Em busca da palhinha de ouro

Em meados do mês passado, em Zhuji, Zhejiang, na China, o Sr. Shou fabricou uma palhinha com 100 gramas de ouro, destinada especialmente a ser usada para beber chá com leite. A palhinha foi avaliada em aproximadamente RMB $100,000.

Certo dia, ao entardecer, o Sr. Shou deslocava-se para casa na sua motorizada. De repente, um desnível na estrada provocou um ressalto na mota e a palhinha que levava no bolso, caiu. Como não a conseguiu encontrar, chamou a polícia. Os agentes, considerando a forma cilíndrica do objecto, perceberam que deveria rolado estrada fora e percorrido uma distância considerável. Acabaram por encontrá-la junto a um passeio, a cerca de 100 metros do local onde tinha caído.

Embora tenha sido recuperada, a palhinha ficou deformada devido à queda. O Sr. Shou decidiu derretê-la e voltar a fazer outra que estará pronta no próximo Verão.

Posteriormente, o Sr. Shou entregou uma faixa aos agentes da polícia para expressar a sua gratidão.

Esta história levanta algumas questões que nos fazem reflectir.

Primeiro, fabricar objectos de uso diário em ouro é sem dúvida uma manifestação única de um estilo de vida pessoal; no entanto, ter o descuido de colocar uma palhinha de ouro no bolso e precisar de pedir ajuda à polícia para procurá-la, levanta a seguinte questão: é razoável pedir à polícia que use os seus recursos para colmatar uma negligência pessoal? Qual a responsabilidade com que o negligente deve arcar? Agora que a palhinha foi recuperada, esperemos que o dono tenha mais cuidado com os seus pertences de futuro. Se este tipo de casos for evitado, podem reduzir-se os problemas, não será preciso gastar recursos públicos e todos ficam a ganhar.

Segundo, a polícia não deixou de se empenhar na resolução do caso embora a pessoa tenha sido negligente. Pelo contrário, demonstrou profissionalismo e capacidade de resolução. Os agentes analisaram as caraterísticas do objecto, estimaram a sua localização e conseguiram encontrar a palhinha no escuro; os dois agentes envolvidos merecem ser louvados.

Terceiro, possuir objectos de ouro para uso diário não será uma forma de “ostentar riqueza”, ou simplesmente uma demonstração de que “porque se é rico é-se voluntarioso”? O ouro é muito valioso e utilizá-lo para fabricar objectos de uso corrente é um prazer único. Este investimento prático é mais “realista” do que guardá-lo simplesmente numa caixa. Contudo, não se sabe se o valor do ouro não baixará se o objecto for danificado. O ouro é avaliado ao peso; pequenas arranhadelas têm pouco impacto no peso, mas os danos visíveis podem diminuir o valor “artístico”. A única solução é refazer a palhinha.

Quarto, a oferta de uma faixa aos agentes da polícia como forma de mostrar gratidão é um gesto de respeito. No entanto, estes agentes são funcionários públicos e não devem aceitar presentes. Embora a oferta a faixa seja um acto simbólico, o sentimento que a acompanha é profundo. Representa a gratidão, o louvor e respeito do Sr. Shou pela polícia. Acredita-se que a oferta da faixa foi o melhor presente que o Sr. Shou pode ter dado e o melhor presente que a polícia pode ter recebido.

Em resumo, usar uma “palhinha de ouro” para beber chá com leite é um acto que combina preferência com riqueza. O chá com leite não fica mais doce se for sorvido por uma palhinha de ouro, mas aumenta a satisfação pessoal. A negligência deve ser prevenida para evitar situações de abuso de recursos públicos. O profissionalismo e a capacidade de resolução da polícia merecem louvor. A faixa pode ser um pequeno presente, mas transporta consigo um sentimento profundo. Na sociedade dos nossos dias que acima de tudo valoriza o dinheiro, quantas pessoas compreenderão o seu verdadeiro significado?

Esta notícia não é particularmente relevante para muitos dos nossos leitores, mas pode trazer um sorriso às nossas vidas conturbadas. Quer nos esteja a ler de Portugal, de Macau, ou de qualquer outro lugar, espero que este artigo lhe traga um momento de descontração.

Vemo-nos na próxima semana.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Faculdade de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Email: cbchan@mpu.edu.mo

5 Nov 2025

Carta de Rita Santos sobre o arquivamento do processo de investigação pelo Ministério Público português

Exmo. Senhor Dr. Carlos Morais José

M. I. Director do Jornal Hoje Macau

Serve este nosso presente pedido de publicação para confirmar que no passado dia 24 de outubro o Ministério Público de Portugal proferiu despacho de arquivamento do procedimento criminal que me foi movido na sequência de denúncias formais apresentadas por militantes do Partido Socialistas, maioritariamente residentes em Macau.

Durante todo o processo colaborei sempre de forma ativa com as autoridades portuguesas na descoberta da verdade material e, com isso, na proteção do meu bom nome, honradez e carácter impoluto, suportado na confiança que a comunidade Macaense deposita em mim, a qual jamais defraudarei.

Tratou-se, pelo que se me oferece conhecer, de um caso que nunca foi um caso, assente apenas em especulação, difamação e ataque de carácter, um caso típico de instrumentalização da justiça com objetivos político-partidários, mas que não colheram.

E, por isso, como não poderia deixar de ser, tendo o Ministério Público feito uma investigação minuciosa, constatado que nenhuma ilegalidade fora praticada e concluído pela ausência de indícios criminais, o arquivamento é o corolário lógico e seria sempre a única e justa solução para este “não processo”.

Valores como o respeito pela Lei e pela liberdade individual de cada cidadão não são para mim negociáveis e deles nunca abdicarei, pelo que jamais deixarei, como sempre o fiz, de ser uma voz ativa na defesa dos princípios democráticos e humanistas, e de ter uma participação cívica ativa na defesa dos interesses da comunidade portuguesa em Macau.

Com os melhores cumprimentos.

Macau , aos 31 de Outubro de 2025 .

Rita Santos

4 Nov 2025

A droga mata que se farta

Já lá vai o tempo em que o ópio transmitia inspiração a Camilo Pessanha. Em que uma ganza acalmava e dormia-se bem. Hoje, a droga mata. Mata centenas de jovens que se viciam em heroína, cocaína e substâncias psicoactivas químicas e que destroem o cérebro. Os viciados nas mais diversas drogas injectam-se nas veias e quando não existe pureza no produto apanham overdose e morrem. Houve jovens em Portugal que, afectados pela ressaca, bateram nos pais por estes não lhes facilitarem o dinheiro pretendido e de seguida suicidaram-se. As mortes por overdose aumentaram 16 por cento em 2023 em relação ao ano anterior totalizando 80, revelou um relatório do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) divulgado o ano passado, sendo a cocaína a droga mais responsável pela mortalidade.

Há dias, um menor de 14 anos matou a mãe com uma pistola do pai e a Polícia Judiciária já juntou aos autos dados indicadores que o jovem andava a consumir canábis em excesso. E o que são os drogados? Simplesmente uns dependentes dos negócios milionários do crime organizado onde os chefes dos traficantes ganham milhões de euros.

Na semana passada, assistimos a dois casos em Portugal de bradar aos céus. Uma mega-operação da GNR que descobriu várias quintas nos arredores do rio Tejo onde eram fabricadas e guardadas 13 lanchas rápidas, 11 galeras, um camião, 30 motores sofisticados, 16 carros topo de gama, 750 mil euros em dinheiro e muitas armas de fogo e brancas. Foram detidos 32 suspeitos de ligação ao tráfico de droga internacional, uma operação que contou com a cooperação da Guardia Civil espanhola. Assim, foi desmantelada uma rede criminosa a operar em Portugal e que se dedicava à construção e movimento de lanchas para o transporte de droga vinda de grandes navios oriundos da Colômbia e Brasil. A referida operação decorria há 32 meses. No decurso da investigação foram identificados diversos suspeitos de nacionalidade espanhola. A investigação ao longo de três anos ainda levou à detenção em Espanha de dezenas de traficantes de droga e toneladas de estupefacientes.

Igualmente na semana passada, o país ficou chocado com a morte de um militar da GNR e de outros três que ficaram feridos após uma colisão entre uma embarcação da GNR e outra alegadamente pertencente a narcotraficantes no rio Guadiana, perto de Alcoutim, Faro. Segundo um observador do acidente, os traficantes atiraram propositadamente a sua lancha contra a da GNR, abalroando-a e matando um dos militares a bordo, tendo de seguida pegado fogo à sua lancha numa das margens do rio para que não existissem provas de posse de droga. O mesmo observador, disse que se “tratou de um autêntico acto homicida”. O Presidente da República descreveu a situação como “dolorosa” e “lamentável”. Entretanto, a Polícia Judiciária e a GNR já detiveram dois suspeitos de terem estado envolvidos no abalroamento da embarcação da GNR que causou a morte do militar. Ao que tudo indica, os dois suspeitos já estavam referenciados por tráfico de droga em Espanha. Os suspeitos foram detidos quando tentavam atravessar uma ponte, num carro de matrícula espanhola, a caminho do país vizinho. Teriam na sua posse avultadas quantias de dinheiro.

Ao contactarmos um porta-voz da GNR, este afirmou que “Normalmente, quando se trata de cocaína a origem é a América do Sul e os traficantes fazem a trasfega no Atlântico. Se for tráfico de haxixe, a proveniência é o norte de África, passando o produto estupefaciente de uma embarcação maior, no Mediterrâneo, para estas lanchas que depois tentam entrar na Europa, servindo-se de Portugal e Espanha.”

Antes de se colocarem em fuga, os suspeitos terão ficado encalhados na margem do rio, incendiando de seguida a lancha eventualmente cheia de droga. O mesmo porta-voz adiantou que “normalmente nestes casos, as embarcações vêm do alto mar, fazem o desembarque (da droga) tanto no Guadiana como no rio Pedras, em Espanha, queimam a lancha e depois escapam.”

Toda esta actividade criminosa é facilitada porque os militares não têm os meios necessários para um combate eficiente. O Governo limita-se a lamentar quando acontece uma tragédia e lá vão o Presidente da República e a ministra da Administração Interna a correr para o funeral do militar morto pelos traficantes dando um ar de grande pesar. Uma cena que os familiares dispensavam porque o importante é o desprezo que as autoridades têm dado aos apelos das associações das forças de segurança para que as verbas aumentem para o combate ao tráfico de droga. E de tal forma é significativa a nossa posição, que só horas depois do fatal acontecimento de Alcoutim é que o Presidente Marcelo promulgou um diploma que regula o uso de lanchas rápidas. Possivelmente se o diploma tivesse sido promulgado há meses o militar da GNR não teria morrido. Como diz o povo, depois do assalto, trancas à porta…

4 Nov 2025

Como proceder?

Há algum tempo, surgiu na rádio um slogan publicitário muito encorajador, “Não se trata de avançar porque vislumbramos a beleza, mas sim de ver a beleza ao avançar.” O único problema foi ter estado no ar muito pouco tempo, falhando assim a transmissão de todo o conteúdo da mensagem. Por exemplo, não explicava claramente aos ouvintes que o protagonista do anúncio tinha um objectivo e uma direcção pré-definidos antes de se lançar na perseguição da beleza.

Além disso, ele não partiu sem mais nem menos, tinha um plano e sabia como proceder. Partir às cegas seria como caminhar no deserto e certamente iria dar a um beco sem saída. A passagem de peões que atravessava o cimo da íngreme Calçada do Botelho, e que desapareceu a 20 de Outubro, é um bom exemplo do que acabámos de dizer.

Qualquer condutor experiente sabe que se um carro pára no cimo de uma encosta, voltar a ligá-lo é tarefa complicada e é uma das provas mais difíceis do exame de condução. A Calçada do Botelho é muito inclinada e os carros têm de subi-la de uma só vez, é por isso que existe um sinal de cedência de passagem na Rua de Santo António para permitir que os carros que sobem a Calçada do Botelho não tenham de parar. Toda a gente entende que se houver uma obstrução no topo da Calçada do Botelho que obrigue as viaturas a parar e depois a voltar a arrancar, podem facilmente descair, especialmente quando se trata de veículos de grande porte como camionetas e autocarros, colocando a segurança rodoviária em risco.

Uma “passagem de peões temporária” foi colocada no cimo da Calçada do Botelho, o que desencadeou de imediato acesas discussões online, com os internautas a manifestarem a sua indignação. Depois de receber uma onda de críticas negativas, as autoridades competentes enviaram rapidamente trabalhadores para retirarem a passagem de peões temporária. Por trás deste incidente, vejo um problema que merece alguma atenção.

Acredito que os funcionários da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego terão conhecimentos consideráveis sobre trânsito e também experiência de condução. Devem estar familiarizados com as condições do tráfego da Calçada do Botelho, sabem certamente que os congestionamentos diários são inevitáveis nesta artéria da cidade e também deveriam saber que colocar uma passagem de peões no cimo da rua só agrava a situação.

Os trabalhadores que instalaram a passagem de peões temporária, e o agente da polícia presente no local para garantir a segurança da rua durante a instalação, deveriam saber que colocar uma passagem de peões no cimo da Calçada do Botelho é tão excitante como andar de bicicleta à beira de um precipício. Então porque é que ninguém contestou a instalação? Se tudo for feito apenas por vontade dos funcionários superiores, e todos os outros forem forçados a “cooperar sem levantar ondas”, os problemas serão inevitáveis.

Num vídeo online, a KOL partilhou imagens da paisagem aquática entre Xiamen, na China continental, e a Ilha Kinmen, em Taiwan, com enormes bandeiras em ambos os lados, onde se podia ler “Um País, Dois Sistemas, Unificação da China” do lado da China e “Três Princípios do Povo, uma China Unificada” do lado de Taiwan.

A unificação entre os dois lados do estreito seria um acontecimento significativo no futuro, e atingir este objectivo requer sabedoria por parte dos governantes. Eu não sei muito sobre a prática em Taiwan dos Três Princípios do Povo, ao passo que o meu conhecimento do princípio “Um País, Dois Sistemas” vem principalmente da Lei Básica. Nos Princípios Gerais – Capítulo I da Lei Básica de Hong Kong e de Macau, está estipulado que cada Região Administrativa Especial possui um alto grau de autonomia e goza de poderes executivo, legislativo e judicial independentes, incluindo o do julgamento em última instância, de acordo com as disposições desta Lei.

No Preâmbulo da Lei Básica, é mencionado que as políticas fundamentais que o Estado aplica em relação a Macau, bem como a Hong Kong, são as já expostas pelo Governo Chinês na Declaração Conjunta Sino-Portuguesa e na Declaração Conjunta Sino-Britânica, respectivamente. As disposições da Lei Básica têm estatuto constitucional e a Declaração Conjunta não é um documento histórico obsoleto. Desde que respeitemos as intenções iniciais do princípio “Um País, Dois Sistemas” e nos dirijamos a metas bem definidas, iremos seguramente encontrar a beleza.

31 Out 2025

Alinhamento com o Plano do 15.º Quinquénio para Aprofundar a Integração de Macau no Desenvolvimento Nacional

Por 李焕江 Lei Wun Kong

I. Contexto

O Quarto Plenário do Comité Central destacou “a promoção da prosperidade e estabilidade duradouras de Hong Kong e Macau”, clarificando que o período do “15.º Quinquénio” é uma fase crítica para consolidar a base da modernização socialista. Durante este período, o país avançará ainda mais com o desenvolvimento de alta qualidade, a inovação científica e tecnológica, a coordenação regional e a abertura ao exterior de alto nível. A aceleração da construção de uma China saudável, a implementação de uma estratégia de prioridade à saúde e a integração do desenvolvimento com a segurança fornecerão uma garantia sólida para o progresso económico e social.

