Olavo Rasquinho VozesPontes e muros Num mundo em que ainda se constroem e reforçam barreiras físicas entre povos de culturas, regimes políticos ou religiões diferentes, é reconfortante saber que existem também ações em sentido contrário que consistem na construção de pontes que reforçam os laços de amizade entre os povos. Talvez a barreira atual mais irracional e antinatural é a que divide a península da Coreia em dois estados. Desde 1953 os coreanos do Norte e do Sul permanecem fisicamente separados, fruto da intolerância e irracionalidade humanas. Uma faixa de aproximadamente 250 km de comprimento e 4 km de largura impede as relações entre os coreanos do Norte e os do Sul. Esta zona de separação inclui Panmujom (localidade na Coreia do Sul onde foi assinado o Armistício em 1953), a Linha de Demarcação Militar, que se estende aproximadamente ao longo do paralelo 38° N, e a Zona Desmilitarizada, conhecida internacionalmente por DMZ (do inglês DeMilitarized Zone). Esta zona tampão está cercada por arame farpado, minas terrestres e forças militares. Um outro exemplo de barreira consiste no muro que separa os EUA e o México, tão criticado pelo partido democrático quando na oposição, mas que ainda permanece mesmo depois de Trump ter perdido as eleições em 2020. Também o muro que separa o Estado de Israel da Faixa de Gaza ilustra a separação entre povos de culturas e religiões diferentes. Mas não é apenas nas Américas, no Médio-Oriente ou na Ásia que existem estas barreiras. A queda do Muro de Berlim, construído em 1961 e derrubado em 1989, poderia ser o prenúncio de uma Europa sem barreiras entre os povos. No entanto, a ânsia de notoriedade por parte de um estado euro-asiático com tendências párias fez com que novas barreiras estejam a ser construídas, como acontece com a que está a ser levantada entre a Finlândia e Federação Russa. Também entre a Polónia e a Bielorrússia se ergueu recentemente uma barreira de arame farpado a fim de evitar a invasão de migrantes arremessados pelo regime bielorrusso, com o intuito de criar problemas aos vizinhos polacos. Ainda na Europa foram levantadas outras barreiras, nomeadamente entre a Hungria e a Sérvia e entre a Bulgária e a Turquia, com o intuito de dificultar o fluxo migratório. Entre a República da Irlanda (membro da União Europeia) e a Irlanda do Norte (pertencente ao Reino Unido), embora não se trate de barreiras físicas, foram criados, no contexto do Brexit, pontos de controlo que dificultam o trânsito de mercadorias. A República de Chipre, pertencente à União Europeia, está separada da designada República Turca de Chipre do Norte, pela chamada Linha Verde, à qual corresponde no terreno, não propriamente a um muro, mas a uma sequência de inestéticos amontoados de pedras, veículos degradados, entulho, sacos de serapilheira cheios de terra, etc. Esta situação perdura desde 1974, aquando da invasão da ilha por tropas turcas. Contrariando a tendência de criar obstruções entre os povos, são frequentes as atitudes amistosas, como a geminação de cidades de países diferentes. Assim, por exemplo, entre Portugal e a China, com o intuito de promover a cooperação em várias áreas (nomeadamente intercâmbio cultural, turístico e económico), são consideradas cidades-irmãs: Porto e Macau; Lisboa e Pequim; Coimbra e Xangai; Cascais e Zhuhai. Também entre Portugal e o Japão há exemplos de atitudes deste tipo, como a geminação entre Lisboa e Tóquio; Porto e Nagasaki; Vila Nova de Gaia e Iwata. Outro exemplo de manifestação de amizade por parte do Japão em relação a Portugal consiste na atitude das autoridades do município de Chiba, cidade sensivelmente à mesma latitude do Cabo da Roca. Em homenagem a Portugal foi erigido um monumento no Cabo Inubo onde está gravado “Cabo Inubo e Cabo da Roca – Monumento à Amizade – Aqui, onde o mar se acaba e a terra começa”, em analogia com monumento erigido no Cabo da Roca, onde se pode ler uma das estrofes do canto III de Os Lusíadas “Onde a terra se acaba e o mar começa”. Ainda no município de Chiba, na estação ferroviária de Inubo, encontra-se um mosaico que consta de um mapa português da Ásia, datado de 1630. Em tempos em que se constroem muros entre os povos, é gratificante constatar que também se edificam pontes. Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesTufões, furacões, medicanes e outros fenómenos meteorológicos Antigamente, os nossos ancestrais saíam das suas cavernas, ou não, em função do tempo. Faziam-no para caçar ou recoletar os produtos necessários à sua subsistência. É provável que tentassem inferir as condições meteorológicas durante as quais se dedicariam às suas tarefas, recorrendo à observação das nuvens, do vento e de outros parâmetros meteorológicos. Observando e prevendo o comportamento da atmosfera, estavam a praticar, sem terem consciência disso, o que está na base de uma das ciências mais antigas, a Meteorologia. Apesar da sua antiguidade, ainda somos surpreendidos pelo facto de, esporadicamente, surgirem termos meteorológicos novos. É com certa frequência que os media se referem a “rios atmosféricos” para designarem extensas zonas da atmosfera em forma de corredor, caracterizadas por grande concentração de vapor de água e que frequentemente dão origem a fortes precipitações, por vezes com graves consequências. Outro termo, “meteotsunamis” (ou tsunamis meteorológicos), que aparece mais raramente, refere-se a perturbações da superfície do mar causadas pela variação brusca da pressão atmosférica, associadas ao movimento rápido de frentes frias e linhas de borrasca (formações de cumulonimbus dispostos em linha) muito ativas. Os meteotsunamis são caracterizados por ondulação de grande comprimento de onda, a qual, ao atingir as zonas costeiras, provoca efeitos semelhantes aos dos tsunamis, embora geralmente com menor intensidade. A expressão “maré de tempestade” (storm surge, em inglês) já entrou no léxico habitual, mas o seu significado ainda não é compreendido por muitas populações das regiões do litoral, o que tem causado milhares de vítimas. A pressão atmosférica muito baixa, associada a ciclones extratropicais e tropicais muito intensos, faz com que o nível do mar se sobre-eleve, e a água superficial seja arrastada pelo vento, invadindo as zonas costeiras baixas. Quando a pressão diminui 1 hectopascal (ou milibar) o nível do mar sofre uma elevação de aproximadamente 1cm, o que implica que, quando um ciclone com a pressão muito baixa no seu centro se desloca, é acompanhado por esta sobre-elevação, o que faz com que a agitação marítima atinja a costa por vezes com um nível superior a um metro em relação ao normal. Foi o que aconteceu na passagem do furacão Katrina na região de Nova Orleães, em agosto de 2005, o que causou cerca de 1800 mortos. Analogamente, em novembro de 2013, o tufão Haiyan provocou cerca de 6000 mortos nas Filipinas, em grande parte devido à maré de tempestade associada. Também o tufão Hato, em agosto de 2017, foi caracterizado por uma maré de tempestade que provocou forte inundação em algumas zonas baixas de Macau. Neste caso, o facto de a passagem do tufão ter coincidido com a maré astronómica alta agravou a situação, na medida em que houve uma sobreposição de três fatores: a maré de tempestade, a preia-mar e o vento forte. Há algumas semanas reapareceu, nos meios de comunicação social, o termo “medicane”, usado para designar fenómenos meteorológicos relativamente raros, que ocorrem no Mediterrâneo, e que consistem em depressões híbridas, com características simultaneamente de depressões extratropicais e de ciclones tropicais. O mais recente destes fenómenos formou-se a partir de uma perturbação do campo da pressão sobre o Mar Egeu, em 4 de setembro de 2023, que se deslocou para sul da Grécia, provocando precipitação intensa e inundações neste país, causando mais de uma dezena de vítimas mortais. A tempestade, que foi denominada Daniel pelo serviço meteorológico grego, atravessou o Mediterrâneo e, no dia 10, atingiu o Nordeste da Líbia, causando precipitação extraordinariamente intensa. A estação meteorológica de Al-Bayda, relativamente próxima da cidade de Derna, registou 414,1 mm entre as 08:00 horas do dia 10 e as 08:00 horas de 11 de setembro. Como referência pode-se mencionar que esta precipitação, que ocorreu em apenas 24 horas, correspondeu a cerca de 75% da precipitação anual média em Lisboa e cerca de 22% do que chove anualmente, em média, em Macau.
Olavo Rasquinho VozesLula versus Lula Realizou-se em Belém, no Brasil, em agosto do corrente ano, a quarta cimeira da Organização do Tratado de Cooperação Amazónica (OTCA), em que participaram os Chefes de Estado dos oito países (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) em cujos territórios se localiza cerca de 99% da maior floresta tropical. Esta organização foi criada em 1995, mas realizaram-se apenas três cimeiras (1989, 1992 e 2009), antes desta, o que parece denotar pouco interesse pelo papel que deveria desempenhar, ou seja, contribuir para a preservação da Amazónia. Como resultado desta cimeira foi redigido um documento com 113 pontos, dos quais sobressaem o compromisso de lançar a Aliança Amazónica de Combate à Desflorestação, a criação de mecanismos financeiros para o apoio do desenvolvimento sustentável da floresta e da cooperação no combate aos atentados ambientais de que é frequentemente vítima. Entre estes atentados, além da desflorestação, contam-se a mineração clandestina e a consequente poluição dos cursos de água, o que tem graves consequências para as populações indígenas e biodiversidade. Partindo do princípio de que a preservação da Amazónia é imprescindível para a sustentabilidade do nosso planeta, também consta da Declaração a necessidade de exortar os países desenvolvidos a cumprirem os compromissos de disponibilizar e mobilizar recursos, incluindo cem mil milhões de dólares americanos por ano para financiamento dos países em desenvolvimento na sua luta contra as alterações climáticas. Outro dos pontos da Declaração refere-se à criação do Painel Intergovernamental Técnico-Científico da Amazónia, que terá como finalidade “promover a troca de conhecimentos e o debate aprofundado sobre estudos, metodologias, monitorização e alternativas para reduzir a desflorestação, impulsionar o desenvolvimento sustentável e evitar que o desequilíbrio ambiental na Amazónia se aproxime de um ponto de não retorno”. Sem dúvida que a eleição de Lula foi uma vitória para os que zelam pela natureza, mas, passados alguns meses, o amor à Amazónia parece ter deixado de ser tão exacerbado, ou então as pressões são de tal maneira fortes que o Presidente do Brasil parece estar a perder o vigor com que defendia as energias limpas. Apesar de concordar com os que defendem a preservação da floresta amazónica, Lula da Silva deixa transparecer um certo desconforto quando defende o estudo para uma possível exploração petrolífera perto da costa do Estado de Amapá, não muito longe do estuário do rio Amazonas. Seguindo o mau exemplo da Guiana, que tem faturado largos milhões de dólares com a exploração petrolífera ao largo da sua costa atlântica, a inclinação de Lula em permitir esta exploração tem levantado protestos da população de Marajó, ilha no estuário do rio Amazonas. Os derrames e fugas de petróleo que ocorrem com alguma frequência em explorações deste tipo podem degradar o ambiente aquático, prejudicando a biodiversidade e as comunidades pesqueiras. Poderão também afetar os mangais, ecossistemas sensíveis, imprescindíveis para o equilíbrio ambiental nas zonas de transição entre a costa e o mar nas regiões tropicais e subtropicais. Entretanto, enquanto no Brasil ainda se discute se esta exploração vai avante, num referendo levado a cabo no Equador, em 20 de agosto último, cerca de 60% dos eleitores disseram sim à interrupção da exploração petrolífera no parque nacional de Yauni, na Amazónia, região caracterizada por ser uma das mais ricas em biodiversidade. Esta decisão veio na sequência da contestação de grande parte da sociedade civil equatoriana, nomeadamente das comunidades indígenas. Marcio Astrini, diretor do “Observatório do Clima” (organização da sociedade civil que tem como objetivo principal zelar pelas questões relacionadas com o clima e o ambiente no Brasil) manifestou a sua opinião declarando «Esperamos que o governo brasileiro siga o exemplo do Equador e… deixe o petróleo do estuário do Amazonas no subsolo». Durante a cimeira, também Gustavo Petro, presidente da Colômbia, criticou a falta de firmeza de Lula da Silva no que se refere à exploração petrolífera na Amazónia. Segundo Petro, esta exploração poderá contribuir para que a floresta deixe de ser um sumidouro de CO2 para se tornar num emissor deste gás de efeito de estufa. Ainda segundo o Presidente da Colômbia, deveria criar-se um tribunal ambiental cujo objetivo seria julgar os crimes contra a Amazónia, que tem sido vítima não só de desflorestação, mineração ilegal e violência contra os povos indígenas, mas também de redes de tráfico de droga. A cimeira de Belém não teria sido possível caso Bolsonaro tivesse ganho as eleições, na medida em que o ex-presidente é um negacionista convicto das alterações climáticas, tendo mesmo recusado a realização da COP28 no Brasil, o que constituiu um grave atentado ao prestígio internacional do país, atendendo ao compromisso assumido pelo Governo anterior. Durante o seu mandato (2019-2022) acentuaram-se as ações de enfraquecimento da legislação que protegia a sustentabilidade da Amazónia, o que foi uma das causas da desflorestação recorde. Em comparação com o mesmo período antecedente (2015-2018), a desflorestação aumentou quase 150%, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazónia (Imazon), aproximadamente 35.193 quilómetros quadrados, ou seja, quase um terço da área de Portugal. Na sequência das críticas, Lula da Silva afirmou que o Estado brasileiro tem de tomar uma decisão, mas que não pode deixar de pesquisar. Claro que a Petrogas, contrariamente ao parecer do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), é favorável a esta exploração, argumentando que seria uma maneira financiar a transição energética sustentável, o que é manifestamente um contrassenso. Há como que uma luta entre dois Lulas, um, defensor das energias renováveis, outro, permissível à exploração petrolífera que poderá afetar o estuário do rio Amazonas. É certo que a exploração seria em pleno Atlântico, já fora da Amazónia, mas suficientemente perto para que eventuais fugas de crude possam afetar o estuário do rio, com as consequências daí resultantes para a biodiversidade. Por outro lado, a implementação de novos projetos de exploração de combustíveis fósseis é contrária ao compromisso assumido pelo Brasil aquando da ratificação do Acordo de Paris em 2016, comprometendo-se a reduzir as emissões de gases de efeito de estufa em 37% até 2025, tendo como referência as emissões de 2005, e em 43% até 2030. Se o bom senso predominar, o Brasil desistirá da exploração, tanto mais que é autossuficiente em petróleo. Entretanto, Lula da Silva vai assobiando para o lado… *Meteorologista
Olavo Rasquinho Ai Portugal VozesEstado do clima em 2022-2023 e sua evolução Entre as muitas publicações produzidas pela Organização Meteorológica Mundial (agência especializada das Nações Unidas que trata do tempo, do clima e da água), sobressaem as que se referem à monitorização do clima e à sua evolução. Antes de tirar conclusões sobre essa evolução, o IPCC, órgão criado pela OMM e UNEP (United Nations Environment Programme), estuda em pormenor as características anuais do clima e tira conclusões sobre as alterações sofridas pelos valores médios dos parâmetros meteorológicos à escala global. Com os resultados deste estudo a OMM tem vindo a publicar anualmente, desde 1993 até 2020, relatórios intitulados “WMO Statement on the State of the Global Climate” e, desde 2021, com o título “State of the Global Climate”. O mais recente consistiu no “State of the Global Climate in 2022”. O clima é um sistema altamente complexo e, como tal, não é fácil o seu estudo. Para o monitorizar tem de se recorrer a milhões de dados referentes aos parâmetros meteorológicos medidos diariamente em estações meteorológicas padronizadas. Até há algumas dezenas de anos recorria-se a observadores meteorológicos para efetuar as leituras dos valores registados pelos instrumentos meteorológicos, nomeadamente da temperatura, pressão atmosférica, direção e velocidade do vento, humidade, visibilidade, etc. As leituras eram feitas nas chamadas horas sinóticas principais (00:00, 06:00, 12:00 e 18:00 horas) e secundárias (03:00, 09:00, 15:00 e 21:00 horas). Desde que foi generalizado o uso de estações meteorológicas automáticas, a quantidade dos dados aumentou significativamente, o que permitiu a sua monitorização contínua. Estes dados são transmitidos em tempo real para centros meteorológicos, onde são tratados. A principal vantagem das estações meteorológicas automáticas em relação às convencionais consiste no facto de poderem fornecer continuamente dados precisos e fiáveis, inclusive em locais remotos de difícil acesso, podendo ser programáveis para alertar as autoridades aquando da ocorrência de valores extremos. Com base nos dados recolhidos são traçadas cartas meteorológicas que traduzem as condições meteorológicas em vastas regiões. Os centros meteorológicos mundiais, com base nestes dados, traçam as chamadas cartas sinóticas à escala global, onde se esquematiza o campo da pressão atmosférica referido a uma determinada hora sinótica com o recurso a linhas de igual pressão (isóbaras) e as localizações e intensidades dos vários centros de ação (depressões e anticiclones). Com recurso a modelos físico-matemáticos são elaboradas cartas de prognóstico nas quais se pode seguir a evolução espácio-temporal desses centros de ação, bem como a formação e evolução de outros sistemas de pressão, nomeadamente vales, cristas e colos1. São também esquematizadas as chamadas frentes, que correspondem a zonas de separação de massas de ar com características diferentes. Estas cartas de prognóstico são válidas para intervalos de 12 ou 24 horas, estendendo-se por 5 ou mais dias, com base nas quais se podem fazer previsões cuja fiabilidade diminui à medida que o período de validade aumenta. A análise da situação meteorológica, ou seja, do tempo, e a previsão da sua evolução cabe aos meteorologistas, que traduzem em linguagem clara as situações esquematizadas nas cartas de análise e de prognóstico. Compete, por sua vez, aos climatologistas, o estudo dos valores médios dos parâmetros meteorológicos referentes a períodos mais ou menos longos, de preferência no mínimo 30 anos, e a respetiva evolução. O sistema climático reage a forçamentos externos, manifestando comportamentos que fazem lembrar a reação dos seres vivos a estímulos exteriores. O Professor José Pinto Peixoto (1912-1996), eminente meteorologista e climatologista conhecido mundialmente, referiu-se a esta analogia no livro de sua autoria Physics of Climate (conjuntamente com o meteorologista americano Abraham Oort), “the climate is always evolving and it must be regarded as a living entity”. Infelizmente os conceitos de “tempo” e de “clima” são por vezes confundidos, não só por entidades oficiais, mas também por alguns meios de comunicação social. Não é raro usar-se a expressão “condições climatéricas” para justificar a interrupção ou impedimento de eventos ao ar livre, devido a ocorrências meteorológicas, como, por exemplo, chuva intensa, vento forte ou trovoada. Dever-se-ia usar a expressão “condições meteorológicas” (ou simplesmente “tempo” ou “estado do tempo”) nessas situações, na medida em que a expressão “condições climatéricas” se refere ao clima. No entanto, o termo “climatéricas” não seria o mais adequado, mas sim “climáticas”, na medida em que o primeiro destes termos é um galicismo que se pode confundir com “climactéricas”, que se refere ao “climactério”, período da vida em que ocorrem alterações significativas no organismo, como, por exemplo, a menopausa e a andropausa. Além do cálculo dos valores médios e extremos dos parâmetros meteorológicos, a OMM recorre a 7 indicadores para proceder à monitorização das alterações climáticas: concentração de gases de efeito de estufa, temperatura, aumento do nível do mar, acidificação dos oceanos e energia por eles absorvida e armazenada (calor do oceano), gelo marinho e glaciares. No relatório “State of the Global Climate 2022” sobressaem vários aspetos que põem as entidades governativas e o público em geral de sobreaviso, nomeadamente a alta probabilidade de aumento de frequência de fenómenos extremos, entre os quais secas, inundações, ondas de calor2 e fogos florestais. É também evidenciado o facto de, apesar de um episódio extraordinariamente longo de La Niña (de setembro de 2020 a março de 2023), fenómeno a que corresponde a um certo arrefecimento do nosso planeta, a temperatura média à escala global nos últimos 8 anos (2015-2022) foi a mais alta registada. O nível do mar e o calor do oceano alcançaram valores recorde e o gelo do Oceano Glacial Antártico atingiu a menor extensão registada. Na Europa foram também alcançados recordes de degelo de glaciares. Caso não tivesse ocorrido esse episódio de La Niña o aumento da temperatura média teria sido, provavelmente, ainda mais acentuado. Entretanto, o episódio atual do El Niño, iniciado há cerca de um mês, que poderá perdurar aproximadamente um ano ou mais, muito provavelmente contribuirá para um maior aquecimento nos próximos anos. É muito provável que as ondas de calor que estão a afetar a vastas regiões na Europa, América do Norte e Ásia estejam relacionadas com este fenómeno. Os valores da temperatura máxima deste ano, em algumas regiões, aproximaram-se dos máximos até agora observados, e não seria de estranhar que se registassem recordes mundiais em várias regiões do globo nos próximos anos. Segundo o “Archive of Weather and Climate Extremes”, a temperatura mais alta registada foi em Furnace Creek, Death Valley, Califórnia, com 56,7 °C em 10 de julho de 1913. Na Europa continental o recorde foi de 48,8 °C, na Sicília, em 11 de agosto de 2021. Na Ásia foi de 53,9 °C, em Mitribah, no Kuwait, e em Turbat no Paquistão, respetivamente em 21 de julho de 2016 e 28 de maio de 2017. Os valores da temperatura máxima em Death Valley em 2020 e 2021 foram tão altos, que se decidiu retirar os sensores da estação meteorológica e enviá-los para que se realizassem testes num laboratório independente. De acordo com uma declaração conjunta da OMM e do Copernicus3, o dia 6 de julho de 2023 foi caracterizado pela mais alta temperatura média global diária, ultrapassando o recorde que havia sido atingido em agosto de 2016, o que indicia o perigo de se estar prestes a atingir o limite de 1,5 ⁰C, estabelecido no acordo de Paris, para o aumento da temperatura média global até ao fim deste século. Apesar de não querermos ser tão pessimistas como o nosso compatriota António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, não deixa de nos perturbar as suas palavras integradas num discurso proferido na sede da ONU, em 27 de julho deste ano: «The era of global warming has ended; the era of global boiling has arrived». Segundo a OMM, diz-se que ocorre uma onda de calor quando durante pelo menos 6 dias consecutivos a temperatura máxima diária excede pelo menos 5 graus Celsius a temperatura máxima média durante o período em referência. Copernicus consiste na componente de Observação da Terra do programa espacial da União Europeia, cujo objetivo de observar o nosso planeta e o seu ambiente para o benefício dos cidadãos europeus.
