-nos uns aos outros, excepto em intervalos parciais, mesmo longos (Viena 1815-Sarajevo 1914), baseados no equilíbrio de poderes com o domínio britânico e francês, até que o imperialismo alemão tardio, baseado na raça, atraiu desertores americanos de volta à Europa. Estes estavam determinados a pôr de parte o equilíbrio de poderes para estabelecerem a sua própria hegemonia sobre o Velho Continente, condição da primazia mundial.

Porquê surpreendermo-nos se nos encontrarmos desorientados perante tanta agitação? É inútil olhar para o passado em busca de receitas. A folha de papel onde se desenha a estratégia está em branco. Para todos sejam americanos, chineses, russos, europeus. Tratemos do Resto, habituado a ser submetido aos poderes instituídos. Baptizado de Maioria Mundial por Moscovo, que quer usá-la como alavanca para fazer Obama engolir a frase venenosa sobre a Rússia como potência regional, que Putin considerou uma declaração de guerra tanto que ele próprio a desencadeou com a invasão da Ucrânia, para desgosto dos chineses. Para compreender isto, comecemos de novo pela matriz Caoslândia vs Ordolândia. Bipartição simplificadora mas não simplista. O que está em causa à escala global é evidente; onde se cruzará a linha de fractura entre a Caoslândia e a Ordolândia nas próximas décadas? Dizem os ocidentais apocalípticos que serão os nossos heróis capazes de impedir a invasão do Sul, se necessário com armas?

Geopolítica das entranhas. Diligente na América e na maioria dos países europeus. As terras do caos ou de Hobbes homenagem ao teórico do “bellum omnium contra omnes” interpretámo-las, esboçámo-las e actualizámo-las progressivamente a partir de um vestígio que é a “Nova Carta do Pentágono” assinada por Thomas Bartlett, conselheiro do Secretário da Defesa, em Março de 2003. Primeira tentativa de mapear a grande estratégia americana no “momento unipolar”. Os Estados ali presentes dividiam-se entre os bem-aventurados admitidos no “Núcleo Funcional da globalização” e os miseráveis encurralados no “Bolso Não Integrado”, desligados de nós globalizados. Entre os dois havia uma faixa de sutura potencial do México ao Brasil, da África do Sul a Marrocos e à Argélia, da Grécia à Turquia e ao Paquistão, Tailândia, Malásia, Filipinas e Indonésia. Na América ainda optimista, que, nessa mesma época, festejava a “missão cumprida” no Iraque sem se aperceber de que essa “vitória” acelerava o seu declínio, a mídia pretendia atribuir às elites de Washington a tarefa do pós-Guerra Fria como globalizar/americanizar o planeta.

É difícil imaginar mais “tendência ao extremo” do que isso, excepto Musk e Bezos. O mundo, não o império. Ironicamente, Bartlett citou entre os globalizados a China, a Rússia e a Índia, excepto para avisar no posfácio que “podemos perder esses países”. Dito e feito vinte anos depois. A ideia de Bartlett e dos neoconservadores que exaltavam a “Nova Roma” esquecendo que esse império estava no limiar e falhou. Washington concebeu-se como um farol destinado a estender à órbita terrestre o feixe de luz verde que entusiasmou Gatsby, “in hoc signo vinces” do destino manifesto. A iluminação é agora reduzida. Prevalece a “tendência para o mínimo”. Onde o mínimo, talvez o máximo, é impedir que a Caoslândia integre a América. Que mais é o espectro da guerra civil, evocado pelos mídia e pelo filme homónimo, com evidente intenção apotropaica? Na fase alta da modernidade, o século entre Viena e Sarajevo a actual “Terra do Caos” era um campo de batalha entre as grandes potências do Norte, com a França e a Inglaterra à cabeça.

(continua)

27 Jun 2024

No sexo, do que precisas?

Comunicar sobre o sexo é uma tarefa difícil. O sexo está embrenhado em tantos tabus e medos que falar sobre ele pode erguer paredes, ao invés de as destruir. Isto porque o sexo aproxima-se do ser mais íntimo, aquele que está em contacto com os medos mais primários.