II. Recomendações para uma Melhor Implementação do Espírito do Quarto Plenário

1. Aproveitar as Vantagens de “Um País, Dois Sistemas” e Absorver os Últimos Progressos em Direito Internacional e Tecnologia

Para construir uma plataforma de abertura ao exterior de nível mais elevado, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) precisa de aproveitar os mais recentes avanços nos sistemas jurídicos da Europa continental e da China Continental, refinando continuamente o seu próprio sistema legal de base civilista. Além disso, em áreas como a modernização institucional e industrial, a digitalização de processos judiciais e a convergência de regras, é essencial aproveitar a capacitação tecnológica e os modelos de IA da China para construir bases de conhecimento específicas e implantação local, fortalecendo a sistematicidade e a cientificidade da formulação de políticas.

2. Preservar a Harmonia e Estabilidade Social

A RAEM deve continuar a aperfeiçoar os mecanismos e sistemas de salvaguarda da segurança nacional, bem como as políticas de bem-estar social. É crucial alcançar uma interação benéfica entre o desenvolvimento de alta qualidade e a segurança de alto nível, reforçando a avaliação de riscos de segurança em todas as fases dos processos administrativos e legislativos.

3. Aprofundar a Cooperação Regional para Integrar-se no Desenvolvimento Nacional

(1)Reforçar a Integração de Recursos entre Macau e Hengqin

Aproveitando as bases importantes de Macau, como o seu porto livre, regime fiscal de baixa tributação, sistema jurídico da Europa continental, quatro laboratórios nacionais chave e a plataforma de cooperação com os países de língua portuguesa, é necessário alinhar proactivamente com a iniciativa “Faixa e Rota” e integrar-se no desenvolvimento nacional. Utilizando as políticas do governo central e da Zona de Cooperação Profunda de Hengqin, bem como os recursos continentais em termos de custos, talentos e vantagens, Macau pode promover a cooperação com o continente em áreas como a medicina tradicional chinesa e a tecnologia, construindo uma cadeia industrial de “P&D + transformação + aplicação” para facilitar a investigação, produção, comercialização e internacionalização de novos medicamentos da medicina tradicional chinesa e biofarmacêuticos, impulsionando assim o desenvolvimento da saúde e tecnologia em Macau.

(2)Acordos Regionais

Com a evolução social, é necessário estabelecer mais acordos regionais entre Macau e o continente, por exemplo, sobre o reconhecimento e execução de medidas cautelares em litígios e assistência judiciária mútua em matéria penal. Além disso, a RAEM deve formular um “Regime Geral de Mediação de Macau”, estabelecendo procedimentos gerais de mediação civil e comercial, bem como a confirmação e execução de acordos de mediação pelos tribunais, criando condições favoráveis para o futuro reconhecimento e execução mútuos de acordos de mediação entre o continente e Macau.

(3)Reforço da Cooperação Legislativa entre Macau e Zhuhai

Colaborar para utilizar eficazmente o poder legislativo da RAEM e da Zona Económica Especial de Zhuhai. Por exemplo, uma vez que as regras de sucessão diferem entre as duas jurisdições, Macau e Zhuhai podem comunicar e cooperar para legislar de forma focalizada, estabelecendo regras sucessórias específicas para situações especiais na Zona de Cooperação de Hengqin (por exemplo, quando o falecido era residente de Macau, aplica-se o direito de Macau independentemente do seu último local de residência ser Macau ou Hengqin). Isso evita incertezas na lei aplicável ou alterações indesejadas nas regras de sucessão originalmente aplicáveis aos residentes de Macau que se deslocam para trabalhar ou viver em Hengqin, ou que residem em ambas as localidades。

III. Perspectivas

Em suma, para implementar eficazmente o espírito do Quarto Plenário, a RAEM deve agir prontamente nos trabalhos do seu “Terceiro Plano Quinquenal” (Plano “3.º Quinquénio” de Macau), integrando organicamente os requisitos da modernização chinesa com a modernização de Macau no contexto de “Um País, Dois Sistemas”. Até 2029 (30.º aniversário do retorno de Macau à pátria), o ambiente jurídico da RAEM terá sido continuamente otimizado, a governação terá melhorado, a diversificação económica moderada terá alcançado resultados tangíveis, as “quatro novas indústrias” terão ganho escala, e a circulação de fatores será mais eficiente e conveniente, realizando plenamente as quatro visões de “Macau alicerçado em Estado de Direito” (法治澳门), “Macau Dinâmico” (活力澳门), “Macau Cultural” (文化澳门) e “Macau Feliz” (幸福澳门). Até 2035, quando o país estará basicamente modernizado, as vantagens de “Um País, Dois Sistemas” serão plenamente demonstradas, a base do Estado de Direito será mais sólida, e o objectivo de promover uma diversificação económica moderada de Macau estará essencialmente alcançado.

Nota: O conteúdo acima é baseado na intervenção de Lei Wun Kong antes da ordem do dia na Assembleia Plenária da Região Administrativa Especial de Macau em 28 de outubro.

31 Out 2025

Triângulo Estratégico Global (II)

“Winning the AI race will usher in a new golden age.”

U.S. Defense Innovation Board, 2023

Depois dos Estados Unidos, a Rússia é a única grande potência com laços de sangue profundos com Israel. A diáspora de judeus oriundos do espaço pós-soviético, iniciada há mais de quatro décadas, permitiu a Moscovo contar com uma comunidade de cerca de um milhão de russos a viver em território israelita, muitos deles integrados nas elites. A comunicação entre Netanyahu e Putin é directa e funcional. No Kremlin, há quem veja com bons olhos a eventual ascensão de Naftali Bennett judeu de origem americana e mediador informal nas negociações russo-ucranianas de 2022, interrompidas por pressões externas. Neste contexto, a possibilidade de Israel expandir os seus actuais sete teatros de guerra não é remota. A erosão acelerada dos equilíbrios internos ao triângulo com o Irão e a Turquia fragiliza os amortecedores geopolíticos da região. A distância física de quase dois mil quilómetros que separa Israel do Irão torna-se cada vez mais irrelevante, à medida que se intensifica a tensão entre os dois regimes, envoltos numa retórica de demonização mútua.

A crise do corredor estratégico que liga Herat a Beirute, passando por Teerão, Bagdade e Damasco, alimenta a hipótese de um confronto directo. Com a Turquia, o tabuleiro é outro. A Síria tornou-se o campo de manobra. Damasco, tomada recentemente por milícias jihadistas apoiadas por Ancara, está perigosamente próxima das posições israelitas para lá do Golã. Um cenário de equilíbrio instável entre turcos em Alepo e israelitas em Damasco começa a desenhar-se. Erdogan, com ambições de longo prazo, sonha com a reconquista simbólica de Jerusalém e da mesquita de Al-Aqsa, num futuro em que Israel não exista. Embora Telavive não o admita, o verdadeiro desafio estratégico não está no Irão, enfraquecido e em modo de sobrevivência, mas na Turquia, cuja visão neo-imperial se estende do Médio Oriente ao Norte de África. O pragmatismo poderia levar Israel a procurar aproximação com Teerão para conter Ancara, cuja expansão é mais tangível e ameaçadora.

O mosaico de rivalidades no Médio Oriente aparenta estar contido, mas a sua fusão com o conflito ucraniano por via do Cáucaso ou do Mar Negro não é uma hipótese a descartar. A análise cruzada dos três grandes cenários de guerra conduz a três conclusões. A primeira, a da paz possível será sempre imperfeita e só poderá nascer de compromissos graduais entre os Estados Unidos e a China, com a Rússia como peça-chave. São estas três potências que detêm a capacidade de se aniquilar mutuamente e, com isso, pôr fim à vida no planeta. O verdadeiro líder do século será aquele que conseguir atrair Moscovo para a sua esfera, oferecendo-lhe a ilusão de autonomia. A Europa, mesmo nas suas versões mais ambiciosas, disputará lugares secundários no comboio conduzido por Washington ou Pequim. Potências médias com aspirações globais como o Japão, a Índia ou a própria Turquia ocuparão lugares de destaque, mas sempre subordinados a um equilíbrio instável. Não há hegemonia absoluta, apenas uma dança de forças em tensão permanente. Nada que se compare à ordem de Viena ou à geometria bipolar de Yalta. O mundo actual é um salão de baile onde aristocratas decadentes e corsários sofisticados dançam sob vigilância mútua, mantendo esferas de influência que se sobrepõem e se entrelaçam.

O compromisso entre os grandes não é o fim da história, mas a única forma de evitar que termine. Sob essa trégua frágil, multiplicar-se-ão conflitos de menor escala, sobretudo entre o Médio Oriente e África guerras intermitentes, sem plano e horizonte, em territórios esquecidos ou disputados por vizinhos e potências distantes. Duas variáveis, no entanto, escapam a qualquer controlo a de um eventual confronto entre a Rússia e a China, ainda remoto mas plausível, e um embate directo entre a Rússia e os Estados Unidos, menos provável mas facilitado pela proximidade das linhas de contacto na Europa Oriental, especialmente após a divisão da Ucrânia. Não será amanhã. Mas depois de amanhã pode ser tarde. Vivemos num tempo de coexistência forçada, imposta pela impossibilidade de uma guerra mundial racionalmente concebida. Conflitos localizados ou até globais podem surgir, desde que se mantenham abaixo do limiar nuclear.

(Continua)

30 Out 2025

Pessoas Normais

Em 2018 saiu um livro que rapidamente se tornou num best-seller, Pessoas Normais da Sally Rooney. Em 2020 saiu uma série televisiva inspirada no livro, que, com o mesmo nome, se tornou igualmente num êxito. É uma história sobre dois jovens, um rapaz e uma rapariga irlandeses, desde o último ano do secundário, em Sligo, no oeste da Irlanda, até ao final da licenciatura no Trinity College, em Dublin. Pessoas que se apaixonam, que se confundem e que têm sexo – jogam o jogo da intimidade de melhor forma que podem e embrenham-se em questões fraturantes e dolorosas. Rooney mostra que a verdadeira intimidade não se constrói no desejo, mas na capacidade de gerir, ou permitir, a partilha emocional.

A história é um cliché. Uma rapariga que não é popular na escola, mas que vem de um contexto familiar financeiramente favorecido, e um rapaz que é bastante popular na escola e que vem de uma classe trabalhadora. Eles envolvem-se sexual e emocionalmente num caso que tanto os aproxima como os separa. Entram na mesma faculdade e continuam no vaivém entre uma paixão desmedida e momentos de incompreensão. Mas é aí que o cliché termina, porque a forma como somos transportados para os mundos interiores de expressão emocional é tão rica, que nos retira do melodrama do costume e transporta-nos para uma realidade que nos é mais conhecida: a nossa, com as suas nuances e confusões. O livro chama-se Pessoas Normais porque o que lá retrata é real e normal.

Nesta história, o consentimento sexual e físico é atravessado por uma camada emocional que o torna complexo. Explorando questões sobre o poder, a classe e o erótico, as personagens navegam aquele mundo, cada uma com a sua capacidade distinta de concretização emocional e financeira. A intimidade é um jogo de poder, de quem abre ou fecha portas para a sintonia. E os lugares que as personagens habitam são próximos e distantes ao mesmo tempo, como se se perdessem na sintonia de um e de outro. Marianne, apesar do seu contexto, vem de uma família problemática que a ensinou que as suas vontades, ou a sua existência, não eram importantes. E nesse espaço de esvaziamento, ela oferece espaço ao outro para ultrapassar limites: ela não escolhe ceder; ela só não sabe conter. Connell, que vive perdido, sem saber onde pertence, encontra na Marianne uma forma de se integrar num mundo distinto do dele, que o desafia e o confunde. Os eventos são recontados na intimidade do pensamento de cada um, e percebemos como despertam percepções diametralmente opostas. A realidade deixa de existir e a percepção é modeladora do fazer e do sentir. E nos momentos de intimidade física, o corpo torna-se o único lugar onde a verdade se manifesta. O sexo não é um clímax, mas uma forma de comunicar – o único espaço onde conseguem dizer o que as palavras não iriam conseguir. O erotismo, pela autora, é vulnerabilidade pura.

Nesta história não há vilões, nem heróis, só pessoas – há quem diga que retrata a vida dos millennials em particular, na confusão que é estar com os outros no atual contexto de instabilidade laboral e até geopolítico. O sexo “não é assim com as outras pessoas”, como eles confessam um ao outro, e o romance e o erotismo da história vive nesses momentos explícitos, outros silenciosos. Com uma linha temporal fragmentada, acompanhamos as duas personagens em trechos significativos ao longo de cinco anos. O ritmo que nos é apresentado revela-nos outro facto mundano; eles estão a crescer. A relação entre Marianne e Connell é sintomática das dores de crescimento que os acompanham na descoberta de quem são – apenas pessoas normais.

28 Out 2025

O plano bilionário de Musk (2)

A semana passada, falámos sobre a proposta da Tesla para atribuir ao seu Director Executivo, Elon Musk, 1 bilião de dólares em acções a título de prémio de desempenho, na condição de atingir uma série de objectivos. Estes objectivos seriam: Primeiro, inverter o recente declínio na venda de carros. Segundo, desenvolver o negócio de venda de carros autónomos, etc. Depois de todas as metas serem atingidas, não só o valor e os lucros da Tesla aumentariam significativamente, como Musk receberia uma enorme compensação financeira, beneficiando assim ambas as partes.

No entanto, como a tecnologia de condução autónoma ainda não está completamente desenvolvida, e países de todo o mundo vão rever a legislação rodoviária em função desta inovação, a cobertura dada pelos seguros contra terceiros também irá sofrer alterações. Estes factores geram incerteza e podem vir a afectar a Tesla. Hoje, vamos continuar a analisar o impacto que o plano de compensação no valor de 1 bilião em acções vai ter na Tesla, em Musk e nos accionistas.

Terceiro, o plano da Tesla para fabricar 5.000 a 10.000 robots humanoides Optimus em 2025. O objectivo é criar robots que possam substituir os trabalhadores manuais, como carregadores, trabalhadores domésticos, etc. Contudo, a tecnologia do Optimus ainda não está aperfeiçoada. Muitas empresas de IA estão a trabalhar afincadamente para atingir este mesmo propósito. Ainda está por saber se a Tesla será bem-sucedida na sua investigação e se se irá tornar a primeira empresa a dominar o mercado da robótica.

Quarto, a fábrica da Tesla Shanghai Energy Storage Giga começou a produção no passado mês de Fevereiro. A empresa pretende trabalhar com um único operador de soluções energéticas, que forneça serviços de geração, armazenamento e gerenciamento de energia para complementar o negócio do automóvel, da robótica, dos super-computadores e da energia. Este objectivo requer padrões extremamente elevados tanto para software como para hardware. As tensões entre a China e os Estados Unidos podem ter consequências ao nível da importação e exportação de produtos, um factor que fica para lá do controlo da Tesla.

Quinto, o facto de Musk gerir várias empresas de IA faz com que disperse a sua atenção, e algumas das suas declarações públicas tiveram um impacto na imagem da Tesla. O prémio de desempenho que deveria ter recebido pelo seu trabalho em 2018 está actualmente em fase de recurso e ainda não se sabe se o prémio de 2025 será aprovado pelos accionistas e pelos tribunais. Tudo isto são questão que Musk deve considerar.

No plano do prémio de desempenho no valor de 1 bilião, Musk incorpora três qualidades essenciais num magnata de negócios bem-sucedido. Primeiro, a gestão que faz de várias empresas demonstra a sua dedicação ao trabalho e revela esforço e paixão. Segundo, assim que atingir os seus objectivos, as suas acções da Tesla aumentarão de 13 por cento para 25 por cento. Com um reforço do seu controlo sobre a empresa, Musk pode continuar a desenvolver o negócio e conduzi-lo até uma próxima década de prosperidade, provando o seu empenho num crescimento futuro. Terceiro, Musk possui um profundo sentido de aventura e, correndo riscos, cria grandes benefícios para a empresa e para si próprio. Só transformando a Tesla numa empresa tecnológica sem precedentes é que Musk poderá colher compensações substanciais, vinculando a longo prazo o seu património pessoal ao valor da empresa.