Olavo Rasquinho VozesO negacionismo, as alterações climáticas e a poluição Vem este texto a propósito dos que não acreditam que as alterações climáticas são causadas pelas atividades humanas. Na realidade é lícito que haja quem duvide, atendendo a que alguns cientistas também são dessa opinião. Trata-se, no entanto, de uma minoria pouco significativa, considerando que se estima que cerca de 97% dos cientistas que estudam este assunto estão de acordo que são os gases de efeito de estufa (GEE) que retêm o calor, o que provoca o aquecimento global e, consequentemente, essas alterações. Os negacionistas não acreditam nas conclusões a que chegaram numerosas instituições científicas, tais como universidades, institutos, agências especializadas e programas das Nações Unidas, entre os quais a Organização Meteorológica Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UN Environment Programme – UNEP). Também não acreditam no IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), nem nas conclusões e recomendações das 27 Conferências das Partes (Conferences of the Parties – COP). Curiosamente, os negacionistas das alterações do clima estão em geral de acordo com teorias da conspiração defendidas por movimentos de extrema-direita. Bolsonaro e Trump são exemplos bem conhecidos como defensores destas teorias, nomeadamente no que se refere às alterações climáticas e à epidemia Covid-19. Alguns até creem que a terra é plana, como defendia um dos mentores de Bolsonaro, o “filósofo” brasileiro Olavo de Carvalho, falecido em janeiro de 2022, vítima da Covid-19, na qual não acreditava e designava por “historinha de terror”. São conhecidas afirmações proferidas pelo ex-presidente do Brasil em que se referia à pandemia como “uma gripezinha” e em que preconizava o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes. Também ficou célebre a frase “Se tomar vacina e virar jacaré não tenho nada a ver com isso”. Segundo um relatório da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), difundido em 24 de novembro de 2022, referindo-se às medidas de combate à pandemia, “caso o país tivesse seguido o padrão médio global, três de cada quatro mortes por Covid-19 ocorridas no Brasil teriam sido evitadas”. Como negacionista, Bolsonaro deu também o dito por não dito quando anunciou que a 25ª Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP25) não se realizaria no Brasil, conforme havia sido anteriormente acordado, o que provocou a sua transferência para Madrid (2-13 de dezembro de 2019). Segundo ele, a pressão internacional sobre a problemática das alterações climáticas não passaria de um “jogo comercial”. Também Trump subestimava a pandemia e não acreditava nas alterações climáticas. Segundo a revista científica The Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas publicações de carácter médico, entre as 450 mil mortes por Covid-19 nos EUA, cerca de 40% poderiam ter sido evitadas. Também como negacionista das alterações climáticas, numa mensagem via Twitter, Trump chegou a comentar “Brutal and Extended Cold Blast could shatter ALL RECORDS – Whatever happened to Global Warming?” (“Uma brutal e extensa invasão de ar frio pode rebentar com TODOS OS REGISTOS – o que aconteceu com o aquecimento global?”), confundindo meteorologia com climatologia, comparando um simples evento meteorológico com valores médios referentes a dezenas de anos que são necessários para caracterizar o clima. A Organização Mundial da Saúde e o Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME) são duas das entidades que se dedicam ao estudo da saúde à escala mundial. Ambas as instituições chegaram a valores muito semelhantes no que se refere à estimativa do número de vítimas mortais precoces causadas anualmente pela poluição atmosférica, respetivamente cerca de 7 e 6,7 milhões. A poluição atmosférica está intimamente relacionada com as alterações climáticas, na medida em que a causa principal destas alterações consiste na injeção de GEE provenientes da utilização de combustíveis fósseis (carvão mineral, petróleo e gás natural). Estes gases são também poluentes, os quais, quando respirados, contribuem para o desenvolvimento de doenças respiratórias que afetam os seres vivos, constituindo um fator importante de mortalidade. De acordo com a OMS, cerca de 99% da população mundial respira ar cujo conteúdo em poluentes excede o estabelecido como limites nas diretrizes desta organização. Os principais poluentes atmosféricos, nomeadamente partículas em suspensão, monóxido de carbono, dióxido de azoto, dióxido de enxofre e ozono, resultam dos combustíveis fósseis. Entre as partículas microscópicas arrastadas pelo vento sobressaem as PM10 e as PM2,5, respetivamente com diâmetros iguais ou inferiores a 10 e 2,5 micrómetros (μm), provenientes não só das atividades industriais, mas também de fogos florestais e transportes terrestres, marítimos e aéreos. Ainda recentemente foi detetado na Europa fumo proveniente dos incêndios florestais que têm devastado milhares de hectares de florestas no Canadá. A frequência e a intensidade dos fogos florestais estão intimamente relacionadas com as alterações climáticas, na medida em que o aumento da temperatura é propício à criação de condições favoráveis a esses incêndios. Como 99,9% das moléculas que constituem o ar se encontram na camada atmosférica entre a superfície e 50km de altitude, mesmo os negacionistas das alterações climáticas, se forem honestos, compreenderão que, em situações meteorológicas de grande estabilidade, estes poluentes se acumulam na camada baixa da troposfera, com graves consequências para os seres vivos. Há países em que é frequente proceder a restrições do trânsito automóvel durante situações meteorológicas caracterizadas por grande estabilidade atmosférica. Não são raras as imagens veiculadas pelos media, hjunnnnnnnjuhkkkkkkk (desculpem, o meu gato passou agora por cima do teclado), em que os cidadãos circulam de máscara para evitar respirar as partículas poluentes em suspensão no ar. Os combustíveis fósseis e seus derivados estão também intimamente ligados à poluição dos oceanos, atendendo a vários fatores, entre os quais os acidentes com navios de transporte de produtos petrolíferos e as chuvas ácidas, com graves consequências para a biodiversidade marinha. Também o plástico, que é um subproduto da indústria petrolífera, é um dos poluentes mais presentes nos oceanos, cujas partículas microscópicas já são detetáveis na cadeia alimentar humana. No que se refere à poluição do solo, entre as agressões a que o meio-ambiente está sujeito causadas pela atividade humana, é de salientar a atitude agressiva do governo do país mais extenso do mundo, no que se refere ao rebentamento de barragens, à deposição de metais pesados nos campos, provenientes de bombardeamentos indiscriminados e de minas, e à agressão a este nosso planeta por milhares de toneladas de detritos de bombas e restos de mísseis de “elevada precisão”, tão certeiros que já destruíram milhares de instalações relacionadas com a saúde, a instrução e a energia, tais como centros médicos, hospitais, maternidades, escolas, universidades, centrais elétricas, etc. A poluição provocada pela guerra na Ucrânia irá refletir-se negativamente na qualidade de vida das futuras gerações. Perante o exposto, é fácil concluir que, na luta contra as alterações climáticas, está implícita a luta contra a poluição. Assim, embora pareça ser razoável que haja quem não acredite que essas alterações são em grande parte motivadas pelos gases de efeito de estufa, já não é aceitável que não acreditem que os poluentes provenientes dos combustíveis fósseis são a causa principal das doenças respiratórias. As medidas preconizadas no que se refere à mitigação das alterações climáticas, que implicam o banir dos combustíveis fósseis, têm também como consequência a diminuição da poluição do ar, dos oceanos e do solo. Daí a necessidade da redução drástica da utilização desses combustíveis, conforme preconizado pela ONU.
Olavo Rasquinho VozesAdeus La Niña, El Niño está a chegar Desde há cerca de dois meses que os serviços meteorológicos e oceanográficos observam a tendência para o aumento da temperatura das águas superficiais na parte central e leste da região tropical do Oceano Pacífico. Baseado em observações e modelos, os meteorologistas estão a prever que este aquecimento se vai acentuar dentro de alguns meses, o que muito provavelmente dará origem a mais um episódio do El Niño. Segundo a Organização Meteorológica Mundial, este fenómeno poderá induzir um aumento da temperatura média global, reforçando a tendência geral para o aquecimento inerente às alterações climáticas. Atualmente a temperatura da superfície dessa região do Pacífico está próxima dos valores médios, o que indica que está na fase neutra que se seguiu a um episódio de La Niña extraordinariamente longo, que teve início em setembro de 2020 e terminou em março de 2023. Este é o segundo episódio de La Niña mais longo, desde 1950, apenas ultrapassado pelo que ocorreu entre a primavera de 1970 e a primavera de 1973 (37 meses). Como é do conhecimento público mais atento, o El Niño é um fenómeno oceano-atmosférico que consiste no aquecimento da água superficial, em relação aos valores médios, na parte central e leste da região tropical do Oceano Pacífico. É assim designado porque a sua máxima intensidade ocorre estatisticamente próximo do Natal, referido nos países de língua espanhola por El Niño. Apesar desta denominação, que poderia gerar bons augúrios, este fenómeno tem como consequências, entre outras, a fuga de cardumes para águas mais frias, principalmente de anchovas, o que traz graves prejuízos aos pescadores peruanos. Contrariamente, La Niña corresponde a um período em que a temperatura superficial do oceano nessas mesmas regiões apresenta valores de alguns graus abaixo da média. O conjunto destes dois fenómenos e da fase neutra é designado nos meios científicos por “El Niño-Oscilação Sul” (El Niño-Southern Oscillation – ENSO), na medida em que, simultaneamente às variações da temperatura da água, ocorrem flutuações da pressão atmosférica à superfície entre as regiões leste e oeste do Pacífico Sul. Para caracterizar este fenómeno, foi criado o chamado “Índice de Oscilação Sul” (Southern Oscillation Index – SOI), que se obtém com base na comparação de anomalias da pressão atmosférica (desvios em relação aos valores médios) no Taiti e Darwin, respetivamente na Polinésia Francesa e Austrália. As três fases do ENSO afetam a circulação geral da atmosfera de maneira diferente, principalmente no que se refere à chamada célula de Walker, conforme se ilustra de maneira esquemática, segundo interpretação da NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration dos Estado Unidos da América). Como se pode constatar, nas zonas mais quentes da superfície oceânica em que o ar húmido converge, ocorre movimento ascendente (convecção) e consequente formação de fortes camadas nebulosas e consequente pluviosidade. Por outro lado, nas zonas em que há movimento descendente (subsidência) o céu apresenta-se praticamente limpo. Esta interpretação da NOAA ajuda a compreender como o tempo se comporta conforme as fases do ENSO. Estas alterações propagam-se temporal e espacialmente, afetando regiões longínquas. O fenómeno ENSO enquadra-se num mecanismo designado por “teleconexões”, que consiste no facto de certos fenómenos que ocorrem na atmosfera ou no sistema atmosfera-oceanos provocarem alterações na circulação atmosférica, não só nas regiões em que ocorrem, mas também em regiões longínquas, causando fenómenos meteorológicos significativos como, por exemplo, precipitação severa em algumas regiões e secas noutras. Na fase neutra, os ventos alísios que sopram de leste para oeste (representados pela seta inferior da célula de Walker) arrastam a água superficial, aquecida pela radiação solar, para a parte oeste do Pacífico, provocando convergência à superfície nesta região, o que por sua vez causa movimentos verticais do ar húmido cujo vapor de água condensa dando origem a fortes camadas nebulosas. Durante os episódios El Niño verifica-se um enfraquecimento dos ventos alísios sobre a região, passando a componente predominante do vento a soprar de oeste para leste, muito mais fraca, o que reforça o aquecimento da superfície do mar, atendendo a que não há arrastamento da água superficial pelo vento, o que impede a sua substituição por água mais fria vinda de zonas mais profundas. A convergência à superfície, agora mais para leste, origina forte convecção no parte central e leste da região tropical do Pacífico. Durante La Niña, os ventos alísios intensificam provocando arrastamento da água superficial e consequente subida de águas profundas mais frias para a superfície, o que provoca transporte de nutrientes, dos quais se alimentam os peixes. Este fenómeno (substituição da água superficial, arrastada pelo vento, por água mais fria vinda de zonas mais profundas) designa-se por afloramento ou ressurgência (upwelling, em inglês). Pode-se considerar La Niña, que consiste no arrefecimento de alguns graus em relação à média, como o fenómeno inverso ao El Niño. Enquanto o El Niño dura cerca de 9 a 12 meses, os episódios de La Niña têm uma duração maior, entre de 1 e 3 anos. Ambos ocorrem alternadamente com periodicidade aproximada de 3 a 5 anos, separados pelas fases neutras. No Peru o El Niño é classificado como “moderado” quando a temperatura da água à superfície sofre um incremento até 1,7 °C, “forte” quando o aumento é entre 1,7 a 3 °C, e “extraordinário” quando é superior a 3 °C. No Brasil, entre outras consequências, provoca redução da pluviosidade no norte e leste da Amazónia, o que cria condições propícias à ocorrência de incêndios florestais, seca no sertão nordestino, e pluviosidade intensa no sul. Também por influência deste fenómeno climático ocorrem secas, por vezes severas, na Índia, Indonésia, África e Austrália. No Peru, Equador, oeste dos EUA e litoral da Colômbia ocorre forte precipitação dando frequentemente origem a inundações e deslizamentos de terras nas regiões montanhosas. Na Venezuela, Suriname, Guiana, Guiana Francesa e interior da Colômbia as chuvas são escassas. Ainda por influência do El Niño, nos meses de dezembro a maio, na parte da Ásia onde a região de Macau está inserida, ocorre maior precipitação do que nas fases neutra e La Niña, e a probabilidade de ocorrência de ciclones tropicais em abril e maio é menor. Em anos de La Niña é provável a ocorrência de mais ciclones tropicais a afetar Macau do que em período neutro, e a monção de nordeste é em geral mais intensa de setembro a fevereiro, o que provoca tempo mais frio e menos chuvoso do que o normal. Quando ocorrem fenómenos atmosféricos gravosos como ciclones tropicais severos, secas, marés de tempestade, etc., há uma certa tendência para imputar as suas causas às alterações climáticas, o que frequentemente não corresponde à realidade. Os fenómenos ENSO têm causas naturais e integram-se no que se convencionou designar por “variabilidade climática”, que consiste em variações do estado médio do clima em períodos relativamente curtos como um mês, uma estação, um ou poucos anos. As alterações climáticas, cujas causas são atribuídas aos gases de efeito de estufa, resultam da atividade humana e consistem em variações estatisticamente significativas do estado médio do clima, que persistem durante muito mais tempo e abrangem regiões mais vastas. Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesSíntese do sexto relatório de avaliação do IPCC sobre as alterações climáticas António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, no seu discurso na conferência de imprensa para apresentação da Síntese do Sexto Relatório da Avaliação das Alterações Climáticas, em 20 de março de 2023, recorreu à seguinte metáfora: “… a humanidade está sobre uma fina camada de gelo e este gelo está a derreter rapidamente…(Humanity is on thin ice and this ice is melting fast…”). Para evitar o desastre a que esta figura de linguagem se refere, é imprescindível que a humanidade tome consciência do risco que corre na sua corrida desenfreada para melhorar o Produto Interno Bruto dos Estados ignorando as devidas precauções no que se refere à sustentabilidade da Terra. Como é do conhecimento do público que acompanha o evoluir dos assuntos relacionados com a sustentabilidade do nosso planeta, nomeadamente no que se refere às alterações climáticas, o acrónimo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) refere-se ao órgão das Nações Unidas incumbido de monitorizar as alterações climáticas, os impactos inerentes a essas alterações, e fornecer aos governos avaliações regulares sobre a evolução do clima. Durante os seus 35 anos de atividade foram elaborados 6 Relatórios de Avaliação (Assessment Reports – AR) da evolução do clima, com a periodicidade aproximada de 6 anos. Além destes foram também publicados 14 relatórios sobre temas específicos. De acordo com o Relatório Síntese do AR6, as atividades antropogénicas desde há mais de 150 anos, ou seja, desde o início da era industrial, são a principal causa do aquecimento global de cerca de 1,1 ºC acima dos níveis pré-industriais, o que implicou a ocorrência de eventos meteorológicos extremos mais frequentes e violentos, que têm sido a causa de elevadas perdas de vidas e bens. Como o título indica, este Relatório Síntese consta do resumo das conclusões e recomendações que compõem as três primeiras partes do AR6, já publicadas previamente em 2021 e 2022. Tem como objetivo disponibilizar importante informação e linhas mestras de atuação tendo em vista a mitigação das alterações climáticas e a adaptação da sociedade a essas alterações. Apesar de ser uma síntese, este relatório, na sua versão para os decisores políticos, consta de 36 páginas (versão em inglês). Vejamos algumas das principais conclusões expressas neste documento, segundo o World Resources Institute: O aquecimento global de 1,1 ºC, induzido pelas atividades antropogénicas, estimulou alterações no clima sem precedentes na história recente da humanidade. Os impactos das alterações climáticas sobre a humanidade e ecossistemas são mais generalizados e graves do que o previsto, e os riscos futuros aumentarão rapidamente sempre que haja um aumento de uma fração de grau da temperatura média global. Para ilustrar esta constatação, pode-se mencionar o facto de cerca de metade da população mundial enfrentar atualmente forte escassez de água, e que o aumento da temperatura é favorável à propagação de doenças transmitidas através de vetores (p. ex. mosquitos, carraças, etc.), como malária, vírus do Nilo Ocidental e doença de Lyme. As medidas de adaptação às alterações climáticas podem efetivamente contribuir para o aumento da resiliência, mas, para esse efeito, será necessário um maior apoio financeiro. O IPCC estima que os países em desenvolvimento precisarão de US$ 127 mil milhões por ano até 2030 e US$ 295 mil milhões por ano até 2050 para se adaptarem às alterações climáticas. Alguns impactos das alterações climáticas são já de tal maneira severos que não podem ser atenuados com recurso a medidas de adaptação, o que implica aumento de perdas de vidas e danos materiais. Por exemplo, algumas comunidades costeiras viram as suas vidas dificultadas devido à extinção de recifes de corais que lhes garantiam meios de subsistência e segurança alimentar, enquanto outras comunidades foram obrigadas a abandonar os seus terrenos de cultura devido à subida do nível do mar. As emissões globais de gases de efeito de estufa (GEE) atingirão um pico antes de 2025, se o ritmo de emissões atual não abrandar. Segundo o IPCC, há uma probabilidade superior a 50% de que a subida da temperatura global atinja 1,5 ºC até 2040, com base em vários cenários e, num cenário de emissões mais intensas, poder-se-á atingir este valor mais cedo, até 2037. Nestas condições o aumento global da temperatura poderá subir para valores entre 3,3 ºC e 5,7 ºC até 2100. A queima de combustíveis fósseis, causa número um da crise climática, deve ser abandonada rapidamente. Embora centrais elétricas movidas a carvão estejam a ser desmanteladas na Europa e nos EUA, alguns bancos multilaterais de desenvolvimento continuam a financiar a instalação de centrais deste tipo. Para garantir um futuro resiliente e com neutralidade carbónica é necessário proceder a transformações urgentes em todo o sistema. Embora os combustíveis fósseis sejam a principal causa das emissões de GEE, além de se ter de deixar de recorrer à sua utilização, terá de se proceder a cortes drásticos das emissões noutras áreas da atividade humana, como por exemplo a agricultura e a exploração pecuária. A remoção de carbono da atmosfera é essencial para limitar o aumento da temperatura global a 1,5 ºC. Para se atingir a neutralidade carbónica não é suficiente desistir da utilização dos combustíveis fósseis e outras medidas de redução das emissões de GEE. Terá também de se recorrer à remoção do carbono da atmosfera, o que implica, além da intensificação da florestação e outros métodos naturais, o recurso a novas tecnologias para extrair o dióxido de carbono diretamente da atmosfera para o subsolo. As medidas de adaptação podem efetivamente contribuir para uma maior resiliência, mas é necessário mais financiamento para melhorar as soluções. De acordo com o IPCC, o financiamento público e privado para produção de combustíveis fósseis tem sido superior ao dirigido para a mitigação das alterações climáticas e a adaptação a essas alterações. Se tudo continuar assim, não serão atingidas as metas globais preconizadas no Acordo de Paris. As alterações climáticas, assim como os nossos esforços coletivos para a adaptação e mitigação, contribuirão para aumentar a desigualdade, caso não se consiga garantir uma transição justa. Os efeitos das alterações climáticas atingem mais duramente os países menos desenvolvidos, apesar de terem sido os que historicamente menos GEE emitiram. De acordo com Relatório Síntese da AR6, ainda é possível limitar o aquecimento global a 1,5 ºC até ao fim do século, conforme o preconizado pelo Acordo de Paris, mas apenas se houver empenho dos governos, setor privado, sociedade civil e todos nós individualmente. A janela de oportunidade ainda está aberta, mas não há tempo a perder. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesAs futuras gerações perante as alterações climáticas É interessante constatar que a juventude tem vindo a demonstrar grande preocupação pelo futuro, no que se refere à sustentabilidade do nosso planeta. Essa preocupação reflete-se nas iniciativas que os jovens têm vindo a adotar à escala mundial, em prole de um futuro sem combustíveis fósseis, os quais são considerados como a principal causa do aumento da concentração de gases de efeito de estufa (GEE) na atmosfera, e consequentemente das alterações climáticas. É incontestável a consequente degradação progressiva do meio-ambiente, a perda de ecossistemas e a diminuição drástica da biodiversidade, o que se reflete na sustentabilidade do nosso planeta e na deterioração das condições de vida. Das organizações e programas das Nações Unidas que mais ações têm levado a cabo para alterar esta situação, sobressaem a Organização Meteorológica Mundial (OMM) e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA), sob os auspícios dos quais foi criado o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, órgão que procede à monitorização das transformações a que o clima tem estado sujeito devido às atividades antropogénicas. A OMM é a agência especializada das Nações Unidas que tem como missão a cooperação internacional e a coordenação de atividades que envolvem o estado e o comportamento da atmosfera do nosso planeta, a sua interação com a terra e os oceanos, o tempo, o clima e os recursos hídricos. Por outro lado, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, criado em 1972, tem como missão informar e aconselhar os Estados sobre como melhorar a qualidade de vida das suas populações e das gerações futuras, através da implementação de uma agenda ambiental que entra em consideração com o desenvolvimento sustentável. Apesar dos esforços da OMM, do PNUA e de outras organizações e programas das Nações Unidas, que se têm refletido no estabelecimento do Protocolo de Quioto e na realização das 27 Conferências das Partes (Conferences of the Parties – COP), onde têm sido estabelecidos compromissos para reverter o aumento da concentração dos GEE, parece estar comprometido o almejado objetivo do Acordo de Paris, que consiste em que o aumento da temperatura média do ar , à escala global, não ultrapasse os 2 ºC, de preferência inferior a 1,5 ºC, até ao fim do corrente século. Na realidade, esse aumento já ultrapassou 1,1 ºC em relação ao início da era industrial, há aproximadamente 150 anos. A passividade com que os governos dos países e as diferentes partes envolvidas têm vindo a atuar tem sido confrangedora, na medida em que não põem em prática, ou o fazem-no com grande lentidão, as recomendações acordadas nos vários fóruns onde estes assuntos são tratados. A preocupação com as gerações futuras sobre a sustentabilidade da vida no nosso planeta perante o que pode acontecer ao clima está expressa no tema que a OMM escolheu para celebrar este ano o Dia Meteorológico Mundial (DMM) de 2023: “O Futuro do Tempo, do Clima e da Água através das Gerações” . O dia 23 de março, data do aniversário da entrada em vigor da Convenção da OMM, é normalmente celebrado pelos serviços meteorológicos nacionais, realizando palestras, visitas de estudo, artigos nos órgãos de comunicação social, emissão de selos comemorativos, etc. A decisão oficial da criação da OMM foi há 150 anos, em 1873, no Congresso Internacional de Meteorologia, que teve lugar em Viena, nessa altura capital do Império Austro-Húngaro. Neste encontro foi tomada a decisão de criar uma organização que tivesse como funções a coordenação das atividades relacionadas com o intercâmbio de informação meteorológica entre países, a Organização Internacional de Meteorologia , que incumbiu um comité de redigir as regras e os estatutos de uma organização mais vasta, que veio a designar-se por Organização Meteorológica Mundial. A OMM tem sede em Genebra e conta com 193 membros entre Estados (187) e Territórios Membros (6). Portugal aderiu à OMM em 1951 e, na sequência de diligências conjuntas entre o nosso país e a China, Macau foi aceite como Território Membro em 1996, ainda sob administração portuguesa. Segundo a Convenção da OMM – Artigo 3(d) – os territórios, desde que tenham serviços meteorológicos próprios, podem tornar-se Territórios Membros, passando a ter os mesmos direitos que os Estados em algumas questões relacionadas com o funcionamento da organização. É o caso da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), que possui os Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG) desde 1952, e da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK), cujo serviço meteorológico (Hong Kong Observatory), foi criado em 1883. Os respetivos delegados podem votar para a eleição do Secretário-Geral em pé de igualdade com os Estados Membros, o que faz com que a China tenha direito a três votos nessa eleição. Os votos, em princípio, são independentes, mas ninguém acreditaria que os Territórios Membros votariam de modo divergente ao da potência administrante. Perante esta situação, no 14.º Congresso da OMM (Genebra, 5–24 de maio, 2003), o delegado do México manifestou a sua estranheza por esse facto, tendo o Secretariado esclarecido que a China e o Reino Unido haviam submetido o pedido de admissão de Hong Kong, China, no 12.º Congresso (1995), e que analogamente, a China e Portugal submeteram um pedido semelhante ao 13.º Congresso (1999), em relação a Macau, China. Em ambos os casos, o Congresso aceitou os pedidos, conforme o estabelecido na Convenção da OMM. Esta situação, no entanto, não é caso único, na medida em que outros países que administram Territórios Membros, como a França, os Países Baixos e o Reino Unido, também têm direito a mais do que um voto. Tal deve-se ao facto de administrarem, respetivamente, a Polinésia Francesa e a Nova Caledónia, Curaçau e São Martinho, e Territórios Britânicos das Caraíbas. Portugal esteve em situação análoga no XIII congresso da OMM (4-26 maio 1999), devido ao facto de Macau ainda estar sob administração portuguesa. Portugal e os restantes países de língua portuguesa têm-se batido, nos congressos da OMM, pela adoção do português como língua oficial desta organização. O argumento defendido pelos países lusófonos baseia-se na realidade de o português ser uma das línguas mais faladas no mundo. Com cerca de 280 milhões de falantes, mais do que os de língua russa, é a quinta língua à escala mundial e a mais falada no hemisfério sul. Acontece, porém, que essa medida implicaria um forte acréscimo nas despesas com a tradução de documentos, e no recurso a intérpretes durante as sessões. Segundo aqueles que se opõem às pretensões dos países lusófonos, o facto de haver seis línguas oficiais (árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo) já implica um grande esforço financeiro por parte da OMM. Conseguiu-se, no entanto, que o português alcançasse o estatuto de língua de trabalho, com recurso a um fundo para o qual contribuem alguns membros, nomeadamente Angola, Brasil, Portugal e Região Administrativa Especial de Macau. Os temas selecionados para as celebrações anuais do DMM refletem frequentemente as preocupações relacionadas com a evolução do clima. Por exemplo, nos últimos dez anos, o conceito “clima” é referido seis vezes: “The Future of Weather, Climate and Water across Generations, 2023”; “The Ocean, Our Climate and Weather, 2021”; “Climate and Water, 2020”; “Weather-ready, climate-smart, 2018”; “Climate knowledge for Climate Action, 2015”; “Weather and Climate: Engaging youth, 2014”. Perante a realidade do facto de se constatar um aumento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos, da subida do nível do mar em consequência do degelo de glaciares e calotas polares, dos oceanos estarem mais quentes e com maior grau de acidez, é natural a preocupação sobre as condições de vida das novas gerações. Neste contexto, a OMM está a trabalhar no sentido de desenvolver uma infraestrutura à escala mundial para monitorização da concentração dos GEE, com o intuito de apoiar a implementação do Acordo de Paris. Atendendo a que o tempo, o clima e os recursos hídricos não conhecem fronteiras, é importante que as Nações Unidas, como instituição transnacional, e outras instituições internacionais, continuem a zelar pelas gerações futuras, e a reunir esforços para que estas tenham a possibilidade herdar um planeta mais sustentável. Todos nós, a título individual e coletivo, somos também responsáveis pela concretização desse objetivo. *Meteorologista
Olavo Rasquinho Vozes“Acts of God” e outras calamidades A destruição causada pelos sismos que ocorreram recentemente na Turquia e que afetaram o centro e sul deste país e o noroeste da Síria, fez com que, durante alguns dias, as notícias sobre a guerra na Ucrânia passassem para segundo plano. Calamidades como sismos, vulcões, tufões, furacões, marés de tempestade, tornados ou outros desastres naturais, são designados nos países anglófonos por “Acts of God”, expressão que até há pouco tempo era frequentemente usada em cláusulas de contratos de companhias de seguros. Desde há cerca de um ano que são publicadas diariamente imagens de destruição semelhante à provocada por esses sismos, mas causada pela guerra que atualmente decorre na Ucrânia. Fotografias de bairros residenciais em cidades ucranianas como Bucha, Hostomel, Irpin, Borodyanka, Kramatorsk, Mariupol e muitas outras, vítimas de bombardeamentos, permitem detetar semelhanças entre a destruição causada por “Acts of God” e por “Acts of Putin”. O abalo telúrico mais forte do dia 6 de fevereiro, na Turquia, teve a magnitude de 7,8 da escala de Richter, ocorreu às 04:17, hora local, e foi seguido de poderosas réplicas. O epicentro localizou-se na zona de contacto entre as placas tectónicas da Anatólia e da Arábia, que por sua vez fazem fronteira com as placas Africana e Euroasiática. As cerca de meia centena de milhares de vítimas mortais deveram-se não só à violência dos sismos, mas também ao facto de ter ocorrido de madrugada e, principalmente, a defeitos estruturais da maioria dos edifícios. Nos países onde as regras antissísmicas são rigorosamente aplicadas, tal não sucederia. Por exemplo, no Japão, sismos de muito maior magnitude têm provocado um número de vítimas consideravelmente menor. O sismo mais forte que ocorreu neste país, em 11 de março de 2011, com a magnitude de 9,1 da escala de Richter, provocou diretamente cerca de 1.500 vítimas mortais no Japão, embora o tsunami por ele gerado tenha acrescido significativamente este número para cerca de 18.500, não só neste país, mas também em outros países da Ásia. Atendendo a que grande parte do território português se encontra numa área sísmica, esta tragédia deveria alertar os construtores civis para o cumprimento rigoroso das normas que a legislação contempla. A primeira regulamentação sobre o cálculo sísmico nas construções em Portugal foi aprovada em 1958 e atualizada em 1983. Estima-se que, na Área Metropolitana de Lisboa, cerca de 67% dos edifícios foram construídos antes de haver regulamentação antissísmica. Segundo especialistas, a legislação antissísmica vigente em Portugal é a adequada, mas a fiscalização é deficiente, o que leva a pressupor que, perante um sismo de grande magnitude, o número de vítimas poderá ser bastante elevado. Estima-se que o sismo de 1755 terá atingido a magnitude entre 8 e 9 da escala de Richter, embora não haja consenso sobre este valor. Classificando a intensidade deste sismo de acordo com a escala de Mercalli Modificada, ter-se-ia atingido os graus X ou XI. O maior sismo que afetou Portugal desde o de 1755, ocorreu em 28 de fevereiro de 1969 e foi despoletado na zona de contacto das placas tectónicas Africana e Euroasiática, a cerca de 220 km a sudoeste de Sagres, atingiu a magnitude 7,9 na escala de Richter. Repercutiu-se no território continental português com o grau VII da escala de Mercalli Modificada, tendo atingido em alguns locais o grau VIII. É conveniente relembrar que a escala de Richter é logarítmica e está relacionada com a magnitude dos sismos, ou seja, com a energia libertada, enquanto que a escala de Mercalli mede a gravidade das consequências sobre as pessoas, objetos, edifícios e meio ambiente. Enquanto a escala de Mercalli tem 12 graus expressos em números romanos, de I a XII, a escala de Richter teoricamente não tem limite superior, tendo sido o maior valor desta escala atingido aquando do sismo ocorrido em 22 de maio de 1960, no Chile (oficialmente designado por Grande Terramoto de Valdivia), com a magnitude de 9,5. Enquanto que escala de Richter é logarítmica e mede a magnitude, a escala de Mercalli é qualitativa e mede subjetivamente a intensidade dos sismos. Na escala de Richter, os diferentes valores obtêm-se calculando o logaritmo de base 10 da amplitude das ondas sísmicas. Isto implica que o aumento de um grau nesta escala corresponde a um aumento de 10 vezes da amplitude sísmica. Assim, por exemplo, tomando o valor 4 da escala de Richter como referência, ao valor 5 corresponde uma amplitude sísmica 10 vezes superior. Na escala de Richter, sismos de grau 1 são apenas detetáveis pelos sismógrafos e por alguns animais, enquanto que as pessoas não se apercebem dele. Os de grau 2 já provocam um pequeno tremor, que poderá ser sentido por algumas pessoas, outras só se apercebem a partir do grau 3. Em geral, só ocorrem danos em edifícios a partir do grau 6. Perante a tragédia que atingiu os povos da Turquia e da Síria, seria conveniente aproveitar estas ocorrências para pôr os governantes de sobreaviso, de forma a promover um acompanhamento e fiscalização mais eficientes no que se refere à aplicação rigorosa da regulamentação sobre o cálculo do risco sísmico dos edifícios. A sobrecarga financeira que tal implica seria altamente compensada pela diminuição drástica do número de vítimas.