Considerem o sexo como uma dança, um movimento de corpos que nos aproxima dos conteúdos mais prazerosos, mas também mais difíceis das nossas vivências, intimidades e vínculos.

Quando se tocam nesses lugares cavernosos do prazer, pode surgir a necessidade de conversar sobre eles, principalmente quando o movimento dos corpos deixa de ser síncrono.

A necessidade de comunicação surge quando esses conteúdos tão enterrados no nosso ser encontram essas águas lamacentas do outro. Por vezes, entra-se nesse espaço de bloqueio e medo, que paralisa e atiça a paralisia e a confusão no outro. No sexo, esse desencontro pode tornar-se muito evidente. A ligação dos corpos traz essas vivências inconscientes que as palavras mal conseguem expressar de forma eloquente, mas revelam-se nessa falta de união e entendimento.

Nestas situações de desencontro, estimula-se a comunicação para criar pontes de diálogo. Na terapia de casal, por exemplo, tenta-se reinventar formas de comunicar que não sejam atiçadoras das situações de vulnerabilidade de cada um. O objectivo é a escuta activa.

Na relação humana (que pode ser amorosa ou não), o momento de escuta pode ser entendido como a forma como se conseguem encarar os medos ou as dificuldades do outro sem infectar a nossa experiência de medo e dificuldade. No sexo, por exemplo, é comum que a necessidade de um membro da parceria atice alguma insegurança no outro. O uso de brinquedos sexuais durante o sexo, ou a utilização de lubrificantes para facilitação do toque e quiçá penetração, são por vezes encarados com medo de substituição. Estas acções também podem ser interpretadas como um sinal de falhanço, como se o uso de auxiliadores no sexo fosse um sinal de que não somos suficientes. Essas manifestações na outra pessoa são depois interpretadas com base nas nossas histórias pessoais, e se forem mal recebidas, aí o conflito instala-se.

Quando isso acontece, uma conversa pode ser necessária para mitigar essas sensações de pavor. E como é que se comunica sobre isso? Algo que me tenho interrogado ultimamente é sobre o vocabulário do “querer” e do “precisar” neste processo de escuta activa. Muitas vezes na discussão sobre o sexo, incentiva-se que as pessoas desenvolvam o vocabulário do querer. Querem-se pessoas sexualmente emancipadas para que possam expressar o que querem na cama. O “querer” é um verbo que se refere a desejos pessoais e subjectivos. Quando se discute a necessidade de articular os desejos no sexo, esta pode ser uma linguagem individualista e desconectada, sem tornar evidente que os nossos desejos têm a ver com o outro e com aquele encontro em específico.

Remeter para a linguagem da “necessidade” ou do “precisar” já remete para vontades que, para além de serem mais imediatas em contexto, também são mais básicas e fundamentais. O necessitar ou o precisar já se refere a esse lugar um pouco mais complicado de sensação de falta, mas abrem espaços para ouvir o outro. Se no momento do sexo interpelarem o outro com “o que precisas” ao invés de “o que queres”, talvez facilite a chegar a esses sítios de vulnerabilidade que o sexo vive tanto. Estes verbos também revelam de uma forma mais cuidada a qualidade relacional das vontades, como se tornasse evidente que o que carecemos está em constante diálogo com o ambiente à nossa volta, e com as pessoas que o compõem.

No sexo talvez seja preciso um cardápio de estímulos visuais, toque, carinho, até um pouco de kink para colorir a preferência baunilha de muita gente. Questionarmo-nos sobre o que precisamos também é uma linguagem mais sensível à descoberta pessoal. Em vez de procurar os desejos como “quereres”, como se fossem provisórios e efémeros, questionar-se: o que precisamos no sexo? Essas necessidades podem revelar partes contraditórias e confusas da experiência humana porque vão a lugares de vulnerabilidade. Mas diria que é o caminho para explorar de forma mais inteira os desejos. Esse lugar onde é possível pedir ajuda e deixar o outro entrar através da pele.