O conselho de administração da Tesla espera que este plano assegure o foco de Musk no seu projecto ao longo da próxima década, conduzindo a empresa para a transformação do negócio e o crescimento dos lucros. Se a investigação for bem-sucedida a Tesla pode vir a gerar lucros substanciais. O fracasso pode anular todos os investimentos e resultar em perdas. O risco é a essência do negócio. Lucros e perdas são precisamente a consequência de se correr riscos. Comparado com os 8,5 biliões que a empresa vale e os seus 400 mil milhões de lucro, o prémio de 1 bilião é só uma gota no oceano. Não é uma quantia significativa para a Tesla, mas une os interesses da empresa, dos seus accionistas e de Musk, cimentando um destino comum.

O sucesso do negócio da Tesla significa aumento dos dividendos dos accionistas, uma subida do valor das acções e um conjunto de accionistas satisfeitos. No entanto, alguns deles podem estar com medo que Musk não cumpra todos os objectivos propostos pela empresa, e que à medida que ele tenha mais acções, a participação no capital desses accionistas seja diluída. Este plano tornará-lhes-á mais difícil a aprovação de resoluções que assegurem os seus interesses no futuro. Neste cenário, a Tesla pode tornar-se incapaz de prescindir de Musk, alguns accionistas podem sentir que ele é indispensável, mas Musk pode ir-se embora quando os seus objectivos forem atingidos.

Temos de esperar pelo resultado da reunião de accionistas da Tesla que irá acontecer em Novembro e ver se Musk consegue criar outra lenda no mundo dos negócios.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Faculdade de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Email: cbchan@mpu.edu.mo

28 Out 2025

Ao que isto chegou

Um menor de 14 anos mata a mãe com uma arma do pai. Fomos ficando habituados a ler notícias tristes de filhos que roubam as joias da mãe para certos vícios ou que batem na mãe ou no pai porque estes não lhes dão dinheiro a fim de comprarem estupefacientes. Agora, a linha vermelha foi ultrapassada. Um menor diz que “a minha mãe chateava-me muito”, pega na arma do pai e mata a mãe sem apelo nem agravo. Ao que isto chegou.

A mãe, Susana Gravato, de 49 anos, era vereadora do PSD na Câmara Municipal de Vagos. O tribunal já decidiu o internamento do menor em regime fechado e depois poderá ficar na mesma situação mais três anos. O menor cometeu o crime de tal forma consciente que até, após o acto, simulou um cenário de assalto em casa. Ao falarmos com uma psicóloga, esta disse-nos que a mudança na educação dos filhos nos dias de hoje é tenebrosa. Que as redes sociais são uma das razões para a violência se estar a banalizar e que a legislação muito tem de mudar no que respeita ao acesso ao digital.

Miguel Sousa Tavares defendeu a proibição gradual das redes sociais, sublinhando que “Estão a dar cabo do nosso modo de vida”. Vivemos um tempo de educação por reflexo condicionado, acrescentou a psicóloga, para prosseguir salientando “que talvez porque estejamos a ser ultrapassados pelos cães. Vivemos uma época onde tudo é a consequência de um pseudo-trauma que a ignorância se propõe facilmente tratar e que mais não faz senão prolongar e agravar a doença”.

Nós lemos Freud muito cedo, e logo percebemos que, em Freud, quase tudo girava em torno da frustração e do sexo reprimido. Depois, como estava na moda, lemos Piaget achando que nos ajudaria a educar os filhos. Enganámo-nos. Piaget educou, mas foi a nós. Descobrimos que a educação dos filhos não se faz com amarras de teorias, religiões ou modas. A educação dos filhos, antes de tudo tem de ser um acto de amor, caso contrário, o reverso da medalha pode ser fatal.

Na verdade, o país outrora tido como pacífico, ficou chocado ao tomar conhecimento que uma filha tentou matar o pai à facada e arrancar-lhe os olhos para ficar, simplesmente, com uma casa, e no dia seguinte, um filho com apenas 14 anos mata a mãe com a pistola escondida do pai porque “a mãe era chata com os afazeres escolares”. Certo, é dizer que “matou” logo o pai e se matou a si próprio também. A loucura contamina e a maldade também. São gémeas idênticas. Os portugueses não queriam acreditar que se ultrapassou a linha vermelha e que agora os filhos já matam os pais.

Há uns anos, conhecemos José Manuel Anes, que foi presidente do Observatório de Segurança Criminal e Terrorismo. Um homem experiente de todos os aspectos da vida, da segurança, do crime e da espionagem. Não conseguimos entender qual foi a educação que Anes terá dado à sua filha Ana, para que esta o tente matar à facada e ter a “coragem” de ir para as redes sociais dizer que tentou matar o pai porque este tinha colaborado com a Mossad.

É incompreensível por parte de uma filha. José Manuel Anes tinha-nos referido que o cargo que ocupava era de risco, que tinha a noção que um dia podia ser morto, mas certamente nunca imaginou que isso pudesse acontecer pelas mãos da própria filha Ana, que já se encontra presa e que confessou o crime. Efectivamente o mundo mudou, e para pior no que concerne às atitudes das novas gerações. Culpa dos pais? Talvez. Todavia, não deixa de ser repugnante que uma filha, de 53 anos, pegue numa faca e tente matar o seu pai que lhe deu tudo incluindo uma mesada até ao dia de ser atacado gravemente. Ao que isto chegou.

José Manuel Anes foi atacado dentro da própria casa. Há cinco anos que Anes era perseguido pela filha, com ameaças de morte nas redes sociais. A filha pretendia que o pai colocasse em nome dela a propriedade de uma casa na Costa de Caparica. A teoria da filha Ana Anes era a pretensão de ela poder vender a casa e arrecadar o dinheiro, uma vez que estaria desempregada.

É este o móbil do crime apurado pela investigação da Polícia Judiciária. De resto, foi por temer que a filha concretizasse as ameaças que José Manuel Anes, com 81 anos, passou a viver com a actual mulher na casa de uma amiga desta, em Lisboa. Anes tinha recebido antes do dia do crime uma mensagem ameaçadora da filha e logo no dia seguinte a mesma tocou à porta da casa onde estava a viver e Anes abriu, pensando tratar-se da entrega de uma encomenda. Foi desde logo atirado ao chão pela filha, que a seguir o agrediu com vários murros pelo corpo todo. Depois, com um objecto cortante, atingiu-o na cabeça, pernas, mãos e abdómen, até que, por fim, lhe pressionou os dois olhos com os dedos, deixando-o sem ver. Mas que cena macabra: uma filha que tenta matar um pai com 81 anos, só pela ganância do dinheiro. Qualquer dia, temos todos os meses um pai morto por um filho. Ao que isto chegou…

P.S. – Esta foi a minha 250ª crónica. Quero agradecer fraternalmente ao Director Carlos Morais José o convite que me fez há cerca de cinco anos para estar em contacto com os leitores deste magnífico jornal.

27 Out 2025

Triângulo Estratégico Global (I)

(Continuação da edição de 23 de Outubro)

Exagerar a ameaça russa serve tanto à indústria como à política interna. No extremo inferior da escala, os palestinianos continuam a ser alvo de extermínio e deslocação por parte de Jerusalém, numa busca persistente por espaço vital. São vítimas esquecidas, sobretudo pelos que se dizem seus amigos. A crise de coesão social no triângulo das potências regionais é evidente. Em Israel, a fragmentação interna é dramática. As guerras externas funcionam como válvula de escape para evitar o colapso interno entre tribos centrífugas, onde o recuo dos judeus ultra ortodoxos em combater pelos sionistas é mais do que alarmante. No Irão, a tensão é latente, resultado da laicização progressiva da sociedade e do regime, que o Ocidente continua a imputar aos aiatolas uma caricatura que não diverte e do colapso da natalidade.

Na Turquia, a situação é gerível, apesar do fosso crescente entre o islamismo pragmático do regime e o laicismo, quase ateu, difundido entre os jovens. A taxa de fertilidade caiu de 2,38 filhos por mulher em 2001 para 1,48 em 2024, sinal de uma transição demográfica profunda. Quanto ao triângulo das grandes potências, os Estados Unidos mantêm interesse apenas para evitar a autodestruição de Israel, provocada por guerras impossíveis de vencer. Mas o empenho é decrescente. Trump não confia em Netanyahu, que tenta instrumentalizá-lo, mas depende dele para os armamentos. As extravagâncias israelitas são toleradas, pois o interesse americano reside em supervisionar o equilíbrio entre os três protagonistas, Estados Unidos, Rússia e China além da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, convertidos ao jogo em campo aberto, com a China e até com o Irão.

A linha vermelha da bomba persa, com consequências sauditas e turcas, permanece como ponto de tensão. Sem outra perspectiva senão empurrar todos mais além. A Rússia redescobriu recentemente os seus parceiros médio-orientais da era soviética, a começar pela Síria, tentando abrir uma brecha a sudoeste no dispositivo americano a ocidente da vertical Murmansk-Cairo fronteira oriental da esfera de influência americana na era pós-global. A queda dos al-Assad infligiu um golpe duríssimo à influência russa na região. Moscovo tenta defender o acesso à sua única base naval no Mediterrâneo, reduzida mas não comprometida. Putin reforça os laços militares e energéticos com o Irão, como bem sabem os ucranianos, alvo de enxames de drones persas, enquanto negoceia com a Arábia Saudita, juntamente com os americanos, o preço do petróleo. Erdogan estende as suas províncias a quase toda a Líbia, ao mesmo tempo que oferece apoios ambíguos no Mar Negro e nas negociações secretas sobre a Ucrânia.

Mas a rivalidade entre a Segunda e a Terceira Roma está destinada a durar até aos últimos dias. Por fim, o triângulo estratégico entre Israel, Turquia e Irão no Médio Oriente, inscrito entre Suez, Bab al-Mandab e Hormuz, acrescenta uma camada de complexidade ao panorama global. São ilhas de identidade forte num mar de para-Estados e comunidades fragmentadas, onde a estabilidade é sempre relativa. A guerra na Ucrânia, longe de ser um episódio isolado, é o espelho de um mundo em transição. Um mundo onde o equilíbrio entre potências, a redefinição das alianças e a gestão dos conflitos regionais determinarão o rumo da história. E onde a paz, mais do que um ideal, será o resultado de uma engenharia diplomática paciente e multilateral.

23 Out 2025

Triângulo Estratégico Global (I)

“The divergence between American and European strategic analysis is more instrumental than sincere.”

José Milhazes

A guerra na Ucrânia não é apenas uma tragédia regional. É o reflexo de uma transição sistémica que atravessa o mundo, onde o equilíbrio entre potências, alianças e civilizações está em reconfiguração. O conflito, embora localizado, contém em si três dimensões interligadas que o tornam um dos eventos mais significativos da era pós-Guerra Fria. A primeira dimensão, visceral e imediata, é a mais sangrenta. Trata-se do confronto entre o que resta do império russo movido por uma pulsão de grandeza histórica e a nação ucraniana, que procura afirmar-se como Estado soberano e independente, livre da influência moscovita. Esta luta, que mistura elementos de guerra civil com disputas de sucessão pós-soviética, é marcada por memórias imperiais, ressentimentos históricos e ambições nacionais.

A Ucrânia, ao tentar consolidar a sua identidade política e cultural, desafia directamente a narrativa russa de unidade eslava e continuidade imperial. A segunda dimensão, mais estrutural e de alcance continental, envolve o espaço euro atlântico em processo de transformação. Desde o colapso da União Soviética, a expansão da influência ocidental para leste tem sido constante. A integração da antiga Alemanha Oriental, a adesão dos países bálticos, da Polónia, da Roménia e, mais recentemente, da Finlândia e da Suécia à OTAN, desenham uma trajectória de aproximação à fronteira russa. A ofensiva militar de Moscovo contra Kiev surge como reacção a essa marcha oriental, tentando impedir que a Ucrânia se transforme numa plataforma avançada de influência americana. Sob esse prisma, os combatentes ucranianos tornam-se peças num tabuleiro maior, onde Washington projecta poder através de alianças e apoios indirectos.

A retórica do “Ocidente colectivo”, embora usada como instrumento de mobilização interna pela Rússia, revela-se útil para conferir à intervenção o estatuto de guerra patriótica. A terceira dimensão, mais silenciosa mas decisiva, inscreve-se no desafio sistémico entre potências globais. A Ucrânia tornou-se um campo de teste para a resiliência das alianças, a eficácia das estratégias de contenção e a capacidade de adaptação das grandes potências. O conflito desenha uma geometria de pares com a Ucrânia e Estados Unidos de um lado; Rússia e seus parceiros estratégicos do outro. A China, embora não envolvida directamente, observa com atenção e prudência, calibrando os seus movimentos num tabuleiro onde a estabilidade regional e a autonomia estratégica são prioridades.

A sua postura, marcada pela moderação e pelo pragmatismo, contribui para evitar uma escalada descontrolada e preserva canais de diálogo que podem ser cruciais para uma eventual resolução. Neste cenário, a guerra na Ucrânia contém os ingredientes para uma escalada de alcance mundial, caso um dos vértices do triângulo geopolítico Washington, Moscovo ou Pequim decida romper o equilíbrio tácito. A única saída sustentável parece residir num entendimento entre essas três potências, capaz de evitar que Kiev se torne o palco de uma nova guerra global, à semelhança das que marcaram o século passado. A Europa, por seu lado, assiste com crescente apatia ao desenrolar da tragédia. A sua fronteira oriental arde, mas o público europeu, fatigado e dividido, hesita entre o envolvimento e o distanciamento. A Ucrânia, tecnicamente falida e dependente de ajuda externa, vê metade da sua população viver em diáspora.

Os que permanecem enfrentam uma guerra de sobrevivência, conscientes de que a vitória total é improvável. O objectivo tácito parece ser enfraquecer a Rússia, mesmo que isso implique a erosão da estabilidade europeia. A frente nordeste da OTAN, centrada na Polónia e estendida do Ártico ao Mar Negro, emerge como possível ponto de ignição. A Alemanha, com memória histórica e responsabilidade geopolítica, será determinante na reconstrução da Ucrânia pós-conflito. A sua influência, discreta mas profunda, contrasta com a assertividade polaca, marcada por rivalidades regionais. No horizonte, vislumbra-se um cenário de cessar-fogo ao estilo coreano, com uma nova cortina de aço a dividir o país. A reconstrução será partilhada entre os aliados ocidentais, com feudos demarcados e interesses cruzados.

A Rússia, por sua vez, poderá consolidar uma Nova Rússia, estendendo-se da Transnístria ao Báltico, homenageando os czares que projectaram o império em direcção à Europa. A lógica das capacidades militares, mais do que as intenções declaradas, alimenta a possibilidade de confrontos preventivos.

A escalada nuclear táctica, embora indesejada, torna-se uma consequência quase automática num ambiente de desconfiança mútua. Os Estados Unidos, cautelosos, preferem deslocar o foco para o Indo-Pacífico, enquanto os europeus, divididos entre ambições e ressentimentos, enfrentam o dilema de rearmar-se sem o guarda-chuva nuclear americano. A divergência estratégica entre americanos e europeus é mais funcional do que ideológica. Em Washington, a retirada parcial da Europa é vista como oportunidade para redistribuir recursos e testar a autonomia dos aliados. Na Europa, essa retirada é interpretada como oportunidade de reconfigurar ambições e ajustar contas históricas.