Olavo Rasquinho VozesA indústria pecuária e as alterações climáticas Normalmente, quando se fala de alterações climáticas, o nosso pensamento associa-as imediatamente aos combustíveis fósseis (carvão mineral, petróleo, gás natural). Na realidade, a sua combustão liberta gases de efeito de estufa (GEE), os quais são a principal causa do aquecimento global e, consequentemente, das alterações climáticas. Os gases de efeito de estufa absorvem radiação emitida pelo sol (de pequeno comprimento de onda) e emitem radiação de grande comprimento de onda, na forma de calor, que aquece a Terra. Agem como se fossem um cobertor que envolve o globo terrestre. De uma maneira simplista, pode-se afirmar que o clima é caracterizado pelo comportamento médio dos fenómenos meteorológicos numa determinada região, durante um período de pelo menos de 30 anos, conforme recomendação da Organização Meteorológica Mundial. O conceito de clima é, no entanto, de tal maneira complexo, que até eminentes climatologistas se inibem em o definir. O Professor José Pinto Peixoto (1922-1996), o mais ilustre meteorologista e climatologista português, e um dos mais importantes a nível mundial, para ilustrar esta complexidade costumava afirmar, com um certo sentido de humor, «eu sei o que é o clima, mas se me pedirem para o definir eu não sei», numa alusão ao pensamento de Santo Agostinho quando se referia ao tempo nas suas “Confissões”: “Quid est ergo tempus ?/Si nemo ex me quaerat, scio/si quaerenti explicare uelim, néscio” (O que é o tempo?/ Se ninguém me perguntar, eu sei o que é/ Se me perguntarem e eu quiser explicar, eu não sei!). O sistema climático é composto pela atmosfera, hidrosfera, criosfera, litosfera e biosfera. A interação destas componentes, ativada pela energia solar, comanda o comportamento dos fenómenos meteorológicos e, consequentemente, do clima. Sendo a atmosfera a componente com ação mais direta neste sistema não é de estranhar que a alteração da sua composição se reflita no clima à escala global. Apesar dos esforços das Nações Unidas através das suas agências especializadas, que se traduzem nomeadamente no Protocolo de Quioto e em vinte e sete Conferências das Partes (Conferences of the Parties – COP), a realidade é que os valores da concentração do dióxido de carbono, o principal gás de efeito de estufa, em vez de diminuírem, têm aumentado. A concentração média de CO2 à escala global é atualmente aproximadamente 420 partes por milhão (ppm) enquanto que no início da era industrial era cerca de 280 ppm. Há cerca de 12 mil anos o homo sapiens deixou de ser nómada e passou a organizar-se em assentamentos que a pouco e pouco deram origem a aldeias, vilas e cidades. Deixando de praticar a atividade de recoletores-caçadores, os nossos ancestrais sedentarizaram-se e dedicaram-se à agricultura e à domesticação de animais selvagens, que passaram a ser explorados não só para alimentação, mas também para executar tarefas, como trabalhos agrícolas, transporte de pessoas e bens, etc. À medida que a população mundial tem vindo a aumentar, estas práticas também se intensificaram, o que levou à adaptação de terrenos de modo a torná-los próprios para a agricultura, resultando na destruição de florestas e, consequentemente, na diminuição da biodiversidade. No caso da Amazónia, o desmatamento está intimamente ligado à criação de pastagens para o gado bovino. O aumento da população fez também com que se procedesse à criação e abate intensivo de animais, o que se tornou numa gigantesca indústria. Embora não seja dada a mesma ênfase aos estragos que a pecuária provoca no ambiente, comparativamente aos combustíveis fósseis, a realidade é que essa indústria, devido à desflorestação, ao pastoreio intensivo e deterioração do solo em vastas regiões, é uma das principais causas da degradação do ambiente e do aquecimento global. Assim sendo, não se compreende a não tomada de medidas significativas no que se refere à reformulação dessa indústria. No entanto, na última Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade Biológica (COP15), logrou-se alcançar o Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal, em que se preconizam medidas que poderão levar ao corte de subsídios à pecuária intensiva. A indústria da carne implica a emissão de GEE, principalmente metano (CH4) e óxido nitroso (N2O), os quais são caracterizados por elevado potencial de aquecimento global. Para efeitos comparativos no que se refere à capacidade para contribuir para o aquecimento global, convencionou-se estabelecer o conceito “Potencial de Aquecimento Global” (Global Warming Potential – GWP) que nos permite avaliar a quantidade de calor que um GEE retém na atmosfera em comparação com o dióxido de carbono. Atribuindo ao dióxido de carbono o valor do Potencial de Aquecimento Global igual a 1, o GWP do metano e óxido nitroso são, respetivamente, cerca de 25 e 298. No entanto, a duração da permanência do metano na atmosfera é de cerca de dez anos, a do óxido nitroso mais de cem anos, enquanto que a do dióxido de carbono é superior a mil anos. Apesar de os GEE produzidos pela indústria pecuária não terem merecido tanta atenção por parte do IPCC como os produzidos pela combustão de combustíveis fósseis, a realidade é que a produção industrial de carne é responsável pela injeção na atmosfera de grandes quantidades de GEE. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization – FAO), 18% de todas as emissões dos gases do efeito estufa globais são provenientes da pecuária e a poluição causada por esta indústria tem grande impacto não só na atmosfera, mas também no solo e na água. Cerca de 60% dos gases gerados na produção de alimentos proveem da indústria da carne. Ainda segundo a FAO, para produzir 1kg de carne bovina são necessários aproximadamente 15.400 litros de água, recurso natural que está a tornar-se cada vez mais escasso. Estima-se que o consumo diário de uma pessoa que come regularmente carne é de cerca de 5.000 litros de água, enquanto que um vegetariano consome cerca de metade. Para que a atmosfera não sofra as consequências drásticas do aumento da concentração dos GEE, são necessários esforços não só no que se refere à diminuição drástica da utilização de combustíveis fósseis, mas também no sentido de restringir práticas relacionadas com a indústria pecuária. Para que tal se concretize, não compete apenas aos governos e às empresas pecuárias tomarem medidas nesse sentido, mas também a todos nós. A principal medida, além das que estão relacionadas com a redução do recurso aos combustíveis fósseis, poderá resumir-se ao seguinte: consumir menos carne e não contribuir para o desperdício de alimentos. Calcula-se que cerca de um terço dos alimentos é desperdiçado nos países avançados. Perante esta realidade, os governos deveriam inspirar-se na campanha lançada pelo Presidente da China, Xi Jinping, que considerou o hábito de desperdiçar comida como chocante e preocupante. Na sequência desta campanha alguns restaurantes agiram no sentido de diminuir o desperdício. Além da emissão de GEE, a indústria pecuária está associada à disseminação de doenças que afetam os humanos. São utilizadas quantidades exageradas de antibióticos a fim de se prevenirem doenças nos animais e acelerar o seu crescimento. Não se trata apenas de uma preocupação com a saúde animal, mas de medidas para aumentar a produtividade e, consequentemente, os lucros. Esta prática tem como consequência o aumento da resistência de bactérias que podem afetar a saúde dos que se alimentam de carne. A indústria pecuária implica também práticas nada éticas em relação ao bem-estar animal. É habitual, nos aviários, manterem-se as luzes acesas durante longos períodos para que os animais comam quase continuamente, contrariando o seu ritmo biológico. Em suma, comer menos produtos provenientes da indústria pecuária contribui não só para uma maior sustentabilidade do nosso planeta, mas também para a redução da propagação de doenças nos humanos como, por exemplo, obesidade, doença das vacas loucas, infeções causadas pelas bactérias E. Coli, MRSA, salmonela, etc. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesAs Nações Unidas e a luta contra a perda de biodiversidade Como tem vindo a ser alertado pelas Nações Unidas, as alterações climáticas e a degradação da biodiversidade são dois dos grandes problemas que afetam a sustentabilidade do nosso planeta. Perante esta realidade, a ONU organiza regularmente conferências das partes envolvidas (Conferences of the Parties – COP) com o intuito de atenuar ou até mesmo reverter as suas consequências. Talvez a mais conhecida destas conferências relativas às alterações climáticas seja a COP21, na qual foi alcançado o Acordo de Paris, em 2015. No que se refe à biodiversidade, realizou-se a 15ª COP, em Montreal, de 7 a 19 de dezembro de 2022. Considerada quase unanimemente um êxito pelos representantes de cerca de 190 países, esta conferência logrou atingir o chamado “Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal” (Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework). A COP15 para a biodiversidade realizou-se no âmbito das atividades da Convenção sobre a Diversidade Biológica (Convention on Biological Diversity – CBD), estabelecida em 1993, a qual tem como principal objetivo a tomada de medidas para a recuperação de ecossistemas naturais e evitar a perda acelerada da biodiversidade. Estava inicialmente prevista realizar-se em 2020 em Kunming, capital da província de Yunnan, na China, mas foi várias vezes adiada devido à pandemia COVID-19. Foi designado Presidente desta conferência o ministro da Ecologia e do Meio Ambiente da China, Huang Runqiu. A decadência vertiginosa do número de espécies animais e vegetais e a deterioração de ecossistemas naturais estão intimamente relacionadas com o aumento do número de habitantes do nosso planeta e consequente excesso de exploração agrícola, pesca, caça, desflorestação, uso exagerado de pesticidas, etc. Atualmente cerca de um terço dos terrenos estão degradados e aproximadamente um milhão de espécies correm risco de extinção. Para se ter uma ideia de como a população mundial tem aumentado, basta lembrar que se calcula que há cerca de 12 mil anos não excedia 5 milhões, em 2000 era de cerca de 6 mil milhões, atualmente é de 8 mil milhões e, segundo antevisão da ONU, será de 11,2 mil milhões em 2100. Por ser escassa a percentagem atual das áreas terrestres e marinhas protegidas, apenas cerca de 17% e 10% respetivamente, foram preconizadas medidas para serem aplicadas a médio e longo prazo, algumas das quais não agradarão certamente a certos setores da sociedade, atendendo a que foi decidido acabar com subsídios a atividades que ponham em perigo a preservação de determinadas espécies e ecossistemas. No Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal foram estabelecidas 23 metas a alcançar até 2030, e cinco objetivos até 2050. Das metas sobressaem as seguintes: – Mobilizar, junto a fontes públicas e privadas, pelo menos 200 mil milhões de dólares americanos por ano para financiamento de medidas de preservação e de recuperação da biodiversidade; – Assegurar que pelo menos 30% das áreas degradadas de ecossistemas terrestres, de águas interiores e costeiras e marinhas estejam efetivamente recuperadas; – Reduzir a quase zero a perda de áreas de grande importância para a biodiversidade; – Reduzir a metade o desperdício global de alimentos e reduzir significativamente o consumo excessivo e a produção de resíduos; – Reduzir a metade o excesso de nutrientes e o risco inerente ao uso de pesticidas e produtos químicos altamente perigosos; – Disponibilizar informação necessária aos consumidores para promover padrões de consumo sustentáveis; – Assegurar a participação plena e equitativa na tomada de decisões, sem descriminação de género, de pessoas com deficiência, povos indígenas e comunidades locais, e assegurar a proteção integral dos defensores dos direitos humanos ambientais. Os cinco objetivos, a alcançar até 2050, convergem no sentido da satisfação plena do preconizado nas 23 metas, na “Visão 2050 para a Biodiversidade” e no aumento progressivo do fundo para 700 mil milhões de dólares por ano. Ainda no que se refere à proteção da biodiversidade, os Estados Unidos da América (assim como Andorra, Iraque e Somália) não ratificaram a Convenção devido a razões de índole política. No entanto, os EUA têm manifestado uma atitude mais humana em relação a certas espécies animais do que alguns países que a ratificaram, como o Canadá, Dinamarca (Gronelândia), Japão, Noruega e Rússia, onde continua a ser permitido o aviltante abate de focas-bebés. Nos EUA esse tipo de caça é proibido, segundo a Lei de Proteção dos Mamíferos Marinhos (Marine Mammal Protection Act). As focas abatidas têm em geral menos de três meses, idade em que a sua pele é mais branca e macia, o que satisfaz as exigências da moda. É também oportuno recordar que a guerra na Ucrânia constitui não só um crime contra a humanidade, mas também contra a diversidade biológica. Milhares de animais selvagens e domésticos são vítimas de bombardeamentos indiscriminados. Estão também a decorrer graves atentados à biodiversidade no Mar Negro, onde deram à costa numerosos corpos de animais marinhos, vítimas das atividades dos navios russos. Segundo biólogos, a poluição sonora causada pelas manobras e disparos de mísseis nos navios de guerra e a radiação associada às emissões sonar provocam desorientação nos animais, o que os impede de se alimentar, além de lhes enfraquecer o sistema imunitário. Calcula-se que entre cinquenta mil e cem mil cadáveres de golfinhos deram recentemente à costa do Mar Negro, nas regiões de Odessa, Crimeia, Bulgária, Roménia e Turquia, vítimas da guerra ilegítima, ilegal e irracional que está a decorrer na Ucrânia. Também deram à costa russa, no mar Cáspio, milhares de cadáveres de focas. Segundo a organização conservacionista World Wildlife Fund (WWF) cerca de 20% das áreas protegidas da Ucrânia e 3 milhões de hectares de florestas foram afetados pela guerra. Oito reservas naturais e 10 parques nacionais permanecem sob controlo das tropas russas. Entretanto, a tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil, constitui fator de esperança no que se refere à recuperação da biodiversidade, na medida em que o Plano de Ação para Prevenção e Controlo do Desmatamento na Amazónia Legal, que esteve em vigor de 2004 a 2018, vai ser reposto, o que irá contribuir para a redução assinalável da desflorestação na maior floresta tropical do globo.
Olavo Rasquinho VozesOs Cem Anos de José Pinto Peixoto OS CEM ANOS DO PROFESSOR JOSÉ PINTO PEIXOTO Vem este texto a propósito dos cem anos do nascimento do cientista português mais conhecido internacionalmente na área da Meteorologia e da Climatologia. Se ainda estivesse entre nós, o Professor José Pinto Peixoto celebraria o seu centésimo aniversário em 9 de novembro de 2022. JPP ao longo do tempo JPP, como era conhecido pelos seus alunos, amigos e colegas, nasceu em 1922 em Miuzela, freguesia do concelho de Almeida, distrito da Guarda. A sua área de atuação era tão vasta, que não é fácil classificá-lo: meteorologista, climatologista, cientista, investigador, professor universitário, académico, humanista? Qualquer destas designações lhe assentam bem. METEOROLOGISTA A sua primeira ocupação profissional foi a de prever o tempo no então Serviço Meteorológico Nacional (SMN), do qual foi um dos fundadores. A formação em meteorologia foi inicialmente adquirida num estágio no Observatório Central Meteorológico do Infante D. Luís da Universidade de Lisboa (hoje Instituto Geofísico Infante Dom Luiz), em 1945/46. Antes, porém, em 1944, havia completado a licenciatura em Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A formação em meteorologia prosseguiu em 1947, ano em que frequentou o primeiro estágio para meteorologistas levado a cabo no SMN. Em 1948 frequentou a Universidade de Toronto e acompanhou as atividades de um serviço com mais de setenta anos de experiência, o Serviço Meteorológico do Canadá (fundado em 1871). Permaneceu no SMN desde a sua fundação (1946) até 1969, tendo desempenhado várias funções, nomeadamente meteorologista operacional em Lisboa (onde foi Chefe do Posto Central de Previsão do Tempo – PCPT), no Sal (Cabo Verde) e em Santa Maria (Açores), tendo vindo também a ser designado Diretor da Divisão de Estudos do SMN. Como chefe do PCPT procedeu à sua remodelação, introduzindo métodos modernos de análise e previsão do tempo, incluindo diagramas termodinâmicos para o estudo da estrutura vertical da atmosfera. Como diretor da Divisão de Estudos desenvolveu grande atividade como autor e orientador de numerosos trabalhos nas áreas da meteorologia e do clima, e na formulação dos conteúdos dos programas dos estágios para futuros profissionais de meteorologia, que estiveram na base da formação de várias gerações de meteorologistas. FACULDADE DE CIÊNCIAS E MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY Após ter terminado a licenciatura em Ciências Geofísicas (1952), ingressou nos quadros da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa como Assistente Extraordinário, encarregado da regência da cadeira de Meteorologia sem, contudo, ter quebrado os laços com o SMN. Em 1954, na sequência da atribuição de uma bolsa da Academia das Ciências de Lisboa, desenvolveu durante dois anos atividade na área da investigação no Departamento de Meteorologia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos da América, onde lhe foram atribuídos os títulos de Assistant Research Member e, mais tarde, o de Research Fellow no “Projeto da Circulação Geral da Atmosfera”. Deu também aulas teóricas em cursos pós-universitários do Departamento de Meteorologia do MIT e dirigiu os trabalhos de investigação relativos ao “Projeto das Circulações Planetárias”. No regresso a Portugal, em 1956, foi encarregado da regência das cadeiras de Termodinâmica e Elementos de Mecânica Estatística na Faculdade de Ciências de Lisboa. Apesar do seu trabalho não ter sido contínuo no MIT, foi-lhe atribuída, em 1957, a categoria de Staff Research Member. Em 1958, no âmbito do Ano Geofísico Internacional, colaborou ativamente no estudo do ciclo hidrológico à escala global e, nos anos sessenta e setenta do século passado, continuou a trabalhar no desenvolvimento de modelos de circulação geral. Foi considerado por Abraham Oort e Barry Saltzman, dois dos mais proeminentes cientistas americanos no estudo da meteorologia e do clima, como o maior especialista mundial do sistema hidrológico. A colaboração com o MIT contribuiu grandemente para a preparação da sua tese de doutoramento em Ciências Geofísicas, apresentada em julho de 1959 na Universidade de Lisboa, com o título “Contribuição para o Estudo da Energética da Circulação Geral da Atmosfera”, tendo-lhe sido atribuído por unanimidade o grau de “Doutor em Ciências Geofísicas”. Um dos elementos do júri, durante as provas de doutoramento, referindo-se à pretensão do MIT de que JPP viesse a integrar os seus quadros, teceu o comentário «eles estão à sua espera, com todo o seu poder tecnológico, e o senhor teima em ser português; só temos que lhe agradecer»[i]. Em maio de 1964 foi-lhe atribuído, por unanimidade, o título de Professor Agregado de Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, após a sua dissertação “Aplicação da Análise Espetral ao Estudo da Circulação Planetária da Atmosfera” e, em 1969, o de Professor Catedrático de Física, tendo ocupado esta cátedra até ser jubilado em 1992. Entretanto, durante uma das suas muitas deslocações a Massachusetts, em 1965, foi-lhe concedido pelo MIT o estatuto de Visiting Professor. Desempenhou as funções de Vice-Reitor da Universidade de Lisboa de 1969 a 1973 e foi nomeado Diretor do Instituto Geofísico em 1970, funções que desempenhou até 1996. No início da década de setenta declinou novamente o convite para ingressar nos quadros do MIT como professor porque, segundo ele, não só «tinha saudades cá da Pátria», mas também por ter sido convidado pelo então Ministro da Educação, Veiga Simão, para renovar o ensino da Meteorologia e da Geofísica em Portugal. CLIMATOLOGISTA Muito antes de as alterações climáticas serem um assunto recorrente nos meios de comunicação social, já JPP manifestava preocupação nessa área, através do livro de sua autoria “Influência do Homem no Clima e no Ambiente”. Também teve grande repercussão o seu livro “O Sistema Climático e as Bases Físicas do Clima”, ambos editados em 1987 pela Secretaria de Estado do Ambiente e dos Recursos Naturais. No entanto, a obra que lhe deu maior notoriedade em termos internacionais foi o livro “Physics of Climate”, em coautoria com Abraham Oort. Traduzida em mais de vinte línguas, esta obra, publicada pelo American Institute of Physics de Nova Iorque em 1992, refere-se ao clima como uma entidade com vida própria («… the climate is always evolving and it must be regarded as a living entity»). Nela se explica como os fenómenos ambientais interagem à escala global, recorrendo a uma abordagem integrada das componentes do sistema climático. “Physics of Climate” é ainda hoje, trinta anos depois da sua publicação, considerada de grande utilidade para estudantes e profissionais de meteorologia, climatologia, oceanografia e geofísica. INVESTIGADOR/ CIENTISTA JPP colaborou com o MIT durante quase 30 anos, embora de forma descontínua, em geral em períodos que abrangiam o Natal, a Páscoa e as férias de verão, de maneira a não prejudicar os seus alunos na Faculdade de Ciências de Lisboa. JPP desempenhou um papel importante como investigador, juntamente com outros cientistas do MIT, na investigação sobre modelos de circulação geral da atmosfera, que estiveram na base dos modelos atuais com os quais os centros mundiais de previsão do tempo elaboram as suas previsões meteorológicas à escala global. Segundo Barry Saltzman e Abraham Oort, a intensa colaboração de JPP com o MIT contribuiu grandemente para a formação de novas gerações de investigadores nas áreas do clima e da meteorologia. Quem conhecesse JPP apenas pelos seus trabalhos como cientista, podê-lo-ia imaginar como um indivíduo de cabelos compridos e revoltos, sorumbático, introvertido. Porém, na realidade, era exatamente o contrário. Com o cabelo cortado à escovinha, era extrovertido e extravasava boa-disposição. Era entusiasta, dinâmico, culto e bem-humorado. Como investigador, talvez o resultado mais espetacular do seu trabalho tenha sido a demonstração de que o deserto do Sara se comporta, tal como os oceanos, como uma fonte de vapor de água para atmosfera. Esta realidade foi corroborada pela constatação de que existe uma abundante quantidade de água subterrânea no Sara, em regiões abrangidas parcialmente pela Argélia, Líbia e Tunísia. Apesar de ter sido um dos cientistas de maior notoriedade do seu tempo, JPP não era um homem de certezas absolutas em relação à ciência. Baseado nas “Confissões” de Santo Agostinho, em que o santo se questionava sobre o que é o tempo (“Quid est ergo tempus[ii]?