Quando na vossa vida sexual encontrarem esse momento de confusão e de desencontro, vão à procura do vosso “necessitar” e o do outro. Pode ser que precisem de um dia de relaxamento total para conseguirem estar em contacto com o sexo. Pode ser que precisem de explorar outras formas de estar, de assumir papéis e performá-los. O diálogo sincero e a exploração conjunta das vossas necessidades e desejos podem transformar o sexo numa experiência mais profunda e gratificante. Ao invés de verem o sexo como uma mera acção física, encarem-no como uma oportunidade para fortalecer a conexão emocional e descobrir novas dimensões da relação. É essa abertura para comunicar e explorar que poderá transformar o sexo numa viagem contínua de descoberta e prazer mútuo.

25 Jun 2024

Inovação na gestão imobiliária

De acordo com o relatório emitido a semana passada pela Hong Kong TVB, uma empresa de gestão imobiliária de Shenzhen distribuiu avultadas somas pelos proprietários dos apartamentos que administra durante o Festival do Barco do Dragão. Cada proprietário pode receber entre 650 e 2.200 Yuans, bem como bolinhos de arroz, uma iguaria essencial para a comunidade chinesa nas celebrações do Barco do Dragão. A entrega de dinheiro e as outras despesas com a comida foram financiadas pelos lucros obtidos por esta empresa de gestão imobiliária.

O contrato de gestão dos condomínios, assinado entre a comissão de proprietários e a empresa gestora dos condomínios, estipulava claramente que o rendimento operacional do imóvel deveria ser dividido ao meio entre ambas as partes. Estes lucros não são utilizados apenas para as prestações sociais acima referidas, mas também para assegurar a manutenção e o melhoramento dos imóveis.

Entregar a administração de edifícios e de conjuntos habitacionais a empresas de gestão imobiliária é uma boa prática. Em Macau, existem muitos arranha-céus com muitos agregados familiares e muitos problemas administrativos. Cada um dos proprietários tem uma opinião diferente sobre a gestão do edifício. Tomemos como exemplo um prédio com 48 andares e quatro elevadores. Relativamente ao funcionamento dos elevadores, existem duas possibilidades. Primeira, cada elevador pode fazer o percurso entre o 1.º e o 48º andar. Segunda, cada elevador fará apenas o percurso entre 12 andares. Ou seja, o primeiro elevador desloca-se entre o 1.º andar e o 12.º. O segundo elevador só pode circular entre o 13.º andar e o 24.º. O terceiro elevador faz a viagem entre o 25.º andar e o 36.º. O quarto elevador só poderá ligar o 37.º andar ao 48.º. Destas duas possibilidades, qual será a melhor? Esta é uma questão que terá de ser discutida pelos proprietários dos apartamentos. Se o edifício precisar de obras e for necessário que todos contribuam, que valor deve caber a cada um? Porque é que temos de pagar este dinheiro? O que é que um residente que não possa pagar deve fazer? As questões que envolvem dinheiro são ainda mais problemáticas.

A maior vantagem de contratar uma empresa de gestão imobiliária é poder contar com a sua experiência na administração das zonas comuns dos edifícios e com a sua capacidade de coordenar o interesse de todos os proprietários. A gestão do condomínio melhora quando se delegam responsabilidades. Tomemos como exemplo a criação de um fundo de manutenção do prédio. A criação de um fundo de manutenção pode resolver em grande medida o problema do pagamento de obras quando há necessidade de as fazer. Actualmente, existem pelo menos dois métodos de angariar dinheiro para criar um fundo de manutenção. Primeiro, o proprietário do apartamento já o recebeu na compra do imóvel. Segundo, cada proprietário paga uma cota mensal e a empresa gestora administra esse dinheiro criando o fundo de manutenção.