(Continua)

22 Out 2025

Contribuindo com um exemplo vívido da governação da China para o desenvolvimento da causa global das mulheres

Por Liu Xianfa

Comissário do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China na Região Administrativa Especial de Macau

A Reunião de Líderes Globais sobre as Mulheres, com o tema “Um Futuro Partilhado: Processo Novo e Acelerado para o Desenvolvimento Integral das Mulheres”, teve lugar em Beijing, de 13 a 14 de outubro, em comemoração do 30º aniversário da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres e com vista a debater sobre o desenvolvimento da causa global das mulheres.

O Presidente Xi Jinping participou na cerimónia de abertura da Reunião e proferiu o discurso principal intitulado “Levar avante o espírito da Conferência Mundial de Beijing sobre as Mulheres e promover o novo e acelerado processo para o desenvolvimento integral das mulheres”, no qual demonstrou de forma abrangente e sistemática as conquistas da modernização chinesa e da causa das mulheres na China da nova era, apresentou as propostas da China para acelerar o novo processo de desenvolvimento integral das mulheres à luz das tendências globais e anunciou as soluções da China para apoiar ainda mais o desenvolvimento da causa global das mulheres. Com práticas bem-sucedidas e realizações frutíferas, a China contribuiu para o mundo inteiro com mais um exemplo vívido da “governação chinesa” .

Na China, a causa das mulheres sempre constitui uma parte importante do processo de modernização chinesa. Desde a sua fundação em 1921, o Partido Comunista da China tem-se empenhado na libertação das mulheres e na igualdade de género. Após o estabelecimento da República Popular da China, foi promulgada uma série de leis e regulamentos que protegiam os direitos e interesses das mulheres, alcançando melhorias históricas na condição das mulheres no sentido de educação, emprego, participação política e autonomia conjugal.

Entrando na nova era, o Comité Central do PCC, com o Camarada Xi Jinping como o núcleo, enfatizou como componentes integrantes da modernização chinesa a salvaguarda dos direitos e interesses legítimos das mulheres, a promoção da igualdade de género e o desenvolvimento integral das mulheres. Tem sido tomada uma série de decisões e planos pioneiros, gerais e de longo prazo e a causa das mulheres da China realizou conquistas e mudanças históricas. Vencemos a maior batalha contra a pobreza da história da humanidade e, assim, trouxemos prosperidade moderada a 690 milhões de mulheres.

Reduzimos a taxa de mortalidade materna em quase 80% desde 1995 e juntámo-nos aos principais países de rendimento médio-alto nos indicadores essenciais de saúde materna-infantil. Atualmente, as mulheres representam mais de 40% da força de trabalho total da China e mais de metade dos empreendedores de startups de internet no país. Na nova era, as mulheres chinesas, mais confiantes e vibrantes, participam em todo o processo de governação do país e sociedade. A causa das mulheres na China tem gozado de espaços de desenvolvimento mais amplos e de perspetivas mais promissoras do que nunca.

Após o seu regresso à pátria, Macau experimentou uma época dourada no desenvolvimento da causa das mulheres. O nível de escolaridade, a participação no mercado de trabalho, a cobertura industrial, o nível profissional e os rendimentos das mulheres em Macau melhoraram significativamente. Com grande coragem e entusiasmo, Mulheres deram contributos significativos em todas as esferas de vida, sustentando metade do céu para o desenvolvimento de Macau.

Desde 2008, a Associação Geral das Mulheres de Macau obteve o estatuto consultivo especial junto do Conselho Económico e Social das Nações Unidas, assim foi qualificada oficialmente pelas Nações Unidas para assistir aos assuntos internacionais e, desde então, esta participou nas sessões da Comissão sobre o Estatuto da Mulher (CSW) por 15 anos consecutivos. Macau já se tornou numa força indispensável no sentido de contar bem as histórias da China e da prática bem-sucedida de “um país, dois sistemas” em Macau junto da comunidade internacional.

A China tem dado apoio firme e contribuição ativa ao desenvolvimento da causa global das mulheres. Como salientou o Presidente Xi Jinping, as mulheres desempenham um papel importante na criação, promoção e desenvolvimento da civilização humana, e a comunidade internacional tem a responsabilidade partilhada de promover a causa das mulheres.

A China defende a visão de construir uma comunidade com futuro partilhado para a humanidade e tem transformado a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global, a Iniciativa de Civilização Global e a Iniciativa de Governação Global em ações concretas para promover o desenvolvimento integral das mulheres, de modo a proporcionar ativamente oportunidades e apoio à causa global das mulheres através do seu desenvolvimento. A China participa ativamente na governação global no domínio das mulheres, apoia as Nações Unidas na priorização de trabalhos de mulheres, cria o Prémio para a Educação de Meninas e Mulheres em parceria com a UNESCO e tem anunciado três doações de 10 milhões de dólares à ONU Mulheres. Face aos desafios globais, a China tem enviado mais de 1.200 oficiais e militares femininos para participar em operações de manutenção da paz da ONU, prestando assistência humanitária a mulheres e crianças afectadas por conflitos e catástrofes.

A China tem vindo a aprofundar o intercâmbio e a cooperação global entre mulheres, mantendo relações de amizade com organizações e instituições femininas de mais de 140 países, implementando projetos no valor de mais de 40 milhões de dólares no setor feminino em mais de 20 países, cultivando mais de 200 mil talentos femininos em mais de 180 países e regiões e prestando assistência para o emprego feminino em mais de 100 países. O desenvolvimento da causa das mulheres na China proporcionou uma solução chinesa para a causa global das mulheres que pode ser referenciada, o que é amplamente reconhecida e elogiada pela comunidade internacional.

Renovando a nossa dedicação ao propósito da Conferência Mundial de Beijing sobre as Mulheres e unindo esforços para criar um futuro melhor para o desenvolvimento da causa global das mulheres. Globalmente, a violência de género, a desigualdade digital e a sombra da guerra e do conflito ainda persistem. Olhando para o futuro, devemos renovar-nos em prol do propósito da Conferência Mundial de Beijing sobre as Mulheres para construir consenso maior, alargar os caminhos a seguir e tomar medidas mais concretas, com o objetivo de acelerar o novo processo de desenvolvimento integral das mulheres.

O Presidente Xi Jinping, no auge do progresso da civilização humana e do desenvolvimento pacífico do mundo, com uma visão global e sentido de responsabilidade como líder de um grande país, propôs quatro sugestões para a causa global das mulheres, quais são: “promover em conjunto um ambiente propício para o crescimento e desenvolvimento das mulheres”, “cultivar em conjunto um impulso vigoroso para o desenvolvimento de alta qualidade da causa das mulheres”, “construir em conjunto estruturas de governação para proteger os direitos e interesses das mulheres” e “escrever em conjunto um novo capítulo na promoção da cooperação global em prol das mulheres”. Foi anunciada também uma série de medidas novas tomadas pela China para apoiar o desenvolvimento da causa global das mulheres. A China está disposta a trabalhar com todos os países do mundo para superar os desafios globais, com visão orientada para a acção, acelerar o novo processo de desenvolvimento integral das mulheres com unidade, confiança, coragem e prática, levar avante a construção de um sistema de governação global mais justo e razoável e unir esforços para avançar em direcção a uma comunidade com futuro partilhado para a humanidade.

Com destino partilhado e de mãos dadas, as mulheres encaminharão para um futuro promissor. Como defensora activa e firme da cooperação global na causa das mulheres, a China continuará a trabalhar com todos países para tomar as acções aceleradas, de forma a escrever um novo capítulo no processo de desenvolvimento integral das mulheres!

22 Out 2025

O plano bilionário de Musk (1)

O dever de um director é trabalhar para optimizar o desempenho da sua empresa e maximizar os seus lucros. Quando a empresa aumenta os ganhos, é natural que o director seja recompensado financeiramente. No entanto, a comunicação social divulgou recentemente um relatório da mais influente firma de consultoria a nível mundial, a Institutional Shareholder Services, que se manifestava contra a atribuição a Elon Musk, Director Executivo da Tesla, de 1 bilião de dólares como recompensa pelo seu desempenho, por esta quantia ser muito elevada. Esta recomendação pode impedir que Musk, “amante de desafios”, obtenha uma compensação pela proeza de “aterrar em Marte”.

O plano para atribuir um bilião de dólares a Musk a título de compensação surgiu no passado mês de Setembro, quando o Conselho de Administração da Tesla lhe pediu para aumentar a produtividade da empresa durante os próximos dez anos. Caso fosse bem-sucedido, receberia esse valor em acções. O plano está dividido em 12 etapas. Após completar cada uma delas, recebe 1% das acções. Depois de estarem todas concluídas, receberá 12%, valor que se estima não ser inferior a 1 bilião de dólares. Os pontos principais são:

Venda de 20 milhões de veículos eléctricos

10 milhões de subscrições para o sistema de carros autónomos

Um milhão de carros autónomos matriculados e em funcionamento.

A partir de 3 de setembro de 2025, a entrega de um total acumulado de um milhão de robots humanoides Optimus.

A capitalização da empresa aumentará em 12 fases, dos cerca de 1,1 biliões actuais para os 8,5 biliões, oito vezes mais.

O lucro da empresa, depois de deduzidos juros, impostos e depreciação, chegará a 400 mil milhões.

O plano de compensação financeira apresentado em 2025 não é uma novidade. Em 2018, a Tesla aprovou um plano de 56 mil milhões de dólares. Tinha também um alcance de 10 anos, ao longo dos quais o desempenho de Musk ia sendo avaliado e, caso atingisse os objectivos definidos pela Tesla, recebia acções no valor de 56 mil milhões de dólares. Em Janeiro de 2024, o Tribunal de Chancelaria do Delaware rejeitou o plano devido à falta de independência do conselho de administração e ao montante excessivo da remuneração. Embora 90% dos accionistas tenha concordado com uma segunda votação, o tribunal voltou a rejeitar a resolução devido a erros processuais. Este mês, a Tesla apresentou recurso no Supremo Tribunal de Delaware, solicitando a aprovação do plano de compensação de 1 bilião de dólares.

Este plano de vincula os negócios da Tesla ao desempenho de Musk, assinalando que a Tesla não é apenas um fabricante de automóveis, mas que aspira a desenvolver amplamente o negócio ao nível da inteligência artificial e da robótica. Claro que este caminho implica mudanças significativas.

Em primeiro lugar, as vendas da Tesla em mercados como a França, a Suécia, a Dinamarca e a Califórnia estão actualmente em declínio, e os lucros do seu principal negócio estão em queda. De um ponto de vista mais prudente, a Tesla deveria revitalizar primeiro o seu negócio tradicional antes de partir para novas aventuras? Se a revitalização das vendas de automóveis for bem-sucedida, então o desenvolvimento de outras áreas de negócio seria motivo de celebração. No entanto, se falhar, deverá a Tesla abandonar o sector automóvel e apostar em novos negócios? Estes riscos e estas apostas são questões com que a Tesla, o seu conselho de administração e os seus accionistas se devem confrontar e considerar.

Em segundo lugar, a Tesla planeia fabricar carros autónomos. Isto irá não só aumentar o valor destes veículos como também irá abrir caminho para o ingresso no mercado dos carros autónomos. Se a pesquisa tiver sucesso, a Tesla passará de simples fabricante de automóveis para fabricante de automóveis e fornecedor de serviços de veículos autónomos. Imaginemos que o negócio de veículos autónomos possa vir a ser cobrado mensalmente, à semelhança do que fazem as operadoras de telemóveis, então os lucros desta empresa seriam sem dúvida muito maiores do que os que obtém com a simples venda de carros. Embora o fornecimento de serviços de condução autónoma gerem lucros estáveis e de longa duração, a tecnologia que os suporta ainda não está amadurecida. Se um carro autónomo estiver envolvido num acidente, será prejudicial para o dono do carro, para os outros condutores e para o Governo. Além disso, a implementação da condução autónoma vai inevitavelmente requerer a revisão da legislação rodoviária. Também não se sabe se a cobertura do seguro de acidentes contra terceiros precisará de ser modificada. As mudanças no mercado global vão gerar incertezas significativas para o negócio dos veículos autónomos da Tesla.

Na próxima semana, continuaremos a debater o impacto da compensação em acções no valor de 1 bilião de dólares no mundo dos negócios.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Faculdade de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Email: cbchan@mpu.edu.mo

21 Out 2025

O populismo caiu no poço

André Ventura tinha anunciado que nas eleições autárquicas conseguiria a presidência de umas 30 edilidades. Em 308, obteve o resultado “estrondoso” de três Câmaras Municipais. As sondagens que infelizmente ainda temos apresentaram que a vitória pertenceria à AD, o segundo lugar ao Chega e o terceiro para o Partido Socialista. Os comentadores televisivos fartaram-se de elogiar as sondagens e de salientar que seria normal o resultado do Chega porque o PS estava em declínio absoluto desde as últimas eleições legislativas. Enganaram-se, mais uma vez.

Sondagens e comentadores. O Partido Socialista renasceu das cinzas e conseguiu um resultado muito positivo. No cômpito geral não perdeu por muito e em termos de resultados de partidos sozinhos, sem coligações, os socialistas obtiveram quase o dobro das Câmaras Municipais que o PSD. Ficou provado que sem o populismo radical, sem a xenofobia, sem o racismo e sem os gritos de André Ventura, o Chega é um flop a nível local, especialmente pelo interior do País. O populismo caiu no poço e vamos ver quando é que os “bombeiros” o conseguem trazer ao de cima. O Chega ganhou no Entroncamento sem saber bem por quê, ganhou numa edilidade madeirense onde vivem meia dúzia de pessoas e ganhou em Albufeira porque os proprietários dos bares e hotéis conseguiram convencer toda a clientela e vizinhança para votar nos neonazis. Os eleitores de Albufeira irão chorar baba e ranho porque o Chega preconiza no seu programa algarvio que os bares encerrem às duas da madrugada e os proprietários desses estabelecimentos de diversão nocturna exigem que o encerramento seja às quatro horas da madrugada. O descontentamento local irá imperar e certamente que se traduzirá em próximas eleições. Isto, em Albufeira, porque no resto do Algarve o Chega pensava ganhar tudo. Nem aquela espécie de taberneiro que no Parlamento está sempre a gritar e a limpar o suor da careca, conseguiu vencer em Faro.

O mapa global divide-se entre a AD/IL e o partido rosa. O cavaquistão terminou ao fim de várias décadas. Viseu que teve sempre aquele Ruas, que pinta o cabelo e o bigode querendo parecer que tem menos 30 anos, teve uma derrota como nunca esperou. Em Lisboa e Porto, o caso já deu muito que falar. As vitórias da AD e seus pares da Iniciativa Liberal em Lisboa, e no Porto com o apoio verbal de Rui Moreira, o edil que terminou os seus polémicos mandatos, foram obtidas por uma margem mínima e até à meia-noite do domingo eleitoral as televisões só falavam em empate técnico. Triste, foi ver Luís Montenegro, que na sua qualidade de primeiro-ministro versus presidente do PSD, no dia das eleições a apelar ao voto nos seus companheiros candidatos, indo em absoluto contra a lei. Montenegro cantou vitória, mas podia ter sido um pouco mais humilde porque a vitória autárquica foi tangencial e perdeu muitas Câmaras importantes como Braga e Coimbra.

O povo, mostrou, desta vez, um grande sentido cívico e a abstenção foi das menores da história eleitoral. Em muitas mesas de voto as filas foram enormes e a espera muito demorada. Era a tradução que a abstenção iria baixar. Mesmo assim, não deixou de existir a falcatrua. Numa região do País lá veio a velha ilegalidade de um partido ter mandado imprimir boletins de voto semelhantes aos que foram entregues aos eleitores e depois propuseram que os seus apaziguados levassem um boletim no bolso já com a cruzinha no partido em causa e quando trouxessem o boletim em branco que a mesa de votos tinha entregado, recebiam dois mil euros. Nada mau para uns milhares de “mercenários”.