/Si nemo ex me quaerat, scio/si quaerenti explicare uelim, néscio”), JPP manifesta as suas dúvidas, escrevendo em latim, sobre o que é o clima: Quid est clima? (O que é o clima?) Si nemo a me quaerat, scio! (Se ninguém me perguntar, eu sei o que é!) Si quaerenti explicare velim, nescio! (Se me perguntarem e eu quiser explicar, eu não sei!) PRESIDENTE DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA Em 1980 foi designado Presidente da Classe de Ciências da Academia das Ciências de Lisboa e, de 1981 a 1995, foi eleito oito vezes Presidente, nos anos ímpares (nos anos pares a presidência era ocupada alternadamente pelos Presidentes da Classe de Letras). Nestas funções operou uma verdadeira revolução nas instalações, transformando salas degradadas em lugares acolhedores próprios para exposições e reuniões internacionais. Entre os muitos marcos importantes da carreira de JPP, conta-se a realização do simpósio comemorativo dos duzentos anos da Academia das Ciências, em 1981. As relações estreitas do Professor com investigadores de topo na área da Meteorologia e do Clima, permitiram que participassem eminentes cientistas, entre os quais Syukuro Manabe, que veio a ser um dos laureados com o Prémio Nobel da Física em 2021. Este evento teve grande repercussão nos meios científicos internacionais, tendo alcançado grande sucesso o livro “Theory of Climate”, editado em 1983 pela Academic Press, que consta de uma coletânea das comunicações nesse encontro internacional. Talvez influenciado pelas repercussões além-fronteiras das atividades da Academia, JPP gostava de afirmar, com o tom jocoso que o caracterizava, que «somos conhecidos dos Pirenéus para lá, mas ignorados de Vila Franca de Xira para cá». PROFESSOR Como professor tinha qualidades de comunicação extraordinárias, e a sua atitude para com os alunos sempre foi caracterizada como sendo de grande abertura. As aulas eram interativas e dinâmicas, de modo que os alunos eram frequentemente solicitados a dialogar com ele. Era hábito de JPP dirigir-se a alguns dos seus alunos, com os quais se sentia mais à vontade, dando-lhes uma pancada amigável no pescoço ou, durante as aulas, uns toques na cabeça com o ponteiro. Tal aconteceu comigo quando estava distraído numa aula de Meteorologia, depois de uma noite a trabalhar como “previsor” no Posto Central de Previsão do Tempo. «O amigo está a dormir!», e lá vai uma pancadinha com o ponteiro. Não procedia assim com todos, claro, na medida em que poderia haver reações desagradáveis de alguém que pudesse não gostar desse tipo de brincadeiras. Foi o caso, por exemplo, de um colega do SMN que, perante um carolo que lhe causou em certo incómodo, reagiu afirmando «com a idade que tenho nem o meu pai me bate!». Nas aulas ilustrava alguns dos conceitos da física com exemplos da vida do dia-a-dia, o que facilitava a sua assimilação: «A bica é o exemplo à mão do processo termodinâmico irreversível», ou (para ilustrar, dentro de certa medida, a equação da continuidade) «Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem» são exemplos dessa sua atitude. O seu bom-humor manifestava-se frequentemente recorrendo a chistes como, por exemplo, aquilo que ele chamava a Regra dos Três Pês: «Não há nada mais perigoso do que Professor novo, Prostituta velha e Pistola encravada». HUMANISTA Como humanista é de realçar a sua personalidade solidária com os que o rodeavam. Frequentemente se mostrava preocupado com o seu bem-estar, fossem eles familiares, colegas, alunos ou funcionários. É também de salientar a sua contribuição ao incentivar os jovens para seguirem o exemplo dos seus ancestrais mais ilustres, como aquando do lançamento do seu livro “Miuzela, a Terra e as Gentes”, obra de caráter intimista em ele relembra com saudade as figuras que marcaram a sua infância e manifesta o seu carinho pela terra onde nasceu. Nas suas muitas palestras não era raro mencionar pensamentos de figuras proeminentes que condiziam com a sua maneira de ser. É conhecida a citação de Sir Charles P. Snow, novelista e físico-químico inglês (1905-1980), autor do ensaio The two Cultures, por vezes invocada por JPP, «É tão pecado mortal para um elemento da Primeira Cultura (Humanidades) não saber a lei da entropia, como é, para um cientista (Segunda Cultura) não saber quem foi Shakespeare». Assim, como Charles Snow, JPP defendia a construção de pontes para aproximar os profissionais das duas áreas, com o objetivo de beneficiar a sociedade por meio do aprofundamento do conhecimento humano. CIDADÃO JPP teve uma educação religiosa, o que poderá ter contribuído para que, em termos ideológicos, possa ser caracterizado por um certo conservadorismo. Mais do que uma vez, quando casualmente nos encontrávamos, comentava, pondo o braço sobre os meus ombros, «o amigo é da sinistra…, mas da sinistra civilizada!» (Note-se que, em latim, língua que JPP dominava, “sinistra” significa “esquerda”). Numa outra ocasião, em pleno PREC, creio que em 1975, encontrei-o casualmente no aeroporto de Lisboa com “O Diabo” (conhecido jornal assumidamente de direita) debaixo do braço, e aparentemente constrangido terá afirmado que não era dele, mas de pessoa amiga que estava na bicha do check-in, ao que comentei que mesmo que o jornal fosse dele, ninguém teria nada a ver com isso, pois estávamos, finalmente, num país livre. JPP era caracterizado por uma inteligência muito acima da média, mas tinha por vezes dificuldade no desempenho de algumas tarefas comuns. Por exemplo, a sua habilidade para conduzir veículos não era das melhores. Assisti à dificuldade que ele enfrentou ao entrar com o seu automóvel (salvo erro, um Vauxhall), na larga entrada da Alameda das Palmeiras da então Faculdade de Ciências de Lisboa (atualmente Museu Nacional de História Natural e da Ciência). Tentou entrar com um ângulo inadequado, obrigando-o a fazer manobras em plena rua bastante movimentada. Recordo também de lhe ter dado boleia, a seu pedido, para a Cidade Universitária. Não se sentia, segundo ele, com disposição para enfrentar o trânsito. De acordo com testemunhos de colegas meteorologistas que com ele trabalharam operacionalmente, talvez por à previsão do tempo estar intrinsecamente associada alguma incerteza, JPP manifestava por vezes dificuldade na linguagem a usar nos boletins para informação do público. PRÉMIOS E OUTRAS HONRARIAS JPP foi galardoado com vários prémios, nomeadamente o Prémio Artur Malheiros das Ciências Físicas e Químicas da Academia das Ciências de Lisboa (1960); o Prémio Boa Esperança da Ciência e Tecnologia (1989), atribuído pela Junta Nacional de Investigação Científica (atual Fundação para a Ciência e Tecnologia); novamente o Prémio Boa Esperança (1992). Foi condecorado pelo Presidente Mário Soares com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago e Espada em 1993. Em sua homenagem, o seu nome foi atribuído a várias associações, bibliotecas, ruas, etc., nomeadamente: Associação Casa de Cultura Professor Doutor José Pinto Peixoto (Miuzela, Almeida); Centro de Documentação Pinto Peixoto (INMG-Lisboa); Biblioteca José Pinto Peixoto (Instituto Dom Luís da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa); Rua Professor Dr. José Pinto Peixoto (Porto Salvo, Oeiras); Residência Professor José Pinto Peixoto (Iscte – Instituto Universitário de Lisboa); Prémio Nacional José Pinto Peixoto – Ensino Secundário. Em 2003 foi-lhe erigida uma estátua, no Campo Grande, em Lisboa, frente à Faculdade de Ciências. O FECHAR DO CÍRCULO O Professor faleceu em 6 de dezembro de 1996, cerca de quatro meses depois de regressar às suas origens, onde apresentou o seu livro “Miuzela – a Terra e as Gentes”. NOTAS: Este artigo consta de um resumo do texto com o título “Os cem anos do Professor José Pinto Peixoto”, do mesmo autor, a publicar na Newsletter da Associação Portuguesa de Meteorologia e Geofísica (APMG) Agradecimentos a José Rui Amaral, Pedro Alves, Luís Pinto Coelho, Oliveira Pires e à equipa que preparou os números 5 e 6 da 3ª Série – 1987 de “Meteoro” (Boletim do Centro Cultural e Desportivo da Casa do Pessoal do Instituto de Meteorologia e Geofísica) [i] Segundo Mário F. Figueira, em “Meteoro” – Nº 6 da 3ª Série, março de 1987 [ii] Aqui a palavra “tempus” refere-se ao tempo mensurável pelo relógio, e não ao tempo meteorológico
Olavo Rasquinho Vozes42º Artigo – A meteorologia e a guerra da Crimeia As guerras, através da história da humanidade, têm sido a concretização de ódios fomentados por nacionalismos exacerbados ou grandes interesses, sejam eles económicos, religiosos ou outros. Apesar da desgraça e da morte, estão associados às guerras progressos assinaláveis no que se refere ao desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias. Melhor seria que não houvesse esse progresso tão rápido e que a evolução da ciência fosse mais lenta, tendo como finalidade apenas o bem-estar e a sustentabilidade do nosso planeta. Infelizmente não é assim, e desde que o homo sapiens aprendeu a arremessar pedras e a manipular utensílios, quer para fins defensivos, quer ofensivos, parte desse progresso resulta no aperfeiçoamento e no desenvolvimento de armas cada vez mais sofisticadas e destrutivas. A evolução tem sido de tal forma rápida que, mais do que uma vez num curto período de algumas dezenas de anos, a humanidade e o nosso planeta estiveram prestes a serem vítimas de um desencadear de acontecimentos que poderia levar à sua destruição. Foi o que aconteceu durante a crise dos mísseis em Cuba em 1962, e mais recentemente no decurso da corrente Guerra da Ucrânia. No caso desta última, ameaças sobre a utilização de armas nucleares têm vindo a ser manifestadas de forma implícita, e por vezes bem explícita, por responsáveis (eu diria irresponsáveis) altamente colocados na hierarquia do país agressor. Em contrapartida, a ciência avançou de tal forma que a esperança de vida aumentou significativamente nas últimas décadas. Numa área mais restrita, a ciência que trata do estudo das condições meteorológicas e da sua evolução espaciotemporal, a Meteorologia tem prestado incomensuráveis benefícios à humanidade. O caso que pretendo focar constitui um bom exemplo de como um episódio trágico na Guerra da Crimeia de 1853-1856 ilustra bem o aproveitamento de um evento altamente destrutivo para o avanço da Meteorologia. Vejamos então como se processou este evento e quais as suas consequências para o progresso na área da previsão do tempo. Antes, porém, foquemo-nos um pouco na história da Crimeia. Este território, que constitui uma república autónoma pertencente oficialmente à Ucrânia, consiste numa pequena península no sul deste país que separa o Mar Negro do Mar de Azov. Pela sua localização constitui um território de grande importância sob o ponto de vista estratégico, pois situa-se numa região que sofreu a influência de diferentes domínios, nomeadamente o Império Otomano e o Império Russo. Foi habitada por povos com características muito diversas, entre eles os cimérios, romanos, hunos, otomanos e tártaros. O Império Russo, com a czarina Catarina, a Grande, à sua frente, anexou a Crimeia em 1774, na sequência de uma guerra entre os Impérios Russo e Otomano. Em pleno século XX, mais precisamente em 1954, os dirigentes da URSS decidiram transferir a Crimeia da República Socialista Soviética da Rússia para a República Socialista Soviética da Ucrânia, o que foi considerado um ato simbólico de homenagem à amizade entre os povos das duas repúblicas. Nessa altura não era significativo que a Crimeia pertencesse à Rússia ou à Ucrânia, na medida em que ambas as repúblicas estavam sob a alçada do mesmo governo central, o governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Após o colapso da URSS, em 1991, e da proclamação da independência da Ucrânia no mesmo ano, desencadeou-se uma série de acontecimentos que fizeram com que a Crimeia fosse anexada pela Federação Russa, em 2014. Esta anexação até parece ter sido lógica, na medida em que a população da península era maioritariamente de origem russa, o que resultou do facto de que grande parte dos seus habitantes, na sua maioria tártaros, terem sido expulsos em 1944, na sequência das medidas tomadas por Estaline no sentido da deslocação de milhões de cidadãos de umas regiões da URSS para outras. Os autóctones passaram a ser uma minoria, uma vez que os tártaros que haviam sido expulsos e os seus descendentes só foram autorizados a regressar depois da Perestroica, razão pela qual a etnia russa passou a maioritária. A ocupação deu-se através de uma engenhosa invasão em que praticamente não foram disparados tiros, a seguir à qual foi feita uma consulta à população, boicotada pelas minorias ucraniana e tártara e considerada ilegal pela Assembleia-Geral da ONU de 27 de março de 2014. Na sequência do resultado deste plebiscito (95,5% no sentido da integração), a República da Crimeia e a cidade Sebastopol passaram a ser as 84ª e 85ª entidades federais da Federação Russa. Voltando à razão deste texto, foquemo-nos na Guerra da Crimeia de 1853-1856, que opôs o Império Russo à aliança constituída pelo Reino Unido, França, Império Otomano e o Reino da Sardenha. No decurso desta guerra, em 14 de novembro 1854, cerca de 40 navios da esquadra franco-anglo-turca foram afundados por uma forte tempestade no Mar Negro. Este acontecimento contribuiu grandemente para reforçar a ideia da necessidade da criação de um serviço meteorológico internacional, que tivesse como objetivo a observação e registo dos vários parâmetros meteorológicos em diferentes países, e a sua transmissão para os diferentes centros meteorológicos nacionais. Assim, estes poderiam acompanhar a formação, intensificação e percurso de eventuais tempestades, o que permitiria a tomada de medidas no sentido de atenuar as suas consequências. No caso concreto do naufrágio da armada franco-anglo-turca, poder-se-ia ter evitado a destruição de grande parte dos seus navios se essa prática já existisse nessa altura. Mediante este desaire, o astrónomo Urbain Jean Joseph Le Verrier (1811-1877) foi incumbido pelo Imperador Napoleão III de criar um serviço meteorológico em França (Service Météorologique de l’Observatoire de Paris) em 1854. Uma das primeiras tarefas deste serviço consistiu, em 1855, na recolha de valores de parâmetros meteorológicos (pressão atmosférica, temperatura, direção e velocidade do vento, nebulosidade, precipitação, etc.) registados por outros observatórios então existentes, referentes à data do naufrágio e a alguns dias antes. Le Verrier, através do traçado das isóbaras (linhas que unem pontos com igual pressão atmosférica) concluiu que se havia formado a noroeste da Europa, dois dias antes (12 de novembro), uma zona de baixas pressões que se deslocou para sueste, acabando por atingir a região do Mar Negro em que navegava a esquadra. As cartas traçadas por Le Verrier foram das primeiras cartas sinóticas, na sequência do que já havia sido tentado pelo físico alemão, Heinrich Wilhelm Brandes (1777-1834) que, segundo se consta, traçou a primeira carta sinótica no início da década 1820-1830. Cerca de 10 anos após o naufrágio começaram a ser publicados em França boletins com cartas meteorológicas. Na época em que Brandes viveu, ainda não era possível a transmissão em tempo real dos valores dos parâmetros observados, o que só passou a realizar-se a partir da invenção do telégrafo elétrico, em 1835, por Samuel Morse. No entanto, a troca de mensagens meteorológicas só passou a ser feita de forma mais expedida a partir de 1896, ano do registo da descoberta da telegrafia sem fios (TSF) que se deve, entre outros, a Guglielmo Marconi. Alguns dias antes do trágico naufrágio, iniciou-se em Portugal o funcionamento do Observatório Meteorológico do Infante D. Luís (OMIDL), na então Escola Politécnica de Lisboa, em 1 de outubro de 1854. A partir desta data passaram-se a registar observações meteorológicas em Lisboa sem interrupção. O Professor Guilherme Pegado, natural de Macau, foi o grande impulsionador da criação deste observatório, podendo por isso ser considerado o fundador da meteorologia de Estado em Portugal. O Serviço Meteorológico Nacional só foi criado cerca de 92 anos mais tarde, em 1946, o qual resultou da fusão de uma série de serviços departamentais não coordenados entre si. O SMN deu origem mais tarde ao Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG), Instituto de Meteorologia (IM) e ao atual Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Apesar de a Guerra da Crimeia 1853-1856 ter sido uma tragédia que se estima ter custado cerca de 650.000 vidas, um dos episódios que a caracterizou serviu de incentivo à criação do Service Météorologique de l’Observatoire de Paris, em 1854, e mais tarde a uma organização internacional com a missão de coordenar, a nível mundial, as atividades relacionadas com o tempo, o clima e os recursos hídricos. Esta veio a designar-se por Organização Meteorológica Mundial, agência especializada das Nações Unidas. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesOs Mártires da floresta Amazónica Estamos habituados relacionar a Amazónia com o Brasil mas, na realidade, trata-se de uma vasta floresta tropical que se estende por territórios de nove países. É certo que a maior parte se distribui pelo Brasil (cerca de 60%) e Colômbia (cerca de 13%), estendendo-se os restantes 27% pela Venezuela, Equador, Bolívia, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. O termo Amazónia provém do nome do rio Amazonas que, por sua vez, adquiriu esta designação a partir do pressuposto que foram avistadas guerreiras nas suas margens, as quais foram comparadas às amazonas da mitologia grega pelo explorador espanhol Francisco de Orellana, que navegou pelo rio desde os Andes até ao Atlântico, tendo atingido a foz em agosto de 1542. O sistema climático (composto por atmosfera, litosfera, criosfera, hidrosfera e biosfera) depende grandemente de uma das suas componentes, a biosfera, na qual estão inseridas as florestas. A Amazónia desempenha um importante papel no que se refere à atenuação das alterações climáticas, na medida em que se trata da mais vasta floresta tropical, abrangendo uma área de cerca de 5,5 milhões de km2. Constitui uma fonte de oxigénio para a atmosfera e um sumidouro de dióxido de carbono, contribuindo assim para a atenuação da concentração dos gases de efeito de estufa produzidos pelas atividades antropogénicas. Acontece, porém, que está a ser alvo de atentados perpetrados pelos humanos, muito mais intensos desde que a administração do Brasil é chefiada por Jair Bolsonaro. De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazónia (Ipam), a desflorestação da floresta amazónica em território brasileiro aumentou cerca de 56% de 2016-2018 para igual período de 2019-2021 (respetivamente de 20.911 km2 para 32.740 km2), correspondendo este triénio aos primeiros anos do governo atual do Brasil. Estes valores foram obtidos com recurso a satélites pelo insuspeito Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), cujo diretor, Ricardo Galvão, foi demitido por Bolsonaro em 2019 pelo facto de ter permitido a divulgação destes dados. A desflorestação para exploração da madeira e os incêndios, tendo em vista a exploração agropecuária, têm como implicação a aproximação cada vez maior do ponto de não retorno da capacidade de regeneração da Amazónia, que poderá vir a transformar-se numa imensa savana. Portanto, existe o risco desta floresta passar de sumidouro do dióxido de carbono da atmosfera para uma fonte deste gás. O risco desta inversão do papel da floresta poderá contribuir para o aquecimento global e tornar mais difícil o caminho para o combate às alterações climáticas. Além disso, a destruição de que está a ser alvo contraria os direitos dos povos autóctones, expressos na constituição do Brasil de 1988, em que é reconhecido o facto histórico que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil e, como tal, têm o direito a ocupar a terra onde nasceram. Devido à riqueza que encerra, a Amazónia tem sido alvo de frequentes atentados motivados pela ganância, nomeadamente de garimpeiros, agricultores, caçadores e pescadores sem escrúpulos. Contra estas atividades, frequentemente ilegais, têm-se levantado vozes de ativistas, o mais célebre dos quais foi Francisco Alves Mendes Filho. Chico Mendes, como era conhecido, nasceu em 1944 e foi assassinado em 1988, em Xapuri, no Estado do Acre. Na altura em que desenvolvia a sua atividade, o conceito de “alterações climáticas” não era ainda tão popular como nos nossos dias. Apesar disso, pode-se considerar Chico Mendes como um dos pioneiros das lutas contra essas alterações. Foi uma das vozes que mais se fez ouvir, nas décadas de setenta e oitenta do século passado, em defesa dos seringueiros da Bacia do Amazonas cuja subsistência dependia da floresta amazónica. Na qualidade de sindicalista lutou contra a destruição da floresta e em defesa dos povos indígenas, o que não foi do agrado dos grandes fazendeiros que pretendiam destruir grandes extensões de arvoredo para as substituir por pastagem para gado. Chico Mendes, assassinado em 1988 Muitos outros ativistas foram também vítimas da ganância de grandes fazendeiros. A missionária norte-americana Dorothy Stang teve o mesmo destino de Chico Mendes: foi assassinada no Estado do Pará, em 2005, a soldo de madeireiros e proprietários de terras. Dorothy Stang, assassinada em 2005 Também no Pará, em 2011, foram assassinados os cônjuges José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, ambos defensores da floresta, vítimas de interesses de madeireiros e criadores de gado. Os executores do assassinato deste casal foram condenados, mas os mentores, por falta de provas, continuam em liberdade. José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinados em 2011 Ainda em 2011, em Porto Velho, capital da Rondónia, foi assassinado Adelino Ramos, ativista do direito à terra, após denúncia de exploração ilegal de madeira. Adelino Ramos, assassinado em 2022 Segundo o Relatório da ONG Global Witness, referente a 2019, houve neste ano 24 assassinatos relacionados com ativismo em defesa do ambiente em território brasileiro, 90% dos quais ocorreram na Amazónia. Quase todas as vítimas lutavam contra a desflorestação, em grande parte causada por grandes projetos relacionados com a agricultura e a extração mineira. Os defensores da Amazónia tiveram recentemente mais um rude golpe. O jornalista britânico Dom Phillips e o antropólogo e indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira foram assassinados em junho de 2022, em plena Amazónia. Dedicavam-se ambos a investigar atividades ilegais que constituíam verdadeiros atentados à natureza, nomeadamente às comunidades indígenas e à biodiversidade. Dom Phillips trabalhava para várias publicações de grande prestígio, como o Financial Times, The Washington Post, The New York Times e The Guardian. Era também colaborador da Fundação Oswaldo Cruz, instituição de grande prestígio internacional, com atividades nas áreas da saúde, desenvolvimento social, promoção e difusão do conhecimento científico. Segundo o The Guardian, Phillips estava a escrever um livro na área do desenvolvimento sustentável que teria o título “Como Salvar a Amazónia”. Dom Phillips e Bruno Pereira, assassinados em 2022 Bruno Pereira, profundo conhecedor da vida indígena, ajudava Dom nas entrevistas a membros das comunidades amazónicas. Sob pressão de interesses ligados à exploração da floresta, foi exonerado das suas funções como indigenista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) pela administração de Jair Bolsonaro, em 2019. De acordo com dirigentes das comunidades indígenas, Bruno Pereira já havia sido ameaçado por garimpeiros, pescadores e madeireiros. Ambos regressavam de uma visita à Amazónia brasileira nas vizinhanças do Peru e Colômbia. Além destes assassinatos, muitos outros ocorreram, tendo sido a maioria das vítimas membros anónimos das comunidades indígenas. De acordo com uma declaração da Universidade Federal da Baía sobre os assassinatos de ativistas defensores do ambiente, datada de 16 de junho de 2022, o aumento da violência na Amazónia é atribuído ao desmonte de órgãos e políticas públicas de proteção do meio ambiente e ao não reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. A melhor homenagem que se pode prestar a Bruno Pereira, Dom Phillips e a todos que foram vítimas dos interesses ligados aos exploradores sem escrúpulos da Amazónia, é continuar a luta pela responsabilização dos mandantes dos atentados, exigir do Governo do Brasil o reconhecimento dos direitos dos povos autóctones, conforme o estabelecido pela Constituição de 1988, zelar pela manutenção da biodiversidade e proceder à exploração dos recursos naturais de forma sustentável.