Embora o valor das cotas cobradas a cada residente pela empresa de gestão imobiliária não seja alto, como cada edifício tem muitos apartamentos, a quantia recolhida mensalmente é considerável. Especialmente nos primeiros anos, quando o edifício ainda é novo, os lucros da empresa de gestão são bastante consideráveis porque nessa altura os custos de manutenção são baixos. No entanto, este tipo de lucro não é fácil de obter. Requer que a empresa de gestão imobiliária forneça um serviço de alta qualidade a longo prazo, para garantir o bom funcionamento da propriedade.

Claro que também existem casos de empresas que são más gestoras e que afectam os interesses dos proprietários. Algumas empresas de gestão imobiliária não estão dispostas a ajudar os proprietários a criar comissões de condóminos para garantir os seus direitos de gestão a longo prazo sobre o edifício. Isto lembra-nos que na hora de escolher uma empresa de gestão imobiliária é preciso ter cuidado e verificar a sua capacidade e reputação.

O acima mencionado relatório da Hong Kong TVB, sobre a empresa de gestão imobiliária de Shenzhen, permite-nos verificar que tem uma nova abordagem, diferente das práticas convencionais em Hong Kong e em Macau. As empresas de gestão imobiliária conquistam a confiança e o apoio dos proprietários quando partilham lucros com eles. Do ponto de vista do negócio, esta deve ser a condição para os condóminos aprovarem uma empresa de gestão imobiliária. Isto também significa que, deste modo, a empresa de gestão tem a confiança para administrar bem a propriedade.

Ao mesmo tempo que proporciona um bom ambiente harmonioso, obtém-se uma situação em que ambas as partes saem a ganhar através de estratégias de gestão inovadoras. Estas condições novas e atractivas podem ser usadas pelas empresas de gestão imobiliária para conseguirem mais contratos. Mas o mais importante de tudo é que esta empresa possa fornecer aos proprietários serviços de alta qualidade, que é também a condição que os condóminos devem ter em mente quendo aprovam um contrato de gestão das suas propriedades. Se de futuro mais empresas de gestão imobiliária seguirem este caminho, a comissão dos condóminos ficará naturalmente satisfeita, bem como os proprietários. Não só todos ficarão satisfeitos, como também haverá lucros para partilhar, por isso porque não?

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

25 Jun 2024

Também tu, meu filho Nuno?

Todos sabemos que o Chega é um partido que está na política contra tudo e todos que defendam alguns dos valores da democracia. Desta feita, conseguiu accionar uma Comissão Parlamentar de Inquérito putativa, a fim de atingir claramente o Presidente da República, a propósito do caso das meninas gémeas do Brasil que foram operadas em Portugal através de uma intervenção cirúrgica de grande dificuldade e só possível a um medicamento que custou quatro milhões de euros.

A semana passada passou-se com a hipocrisia total de políticos, comentadores e jornalistas que não tiveram a coragem de anunciar que o Chega apenas visou com a sua arrogância atingir o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e a sua possível destituição. Porquê? Ora, porque o seu filho Nuno Rebelo de Sousa, residente no Brasil, tem abusado da condição de ser filho do Presidente da República. Nuno Rebelo de Sousa foi durante a semana o mote da comunicação social e já se encontra na situação judicial de arguido. Tudo por pensar que ser-se filho do Presidente da República dava-lhe a facilidade de tudo fazer para ganhar dividendos obscuros.

A novela começou logo, em silêncio mediático, quando Nuno Rebelo de Sousa esteve inserido no negócio deplorável e tenebroso de introduzir os jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no Brasil. Mas esse facto passou ao lado do público.

O problema foi quando uns amigos do filho do Presidente, no Brasil, teriam dado conhecimento que um casal vivia momentos graves com duas filhas gémeas a necessitar de uma cirurgia que as separasse fisicamente, uma intervenção clínica que poderia ser realizada no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e onde as gémeas teriam de ter Cartão de Cidadão português. Aí, começaram as “cunhas” do filho do Presidente e as gémeas tiveram todas as facilidades oficiais.