De eleições está o povinho farto, mas nada sobre a matéria vai acabar. Já estão na estrada os pontas de lança dos candidatos a Presidente da República. A variedade é enorme, mas quase toda para o mesmo lado. Na direita central temos o almirante Gouveia e Melo com Marques Mendes. Ainda mais à direita surge o “bocas” André Ventura e Cotrim Figueiredo que foi líder da Iniciativa Liberal. Pelo lado esquerdo moderado surgiu António José Seguro e só no sábado passado é que o Partido Socialista resolveu apoiar oficialmente o candidato António José Seguro. Tarde demais. E mesmo assim, a ala socialista mais à esquerda irá votar em António Filipe do PCP, ao bom estilo de Álvaro Cunhal, que alvitrava que por vezes tem de se tapar os olhos para votar em quem não pertence ao partido.

Desta vez, as sondagens parece que vão acertar. Uma empresa de sondagens, na qual temos a maior confiança, obteve num inquérito nacional realizado na semana passada, que haverá uma segunda volta entre Gouveia e Melo e António José Seguro. Contudo, quando os inquiridos foram confrontados com a decisão final na segunda volta, a vitória pendeu para o almirante.

Pois, tal e qual como escrevemos na passada segunda-feira, Luís Montenegro com esta vitória autárquica não se irá demitir, mesmo que o Ministério Público abra um inquérito judicial contra o actual primeiro-ministro sobre o caso da sua empresa familiar Spinumviva. O homem tem muitos anos de política e sabe tudo sobre como se defender das suspeitas de alegados cambalachos. Portugal continuará a ser governado por um político debaixo de suspeitas graves, mas que em nada afecta a sua vontade doentia de ser chefe do Executivo.

19 Out 2025

Que rumo para Macau em 2026?

Só pessoas do exterior ficarão surpreendidas com o anúncio da lista dos sete deputados nomeados pelo Chefe do Executivo à 8.ª legislatura da Assembleia Legislativa. Como um comentador realçou, a mudança de pessoal faz parte de um “jogo de xadrez”, destinado a melhorar ainda mais a estrutura constitucional com predominância do poder executivo, sob o princípio “Um País, Dois Sistemas”, e a reforçar as funções dos órgãos administrativo, legislativo e judicial, bem como aprofundar a sua interacção construtiva.

Dada a eficácia da política consultiva que vigora desde há muito em Macau, a hipótese de Cheong Weng Chon (nomeado pelo Chefe do Executivo para ser deputado da Assembleia Legislativa) ser eleito Presidente ou Vice-Presidente da 8.ª legislatura da Assembleia Legislativa a 16 de Outubro, na primeira sessão do Plenário, é muito elevada. É difícil imaginar como é que Cheong, que foi Secretário para a Administração e Justiça, poderia evitar situações confrangedoras nos debates sectoriais das Linhas de Acção Governativa que se avizinham, especialmente quando se debruçarem sobre a área da administração e justiça, se apenas se limitasse a ser deputado. Se for eleito Presidente da Assembleia, as situações confrangedoras podem ser evitadas.

Os três ex-Chefes do Executivo de Macau, Ho Hau Wah, Chui Sai On e Ho Iat Seng, fizeram todos parte da Assembleia Legislativa. Ho Iat Seng, com a sua experiência como Presidente da Assembleia, compreendia muito bem o tipo de problemas gerados nos departamentos administrativos. Depois de tomar posse como Chefe do Executivo, Ho desenvolveu na verdade um trabalho aprofundado para optimizar a eficiência da estrutura administrativa. Depois do regresso de Macau à soberania chinesa, Cheong Weng Chon foi Director da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, Comissário contra a Corrupção, Secretário para a Administração e Justiça e Chefe da Comissão Executiva da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin, por isso é muito versado em questões administrativas. As suas frequentes interacções com a Assembleia Legislativa, durante o processo de elaboração de leis permitiram-lhe ganhar um bom entendimento das capacidades e do desempenho dos deputados. Se Cheong vier a liderar a 8.ª legislatura da Assembleia Legislativa, abrirá sem dúvida um precedente de plena realização da predominância do poder executivo ao abrigo do princípio “Um País, Dois Sistemas”.

Macau, uma pequena cidade com cerca de 700.000 habitantes e uma área de 33,3 quilómetros quadrados, foi incumbida da tarefa de transformar a Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau na Ilha de Hengqin, no novo centro de comércio da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e na nova plataforma da abertura da China ao mundo exterior. Desde que as receitas anuais do jogo se possam manter nos 240 mil milhões de patacas, o Governo da RAE pode fazer face às despesas e prover às necessidades básicas dos residentes de Macau. Os problemas que enfrentam os funcionários públicos e as pequenas e médias empresas são passíveis de resolução. É necessário um foco na criação de um ambiente que promova os negócios em espaços públicos, no desenvolvimento de mais oportunidades de emprego para os residentes e no investimento na construção económica.

O rumo que Macau tomará em 2026 será influenciado por mudanças operadas nas zonas vizinhas. Salvo circunstâncias imprevistas, Sanae Takaichi, que segue as pisadas do antigo primeiro-ministro Shinzo Abe, será a primeira mulher a ocupar aquele cargo e será eleita numa sessão extraordinária da Dieta do Japão convocada para 15 de Outubro. Notícias indicam que o Presidente dos EUA, Donald Trump, visitará o Japão entre 27 e 29 de Outubro para se reunir com o Imperador e com a nova primeira-ministra. Além disso, a quarta sessão plenária do 20º. Comité Central do Partido Comunista da China (PCC) terá lugar em Pequim de 20 a 23 de Outubro. Esta cadeia de interacções, que não terá sido certamente planeada, sugere a inercepção de uma mão poderosa. Na recepção comemorativa do 80.º aniversário da vitória da China na Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa, o Presidente Xi Jinping afirmou que a China é uma força a bem da paz mundial. Se esta força entrar em jogo, Macau ainda pode navegar suavemente em 2026.

17 Out 2025

In Memoriam do Chef António Coelho

“I love Portuguese food. I love the traditional and authentic cuisine. It’s the one I learned in Portugal. For me, that’s very important because I prefer the traditional things.”

Chef António Neves Coelho

O guardião da culinária luso-macaense e querido amigo, Chef António das Neves Coelho, deixou-nos no dia 12 de Outubro de 2025, no Hospital Conde de São Januário. Figura maior da gastronomia portuguesa em Macau, mentor de gerações, defensor da autenticidade culinária e símbolo de resiliência institucional. A sua partida representa uma perda irreparável para a cultura gastronómica da RAEM e para a memória afectiva de todos os que com ele partilharam mesa, cozinha e sonhos. O Chef António cresceu entre aromas de azeite, alho e vinho tinto. Desde cedo, revelou uma vocação rara para a cozinha, não apenas como técnica, mas como narrativa cultural.

A sua formação passou por casas emblemáticas da gastronomia portuguesa, onde aprendeu a respeitar os ingredientes, os tempos e os afectos que compõem a tradição culinária. A sua carreira internacional levou-o a três continentes e, finalmente, a Macau território onde cumpriu o serviço militar e encontrou o seu verdadeiro palco. A partir de 1997, consolidou-se como Executive Chef e gestor de operações em espaços de referência, tornando-se um dos principais embaixadores da cozinha portuguesa e macaense. Macau não foi apenas o seu destino profissional mas o seu lar espiritual. António compreendeu que a culinária macaense não é apenas uma fusão de sabores, mas também de histórias. Com sensibilidade e rigor, tornou-se defensor da preservação das receitas tradicionais, da valorização dos ingredientes locais e da formação de equipas multiculturais com espírito de missão.

Fundou uma marca própria, onde actuou como director culinário e gestor geral por mais de uma década no António Restaurante recebendo 12 recomendações Michelin, entre outras. A sua liderança era marcada por uma combinação rara de exigência técnica, empatia humana e visão estratégica. A sua cozinha era feita de azeite e afecto, de técnica e ternura, de rigor e poesia. O seu contributo foi reconhecido por duas distinções de elevado prestígio como a Medalha de Mérito Turístico, atribuída pelo Governo da RAEM, em reconhecimento pelo seu papel no desenvolvimento do sector da hospitalidade e da cultura gastronómica local e a Medalha de Mérito das Comunidades Portuguesas, atribuída pelo Governo de Portugal, pela sua acção como ponte cultural entre continentes e pela promoção da identidade portuguesa no exterior.

Estas honrarias não foram apenas troféus mas testemunhos da sua dedicação à causa pública, à cultura e à excelência. Em 2024, o Chef António assumiu a liderança de um novo projecto gastronómico no Angela Café & Lounge do Lisboeta Macau. Ali, criou um menu que celebrava a essência portuguesa e macaense, com pratos como bacalhau à lagareiro, arroz de marisco e sobremesas com toque conventual. O espaço tornou-se um ponto de encontro entre tradição e modernidade, entre turistas e locais, entre memória e futuro. A sua equipa, formada e inspirada por ele, continua a representar os pilares da sua visão com dedicação, criatividade e compromisso com a excelência. O falecimento do Chef António representa uma perda humana e institucional de grande significado. Mas o seu legado permanece vivo na memória dos clientes que saborearam os seus pratos; na formação dos profissionais que com ele aprenderam; na identidade institucional dos espaços que ajudou a construir e na cultura gastronómica de Macau e da diáspora portuguesa

A sua obra não termina com a sua partida mas continua em cada receita preservada, em cada gesto técnico transmitido e em cada valor ético defendido. Mais do que um Chef, António foi guardião da alma gastronómica luso-macaense. A sua vida foi uma ponte entre continentes, sabores e gerações. A sua cozinha era feita de memória e inovação, de técnica e ternura, de rigor e poesia. Que a sua memória continue viva em cada prato servido, em cada história contada e em cada jovem profissional que ousa sonhar com uma cozinha que respeita o passado e transforma o presente.

Antes da sua partida, o Chef António deixou à sua legatária um conjunto precioso de receitas que não são meros registos técnicos, mas autênticos troféus da culinária portuguesa, lapidados ao longo de décadas de prática, reflexão e paixão. Este legado não é apenas um acervo gastronómico mas uma herança cultural, uma carta de intenções e uma missão a cumprir. Cada receita representa um capítulo da sua vida, uma memória partilhada, uma homenagem silenciosa às raízes que o formaram. São pratos que carregam o sabor da infância, o rigor da formação clássica, a ousadia da reinvenção e a ternura da maturidade. São fórmulas que não se limitam a ingredientes e quantidades pois contêm gestos, silêncios, tempos de espera, e sobretudo, intenção.

A legatária, escolhida com discernimento e confiança, não recebeu apenas um caderno de receitas. Recebeu um testamento culinário, um mapa de valores e uma responsabilidade institucional. Caber-lhe-á agora executar, preservar e reinterpretar essas criações com fidelidade e coragem, mantendo viva a chama da autenticidade sem cair na rigidez da repetição. Na tradição portuguesa, a transmissão de receitas é um acto de intimidade e respeito. Não se trata apenas de ensinar mas de confiar. O Chef António compreendia isso profundamente. Por isso, as receitas que deixou não foram divulgadas em massa, nem transformadas em produto comercial. Foram entregues a quem soube compreender o seu espírito, a quem partilhou com ele o quotidiano da cozinha e a quem demonstrou capacidade técnica e sensibilidade humana.

Essas receitas incluem pratos clássicos e sobremesas conventuais reinterpretadas com ingredientes locais. Mas incluem também criações inéditas, pensadas para ocasiões especiais, menus temáticos e homenagens culturais. São pratos que nunca chegaram ao público, mas que agora poderão ser revelados com o cuidado que merecem. Executar estas receitas não é apenas reproduzir sabores mas encarnar uma filosofia. A legatária terá de manter o equilíbrio entre fidelidade e evolução, técnica e emoção, tradição e contemporaneidade. Terá de respeitar os tempos, os gestos, os silêncios que o Chef António ensinou. Terá de compreender que cada prato é também uma mensagem, uma memória e uma afirmação de identidade. Mais do que cozinhar, terá de curar no sentido museológico e afectivo. Curar o legado, protegê-lo da banalização e apresentá-lo com dignidade. Terá de formar outros, transmitir os valores que recebeu, garantir que o legado não se extingue com o tempo, mas se multiplica com sentido.

Este trabalho não é apenas gastronómico mas curatorial, educativo e diplomático. É uma forma de afirmar que a cozinha é também cultura, que o prato é também documento e que o sabor é também memória. As receitas deixadas pelo Chef António são sementes. Cabe agora à legatária e à instituição envolvida cultivá-las com respeito, regá-las com conhecimento e fazê-las florescer com criatividade. Cada vez que uma dessas receitas for servida, será como se o Chef António estivesse presente não como sombra, mas como luz. Este legado é um presente raro. E como todo o presente precioso, exige cuidado, tempo e amor. Que seja honrado com a mesma generosidade com que foi concebido. Que seja partilhado com a mesma elegância com que foi vivido. Que seja perpetuado com a mesma paixão com que foi criado. Porque na cozinha, como na vida, o que permanece não é o que se repete é o que se respeita.

16 Out 2025

O sexo e as emoções

O sexo pode despertar uma panóplia de emoções. Das positivas às negativas — passando pelas neutras — as emoções emergem muitas vezes de forma atabalhoada, sem que consigamos dar-lhes sentido imediato. Há quem até experiencie combinações emocionais que colocam lado a lado emoções que à primeira vista seriam opostas: o prazer e a vergonha. Estas respostas, contudo, são culturalmente moldadas. O sexo, no fundo, é um microcosmo da vida emocional humana, onde se cruzam corpo, cultura e identidade.

A teoria da vinculação, frequentemente descrita como a teoria do amor, mostra como a procura de segurança, ou a sua ausência, molda a nossa resposta emocional na relação com o outro. O corpo possui mecanismos hormonais associados ao prazer, que nos fazem sentir seguros, mas também outros que podem perpetuar o nosso sentido de insegurança. A forma como as respostas emocionais são criadas depende muito do contexto e das nossas experiências passadas. Por isso as emoções tornam-se muitas vezes uma lente pela qual olhamos o mundo.

A psicologia das emoções tem cruzado duas linhagens importantes para percebermos estes mecanismos. Uma delas é a da medicina, onde a emoção resulta da construção e regulação fisiológica. A outra vem da antropologia, que tem explorado a forma como a cultura molda as nossas respostas emocionais. Por exemplo, estudos interculturais mostraram que em sociedades mais individualistas, em que a raiva é uma forma de expressão de quebra na relação com o outro – numa tentativa de impor limites – a resposta fisiológica é mais forte que em sociedades coletivistas. Em sociedades onde a configuração grupal tem um peso mais determinante no sentido do self, a raiva é apenas um indicador de que existe uma desarmonia na relação de grupo, e a resposta fisiológica e os níveis de inflamação são menores. A raiva não é percebida como um corte radical do coletivo, e por isso a experiência da raiva é, de algum modo, mais sustentada.

Esta dimensão cultural torna-se ainda mais evidente quando analisamos a forma como as várias expressões de género constroem os seus mundos emocionais. Apesar da cultura popular nos dizer que há diferenças entre ‘homens’ e ‘mulheres’, a verdade é que existe muito mais variabilidade dentro de cada grupo do que entre eles, o que torna difícil justificar uma distinção clara. Essa divisão é culturalmente alimentada e manifesta-se nos gestos quotidianos. Os estudos mostram que as mulheres, ao chegarem a uma urgência com palpitações, são mais rapidamente diagnosticadas com ansiedade do que com um ataque cardíaco. O mesmo não acontece com os homens, de quem se espera uma manifestação emocional menor, e por isso sintomatologia como palpitações raramente é confundida com ansiedade.