Olavo Rasquinho VozesDeclaração de Lisboa sobre os oceanos A temperatura da atmosfera e dos oceanos continua a aumentar, as calotas polares, os glaciares e o gelo marítimo estão a fundir e, como consequência, o nível médio do mar sobe e a erosão costeira intensifica. Além disso, a acidez dos oceanos tem aumentado, o que afeta numerosos ecossistemas oceânicos, entre os quais os bancos de corais, de grande importância para a manutenção da biodiversidade marítima, na medida em que a sua degradação dificulta a reprodução de numerosas espécies piscícolas. Por outro lado, o uso indiscriminado do plástico tem tido como consequência a poluição dos oceanos de tal maneira que já foram detetados vestígios na zona oceânica mais profunda, a fossa das Marianas, no Oceano Pacífico, a uma profundidade de cerca de 11.000 metros. Segundo cálculos das Nações Unidas, os oceanos são recetáculo de cerca de onze milhões de toneladas por ano de material plástico. A situação é de tal maneira grave que partículas ínfimas de plástico já entraram na cadeia alimentar humana. Também o uso exagerado de adubos e pesticidas nas explorações agrícolas contribuem para a poluição dos oceanos, devido ao arrastamento de produtos químicos para os rios que, por sua vez, os transportam para o mar, afetando a fauna e a flora. As Nações Unidas, ciente de que são as atividades humanas a causa principal da degradação dos oceanos, designou o período 2021-2030 por “Década da Ciência dos Oceanos para o Desenvolvimento Sustentável”. Na cimeira da ONU, realizada em 2015 em Nova Iorque, foram estabelecidos 17 objetivos, inseridos na “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, a qual foi formulada com o intuito de erradicar a pobreza até 2030, e proceder ao desenvolvimento económico, social e ambiental, à escala global. O 14º destes objetivos consiste em “conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marítimos para o desenvolvimento sustentável”. Com a finalidade de contribuir para a implementação deste objetivo foi organizada, por Portugal e Quénia, a Segunda Conferência dos Oceanos da ONU, que decorreu em Lisboa, de 27 de junho a 1 de julho de 2022, sob o tema “Salvar os Oceanos, Proteger o Futuro”. Este encontro veio na sequência da primeira conferência que se realizou em Nova Iorque, em 2017, com a finalidade de contribuir para os esforços, à escala global, para a preservação dos oceanos. Estiveram presentes no encontro de Lisboa cerca de 6.700 participantes de 159 países, entre os quais 15 Chefes de Estado, um Vice-Presidente e 124 ministros. Na cerimónia de abertura da conferência, António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, frisou que hoje enfrentamos o que ele designou por “Emergência do Oceano”, e que é altura de alterarmos o nosso comportamento. Os oceanos, rios, lagos, mares e águas subterrâneas, compõem a hidrosfera, a qual, juntamente com a atmosfera, criosfera, litosfera e biosfera constituem o sistema climático. É na superfície dos oceanos, que ocupa cerca de 70% da área do globo, nas regiões compreendidas aproximadamente entre 7 e 30 graus de latitude, em ambos os hemisférios, que se formam os ciclones tropicais (exceto no Atlântico Sul). Estas tempestades, quando se desenvolvem e progridem para latitudes mais altas, transportam energia, o que contribui, conjuntamente com as correntes marítimas, para o equilíbrio do sistema climático. Por outro lado, desenvolvem-se ecossistemas, no seio dos oceanos, que contribuem para a mitigação das alterações climáticas e abastecem a humanidade de recursos alimentares, minerais e energéticos, imprescindíveis para o bem-estar e o desenvolvimento económico da humanidade. Foram os seguintes alguns dos principais assuntos tratados nesta conferência: – O papel dos oceanos na mitigação e adaptação climática; – Preservação da biodiversidade e estabelecimento de instrumentos vinculativos sobre o combate à poluição causada pelo uso abusivo do plástico; – Desenvolvimento de ações de proteção da biodiversidade; – Combate à pesca ilegal, não declarada e não regulamentada, com recurso a ferramentas tecnológicas para monitorização e vigilância; – Aperfeiçoamento dos dados sobre o ambiente marinho e sua divulgação e partilha; – Criação de sinergias e parcerias a níveis nacional e regional, incluindo o envolvimento do setor privado, promovendo oportunidades inovadoras de financiamento para reforçar ações para o desenvolvimento sustentável dos oceanos. A Conferência culminou com a aprovação do texto “O nosso oceano, o nosso futuro, a nossa responsabilidade”, abreviadamente designado por “Declaração de Lisboa”. Espera-se que a Declaração de Lisboa contribua para inverter a situação de degradação dos oceanos, através da cooperação internacional e do estabelecimento de recomendações que, apesar de não serem vinculativas, poderão servir de base para que os países tomem as medidas necessárias para o efeito. Apesar dos esforços da ONU, o conteúdo da Declaração de Lisboa não foi tão longe quanto se pretendia. Foi, no entanto, mais um marco na luta, que se prevê longa, contra as alterações climáticas e a perda da biodiversidade dos oceanos. Na cerimónia de encerramento da Conferência, Peter Thomson, representante de António Guterres, apresentou um pedido de desculpas às gerações mais jovens pela forma como o nosso planeta foi usado e prometeu que a ONU continuará a identificar as soluções para ultrapassar os problemas criados pelas atividades humanas, tendo também manifestado o compromisso de se continuar a identificar soluções para sair dos terríveis problemas criados. A próxima conferência, que se realizará em 2025, será organizada conjuntamente pela França e Costa Rica.
Olavo Rasquinho VozesA guerra na Ucrânia e o ambiente O mundo está a sofrer uma tripla crise: o clima em degradação, a pandemia da Covid-19 e a guerra da Ucrânia. Poder-se-á perguntar: de quem será a culpa? Muito provavelmente do homo sapiens (homem sábio, em latim) que de sábio parece não ter muito. A natureza tem vindo a ser agredida pelos gases de efeito de estufa, produto das atividades desse tal homo sapiens, e a pandemia também parece ter sido causada pela interferência humana na natureza selvagem. E quanto à guerra da Ucrânia, não restam dúvidas nenhumas, mais uma vez o desrespeito pelas regras que deviam regular a convivência entre as nações foram desrespeitadas. Desde 24 de fevereiro de 2022, as alterações climáticas e a pandemia passaram a segundo plano nas atenções dos meios de comunicação social. Apesar das perspetivas em relação às alterações climáticas continuarem a ser grande preocupação a nível global, e de a Covid-19 ainda não estar debelada, os dirigentes do mais extenso país do mundo desencadearam um ato de agressão, sob o pretexto de uma manobra de antecipação perante a ameaça de um outro país, muito mais fraco em termos de poderio militar. Não serviu de atenuante o facto de muitos nacionais de ambos os países terem fortes laços familiares de um e outro lado da fronteira e de haver traços comuns em ambas as culturas e história. O primeiro Estado eslavo, designado por Rússia de Kiev, fundado no século IX, abrangia grande parte das atuais Rússia e Ucrânia. À Rússia de Kiev sucedeu o Estado Moscóvia, que empreendeu, em meados do século XVIII, a reunião de principados russos dispersos, dando origem ao Império Russo, que vingou entre 1721 e 1917. Pedro o Grande, o primeiro imperador, segundo consta, é o grande ídolo do atual presidente da Federação Russa, o qual, saudoso da União Soviética, parece querer constituir um império com a extensão da URSS, cujo desaparecimento foi por ele classificado como a pior tragédia do século XX, esquecendo-se de calamidades como a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Genocídio Arménio perpetrado pelo Império Turco-Otomano (1914-1923), a Grande Fome que assolou Ucrânia nos anos trinta (Holodomor, 1932-1933) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), durante a qual ocorreu o Holocausto. O cristianismo ortodoxo é, ainda hoje, a religião predominante em ambos os países, embora tivesse havido recentemente uma cisão entre as Igrejas Ortodoxas Ucraniana e Russa, acabando com uma união que datava de 1685. Apesar de o próprio presidente da Federação Russa ter afirmado que a Ucrânia é, não só uma parte inalienável da história e cultura da Rússia, mas também seu espaço espiritual, tal não impediu que o povo ucraniano visse as suas cidades bombardeadas indiscriminadamente, e se tornasse vítima de uma guerra não declarada, ilegal e ilegítima. Milhares de vítimas civis, milhões de deslocados internamente e de refugiados são o resultado desta barbaridade, que ainda está longe de terminar. Estranhamente, esta guerra foi abençoada por Cirilo, Patriarca de Moscovo e toda a Rússia e Primaz da Igreja Ortodoxa Russa. Conforme se expressou na liturgia de 6 de março de 2022 (designado por Domingo do Perdão), seria necessário ajudar os dissidentes de Donbass, onde, segundo ele, ocorria um “genocídio” desde 2014. Também afirmou “… esta guerra é contra aqueles que apoiam os homossexuais, como o mundo ocidental, e tentaram destruir o Donbass apenas porque esta terra opõe uma rejeição fundamental aos chamados valores oferecidos por quem reivindica o poder mundial”. Ainda segundo Cirilo, “a guerra não é fisicamente, mas sim metafisicamente importante”. Acontece, porém, que os que têm sido fisicamente eliminados nesta tragédia não são vítimas metafísicas, mas sim bem reais. Apesar de a atitude dos dirigentes da Federação Russa ser denunciada diariamente, não cessam os ataques a infraestruturas civis, entre elas bairros densamente habitados, centros médicos, armazéns de cereais, jardins infantis, escolas, universidades, igrejas, teatros, museus, hospitais, maternidades, etc. A autocracia que reina em Moscovo insiste na política de terra queimada, transformando cidades inteiras em destroços, o que seria inimaginável em pleno século XXI. Antes já o mundo assistira perplexo à destruição massiva de cidades inteiras na Síria, como Alepo, pelo regime sírio coadjuvado pelas tropas russas, nunca imaginando que algo de semelhante poderia ocorrer de novo na Europa. Perante a estupefação do mundo democrático, vemos, quase em tempo real, reportagens sobre o bombardeamento de cidades como Mariupol, Irpin, Busha e Borodyanka, entre tantas outras. É também estranho é que a Federação Russa, país que assinou há escassos anos (1915) o Acordo de Paris para as alterações climáticas, está completamente indiferente ao facto de, com esta guerra absurda, estar a fugir ao compromisso assumido perante a ONU, através das respetivas NDCs (Nationally Determined Contributions), segundo as quais se havia comprometido reduzir 30% das emissões de gases de efeito de estufa, até 2030, relativamente aos níveis de 1990. Uma das consequências desta guerra irracional, estúpida, ilegítima e ilegal, além dos milhares de mortos e milhões de deslocados e exilados, será uma maior degradação do ambiente, o qual decerto sofrerá com a poluição resultante da combustão de milhares de toneladas de combustíveis fósseis utilizados na guerra, assim como com a utilização de minas indiscriminadamente espalhadas não só em áreas urbanas, mas também rurais, onde o cultivo de cereais faz da Ucrânia uma espécie de celeiro do mundo. A Federação Russa está também a fugir ao acordo assumido pela maioria dos governos do mundo durante a Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente, em 2017, que teve como objetivo combater o impacto generalizado da poluição no nosso planeta, trabalhando em conjunto para um mundo livre de poluição, nomeadamente no que se refere à qualidade do ar, da água e do solo. O ambiente na Ucrânia está a ser agredido de tal forma, que pode comprometer a saúde pública e animal nos tempos mais próximos. O impacto de milhares de bombas são um verdadeiro atentado à natureza, provocando crateras no solo, libertação de metais pesados e produtos químicos tóxicos que, espalhados na atmosfera, arrastados pelo vento, e infiltrando-se no solo, rios e lençóis freáticos, prejudicam florestas e campos de cultivo. Em termos ambientais, as repercussões desta guerra far-se-ão sentir não só na Ucrânia e regiões vizinhas, mas também em lugares longínquos. Por exemplo, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, num “tweet” datado de 2 de março de 2022, expressou a opinião de que a guerra na Ucrânia pode constituir um risco para o Brasil, na medida em que acentua a necessidade de se explorar reservas mineiras para extração de potássio, elemento que está na base da fabricação de fertilizantes. Acontece, porém, que parte destas reservas estão em territórios indígenas da Amazónia. Serviu de base para esta pretensão o facto de a Federação Russa ser o principal fornecedor de fertilizantes do Brasil, que importa mais de 90% deste produto para uso na agricultura e que, devido à guerra na Ucrânia e às respetivas sanções, poderá ter muitas dificuldades na sua aquisição. A exploração mineira deste elemento poderá implicar a construção de novas estradas em plena Amazónia, o que forçosamente implicaria maior degradação do solo e dos recursos hídricos em áreas protegidas e, por arrastamento, um perigo para o ambiente, biodiversidade e populações indígenas. Tal pretensão, a ser concretizada, provocaria maior insatisfação das tribos que vivem nesses territórios, o que muito provavelmente se refletiria em desassossego social, o que já está a acontecer através de manifestações que têm vindo a ser realizadas pelos representantes das tribos amazónicas, em protesto contra a desflorestação que se tem vindo a acentuar desde que Bolsonaro foi eleito presidente. Esta exploração de potássio, em plena floresta, iria piorar grandemente a situação ambiental, que já está a ser vítima de cerca de vinte mil garimpeiros que exploram ilegalmente as terras protegidas por lei, na Amazónia, com especial incidência no nordeste do Brasil, onde ouro e diamantes são extraídos sem grandes preocupações no que se refere à poluição dos rios e subsolo. Teme-se, também, que a guerra na Ucrânia venha a provocar maior desflorestação em determinadas regiões da Ásia, como as abrangidas pela Indonésia e Malásia, onde já extensas zonas de floresta tropical, habitat de espécies em via de extinção, foram substituídas pela plantação de palmeiras da espécie elaeis guineensis, cujo fruto está na base da produção do óleo de palma. Isto porque se prevê que vá escassear a produção e exportação de óleo de girassol, de que a Ucrânia e a Federação Russa são grandes produtores. Consequentemente, irá aumentar o preço dos outros óleos vegetais, inclusive do óleo de palma, o que será um incentivo para que os produtores expandam as suas culturas, o que implicará mais desflorestação. Além das consequências ambientais, já se teme a fome generalizada em vastas regiões do globo, devido ao bloqueio dos portos ucranianos do Mar Negro. Por exemplo, o Governo de Cabo Verde, segundo o periódico cabo-verdiano “A Nação”, estima que o número de pessoas com insegurança alimentar quadruplicou em relação à média, em Cabo Verde, podendo ser afetadas cerca de 43 mil pessoas, ou seja, 10% da população. Sob o pretexto duma pretensa “desnazificação”, os governantes da Federação Russa conceberam e estão a executar um plano de destruição de um país. O que está a acontecer na Ucrânia, com a destruição massiva de infraestruturas indispensáveis à vida normal de uma nação, e os incontáveis crimes de guerra que estão a ser perpetrados, aproxima-se muito do conceito de genocídio. Também estão a ser deliberadamente praticados atos que prejudicam gravemente o ambiente de uma maneira extensa e duradoura, o que já está ser classificado por alguns defensores do meio ambiente como “ecocídio”.
Olavo Rasquinho VozesAlterações climáticas 2022 – Mitigação das alterações climáticas Foi dado a conhecer, em conferência de imprensa datada de 4 de abril de 2022, o conteúdo do relatório do Grupo de Trabalho III do IPCC, cujo resumo para os decisores políticos se intitula “Alterações Climáticas 2022: Mitigação das Alterações Climáticas” (Climate Change 2022: Mitigation of climate change). Ficou, assim, completa a missão dos três grupos de trabalho, no que se refere à elaboração do Sexto Relatório de Avaliação (AR6) das Alterações Climáticas, estando previsto para setembro de 2022 a publicação do Relatório Síntese (AR6 Synthesis Report – SYR), o qual constará de um resumo dos relatórios dos três Grupos de Trabalho e dos três relatórios especiais elaborados no sexto ciclo de avaliação das alterações climáticas. Esta parte do Sexto Relatório de Avaliação reflete não só as novas conclusões constantes nos vários trabalhos dos cientistas que colaboram com o IPCC, mas também a contribuição do Grupo de Trabalho III para o Quinto Relatório de Avaliação (AR5), e as dos Grupos de trabalho I e II para o AR6, assim como dos três relatórios especiais. Além dos 6 relatórios regulares, que foram publicados com um intervalo aproximado de seis anos, o IPCC elaborou três outros relatórios especiais, sobre assuntos específicos: “Aquecimento Global de 1,5 °C” (2018), que trata dos impactos do aquecimento global de 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais; “Alterações Climáticas e o Solo” (2019), sobre alterações climáticas, desertificação, degradação e gestão sustentável dos solos; “Oceano e Criosfera num Clima em Mudança” (2019), sobre os efeitos das alterações climáticas nos mares, gelo marítimo e calotas polares. Na elaboração desta parte do AR6 estiveram envolvidos 869 especialistas de 65 países, entre os quais se contam autores, coordenadores e revisores. Foram consultados, ao todo, cerca de 18 000 trabalhos na área das alterações climáticas. Nas edições do “Hoje Macau” de 15 e 16 de setembro de 2021 e 7 de abril de 2022, tivemos a oportunidade de abordar as contribuições, para o AR6, dos grupos de trabalho I (“Física como ciência base”) e II (“Impactos, adaptação e vulnerabilidade”). Falta agora debruçarmo-nos sobre o relatório do Grupo de Trabalho III – “Mitigação das Alterações Climáticas”. Esta parte do AR6, além da “Introdução e Enquadramento”, consta essencialmente de quatro partes: “Desenvolvimentos recentes e tendências atuais”; “Transformações do sistema para limitar o aquecimento global”; “Ligações entre mitigação, adaptação e desenvolvimento sustentável” e “Fortalecimento da resposta às alterações climáticas”. Entre as conclusões do GT III, no que se refere a desenvolvimentos recentes e tendências atuais, realça-se que a média anual das emissões antropogénicas de gases de efeito de estufa (GEE) continuaram a aumentar na década 2010-2019, tendo as áreas urbanas contribuído grandemente para esse efeito. Houve, no entanto, uma diminuição da taxa de crescimento dessas emissões em relação à década anterior. Por outro lado, têm vindo a diminuir significativamente os preços, cerca de 85%, dos custos das energias solar e eólica, assim como das baterias, o que constitui um incentivo para o investimento na área das energias renováveis. Também se verifica que cada vez mais governos têm legislado no sentido da diminuição da taxa de desflorestação, do aumento da eficiência energética e sobre o desenvolvimento das energias renováveis. Porém, na prática, nem sempre esta legislação tem sido aplicada de maneira eficiente. Também se antevê que as emissões globais dos GEE, de acordo com o estipulado nas NDCs anunciadas antes da COP26 (2021), implicariam um provável aquecimento superior a 1,5 °C até ao fim do século XXI, e que a provável limitação do aquecimento abaixo de 2 °C dependeria de uma rápida aceleração dos esforços de mitigação. (Entende-se por NDCs – Nationally Dertermined Contributions – os planos que constam das ações previstas para a redução das emissões dos GEE e medidas de adaptação às alterações climáticas, como contributo nacional para se atingir as metas globais estabelecidas no Acordo de Paris). Na parte referente a “Transformações do sistema para limitar o aquecimento global”, prevê-se que é superior a 50% a probabilidade de que as emissões globais de GEE atinjam o pico antes de 2025, com base em projeções obtidas com modelos que limitam, até ao fim do século XXI, o aquecimento global a 1,5 °C. A probabilidade de se atingir o pico de emissões antes de 2025 passará a ser superior a 67%, de acordo com os resultados dos modelos que limitam o aquecimento global a 2 °C. Também se antevê que, sem um fortalecimento das políticas além das implementadas até o final de 2020, as emissões de GEE podem aumentar para além de 2025, levando a um aquecimento global médio de 3,2 °C até ao fim do século XXI. (Note-se que o aquecimento global tem como referência a temperatura média global entre 1850 e 1900). Na parte referente a “Ligações entre mitigação, adaptação e desenvolvimento sustentável”, constata-se que as ações significativas tendo em vista a mitigação e adaptação aos impactos das alterações climáticas são fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Os objetivos estipulados na Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, deverão ser usados como base para avaliar a ação climática no contexto da sustentabilidade. Note-se que o objetivo nº 13 desta Agenda consiste em “Tomar medidas urgentes no combate às alterações climáticas e seus impactos” (Goal 13 – Take urgent action to combat climate change and its impacts). Constata-se também que existe uma forte ligação entre desenvolvimento sustentável, vulnerabilidade e riscos climáticos, e que, recursos económicos, sociais e institucionais limitados implicam frequentemente grande vulnerabilidade e pouca capacidade adaptativa, especialmente em países em desenvolvimento. Na parte do relatório do Grupo de Trabalho III dedicada ao “Fortalecimento da resposta às alterações climáticas” é realçado que a cooperação internacional é essencial para que se possa alcançar uma atenuação significativa das alterações climáticas, e que os governos têm vindo a tomar, embora com algumas lacunas, medidas preconizadas nos vários acordos e protocolos assinados sob os auspícios da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC), nomeadamente o Protocolo de Quioto (2005), Acordo de Paris (2015) e Pacto sobre o Clima de Glasgow (2021). Fora da UNFCCC têm surgido parcerias entre instituições e iniciativas à escala regional, por vezes com alguma eficácia, envolvendo múltiplos intervenientes. Terminados os relatórios dos Grupos de Trabalho I, II e III do IPCC, e para que esteja completo o Sexto Relatório de Avaliação, resta esperar pelo Relatório Síntese, que deverá conter uma parte dedicada aos decisores políticos, escrita em linguagem não técnica, em que será abordada uma vasta gama de políticas relevantes, com o intuito final de se alcançar o objetivo principal do Acordo de Paris, reiterado no Pacto sobre o Clima de Glasgow, ou seja, manter, até 2100, o aumento da temperatura inferior a 2 ºC, tendo como referência os valores pré-industriais, e incentivar esforços para limitar o aumento a 1,5 ºC. Partindo do princípio de que as alterações climáticas são consequência de mais de um século de emissões de GEE devido ao uso insustentável de energia, estilos de vida e padrões de produção e de consumo, o IPCC, através dos seus grupos de trabalho, continuará a utilizar a Física como ciência base para a compreensão do mecanismo das alterações climáticas e a preconizar a implementação de medidas de adaptação e de atenuação dos efeitos dos GEE. Também nós, como cidadãos comuns, teremos de adaptar o nosso estilo de vida de modo a que possamos contribuir para atingir os objetivos de desenvolvimento sustentável, conforme o preconizado na Agenda 2030 das Nações Unidas.