Nuno Rebelo de Sousa movimentou-se em Portugal junto das instâncias oficiais, incluindo através de emails para o seu pai no sentido de o Presidente Marcelo interferir nas instâncias governamentais e, assim, tudo conseguir. Sobre a vinda das gémeas a Portugal para serem operadas, Nuno Rebelo de Sousa começou logo mal ao tentar que o seu pai conseguisse as “cunhas necessárias, para que as meninas gémeas fossem operadas através do medicamento caríssimo de quatro milhões de euros. E qual é o pai que não atende um pedido de um filho? Aconteceu que a Presidência da República actuou em conformidade, apesar de hoje em dia o Presidente Marcelo afirmar que nada teve a ver com “cunhas” junto do Governo de António Costa.

A verdade é que Nuno Marcelo de Sousa viajou para Portugal, encontrou-se com o secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, que, entretanto, já foi sinalizado pelo Ministério Público como arguido num processo de investigação, e as gémeas foram operadas com todo o êxito. A Comissão de Inquérito Parlamentar promovida pelo Chega ouviu Lacerda Sales, mas este manteve quase o silêncio às perguntas de que foi alvo alegando o segredo de justiça a que tem direito.

Sejamos claros, o problema está em Marcelo Rebelo de Sousa. O pai atendeu às “cunhas” pretendidas pelo filho ou não? O Presidente Marcelo já veio a público declarar que está de relações cortadas com o filho Nuno. E isto é grave. Parece um pai degenerado que atira com o filho para um poço. Sejamos sérios e admitindo que o Presidente Marcelo teve interferência no caso, apenas tinha de vir a público pedir desculpas aos portugueses e afirmar que o amor de um pai, por vezes, leva a que se cometam erros. E todos nós compreenderíamos que estava em causa a vida de duas meninas que iriam morrer. Aconteceu precisamente o contrário.

O Presidente Marcelo ao constatar que a sua popularidade baixava de mês para mês e que alguns comentadores televisivos já adiantavam que se tratava do pior Presidente da República, optou por cortar com o filho e deixar andar o barco. Só que as ondas foram estrondosas e o barco entrou em naufrágio. Durante toda a semana não se falou noutra coisa a não ser em Nuno Rebelo de Sousa, que ainda por cima veio piorar a situação dizendo que não compareceria na Comissão Parlamentar de Inquérito.

Isto já é mais grave, porque a lei não lhe permite que falte a ser indagado pelos deputados do Parlamento. Nuno Marcelo de Sousa se não comparecer à Comissão de Inquérito poderá ser alvo de uma queixa dos deputados ao Ministério Público e vir a ser sentenciado com dois anos de prisão. Tudo isto é a política porca de Bordallo Pinheiro que leva os portugueses a concluir, na sua ignorância sobre os meandros da política, que existem indubitavelmente portugueses de primeira e de segunda categoria.

Este caso é um imbróglio preocupante e lamentável, quando a Comissão Parlamentar de Inquérito interrogou a mãe das meninas gémeas e deixou os deputados incrédulos quando afirmou que não conhecia Nuno Rebelo de Sousa. Os deputados indagaram a senhora várias vezes como é que Nuno Rebelo de Sousa tratou de tudo e manteve encontro pessoal com o secretário de Estado Lacerda Sales num interesse total pelo caso das meninas e nem conhecia a mãe das gémeas. A senhora foi ainda mais longe a deixar-nos todos perturbados quando afirmou que no Hospital de Santa Maria ouvia toda a gente a dizer que ela estava ali com as filhas devido à interferência do Presidente da República. Confrontada com a estranheza das afirmações dos agentes clínicos a mãe das gémeas respondeu que não fazia a mínima ideia por que razão se expressavam desse modo.

O processo vai ainda fazer correr muita tinta e com Lacerda Sales e Nuno Rebelo de Sousa na condição de arguidos é caso para se pensar que só terminará para as calendas. E até já uma juíza afirmou que “o Presidente Marcelo não foi neutro”. A verdade é que o Presidente Marcelo está de momento no mais baixo nível de popularidade e tudo devido ao comportamento do seu filho. É mesmo um caso em que Marcelo poderá dizer: “Também tu, meu filho Nuno?”

24 Jun 2024