Assim, torna-se quase esperado que as mulheres expressem emoções em excesso e que os homens as reprimam — o que distorce a nossa noção do que é ‘normal’ ou ‘desviante’. Vale a pena trazer aqui uma distinção essencial na teoria das emoções: existem emoções primárias, que são mais imediatas e mais fiéis aos nossos estados internos, e as emoções secundárias, que são de algum modo uma complexificação das primeiras, alimentadas então por crenças, narrativas e culturas. Se num determinado momento sinto raiva, e se a minha experiência de vida me ensinou que a raiva é uma emoção desadequada, rapidamente outras emoções se sobrepõem, como a vergonha ou a culpa.

Tudo isto é relevante para melhor compreendermos as emoções durante o sexo. No binarismo redutor do costume, persistem crenças generalistas que impõem aos homens pressões de desempenho e às mulheres sentimentos de culpa — dinâmicas que também se refletem nas relações entre pessoas do mesmo sexo. Quando percebemos que as emoções que emergem não correspondem àquilo que a cultura define como ‘normal’, começamos a vigiar e a censurar o que sentimos. Sem uma compreensão profunda das emoções, do corpo e do contexto em que estão inseridos, acabamos por complicar a nossa vida. Por exemplo, as emoções que se seguem ao sexo variam tanto quanto as próprias experiências. Alguns sentem um bem-estar tranquilo, uma sensação de proximidade e ternura — o chamado afterglow. Outros experimentam o oposto: uma certa melancolia ou vazio, conhecida como disforia pós-sexo. Estes estados emocionais parecem depender menos do acto físico e mais do significado que cada pessoa lhe atribui — ligação, validação, curiosidade ou solidão. As emoções estão intimamente ligadas aos significados que atribuímos às coisas.

São as conversas mais profundas sobre as emoções que nos libertam dos limites artificiais que impedem a honestidade emocional plena. Só compreendendo estes processos — que traduzem contextos sociais e narrativas culturais em respostas fisiológicas e emocionais que o corpo transporta — poderemos compreender melhor o sexo, os seus prazeres e as suas dificuldades. E se tratarmos o sexo como uma conversa entre corpos e emoções — talvez consigamos ouvir-nos, e aos outros, com mais presença e empatia.

15 Out 2025

O incêndio de Pat Sin Leng

No passado dia 10, soube-se através da comunicação social de Hong Kong que uma criança de oito anos tinha feito três chamadas para a polícia alegando que havia um fogo em Pat Sin Leng, Tai Po, e que 25 professores e alunos estavam presos na montanha. Depois do alerta, a polícia, juntamente com o departamento de Agricultura e Pescas e o Corpo de Bombeiros, chegaram ao local e verificaram que não havia qualquer incêndio. O rapaz foi posteriormente localizado, admitiu que tinha mentido e recebeu uma admoestação verbal.

Embora este incidente não passe de um assunto trivial, que dificilmente suscita preocupação pública, não deixa de despertar memórias dolorosas. A frase “há um fogo em Pat Sin Leng” evoca memórias do acidente ocorrido há 30 anos.

A 10 de Fevereiro de 1996, quatro professores da Fung Yiu King Memorial School de Hong Kong, acompanhavam um grupo de alunos do 7.º e 8.º anos numa caminhada em Pat Sin Leng. Suspeita-se que o fogo tenha deflagrado porque alguém atirou um cigarro a arder para o mato.

O fogo alastrou pela montanha e o caminho para baixo ficou bloqueado obrigando toda a gente a subir. Devido às dificuldades do terreno, tiveram de escalar o rochedo “Maliu Cliff” para escapar. Dois professores ficaram para trás para ajudar os alunos a subir o penhasco. Trinta e dois conseguiram regressar ao ponto de partida para procurar ajuda. Depois de terem ajudado a maior parte dos jovens, os dois professores não conseguiram escalar o penhasco e morreram no incêndio juntamente com dois alunos.

Neste incidente morreram os dois professores e três alunos e treze ficaram feridos. Um outro caminhante, que tinha ajudado a resgatar algumas das vítimas do incêndio, imolou-se mais tarde, possivelmente devido a sofrer de stress pós-traumático.

Em 1996, o Tribunal decidiu que a causa do acidente foi “indubitavelmente humana”, mas não estava claro se se terá devido a um cigarro mal apagado ou a uma fogueira que possa ter sido acesa por brincadeira.

Para homenagear o sacrifício dos dois professores, o Governo de Hong Kong mandou erguer um pavilhão em sua memória em Pat Sin Leng, chamado “Spring Breeze Pavilion,” o que significa “bons professores” em chinês.” Dentro do pavilhão, inscrições bilíngues em chinês e inglês relatam todo o incidente. Foram plantados dois pinheiros-budistas em frente ao pavilhão, em homenagem aos dois professores. Uma placa comemorativa do Pavilhão Spring Breeze está colocada na entrada da Fung Yiu King Memorial School. São realizados anualmente serviços memoriais para compartilhar os acontecimentos com os estudantes. A Fung Yiu King Memorial School fez uma parceria com a Universidade Chinesa de Chinese Hong Kong para criar uma bolsa de estudos em memória dos dois professores que recebeu os seus nomes.

A mentira do rapaz reacendeu indubitavelmente memórias dolorosas. Estas memórias deveriam ir desaparecendo com o tempo ao contrário de permanecerem na memória das pessoas. Esperemos que as mentiras acabem aqui e que nunca mais ressurjam. Que as memórias dolorosas sejam levadas pelo vento.

O espírito dos dois professores que se sacrificaram pelos outros continua vivo na sociedade de Hong Kong e é celebrado por todos. Precisamos de perguntar: porque celebramos o altruísmo? Será porque temos apenas uma vida, por isso, quando alguém se sacrifica pelos outros merece respeito?

A resposta não é assim tão simples. Temos só uma vida e depois da morte não existe mais nada. O motivo para celebrarmos o auto-sacrifício em prol de outros é uma forma de celebrarmos o facto de que alguém capaz deste acto é completamente destituído de egoísmo, alguém que só deseja o bem alheio. Isto é uma manifestação pura de amor pela humanidade. Se aqueles que foram salvos puderem continuar a transmitir este amor, o egoísmo vai diminuir e a amizade genuína vai aumentar. Com este tipo de amor unificador, não haverá naturalmente hostilidade, porque o amor congrega. Neste sentido, o amor pode promover uma sociedade mais pacífica e harmoniosa e todos serão felizes.

Na sociedade complexa dos nossos dias, os corações humanos são imprevisíveis. Mesmo que queiramos levar o nosso amor aos outros, ele nem sempre é aceite. Esta é sem dúvida uma dura realidade. Os estudantes que ficaram feridos em Pat Sin Leng, e que enfrentaram muitas provações, devem certamente ter deixado esses momentos maus para trás, esforçaram-se para viver as suas vidas e para dar início a um novo capítulo, mas simultaneamente devem ter recordado os dois professores que os salvaram. A sua capacidade de sacrifício em prol dos estudantes não só é merecedora de ser imitada, mas é uma lição que deve ser aprendida e transmitida. Só o amor pode unir-nos a todos de forma altruísta.

Já passaram trinta anos desde o incêndio de Pat Sin Leng, mas o tempo não irá desvanecer a memória do amor sincero e altruísta que estes dois professores deram aos seus alunos. Através das notícias de hoje, prestemos-lhes mais uma vez silenciosamente homenagem. Que possam viver felizes no Além, e que o amor que tinham pelos seus alunos possa para sempre continuar a ser transmitido.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Faculdade de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Email: cbchan@mpu.edu.mo

14 Out 2025

Spinumviva “mata” Montenegro

A empresa familiar Spinumviva de Luís Montenegro tem dado água pela barba há muitos meses. Toda a comunicação social tem anunciado as mais diversas suspeitas sobre a actividade e gestão da empresa familiar do actual primeiro-ministro. A empresa familiar era constituída por Montenegro, sua mulher e dois filhos. Já foi indicada como uma sociedade de consultoria, de imobiliário, de gestão de recursos e sabe-se lá mais de quê. O que veio a lume é que entraram na conta da empresa familiar centenas de milhares de euros em contratos com grupos económicos e outras empresas, como a Solverde, detentora de casinos e potencial concorrente ao novo concurso de adjudicação de licenças para casinos.

Montenegro começou a ser falado por ter uma casa em ruínas, em Espinho, que transformou num imóvel de luxo com o empreiteiro privilegiado da edilidade, onde o autarca presidente era amigo íntimo de Montenegro. Entretanto, como Montenegro não tinha declarado à Entidade da Transparência todo o seu património, num total de 55 imóveis, o Ministério Público (MP) resolveu iniciar uma averiguação preventiva (?) à actividade da sociedade em questão, particularmente à construção da referida casa em Espinho e à origem dos fundos para a aquisição de dois apartamentos em Lisboa levada a efeito por Montenegro.

O Ministério Público entendeu que o caso só poderá ser mesmo esclarecido em sede de processo-crime que terá formalmente de ser aberto no Supremo Tribunal de Justiça. Inclusivamente o MP fez saber que o caso devia passar a inquérito judicial por contemplar suspeitas contra Montenegro que incluíam recebimentos indevidos de vantagens e branqueamento de capitais. Recorde-se, que por muito menos, caiu um Governo apenas porque a Procuradoria-Geral da República decidiu inserir num comunicado um parágrafo que referia que o primeiro-ministro António Costa poderia estar sob investigação. No entanto, os casos e casinhos da Spinumviva, a empresa familiar de Montenegro, têm vindo à baila pelos mais diversos motivos. Um deles, porque Montenegro tem fornecido à Entidade da Transparência e ao MP documentação requisitada aos “bochechos”…

Uma das interrogações feitas por diversos comentadores televisivos prende-se com a negação do actual procurador-geral da República, Amadeu Guerra, nomeado pelo primeiro-ministro Luís Montenegro, não ter ainda dado luz verde aos investigadores para passarem de averiguação preventiva (algo que não é carne nem peixe) para um inquérito judicial, à semelhança do que tem acontecido com muitos outros que foram accionados com rapidez a diferentes políticos e presidentes de clubes do futebol.

A Procuradoria de Amadeu Guerra emitiu um comunicado, no qual se lia que “a averiguação preventiva ao caso Spinumviva está em curso e que o MP aguarda ainda documentação” pedida a Montenegro. E qual a razão que Montenegro tem para não enviar a documentação com celeridade? Só que, na semana passada, em plena campanha eleitoral para as eleições autárquicas, rebentou mais uma “bomba” referente a Montenegro.

A comunicação social não cessou de difundir que Montenegro tinha ido de férias para o Brasil e que todas as despesas tinham sido pagas pela Spinumviva. Ui, mais um “casinho” que levou os líderes políticos da oposição a pronunciarem-se, desde André Ventura (Chega) a José Luís Carneiro (PS). E o que respondeu Montenegro? Que tudo era “uma pouca vergonha”. Pouca vergonha de quem? Da comunicação social que tem a obrigação de informar? Pouca vergonha do MP por ter quebrado o segredo de justiça e deixar cair a notícia na CNN Portugal, por os investigadores estarem fartos da atitude de Montenegro e das ordens de Amadeu Guerra? Ou pouca vergonha de ir de férias com tudo pago por uma empresa familiar que diz ser apenas de consultoria?

A porta-voz do PAN, Inês Sousa Real, por exemplo, veio a público lamentar mais uma suspeita referente ao primeiro-ministro, sublinhando que “não queremos acreditar que os tempos da Justiça são os tempos das campanhas eleitorais, não alinhamos nessa narrativa como a que o primeiro-ministro tem vindo justificar o que tem sido o escrutínio durante todo este processo”.

Muito mais longe foi Paulo Raimundo, líder do PCP, que pediu claramente a demissão do primeiro-mistro. Raimundo até pareceu saber algo de confidencial das hostes governativas, porque, na verdade, já foi equacionada a substituição de Montenegro por Leitão Amaro ou Paulo Rangel.

Pela nossa parte, não acreditamos que Montenegro se demita. Só se for aberto um processo-crime sobre todas as suspeitas e a conclusão do inquérito decidir-se por um julgamento a Montenegro na barra do tribunal. Hoje, os amigos leitores já sabem o resultado das eleições autárquicas e se a AD aliada à Iniciativa Liberal (IL) venceu as eleições, então, nesse caso, estou certo que Montenegro não se demitirá nem que caia o elevador de Santa Justa…

O primeiro-ministro não pode é fugir ao julgamento popular que começa a sentenciá-lo como um caso parecido com o de José Sócrates. O povinho já concluiu que Montenegro não cumpriu as leis, que algo se passou no âmbito da corrupção e da lavagem de capitais, que o primeiro-ministro só promete aumento de pensões e salários em campanha eleitoral, que antecipou a entrega do Orçamento do Estado para que em plena campanha eleitoral pudesse anunciar que o salário mínimo iria para perto dos mil euros. De todas as voltas que Montenegro dê ao bilhar, há uma coisa que já não o salva. A sua empresa familiar Spinumviva já o “matou” politicamente aos olhos do povo.

13 Out 2025

Calmaria no coração da tempestade

No passado dia 23 de Setembro, ao fim da tarde, o Super Tufão “Ragasa” aproximou-se de Macau e a Direcção dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos emitiu um sinal de tufão nº 8, no entanto, por toda a parte reinava a calmaria. Talvez este tenha sido um fenómeno único que antecedeu a tempestade, porque o que se seguiu iria testar a tenacidade do povo de Macau.

Nas eleições directas para a Assembleia Legislativa, que tiveram lugar a 14 de Setembro, graças ao forte apelo do Chefe do Executivo e aos esforços constantes dos chefes dos departamentos governamentais, a maioria dos funcionários públicos respondeu à chamada e cumpriu o seu “dever” de voto.

Com a cooperação activa dos maiores operadores da indústria do jogo e o vigoroso alcance das equipas de campanha das listas de candidaturas, os votos combinados das seis listas de candidaturas que concorriam às eleições directas à Assembleia Legislativa excederam largamente, desta vez, os votos obtidos pelas 14 listas de candidaturas em 2021, resultando numa maior afluência às urnas em 2025 do que nas eleições anteriores. Além disso, houve resultados surpreendentes: o deputado em exercício José Pereira Coutinho conseguiu ser reeleito e a sua lista ficou à frente com 43.367 votos. Ao mesmo tempo, nestas eleições foram registados 5.987 votos em branco e 7.053 votos nulos, estabelecendo um recorde de votos em branco e de votos nulos desde o regresso de Macau à soberania chinesa.

Quando analisamos os resultados das eleições directas devemos optar por uma abordagem pragmática. Por exemplo, o cálculo da afluência às urnas não pode basear-se apenas no número de votantes. Em 2001, estavam registados 159.813 eleitores e a afluência às urnas foi de 52.34 por cento. Em 2025, já estavam registados 328.506 eleitores e a afluência às urnas ficou nos 53.35por cento.

Comparando com a afluência às urnas de 58.39 por cento em 2005, 59.91 por cento em 2009, 55.02 por cento em 2013 e 57.22 por cento em 2017, o resultado de 2025 foi o terceiro mais baixo, mas ainda assim significativamente mais alto do que os 42.38 por cento que se seguiram ao primeiro incidente de desqualificação de candidatos às eleições directas à Assembleia Legislativa em 2021.

Os 7.053 votos nulos representaram uma percentagem de 4.02 por cento e, embora em termos percentuais seja inferior à registada em 2009, onde 6.498 votos nulos corresponderam a 4.36 por cento da votação, é a mais alta de sempre em termos absolutos. Com apenas seis listas de candidaturas em 2025, a hipótese de os eleitores preencherem mal o boletim não é maior do que em 2009, quando havia 16 listas de candidaturas. Infelizmente, os votos nulos em 2025 não foram divulgados publicamente como em eleições anteriores, deixando a população incapaz de perceber porque é que esses votos foram considerados nulos.