Olavo Rasquinho VozesSexto relatório do IPCC – Alterações Climáticas 2022 Já não é novidade para ninguém que as alterações climáticas induzidas pelas atividades humanas têm vindo a causar danos a ecossistemas e afetado a vida das populações a nível global, apesar das muitas decisões e recomendações de organizações internacionais no sentido de serem tomadas medidas impeditivas dessa realidade. A ONU, através do seu órgão que monitoriza a evolução do clima, o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), reitera estas recomendações na segunda parte do Sexto Relatório de Avaliação sobre as alterações climáticas (Sixth Assessment Report – AR6). Tomando em consideração que há certos conceitos importantes relacionados com as alterações climáticas, como “impactos”, “adaptação”, “vulnerabilidade” e “mitigação”, a estrutura do IPCC foi de tal maneira estabelecida que foram constituídos grupos de trabalho dedicados à sua avaliação e monitorização. Assim, e entrando em consideração que a Física é a ciência em que se fundamenta o estudo do clima, foram constituídos os seguintes Grupos de Trabalho: Grupo de Trabalho I (The Physical Science Basis) – trata da base física e científica das alterações climáticas; Grupo de Trabalho II (Impacts, Adaptation and Vulnerability) – debruça-se sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade dos sistemas naturais e socioeconómicos às alterações climáticas; Grupo de Trabalho III (Mitigation of Climate Change)”- trata da mitigação das alterações climáticas, ou seja, sobre como atenuar essas alterações. Desde que foi criado, em 1988, o IPCC já elaborou cinco Relatórios de Avaliação com uma periodicidade de cerca de seis anos, além de três relatórios intermédios específicos. São os seguintes os relatórios de avaliação periódicos e as respetivas datas: FAR (First Assessment Report – 1990), SAR (Second Assessment Report – 1995), TAR (Third Assessment Report – 2001), AR4 (2007) e AR5 (2013/2014). Devido à pandemia Covid-19, o AR6 sofreu atraso de cerca de um ano, pelo que as partes a cargo dos Grupos de Trabalho I e II só foram disponibilizadas ao público em agosto de 2021 e fevereiro de 2022, respetivamente. Além dos três Grupos de Trabalho, o IPCC tem ainda um quarto grupo, que se designa por Task Force, cujas funções consistem, entre outras, em supervisionar os inventários nacionais sobre as emissões e remoções de gases de efeito de estufa. As atividades dos três Grupos de Trabalho e da Task Force são apoiadas pelas Unidades de Apoio Técnico (Technical Support Units). No Hoje Macau de 15 e 16 de setembro de 2021, tivemos a oportunidade de abordar a primeira parte do AR6 “Climate Change 2021 – The Physical Science Basis”, correspondente ao Grupo de Trabalho I, o que constituiu uma tentativa de dar a conhecer os principais aspetos do seu conteúdo. Cabe agora a vez de nos debruçarmos sobre a contribuição para o AR6 do Grupo de Trabalho II, intitulada “Climate Change 2022 – Impacts, Adaptation and Vulnerability”, um extenso documento de milhares de páginas. Como é prática habitual do IPCC, foi redigido um resumo, com 35 páginas, com o título “Resumo para os Decisores Políticos” (Summary for Policy Makers – SPM). Tal como nos relatórios anteriores, é utilizada a linguagem habitual do IPCC, em que os níveis de confiança das principais projeções são expressos pelos seguintes qualificadores: nível de confiança muito baixo, baixo, médio, alto e muito alto. Assim, por exemplo, é atribuído o nível de confiança muito alto à projeção de que, no caso do aquecimento global atingir, a curto prazo, o valor de 1,5°C, implicaria o aumento inevitável da frequência de eventos meteorológicos perigosos. Por outro lado, é atribuído o nível de confiança alto à projeção, a médio e longo prazo, de que as alterações climáticas induzirão numerosos riscos aos sistemas naturais e humanos e que os impactos serão várias vezes maiores do que os observados atualmente, no que se refere aos 127 riscos significativos até agora identificados pelo IPCC. Estes riscos abrangem uma vasta gama de setores, nomeadamente saúde, economia, agricultura, infraestruturas e ecossistemas. Os riscos dependerão fortemente das ações de mitigação e adaptação que forem tomadas pelos decisores políticos a curto prazo, e os impactos adversos e as perdas e danos aumentarão a cada incremento do aquecimento global (nível de confiança muito alto). São também usados os seguintes termos para avaliar a probabilidade de ocorrência das várias projeções das consequências das alterações climáticas: praticamente certo (99-100%), muito provável (90-100%), provável (66-100%), tão provável como improvável (33-66%), improvável (0-33%), muito improvável (0-10%), excecionalmente improvável (0-1%). Assim, por exemplo, quando no relatório se afirma que é muito provável que o aumento da temperatura no fim do corrente século, considerando o cenário de emissões intermédias, possa atingir valores entre 2,1 e 3,5°C, é o mesmo que afirmar que a probabilidade de que tal aconteça é de 90% a 100%. Para efeitos de comparação dos valores da temperatura média global à superfície, adotou-se o período 1850-1900 como representativo da era pré-industrial, e os três períodos futuros de referência correspondem a curto prazo (2021-2040), médio prazo (2041-2060) e longo prazo (2081-2100). Neste Relatório são definidos os conceitos que estão na base da designação do Grupo de Trabalho II: “Impactos”, “Adaptação” e “Vulnerabilidade”. O termo “Impactos” refere-se não só às consequências das alterações climáticas nas vidas, meios de subsistência, saúde, bem-estar, atividades sociais e culturais, mas também às consequências nos ecossistemas e espécies. “Adaptação” consiste no processo de ajuste ao clima atual ou futuro e suas consequências no sentido de moderar os danos ou aproveitar os efeitos benéficos. São exemplos de adaptação a barreira no rio Tamisa, construída com o propósito de evitar inundações em Londres causadas por marés cheias e marés de tempestade excecionalmente altas, e o plano para a cidade de Nova Iorque com o mesmo intuito. Plano para proteger Nova Iorque de marés de tempestade “Vulnerabilidade” define-se como a propensão ou predisposição de se ser adversamente afetado e abrange uma variedade de conceitos, incluindo sensibilidade ou suscetibilidade a danos e falta de capacidade de lidar com as alterações climáticas e de a elas se adaptar. Nesta parte do relatório são também definidos outros termos, tais como “risco” (risk), “perigo” (hazard) e “resiliência” (resilience), com o intuito de evitar interpretações frequentemente usadas em linguagem corrente, mas que não correspondem exatamente ao seu significado técnico no AR6. Entretanto, em 4 de abril de 2022, foi divulgada a terceira parte do AR6, pelo Grupo de Trabalho III. António Guterres, Secretário-Geral da ONU, no seu discurso a este propósito, enfatiza “O júri chegou a um veredicto, e é condenatório. Este relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas é uma longa enumeração de promessas climáticas não cumpridas” e termina afirmando “As promessas e planos climáticos devem ser transformados em realidade e ação, agora. É hora de parar de queimar nosso planeta e começar a investir na abundante energia renovável ao nosso redor”.
Olavo Rasquinho VozesTsunamis, Meteotsunamis e outros fenómenos similares Recentemente o público mais atento foi surpreendido pela notícia sobre a ocorrência de um fenómeno pouco vulgar, que consistiu numa perturbação da superfície do oceano Pacífico e que se estendeu pelo Atlântico. Os marégrafos, instalados nas regiões costeiras mais longínquas do local onde foi originado o fenómeno, registaram alterações do nível do mar fora do normal. Os técnicos que procedem à monitorização deste tipo de fenómenos mostraram-se inicialmente surpreendidos, na medida em que não foi registado nenhum sismo que pudesse justificar este tipo de ondas. A surpresa desvaneceu-se quando se tomou conhecimento da ocorrência de uma forte erupção explosiva de um vulcão na região das ilhas Tonga. O Reino de Tonga é um país constituído por 169 ilhas, onde cerca de um quarto são inabitadas. O arquipélago tem uma área de aproximadamente 700 km2 que se estende por uma vasta região de cerca de 700.000 km2, no Pacífico Sul, a sueste das ilhas Fiji, a uma distância aproximada de 3.300 quilómetros a leste da Austrália. As ondas no arquipélago chegaram a atingir cerca de 15 metros, propagando-se, à medida que diminuíam de amplitude, pelo Pacífico, até atingirem regiões tão distantes como o litoral do Japão, Austrália, Nova Zelândia e a costa oeste do continente americano. Propagaram-se também pelo Atlântico, onde, segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), atingiram Portugal, tendo sido o sinal registado de maior amplitude de cerca de 40 cm em Ponta Delgada e Peniche. O vulcão parcialmente submerso Hunga Tonga-Hunga Haʻapai estava latente, entre as pequenas ilhas Hunga Tonga e Hunga Haʻapai, daí a ser designado pela junção dos dois nomes. A erupção ocorreu em 14 de janeiro de 2022, atingindo o seu máximo no dia seguinte, a cerca de 65 km a norte da ilha Tongatapu, onde se encontra a capital Nukuʻalofa, dando origem à formação de uma enorme nuvem de fumo e cinzas, em forma de cogumelo, com o diâmetro de cerca de 260 km. Grande quantidade de cinzas vulcânicas cobriu parte das ilhas, prejudicando culturas e cobrindo a pista de aterragem do aeroporto internacional, o que impediu durante alguns dias a aterragem de aviões com meios de assistência à população. As cinzas vulcânicas prejudicaram também a navegação aérea no espaço aéreo de algumas ilhas do Pacífico Sul. O cabo submarino que liga o Reino do Tonga ao mundo exterior foi também danificado, tendo impedido as comunicações durante alguns dias. Foram registados estragos nas zonas costeiras das ilhas do arquipélago e de algumas regiões bastante longe da zona de geração. No Peru ocorreu um derrame de petróleo correspondente a cerca de 12.000 barris, durante a descarga de um petroleiro, do qual causou grave desastre ecológico a 30 km a norte de Lima, vitimando inúmeros peixes e aves. O número de vítimas mortais foi relativamente baixo, contando-se três no arquipélago de Tonga e duas no litoral do Peru. A explosão, que projetou material vulcânico a mais de 20 km de altitude, gerou uma onda de choque atmosférica que se propagou com velocidade supersónica, dando várias vezes a volta ao globo, potenciando perturbações na superfície dos oceanos que o IPMA classificou como um meteotsunami. No entanto tal designação é discutível. A queda sobre a superfície do oceano de material vulcânico que havia sido projetado poderá também ter contribuído para a geração dessas perturbações, contribuindo assim para reforçar a ondulação causada pela onda de choque. Os meteotsunamis não devem ser confundidos com os tsunamis. Os primeiros são em geral menos intensos e consistem em ondulação de grande comprimento de onda associada a fenómenos atmosféricos caracterizados por variações bruscas da pressão, podendo ocorrer, por exemplo, durante a passagem de formações de cumulonimbus (linhas de borrasca) e frentes frias muito ativas. No que se refere ao fenómeno tradicionalmente designado por tsunami, a sua geração nada tem a ver com fenómenos meteorológicos, mas com a ocorrência de eventos geofísicos abruptos, como sismos submarinos, erupções vulcânicas e deslizamento costeiro ou submarino de terras. A queda de meteoritos no mar pode também provocar tsunamis. (Consta que o desaparecimento dos dinossauros foi consequência da queda de um asteroide que provocou um enorme tsunami há cerca de 65 milhões de anos). Outro fenómeno que poderá ser confundido com tsunami é designado por “storm surge” (traduzido frequentemente para português, embora indevidamente, como “maré de tempestade”). A sua ocorrência resulta do arrastamento das ondas pelo vento contra a costa e a consequente inundação de zonas baixas, quando o mar que se encontra sobre-elevado devido a pressão atmosférica muito baixa (quando a pressão diminui 1 hPa, o nível do mar sobe cerca de 1 cm). Ocorreu um fenómeno deste tipo em Macau, em agosto de 2017, aquando da passagem do tufão Hato. Em novembro de 2013, nas Filipinas, a “storm surge” associada ao tufão Haiyan (chamado Supertufão Yolanda nas Filipinas), foi a causa de muitas das cerca de 6.000 vítimas mortais. As consequências de tsunamis e de “storm surges” são muito semelhantes, embora as características das ondas sejam diferentes. Nas “storm surges” as ondas são sempre causadas pelo vento, têm maior frequência e propagam-se com menor velocidade, enquanto que as geradas pelos tsunamis são em geral consequência de sismos submarinos e são caracterizadas por maior comprimento de onda, menor frequência e muito maior velocidade. As ondas de um tsunami propagam-se em águas profundas com velocidade próxima da velocidade de cruzeiro de aviões comerciais, ou seja, cerca de 900 km/h. À medida que entram em águas menos profundas, a velocidade das ondas diminui e a amplitude aumenta. Ambos os fenómenos geram ondas que, invadindo as zonas baixas do litoral, podem provocar estragos consideráveis e elevado número de vítimas. A semelhança das consequências de tsunamis e de “storm suges” é tão grande que, conforme noticiado na imprensa filipina, o Mayor de Guiuan, a primeira cidade a ser atingida pelo tufão Haiyan, perante a passividade da população relativamente a um aviso de “storm surge”, enviou mensageiros em motociclos para alertar as comunidades costeiras da iminente chegada de um tsunami de grandes proporções. O termo “tsunami” sobressaltou a população que, seguindo instruções, se concentrou em locais de onde pôde ser evacuada. A expressão “storm surge”, difundida em inglês e traduzida para a língua local, foi considerada muito técnica e pouco compreensível por uma população não muito instruída. (Curiosamente, Guiuan teve um papel importante na história das Filipinas. Reza a história que, no século XVI, foi na ilha Homonhon, pertencente àquela municipalidade, que Fernão de Magalhães desembarcou pela primeira vez naquele arquipélago. Talvez por esta razão a população da cidade é maioritariamente católica). Outro fenómeno que poderá ser confundido com tsunamis são as “Seiches” (termo do francês falado na Suíça que significa abanar periodicamente). Trata-se, no entanto, de ondas estacionárias que ocorrem geralmente, em determinadas condições, em bacias parcial ou totalmente fechadas, como por exemplo, o lago Erie, um dos cinco lagos na fronteira entre os EUA e o Canadá, ou no lago Lémand, entre a Suíça e a França. Ocorrem normalmente quando ventos fortes associados a alterações bruscas da pressão atmosférica empurram a massa de água contra um dos limites da bacia. Quando o vento cessa, a massa de água inverte o sentido do deslocamento, oscilando durante horas ou mesmo dias. Tratando-se este texto de um artigo de opinião, permito-me discordar do IPMA no que se refere a ter classificado como um meteotsunami a perturbação dos oceanos Pacífico e Atlântico provocada pela explosão vulcânica do Tonga. Um meteotsunami é um tsunami cujas causas estão relacionadas com fenómenos meteorológicos. Não sendo fenómenos deste tipo a erupção vulcânica nem a onda de choque por ela provocada, não se trata, portanto, de um meteotsunami, mas simplesmente de um tsunami. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesEnergia nuclear – Solução para a neutralidade carbónica? Desde o fim do século passado que os temas mais debatidos a nível mundial são o aquecimento global e as alterações climáticas. Na realidade, apesar de as expressões “aquecimento global” e “alterações climáticas” serem frequentemente usadas indistintamente, o conceito associado à primeira (“aquecimento global”) é menos abrangente do que o segundo. Aquecimento global consiste no aumento, à escala mundial, da temperatura média do globo terrestre e é medido tendo como base a temperatura do ar à superfície, observada em milhares de estações meteorológicas espalhadas pelo planeta, durante períodos mais ou menos longos, de preferência não inferiores a 30 anos. O IPCC, órgão científico das Nações Unidas, atribui às atividades humanas a causa principal do aquecimento global e, consequentemente, das alterações climáticas. Quando se afirma que um dos objetivos do Acordo de Paris é prevenir que o aumento da temperatura tenha como limite 2 °C até ao fim do século, preferencialmente até 1,5 °C, embora se refira à temperatura média do ar à superfície, subentende-se que o conceito “aquecimento global” abrange também as restantes componentes do sistema climático: hidrosfera (constituída por oceanos, mares, rios e lagos), litosfera, criosfera e biosfera. Apesar das numerosas ações que têm sido conduzidas com recurso ao multilateralismo, envolvendo universidades, ONGs, várias agências e programas das Nações Unidas, como a OMM e a UNEP, o problema das alterações climáticas tem vindo a agravar-se dramaticamente. A temperatura das várias componentes do sistema climático tem subido com graves implicações para a sustentabilidade da biodiversidade e da vida humana. Segundo a OMM, com base em dados referentes ao período de janeiro a setembro de 2021, a temperatura média global em 2021 teve um aumento de 1,09 °C, em relação a 1850-1900 e, em algumas regiões, o aumento tem sido muito mais acentuado, como na região ártica, onde, em 20 de junho de 2020, foi registada a temperatura recorde de 38 °C, na cidade russa Verkhoyansk, a 115 km a norte do círculo polar ártico É já lugar-comum afirmar que a causa da degradação do clima consiste no aumento da concentração dos gases de efeito de estufa (GEE) que são injetados na atmosfera, devido à queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral). Após o Protocolo de Quioto (ratificado em 2005) e 26 COPs, entre as quais a COP21 (2015), em que foi alcançado o Acordo de Paris, e a recente COP26, realizada em novembro de 2021, em que foi estabelecido o Pacto do Clima de Glasgow, a realidade é que a concentração de gases de efeito de estufa na atmosfera não cessa de aumentar. Apesar de todas as tentativas para reduzir a concentração dos GEE na atmosfera, nomeadamente o dióxido de carbono, o mais significativo destes gases, a realidade é que, de acordo com o diretor-executivo da International Energy Agency (IEA), é muito provável que a queima de carvão atinja o recorde anual em 2022. A China, um dos maiores consumidores deste combustível (mais de metade do consumo mundial) comprometeu-se a começar a reduzir o seu consumo somente a partir de 2025, o que vai permitir que durante os próximos quatro anos venha a aumentar o seu consumo. Analogamente, a Índia, responsável pela substituição da expressão “eliminação progressiva” (phase out), em relação ao carvão, por outra mais atenuada, “redução gradual” (phase down), no texto do Pacto do Clima de Glasgow, também continuará a aumentar a utilização do carvão nos próximos anos. Perante esta realidade, e apesar de cada vez mais se recorrer às energias renováveis, também referidas como energias verdes, é lícito duvidar se o preconizado no Pacto do Clima de Glasgow está ao alcance da humanidade. Segundo este documento, para que se possa atingir um dos objetivos principais do Acordo de Paris (limitar o aquecimento global a 2 °C até ao fim do século, de preferência até 1,5 °C), terá de se proceder a reduções rápidas, profundas e sustentáveis das emissões de GEE, incluindo a redução das emissões globais de dióxido de carbono de aproximadamente 45% até 2030, relativamente aos níveis de 2010, de forma a se atingir a neutralidade carbónica por volta de 2050. São muitas as vozes segundo as quais tal não será possível sem o recurso à energia nuclear. Perante esta dificuldade, o lóbi nuclear tem intensificado a sua atividade, desenvolvendo argumentos no sentido de que esse objetivo só será possível com recurso à energia nuclear. Acontece, porém, que a energia nuclear, apesar de não implicar a produção de GEE, não se pode considerar energia limpa, na medida em que é utilizada a fissão nuclear, processo em que é gerado lixo radioativo. A fissão nuclear consiste no processo em que um núcleo instável é fragmentado em núcleos cuja soma das massas é menor que a massa inicial, produzindo-se, assim, uma transformação de massa em energia, conforme a equação de Einstein, E=mc2 . É o que acontece quando se recorre ao bombardeamento, com neutrões, de núcleos de átomos de urânio-235 de modo que estes se