De acordo como o Artigo 26 da Lei Básica da RAEM, “os residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau têm o direito de eleger e de ser eleitos, nos termos da lei”. Enquanto o Artigo 95 da “Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da RAEM” estipula que “o sufrágio constitui um direito e um dever cívico”, mas não específica como é que esse dever cívico deve ser cumprido. O recentemente adicionado Artigo 167.º-A estipula que “quem, publicamente, incitar os eleitores a não votar, votar em branco ou nulo, é punido com pena de prisão até 3 anos”. Em Macau o voto não é obrigatório como na Austrália e na Argentina. O presidente da Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa, Sr. Seng Ioi Man, afirmou publicamente depois de consultar a Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, – se um funcionário público não votar por qualquer motivo, não se moverá contra ele qualquer acção disciplinar, de acordo com o Regime Jurídico da Função Pública da RAEM.

O voto é um direito cívico, que é logicamente diferente do conceito de “dever”. Um direito pressupõe a liberdade de escolha, enquanto o “dever” implica uma obrigação moral e legal. E como em Macau os funcionários públicos não são obrigados a votar, o seu voto é uma escolha inteiramente pessoal. Tal como a Lei Básica de Macau garante aos residentes o direito de greve, isso não implica que sejam obrigados a participar em greves. O elevado número de votos que obteve a Lista 2 – NOVA ESPERANÇA pode certamente ser atribuído à resposta de muitos funcionários públicos ao apelo do Governo ao “cumprimento do dever cívico”.

Independentemente da intensidade do tufão, espera-se que a vida das pessoas regresse brevemente à normalidade, com os esforços conjugados do Governo da RAEM e da população. Contudo, depois de outro incidente de desqualificação de candidatos às eleições directas de 2025 à Assembleia Legislativa, quantas escolhas terão os eleitores nas eleições directas à Assembleia Legislativa em 2029? Além disso, ocorreu em Macau a primeira prisão relacionada com a salvaguarda da segurança nacional, o apelido do detido é Au e virá a ser julgado. Como desfrutar da paz no coração da tempestade é um profundo exercício de filosofia política.

10 Out 2025

Paz para a Ucrânia

“The test of policy is how it ends, not how it begins. Peace must reflect reality, not illusion.”

Henry Kissinger

A Ucrânia, como país candidato à União Europeia (UE), representa um dos maiores desafios e oportunidades da história recente do projecto europeu. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, iniciada em 2022, representa um dos mais graves conflitos armados em solo europeu desde a II Guerra Mundial. As suas consequências são devastadoras com milhares de mortos, milhões de deslocados, cidades destruídas, economias colapsadas e uma profunda fractura geopolítica entre o Leste e o Ocidente. A paz, embora desejada por muitos, continua a parecer um horizonte distante. No entanto, a história ensina que mesmo os conflitos mais prolongados e violentos podem encontrar resolução, desde que haja vontade política, mediação eficaz e uma arquitectura diplomática sólida. Para compreender as possibilidades de paz, é necessário revisitar as causas profundas do conflito.

A guerra não começou em 2022, mas tem raízes históricas, identitárias e geopolíticas que remontam à dissolução da União Soviética. A Ucrânia, ao afirmar a sua soberania e ao aproximar-se das estruturas euro-atlânticas, tornou-se, aos olhos de Moscovo, um território estratégico em disputa. A anexação da Crimeia em 2014 e o apoio russo às repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk foram os primeiros sinais de uma escalada que culminaria na invasão total. A Rússia justifica a sua acção com argumentos de segurança, protecção das populações russófonas e resistência à expansão da OTAN. A Ucrânia, por sua vez, defende o seu direito à autodeterminação, à integridade territorial e à escolha dos seus aliados.

Este antagonismo é alimentado por narrativas históricas divergentes, por interesses estratégicos e por uma profunda desconfiança mútua. Qualquer processo de paz terá de enfrentar estas raízes, reconhecê-las e encontrar formas de as ultrapassar sem negar a soberania de cada Estado. A paz entre a Rússia e a Ucrânia enfrenta obstáculos de várias ordens em primeiro, a ocupação territorial pois a presença militar russa em território ucraniano, incluindo a Crimeia e partes do Donbass, é um dos principais entraves. A Ucrânia exige a retirada total das forças ocupantes como condição para qualquer acordo. A Rússia, por sua vez, considera a Crimeia parte integrante do seu território e vê o Donbass como uma zona de influência legítima.

Em segundo, o reconhecimento internacional, pois a comunidade internacional, em particular os países ocidentais, apoiam a Ucrânia e impõe sanções à Rússia. Esta polarização dificulta a mediação e reforça a lógica de bloco. A paz exige um espaço diplomático neutro, onde ambas as partes possam negociar sem pressões externas excessivas. Em terceiro, as perdas humanas e traumas colectivos pois a guerra gerou feridas profundas na sociedade ucraniana. A destruição de cidades, os massacres, os bombardeamentos e os deslocamentos forçados criaram um sentimento de dor e revolta que não pode ser ignorado. A reconciliação exige justiça, memória e reparação. Em quarto, as lideranças políticas e narrativas internas, pois tanto na Rússia como na Ucrânia, os líderes políticos construíram narrativas que dificultam o compromisso.

A paz pode ser vista como fraqueza, como traição ou como capitulação. É necessário criar condições para que os líderes possam negociar sem perder legitimidade interna. Apesar dos obstáculos, existem factores que podem favorecer a construção de um processo de paz sendo primeiro, a fadiga da guerra pois o prolongar do conflito gera desgaste económico, social e político. A Rússia enfrenta sanções, isolamento e dificuldades internas. A Ucrânia vive em estado de emergência permanente. A fadiga pode abrir espaço para soluções negociadas. Segundo, a pressão internacional, pois Organizações como as Nações Unidas, a OSCE e países neutros podem desempenhar um papel de mediação.

A diplomacia multilateral, quando bem estruturada, pode criar pontes e facilitar compromissos. Terceiro, as experiências históricas pois a Europa tem exemplos de reconciliação após conflitos intensos como a Alemanha e a França após a II Guerra Mundial, os acordos de paz na Irlanda do Norte e a reunificação alemã. Estes modelos mostram que a paz é possível, mesmo entre inimigos históricos. Quarto, a sociedade civil e cultura pois estas conjuntamente com a educação podem ser motores de aproximação. Projectos de diálogo, intercâmbio e reconstrução simbólica podem preparar o terreno para a paz política. A paz entre a Rússia e a Ucrânia pode assumir diferentes formas, dependendo da evolução do conflito e das negociações.

Assim há a considerar primeiro, a paz condicional com um cessar-fogo acompanhado de negociações sobre territórios, segurança e garantias internacionais. Este modelo exige compromissos mútuos e pode incluir zonas desmilitarizadas, missões de observação e acordos de não agressão. Segundo, a paz com reconhecimento parcial com um acordo em que a Ucrânia reconhece a perda de certos territórios em troca de garantias de segurança e apoio à reconstrução. Este modelo é controverso e pode gerar divisões internas, mas foi aplicado noutros contextos. Terceiro, a paz como mediação internacional, em que a criação de uma conferência internacional de paz, com participação de países neutros, organizações multilaterais e representantes da sociedade civil. Este modelo permite uma abordagem mais abrangente e menos polarizada.

Quarto, a paz por etapas com um processo gradual, com fases de desescalada, reconstrução, justiça transicional e integração regional. Este modelo exige tempo, paciência e compromisso de longo prazo. Para que a paz seja duradoura, é necessário cumprir certas condições como primeiro, o respeito pela soberania, pois a Ucrânia deve manter o direito de decidir o seu futuro, os seus aliados e o seu modelo político. A Rússia deve reconhecer esse direito e comprometer-se com a não interferência. Segundo, justiça e reparação dado que os crimes cometidos durante a guerra devem ser investigados e punidos. As vítimas devem ser reconhecidas e compensadas. A justiça é essencial para a reconciliação. Terceiro, a paz deve incluir garantias de segurança para ambos os países, com mecanismos de verificação, diálogo militar e cooperação em áreas como o controlo de armas. Quarto, a Ucrânia precisa de apoio financeiro, técnico e institucional para reconstruir o país.

A Rússia, por sua vez, deve encontrar formas de reintegrar-se na economia global, desde que respeite os princípios do direito internacional. Quinto, a educação para a paz dado que esta não se constrói apenas com tratados. É necessário investir na educação, na cultura e na memória, para que as novas gerações compreendam o valor do diálogo e da coexistência. A UE, os Estados Unidos, a China e outras potências têm responsabilidades na promoção da paz. A Europa, em particular, deve assumir um papel activo, não apenas como aliada da Ucrânia, mas como mediadora e promotora de soluções duradouras. A paz não pode ser imposta mas deve ser construída com base no respeito mútuo, na justiça e na cooperação. A comunidade internacional deve evitar a tentação de transformar a Ucrânia num campo de batalha prolongado entre blocos.

O objectivo deve ser a reconstrução, a estabilidade e a dignidade dos povos. Assim, a paz entre a Rússia e a Ucrânia é possível, mas exige coragem, visão e compromisso. Não será um processo rápido nem simples. As feridas são profundas, os interesses são complexos e as emoções são intensas. A alternativa é aceitável à perpetuação da guerra. A história mostra que mesmo os conflitos mais violentos podem encontrar resolução. A Europa, que foi palco de tantas guerras, pode ser também o espaço da reconciliação. A paz não é apenas um acordo mas uma construção colectiva, feita de gestos, palavras, políticas e memórias. A Ucrânia e a Rússia têm o direito de existir, de prosperar e de viver em segurança. A paz entre elas será um sinal de maturidade política, de respeito pela vida e de esperança para o futuro. Cabe aos líderes, às sociedades e à comunidade internacional transformar esse horizonte em realidade.

9 Out 2025

O pecado da incúria

Nos passados dias 23 e 24 de Setembro, o Tufão Ragatsa atingiu a Província de Guangdong, na China continental, e também Hong Kong e Macau, duas regiões administrativas especiais da China. Este super tufão causou alguns estragos nestas três zonas. Felizmente, todos estavam preparados e os danos foram mínimos. As ocorrências mais sérias foram ferimentos provocados em algumas pessoas.

Em Hong Kong, uma família decidiu ir para a o molhe observar os ventos e as ondas. Infelizmente a mãe e o filho caíram ao mar. O pai saltou logo para os salvar deixando para trás a filha de 9 anos, sozinha e a chorar. Outras pessoas que aí se encontravam tentaram salvá-los de imediato, mas não conseguiram. Por sorte, um barco de pesca estava a passar e o marinheiro e o filho foram em socorro das vítimas. A mãe e o filho estavam inconscientes e o pai embora consciente estava ligeiramente ferido.

Posteriormente, o secretário para a Segurança de Hong Kong, Chris Tang, afirmou que embora a “perseguição de ventos e ondas” (追風逐浪) não fosse criminalizada em Hong Kong, levar crianças para o meio da tempestade durante a passagem de um tufão pode constituir “negligência infantil” (疏忽照顧兒童) e disse ainda que o Governo de Hong Kong irá investigar mais aprofundadamente esta matéria. Isto significa que a “perseguição de ventos e ondas ” pode vir a ser criminalizada.

Há algumas semanas, mencionámos nesta coluna o processo movido em Shenzhen contra pessoas que escalaram a montanha durante uma tempestade. Actualmente, Hong Kong só tem legislação que pune a entrada em praias vedadas pelo Governo Hong Kong, com uma multa máxima de 2.000 HKD e 14 dias de prisão. No entanto, apenas é criminalizada a “entrada em zonas proibidas” e não a “perseguição de ventos e ondas” durante uma tempestade. Em última análise, em Hong Kong, a “perseguição de ventos e ondas” não é crime.

Para impedir completamente as tragédias causadas pela “perseguição de ventos e ondas” durante a passagem de tufões, é necessário a implementação de legislação que a criminalize. Como mencionámos na coluna anterior, o acto de “perseguir ventos e ondas” é difícil de definir e de regular. Se o facto de ficar na praia durante uma tempestade for considerado um delito de “perseguição de ventos e ondas”, muitas pessoas serão acusadas. A lei tem de ser clara e detalhada e o seu âmbito deve ser limitado. Caso contrário, cria-se uma lei que será quebrada por muitas pessoas, o que não será certamente a intenção do legislador. Além disso, a actual agência de fiscalização é composta por funcionários do Departamento de Serviços Culturais e de Lazer (LCSD) do Governo de Hong Kong, e não da polícia. Se houver resistência às indicações dos funcionários, a situação será ainda mais caótica.

Outra consideração na legislação penal é a questão da prova. Como é que se pode provar que este grupo de pessoas estava a “perseguir ventos” na costa durante uma tempestade? Os funcionários do LCSD, embora estejam de serviço, também põem as suas vidas em risco durante as intempéries e têm simultaneamente de fazer cumprir a lei. O ambiente adverso em matéria de aplicação da lei exige uma atenção especial. Por outras palavras, num ambiente de alto risco, como podemos garantir que a equipa do LCSD está a aplicar a lei em segurança?

Talvez Hong Kong pudesse considerar a utilização de drones para patrulhar a costa durante as tempestades. Se fosse detectada qualquer actividade de “perseguição de ventos e ondas”, podia ser emitida de imediato uma mensagem sonora apelando à retirada do local. Como este delito ficava registado em filme, se os infractores se recusassem a sair o Governo de Hong Kong teria naturalmente provas para os processar.

O sucesso desta legislação dependeria da atitude futura da sociedade de Hong Kong, pelo que para já é difícil de prever. No entanto, o Governo de Hong Kong deverá certamente vir a considerar a possibilidade de obrigar os infractores a pagar as despesas das operações de salvamento. Durante uma tempestade, as equipas de resgate arriscam a vida para salvar quem “persegue ventos e ondas,” e o equipamento usado é muito caro. Não é despropositado pedir a estes “aventureiros” que suportem os custos.

A legislação para regular a “perseguição de ventos e ondas” passa mais pela prevenção do que pela acusação. Estas leis destinam-se a dissuadir estes comportamentos. As acções penais só são iniciadas após avisos repetidos. Mesmo com a legislação em vigor, a sua aplicação está repleta de dificuldades. Por último, devemos prestar homenagem àqueles que permanecem de serviço durante os tufões ou que realizam operações de salvamento. Sem eles, a segurança seria muito menor durante os tufões. A respeito do caso da família que caiu ao mar em Hong Kong, devemos prestar homenagem a todos os socorristas. A sua coragem e abnegação no salvamento de três pessoas durante uma tempestade foram admiráveis.

Macau tem actualmente um “sistema jurídico de defesa civil” (民防法律制度) e implementou uma série de medidas para serem aplicadas durante as tempestades, como o destacamento preventivo, a evacuação de residentes de zonas ribeirinhas e a garantia de abastecimento para as necessidades diárias. Muitas pessoas foram evacuadas, demonstrando a robustez do sistema de defesa civil de Macau. Além disso, não houve registo de incidentes de “perseguição de ventos e ondas” na costa, prova do excelente trabalho do Governo de Macau na protecção da vida e da propriedade dos residentes. Os residentes de Macau levam muito a sério a sua segurança pessoal. Por conseguinte, embora em Macau a “perseguição de ventos e ondas” não esteja criminalizada, as pessoas são cuidadosas. Actualmente, com condições meteorológicas invulgares e tufões frequentes e particularmente poderosos, a sociedade de Macau deve priorizar a consciencialização e a educação para garantir que as pessoas compreendam o que deve ser feito para protegerem as suas vidas e os seus bens durante uma tempestade. Só quando todos prestarem atenção à segurança é que o impacto dos tufões poderá ser minimizado.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Faculdade de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Email: cbchan@mpu.edu.mo

7 Out 2025

Nova Lei dos Estrangeiros aumenta o racismo

O racismo é cada vez mais uma realidade infeliz em Portugal. É suficiente dar-vos um exemplo: numa sala de aula cheia de rapazes e raparigas brancos havia um aluno preto, o Kikas. A professora perguntou aos alunos o que tinham gostado mais até agora na vida. Todos responderam e quando o Kikas se pronunciou sobre o que mais tinha gostado, salientou que tinha sido a volta ao mundo que tinha dado. A professora gritou-lhe, chamando-o “Mentiroso!!!”. Kikas respondeu que não aceitava a ofensa e informou a professora que era filho adoptivo de uma família branca muito rica e que tinha ido passear pelo mundo com os pais. Não satisfeita, a professora ripostou: “Cala-te! Os tipos como tu acabam sempre na rua!” e mandou-o sair da sala dando-lhe falta disciplinar. Este, é um dos muitos exemplos mais deploráveis de atitudes racistas existentes na nossa sociedade.

Na semana passada, a aliança AD/Chega aprovou na Assembleia da República uma nova Lei dos Estrangeiros. As críticas têm sido mais que muitas, fundamentalmente porque esta lei poderá aumentar o racismo em Portugal. Quem veio de imediato a terreiro foi a organização SOS Racismo que se opôs à nova lei dos imigrantes, considerando-a um retrocesso na protecção das garantias dos direitos fundamentais e das liberdades, por alterar as condições de residência e a obtenção de cidadania direccionadas aos imigrantes, incluindo os cidadãos da CPLP. Segundo Mariana Carneiro, directora da SOS Racismo, a aprovação da lei com o apoio da direita radical representa uma violação da Constituição de República Portuguesa e das convenções europeias de direitos humanos, além da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A dirigente da SOS Racismo ainda denunciou que a imigração tem sido tratada como crime, o que infelizmente, não é novidade, pois Portugal vem trilhando esse caminho há bastante tempo. Mariana Carneiro adiantou que o governo, empossado em Março de 2024, já tinha adoptado uma postura cada vez mais alinhada com a extrema direita cedendo a princípios racistas e xenófobos presentes na sociedade portuguesa. Para a directora da SOS Racismo, a nova lei trata-se de um ataque flagrante às pessoas que escolhem viver e trabalhar no nosso País, enquanto os vistos Gold recebem tratamento privilegiado, quando simultaneamente são implementadas políticas de imigração cada vez mais restritivas aplicadas aos demais imigrantes.

O clamoroso chumbo pelo Tribunal Constitucional da versão inicial da lei sobre autorização de residência de estrangeiros e reagrupamento familiar foi uma preciosa oportunidade dada pelo Presidente da República ao Governo para corrigir o tiro em matérias que são um teste aos valores humanistas, à defesa dos princípios da família e a uma relação privilegiada com os países lusófonos. A solução encontrada pela AD e Chega é um rendilhado jurídico para contornar os argumentos do Tribunal Constitucional mantendo todos os inconvenientes políticos da versão inicial. Mantém como regra o prazo de dois anos para ser pedido o reagrupamento familiar, a contar da concessão da autorização de residência e não do seu pedido com a prova de pagamento de impostos e contribuições para a Segurança Social, apesar das excepções de redução para um ano quando existem filhos menores.

Confirma-se o desaparecimento do regime especial para cidadãos de países da CPLP. Desmentindo a propalada preferência pela lusofonia e violando os nossos compromissos sobre mobilidade no âmbito do espaço lusófono. Por outro lado, estranhamos que se mantenha o privilégio no acesso ao reagrupamento familiar para titulares de vistos Gold, de Blue Card europeu ou para indivíduos considerados altamente qualificados, privilegiando o rendimento sobre a origem ou a integração na sociedade portuguesa. A prova de detenção de condições de habitação condigna e de meios de subsistência continua a ser fixada por portaria com manifesta violação do princípio da reserva de lei em matéria de direitos fundamentais. Mas, todas estas limitações podem ser superadas por despacho ministerial o que é a porta aberta para a discricionariedade ilimitada e a falta de transparência. Mantém-se uma ampla possibilidade de prorrogação até 18 meses do prazo de apreciação do pedido de reagrupamento familiar, bem como a possibilidade de recurso aos tribunais para intimar a AIMA a cumprir prazos de decisão que continua a ser fortemente limitada.

Para termos ideia das más intenções da lei, claro que assuntos como a penalização agravada de quem viola os direitos laborais de trabalhadores estrangeiros, o controlo eficaz da imigração irregular penalizando os traficantes e os empregados ou a responsabilidade patronal pela habitação condigna de trabalhadores sazonais são matérias absolutamente ignoradas. O mesmo acontece com as regras sobre o acesso à aprendizagem da língua portuguesa.

Concluindo, podemos constatar que a nova Lei dos Estrangeiros vai ao encontro dos racistas do Chega e que os imigrantes são o alvo mais significativo para serem cada vez mais prejudicados, dando força aos neofascistas para continuarem a tratar os imigrantes como lixo a atirá-los para fora de Portugal e, isto, é racismo puro.

6 Out 2025

Entre Hyperion e Paz Extinta – 2ª parte

(Continuação da edição de 26 de Setembro)

“Peace cannot be kept by force; it can only be achieved by understanding.”

Albert Einstein

O Norte está inteiramente repartido por meridianos entre Rússia, China e Estados Unidos. Três impérios sem solução de continuidade. Nunca as potências máximas estiveram todas contíguas. Nunca como agora as faíscas geradas pelas fricções recíprocas podem incendiar o planeta. Ordolândia sobreaquece enquanto Caoslândia se expande para nordeste. Os estudiosos do longo prazo notarão que a zona de paz quente, verdadeiro nome da guerra fria corresponde à ecúmena plurimilenar dos impérios, aquela dos conflitos armados nas (ex?) colónias. Segundo a estenografia geoestratégica, constatamos que o Norte Global continua a dedicar-se ao seu desporto favorito o de descarregar sobre o Sul as rivalidades entre impérios, através de clientes reais ou presumidos, ágeis em mudar de sigla e bandeira conforme a necessidade. Os massacres austrais são endémicos porque só podem ser resolvidos pelos boreais. Os quais têm outras prioridades. Quando não se dedicam a mantê-los ou expandi-los enquanto guerras por procuração. A economia geopolítica da reprodução de focos periféricos autoalimentados e/ou dirigidos externamente revelaria altares que nenhum actor tem interesse em expor. Um exemplo entre muitos é os ciclos de pirataria no Corno de África, incentivados pelos americanos para barrar à China o acesso aos hidrocarbonetos espalhados entre o Iémen e a Somália.

Subimos às latitudes imperiais para verificar o estado do Triângulo supremo. A competição entre Estados Unidos, China e Rússia, por ordem de valor, envolve paradoxalmente três sujeitos de saúde contingente. Próximos do limiar da dor suportável sem se dispararem mutuamente. Em que ponto está hoje o jogo? Ainda estamos a tempo de evitar a ameaça da paz justa autoproclamada pelo vencedor único, se é que virá a existir? A coruja de Minerva ainda não levantou voo. Demasiadas viragens em demasiado pouco tempo e em espaços dilatados anunciam outras, igualmente imprevistas. Os limites para compromissos impuros reduzem-se. Enquanto as obsessões belicistas das propagandas activam no Ocidente inéditos tiques totalitários. As verdades admitem-se em voz baixa, com a mão diante da boca. Nos templos do pensamento livre universidades americanas à cabeça com o politicamente correcto, a censura e a autocensura mimetizam neuroses soviéticas. O morto devora o vivo. O desafio é assimétrico. Quanto ao potencial global, os Estados Unidos mantêm uma vantagem decrescente sobre a China. Ambos distanciam-se da Rússia. Mas são quantificações estáticas simplificadas, enquanto a história acelera geometricamente. Não há mecânica nem teologia que nos emancipe do cálculo das probabilidades.

O senso comum, banalizado pelo mainstream nacional, embota ou omite factores profundos. Cinco exemplos. Primeiro; as relações de força estão sujeitas aos caprichos de culturas intransitivas. Americanos, chineses e russos acreditam que se compreendem, mas não podem. São herdeiros de civilizações orgulhosas, portadoras de códigos culturais profundamente enraizados, muitas vezes indecifráveis para quem os observa de fora. Quando um lê A onde o outro escreve Z, aproxima-se o risco de uma guerra involuntária precisamente a mais difícil de evitar, porque não prevista. O intervalo entre o raciocínio russo e americano é relativamente estreito, permitindo-lhes gerir tensões como as que se desenrolam na Ucrânia. Já no Indo-Pacífico, o grau de incompreensão entre os Estados Unidos e a China é mais acentuado, o que torna qualquer incidente potencialmente mais perigoso, exigindo prudência redobrada e canais de comunicação eficazes. Quanto à relação entre Rússia e China, a distância entre os seus universos simbólicos é reconhecida por ambos, o que os leva a privilegiar uma cooperação pragmática, sustentada por interesses convergentes e respeito mútuo. A expressão “amizade sem limites” deve ser entendida como uma fórmula diplomática que celebra essa aproximação, sem pretender apagar as diferenças que enriquecem cada civilização. Importa lembrar que slogans e aparências podem ser enganosos.

A geopolítica contemporânea é marcada por sobreposições complexas, onde o aliado de hoje pode ser o competidor de amanhã, e vice-versa. A narrativa simplificadora que opõe democracias a autocracias ignora as múltiplas formas de organização política e os contextos históricos que moldam cada sociedade. É mais produtivo abandonar tais dicotomias e reconhecer que os modelos ocidentais também enfrentam contradições internas que desafiam qualquer pretensão de universalidade. Constatamos que a Rússia e China têm dois modelos de regime distintos, mais populares nos seus países do que Trump e vários líderes de democracias europeias. Hoje, a Federação Russa e a República Popular da China, separadas e conectadas por 4.209 quilómetros de fronteira siberiana ao longo do rio Amur, mantêm uma relação complexa e historicamente densa. São vizinhas estratégicas que, conscientes das suas diferenças civilizacionais e interesses distintos, optam por uma colaboração prudente e mutuamente vantajosa. Essa aproximação é também uma forma de evitar que terceiros venham a explorar eventuais divergências, fomentando tensões artificiais entre dois pólos fundamentais da estabilidade euro-asiática.

Terceiro; Washington e Pequim são, sem dúvida, potências de primeira ordem, capazes de agir em qualquer lugar e em todas as dimensões estratégicas desde os fundos marinhos ao Espaço, da terra ao ar e do ciberespaço à inteligência artificial. Moscovo é apenas uma grande potência eurasiática cultural, militar-nuclear, energética e agrícola, mas limitada por constrangimentos demográficos e geopolíticos que alimentam a sua ansiedade de ser esmagada entre a OTAN e o Império do Centro. Há, porém, um indicador poderoso que joga a seu favor nesta corrida triangular de fundo que é a coesão social. Expressa no patriotismo que ainda sustenta a aventura ucraniana promovida por Putin, mesmo contra influentes mecanismos, muitos dos quais ignoravam até ao último momento o seu risco. Criticavam-no discretamente nos primeiros meses da guerra, por subestimarem o espírito nacional do povo russo frequentemente superior ao seu próprio, mais profissional do que espontâneo. Quarto; se nos libertássemos do ilusionismo economicista que idolatra o PIB como medida de todas as coisas, e avaliássemos as relações de poder entre sujeitos geopolíticos a partir do grau de coesão social, descobriríamos os Estados Unidos em terceiro lugar bem atrás da Rússia e da China.

O antropólogo francês Emmanuel Todd diagnostica os Estados Unidos como uma oligarquia derrotada e niilista afirmando que «A sua dependência do resto do mundo tornou-se imensa e a sua sociedade está a desintegrar-se. Os dois fenómenos interagem». Existem nações sem império. Mas não impérios sem nação. E nunca nações sem sociedade. Hoje, a América é uma oligarquia intoxicada pela riqueza de poucos, que se reflectem na pobreza absoluta e na privação relativa dos “deploráveis”. E confirmam-se na fé segundo a qual «não existe tal coisa como sociedade» (Margaret Thatcher). Talvez seja pelo grau zero atingido pelo “American Creed”, religião anglo-saxónica protestante fragmentada em estilhaços neo-evangélicos centrados na relação especial Eu-Deus (por esta ordem), excitada por teleprofetas improváveis. Fonte de solipsismo, fragmentação de famílias e comunidades, violência sem valores, depressão agravada pelos opiáceos, perda do senso comum e, portanto, da realidade. Talvez também pelas consequências sociais do neoliberalismo, que reduzem os cidadãos a clientes, as instituições a empresas, o governo a “governance” e as pessoas a recursos humanos.

Abismo da elite degenerada e zénite da super classe gestora, casta que envolve os decisores de outrora no seu tecnicismo automático e na viva ausência de espírito. Resta saber como poderá voltar a ser grande um império em afastamento das referências nacionais e em retirada sem estratégica dentro da fortaleza americana, enquanto dança e quer fazer-nos dançar ao ritmo dos caprichos divertidos do seu Calígula. Quinto; a competição no Triângulo, desencadeada pela crise americana, baralha a hierarquia das potências. Potências médias assumem-se como médias máximas, enquanto se concebem super máximas para o futuro. À frente de todas, a Turquia neo-imperial, em escala transcontinental. Outras, como o Japão e até a Alemanha em crise nervosa, concentram-se em áreas menos amplas. Aproveitam o recuo americano para se expandirem nas respectivas regiões como parceiros prioritários do “Número Um” de hoje pois amanhã será outro dia. Os japoneses e alemães oferecem-se aos Estados Unidos para conter a visível expansão chinesa na Ásia e a alegada invasão russa da OTAN europeia, prevista para 2029 segundo a comunicação atlântica.

O rearmamento japonês prossegue discretamente, o alemão em retórica ostentadora ainda longe de se concretizar na prática ao ponto de se propor como primeira potência militar continental na próxima década. Sem humor, os líderes europeus parecem imitar a véspera da dupla guerra mundial. Macron e Carlos III redescobrem a “entente cordiale” anti-germânica de 1904, promovida como “amigável”. Com mão estendida aos polacos, empenhados em restaurar os pensamentos do marechal Piłsudski. E com o polegar virado para os russos. Sintomas da histeria emergencial que circula entre os europeus não sabemos quanto encenada e acreditada. Seja como for, o blefe europeísta foi desmascarado. Substitui-o o alarmismo. Em sentido estrito vai-se às armas. Chegam os cossacos. Assim desalentados, voltamos à questão central de como neutralizar, através de pazes sujas, a ameaça de guerra total, com focos bélicos unificados? Enquanto utopistas não produzem o plano geral da paz justa universal, avancemos com os modestos meios ao nosso dispor. Recomeçamos pela Paz Negociada.

Uma bolha de indulgência informal entre duelistas tranquilizados pela sua refinada ambiguidade. Inspiração do raciocínio sobre a ordem do caos. Na sua esteira, uma hierarquia dos conflitos, e portanto da urgência em tratá-los. A classificação baseia-se na probabilidade de um confronto estratégico abaixo do limiar bélico dos Estados Unidos contra a China ou dois conflitos regionais em curso da Rússia contra Ucrânia e Israel contra Irão (em pausa aparente), palestinianos e outros vizinhos desencadearem a terceira guerra mundial. Prevista envolver os três vértices do Triângulo. Arrastando-nos, frágil charneira entre ordem e caos. Como base de discussão, inventamos um coeficiente de dilatação bélica, emprestado da termodinâmica. Medida subjectiva que convida à refutação. Numa escala de 1 a 10, colocamos em primeiro lugar, com um 7, o duelo sino-americano centrado no Indo-Pacífico. Logo atrás, a Ucrânia, com nota 6. Em terceiro, a guerra de Israel, não acima de 3.

3 Out 2025