fragmentem, dando origem a partículas menores e uma forte libertação de energia. Neste processo, parte da massa inicial é transformada em energia, utilizada para produzir vapor através do aquecimento de água. Este vapor, sob elevada pressão, atua sobre as pás de uma turbina que, por sua vez, aciona um gerador elétrico. Acontece, porém, que o urânio é um mineral não muito abundante, e da sua desintegração resulta lixo radioativo, o que impede que a energia nuclear com recurso à fissão possa ser unanimemente classificada como energia renovável. Além disso, está associada à fissão nuclear a ocorrência de desastres ambientais com graves consequências, como os de Three Mile Island (EUA, 1979) Chernobil (URSS, 1986) e de Fukushima (Japão, 2011), o que tem motivado fortes movimentos populares no sentido de pressionar os governos para desistirem deste tipo de energia. Assim, por exemplo, o recurso à energia nuclear na União Europeia não é consensual. Enquanto que alguns países continuam a fomentar a construção de novos reatores, outros estão a desmontar os existentes ou, pura e simplesmente, não os chegam a instalar. Este é o caso de Portugal, que não tem nenhum reator nuclear a produzir energia, nem pretende recorrer à sua instalação futura. Enquanto que a França, que produz cerca de 75% da sua eletricidade com recurso a esta energia, continua a investir em reatores nucleares, a Alemanha tem planos para desativar aqueles que ainda possui. Três das centrais nucleares para produção de eletricidade na Alemanha, em funcionamento desde meados da década de 1980, foram desativadas no último dia do ano de 2021, estando previsto o mesmo destino para as três que restam em 31 de dezembro de 2022. A França está acompanhada, no seu ponto de vista, por outros países como a Polónia e a Eslováquia. Por outro lado, a Bélgica e o Luxemburgo alinham com a Alemanha no que se refere à necessidade do abandono deste tipo de energia. Outros países, como a Itália, são mais prudentes e mantêm uma posição intermédia. No final de 2021, a Comissão Europeia submeteu aos países membros da UE um projeto de plano em que considera que, em determinadas condições, a energia nuclear e o gás natural podem ser considerados sustentáveis para fins de investimento, o que provocou, por parte do porta-voz do governo alemão, a afirmação de que a Alemanha considera a tecnologia nuclear perigosa e que rejeita expressamente a avaliação da Comissão. Entre os que defendem a utilização da energia nuclear para atingir o preconizado no Acordo de Paris e no Pacto do Clima de Glasgow, conta-se o diretor da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), Rafael Mariano Grossi. Segundo ele, deve-se abdicar de ideologias e encarar com realismo a evidência de que sem energia nuclear não se conseguirá abdicar dos combustíveis fósseis. Não havendo unanimidade no que se refere à utilização de energia nuclear com recurso à fissão, há já países, empresas, organizações e até empreendedores a título individual (e.g. Bill Gates) a investir na investigação sobre a fusão nuclear. Enquanto que na fissão nuclear se recorre à fragmentação de núcleos para gerar energia, a fusão nuclear é um processo em que se fundem dois ou mais núcleos de átomos, daí resultando um núcleo maior, cuja massa é menor que a soma das massas dos núcleos iniciais, libertando-se quantidade enorme de energia. Trata-se de um processo em que se recorre à união de átomos de isótopos de hidrogénio, inesgotáveis na natureza, o que permitirá classificar a energia nuclear como energia renovável. Acontece, porém, que este processo não se tem mostrado rentável, na medida em que, com a tecnologia atualmente existente, tem sido necessária mais energia para desencadear a fusão do que a energia que dela resulta. Entre os vários projetos experimentais envolvendo fusão nuclear, conta-se o International Thermonuclear Experimental Reactor (ITER), instalado no sul de França (Saint-Paul-les-Durance), que consiste no resultado da conjugação de esforços e financiamento da China, Coreia do Sul, EUA, Índia, Japão, Reino Unido, Rússia, Suíça e União Europeia. Nas palavras do presidente da França, Emannuel Macron, a energia produzida com recurso à fusão nuclear será “limpa, segura e praticamente ilimitada”. Não se espera, no entanto, que haja resultados que permitam a sua exploração rentável antes de cerca de vinte anos. Um outro projeto de fusão é o que decorre na National Ignition Facility (NIF), em Livermore, na Califórnia, em que se usa tecnologia laser para fundir átomos de hidrogénio. Também a China, além de envolvida no projeto ITAR, desenvolve, desde 2006, o estudo Experimental Advanced Superconducting Tokamak (EAST) em que são aquecidos isótopos de hidrogénio (deutério e trítio) a temperaturas elevadíssimas, da ordem de 150 milhões de graus Celsius, obtendo-se uma massa no estado de plasma constituído por partículas subatómicas que se fundem, dando origem a hélio e libertação de enormes quantidades de energia. O grande problema consiste no facto de a tecnologia atual não estar ainda suficientemente evoluída para controlar toda a fusão de modo que a quantidade de energia resultante seja muito superior à utilizada para desencadear o processo. Perante o avanço da tecnologia, é lícito esperar que, no prazo de uma ou duas décadas, se possa unanimemente considerar a energia nuclear, com recurso à fusão, energia limpa e renovável, que poderá contribuir para que se atinja a neutralidade carbónica a meio do século corrente, conforme preconizado no Pacto do Clima de Glasgow.
Olavo Rasquinho VozesCimeira sobre o clima de Glasgow (COP26) – Sucesso ou fracasso? Muitos de nós, pelo menos aqueles que têm mais de 40 anos, lembrar-se-ão certamente do muito debatido “buraco do ozono”. Na década de 80 do século passado, a grande preocupação de muitos cientistas e daqueles que se interessavam pela sustentabilidade da vida no nosso planeta, era a rarefação do ozono na chamada ozonosfera, camada da estratosfera entre 20 e 30 km de altitude, onde se concentra cerca de 90% do ozono atmosférico, que constitui uma espécie de filtro de parte da radiação ultravioleta emitida pelo sol. A diminuição da concentração desse gás permitia que parte dos raios ultravioletas prejudiciais (raios ultravioleta B) atingissem a superfície do globo, em especial na região da Antártida e países em latitudes altas, como a Argentina e parte do Chile, afetando a saúde dos humanos e outros animais. O termo “buraco” foi adotado pelos meios de comunicação social, mas, na realidade, tratava-se de uma zona em que a concentração daquele gás se apresentava acentuadamente mais atenuada do que o habitual. Curiosamente, o ozono (O3), cujas moléculas são constituídas por três átomos de oxigénio, desempenha um papel importante quando na ozonosfera, mas é prejudicial na camada limite da atmosfera, onde nós desenvolvemos as atividades no dia a dia. A formação do ozono nesta camada ocorre quando determinados gases, como os óxidos de azoto e compostos orgânicos voláteis, reagem com o oxigénio na presença da radiação solar. Quando respirado, pode provocar inflamação das vias respiratórias, por vezes com graves consequências em pessoas com doenças respiratórias. A sua concentração tende a aumentar em zonas urbanas e industriais, em determinadas condições meteorológicas, principalmente quando ocorrem anticiclones estacionários, aos quais estão associados grande estabilidade atmosférica e ventos fracos. Menciono esta situação anómala (do buraco do ozono), na medida em que a sua atenuação constituiu um exemplo de como é possível reverter situações de degradação do ambiente causadas pelas atividades humanas. Uma vez comprovada que a causa dessa diminuição de concentração era devida à ação de determinados gases de efeito de estufa (GEE) que também afetam o ozono estratosférico (ODS – ozone depleting substances), os cientistas induziram os decisores políticos a tomarem medidas no sentido da proibição do seu uso. Na realidade, após o Protocolo de Montreal, entrado em vigor em 1989, em que se preconizou a eliminação progressiva dos ODS, a concentração do ozono estratosférico evoluiu no sentido do seu aumento. Hoje considera-se este facto como um exemplo em que foi possível evitar, em larga medida, a degradação do ambiente causada pelas atividades antropogénicas. A aplicação das medidas preconizadas no referido Protocolo teve tal êxito que levou Kofi Anan (Secretário-Geral da ONU entre 1997 e 2006 e prémio Nobel da paz 2001) a afirmar que “talvez seja o mais bem-sucedido acordo internacional de todos os tempos”. Outro exemplo de êxito de tomada de medidas com sucesso no sentido da melhoria do ambiente, embora numa área mais restrita, foi o Clean Air Act de 1956, que consistiu numa lei do Parlamento do Reino Unido com a finalidade de reduzir a poluição causada pela queima de carvão em lareiras domésticas e fornos industriais na região de Londres. Esta medida foi tomada na sequência de vários episódios de poluição extrema causada por smog (mistura de fumo e nevoeiro – smoke + fog), nomeadamente o Great Smog de Londres, entre 5 e 9 de dezembro de1952, que causou a morte de cerca de 12.000 pessoas. Exemplos como este constituem um fator de esperança no que se refere à possibilidade, não direi de recuperação das características do clima, mas de atenuação da sua degradação, no sentido de limitar o progressivo aquecimento e as consequências que comprovadamente daí advêm. É conveniente relembrar que o Acordo de Paris, alcançado cerca de16 anos depois do falhado Protocolo de Quioto (ratificado em 1999), consistiu essencialmente em compromissos a nível global no sentido de reduzir a emissão de GEE, mitigar as consequências das alterações climáticas e tomar medidas financeiras e estruturais para a adaptação a essas alterações. Para concretizar estas pretensões foram estabelecidos os seguintes principais objetivos: 1) manter, até 2100, o aumento da temperatura inferior a 2 graus Celsius, tendo como referência os valores pré-industriais, e incentivar esforços para limitar o aumento a 1,5 ºC; 2) Promover a capacitação dos países para enfrentar os impactos das alterações climáticas; 3) Tornar os fluxos financeiros consistentes com uma via de desenvolvimento com baixas emissões e resiliente ao clima. Na cimeira de Glasgow, que se realizou de 31 de outubro a 12 de novembro de 2021, esteve prestes a alcançar-se unanimidade no que se refere à proposta de acabar com o uso do carvão. A Índia exerceu, no entanto, forte pressão para impedir esta recomendação, tendo conseguido que no texto final da COP26 se substituísse o termo “eliminação progressiva” (phase out), referente ao uso do carvão, por “redução gradual” (phase down). Provavelmente, se fosse só este país a propor esta alteração, teria havido maior resistência no sentido de tal não ser aceite, mas a China e outras economias emergentes também se manifestaram nesse sentido. Outros, embora não se tivessem manifestado, devem ter esfregado as mãos de contentamento quando a alteração foi aprovada (estou a pensar nos representantes da Austrália, por exemplo). Fazendo um balanço das discussões e, perante o resultado final, não se pode dizer que a Cimeira de Glasgow tenha sido um fracasso, mas esteve longe de satisfazer os mais exigentes, entre eles António Guterres, Secretário-geral das Nações Unidas, que, no seu discurso de encerramento, se referiu ao resultado da cimeira nos seguintes termos: “Os textos aprovados são um compromisso. Refletem os interesses, as condições, as contradições e o estado da vontade política no mundo de hoje. São passos importantes, mas, infelizmente, a vontade política coletiva não foi suficiente para superar algumas contradições profundas”. Do Pacto de Glasgow sobre o Clima (Glasgow Climate Pact), assinado por governantes de cerca de 200 países, ressaltam, entre outros, os seguintes compromissos e constatações: Finalização do Livro de Regras de Paris (Paris Rulebook), documento que consta de orientações detalhadas sobre como os países devem proceder para alcançarem a neutralidade carbónica. Necessidade de os países desenvolvidos cumprirem totalmente a meta anual de US$100 mil milhões para apoio aos países em desenvolvimento, com urgência, com a devida transparência na implementação das suas promessas (compromisso estabelecido anteriormente, mas não integralmente cumprido). Compromisso de atualização anual das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs – Nationally Determined Contributions) em vez de a cada cinco anos, conforme havia sido estipulado no Acordo de Paris. (Entende-se por NDCs os planos que constam das ações previstas para a redução das emissões dos GEE e adaptação às alterações climáticas, como contributo nacional para se atingir as metas globais estabelecidas no Acordo de Paris). Foi também um ato significativo a assinatura por parte de 140 países e Comissão Europeia da “Declaração de Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra” (Glasgow Leaders’ Declaration on Forests and Land Use), em que se estabelece o compromisso de se acabar com o desmatamento até 2030. A área abrangida por estes países é de cerca de 90% da cobertura florestal mundial. Entre os que assinaram a declaração contam-se o Brasil, China, EUA, Indonésia, Malásia e Rússia, países com grande extensão de florestas. Pena é a Bolívia e a Venezuela, onde se encontra parte da Amazónia, não a tenham assinado. Os diplomatas brasileiros presentes na COP26 foram bastante construtivos nas discussões realizadas na cimeira de Glasgow, o que contrastou com a política atualmente a ser praticada pelo atual governo brasileiro. Segundo o Observatório do Clima, apesar da atitude colaborante sob pressão internacional, o atual governo tem vindo a desmontar políticas de combate à desflorestação e tem, pelo menos, cinco projetos de lei no Congresso que amnistiam o roubo de terras e põem em risco as terras indígenas, as quais constituem barreiras eficazes contra a destruição da floresta. (O Observatório do Clima é uma rede de 37 entidades da sociedade civil brasileira que tem por objetivo discutir as alterações climáticas no contexto nacional). Também segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazónia (Imazon), a Amazónia brasileira perdeu 10.476 km² de floresta entre agosto de 2020 e julho de 2021, o que corresponde a 57% mais do que no mesmo período anterior (agosto 2019/julho 2020), além de ser a maior destruição da floresta dos últimos 10 anos. (O Imazon é um instituto brasileiro de investigação cuja missão é promover conservação e desenvolvimento sustentável na Amazónia) Será que a humanidade, analogamente ao que sucedeu com o Protocolo de Montreal e o Clean Air Act de 1956, estará preparada para tomar medidas drásticas no sentido de pôr em prática as recomendações do Acordo de Paris e, mais recentemente, da cimeira da ONU sobre o clima, realizada em Glasgow? Esperemos pela COP27, que se realizará de 7 a 18 de novembro de 2022, em Sharm El-Sheikh, no Egito…
Olavo Rasquinho VozesOs Prémios Nobel e as alterações climáticas Foram recentemente laureados com o Prémio Nobel da Física 2021 três eminentes cientistas intimamente ligados à investigação sobre as alterações climáticas: Klaus Hasselmann, Syukuro Manabe e Giorgio Parisi. Este ano o prémio incidiu sobre o ramo da física que trata de sistemas físicos complexos e, sendo o clima um sistema deste tipo, é natural que as alterações climáticas fossem alvo da atenção da Academia Real Sueca das Ciências, contribuindo, assim, para chamar a atenção para a degradação do clima, nas vésperas da 26ª Conferência das Partes (COP26) da Convenção-Quadro sobre as Alterações Climáticas das Nações Unidas , que está a decorrer em Glasgow entre 31 de outubro e 12 de novembro. Metade do prémio foi atribuído conjuntamente a Klaus Hasselmann e Syukuro Manabe, pela contribuição de ambos para a modelação física do clima da Terra, o que permitiu quantificar a sua variabilidade e prever o aquecimento global de forma fiável. A outra metade foi atribuída a Giorgio Parisi pela descoberta da interação da desordem e flutuações em sistemas físicos da escala atómica à escala planetária. Klaus Hasselmann, oceanógrafo alemão, natural de Hamburgo e nascido em 1931, é professor no Instituto alemão de Meteorologia Max Planck. Referindo-se ao problema das alterações climáticas, tem vindo a realçar que o principal obstáculo à sua resolução consiste no facto de os decisores políticos e o público não estarem cientes que é solúvel, bastando para isso utilizar tecnologias já existentes e investir na inovação em novas tecnologias no sentido de reduzir significativamente as emissões de dióxido de carbono por parte dos humanos. Numa entrevista publicada em 1988, já Hasselmann avisava que, dentro de 30 a 100 anos, o nosso planeta enfrentaria alterações do clima muito significativas. Syukuro Manabe, meteorologista e climatologista nipo-estadunidense, nasceu em 1931, em Shingu (Japão). Emigrou muito novo para os EUA, onde desenvolveu a sua atividade profissional na Universidade de Princeton, sendo autor de trabalhos que demonstram que o aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera causada pelas atividades humanas é a principal causa do aquecimento global. Contribuiu grandemente para o desenvolvimento do primeiro modelo climático que permitiu antever a evolução da temperatura e o comportamento do ciclo hidrológico em função do aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera. De acordo com Manabe, a atribuição deste prémio deu a si e aos outros dois modeladores do clima a credibilidade e o reconhecimento que sempre desejaram. Ambos contribuíram para o primeiro (AR1) e terceiro (AR3) Relatórios de Avaliação do IPCC sobre o estado do clima, em 1990 e 2001, respetivamente, e Hasselmann também contribuiu para o segundo Relatório de Avaliação (AR2), em 1995. Giorgio Parisi, físico italiano, nascido em Roma em 1948, é professor de Teorias Quânticas na Universidade de Roma “La Sapienza”. Desenvolveu trabalhos revolucionários na área da teoria de sistemas complexos que contribuíram para melhor compreender a evolução temporal do sistema climático. Parisi declarou recentemente, numa conferência de imprensa, que a atribuição do prémio é importante não só para ele, mas também para os outros dois laureados, na medida em que as alterações climáticas são uma grande ameaça para a humanidade e é extremamente importante que os governos ajam com determinação o mais rapidamente possível. Não é a primeira vez que o Prémio Nobel á atribuído a personalidades relacionadas com as alterações climáticas. Em 2007, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído conjuntamente a Albert Arnold Jr (Al Gore), que havia sido Vice-Presidente dos Estados Unidos da América de 1993 a 2001, e ao IPCC pelos esforços no sentido de aprofundar e disseminar um maior conhecimento sobre as alterações climáticas devidas a atividades antropogénicas. Muito antes, em 1903, o prémio Nobel da Química foi atribuído ao físico-químico sueco Svante Arrhenius (1859-1927), não por atividades relacionadas com o clima, mas em reconhecimento dos serviços prestados ao avanço da química através dos seus trabalhos sobre a dissociação eletrolítica. No entanto, embora não fosse essa a razão da atribuição do prémio, Arrehnius já havia chamado a atenção para o facto de que o aumento da concentração de dióxido de carbono implicaria o aumento da temperatura da Terra. Os prémios Nobel nem sempre beneficiaram da aprovação unânime da sociedade. Certamente os negacionistas não terão apreciado esta escolha da Academia Real Sueca das Ciências. Políticos como Bolsonaro e Trump muito provavelmente não terão concordado com a seleção dos laureados. Ambos têm sido responsáveis pela degradação do ambiente, não só nos respetivos países, mas também à escala global. Bolsonaro, alterando a legislação que impedia a exploração desenfreada dos recursos mineiros e florestais da Amazónia, demitindo personalidades das suas funções, como por exemplo Ricardo Galvão, Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), pelo facto de ter divulgado dados sobre a desflorestação da Amazónia. Trump ficou bem conhecido por negar as alterações climáticas, retirando os EUA do Acordo de Paris, proibindo instituições americanas (como por exemplo a NOAA ) de empregarem expressões com “alterações climáticas” e “aquecimento global”, colocando à sua frente personalidades negacionistas. Seria um desastre se as ideias (ou ausência delas) de Bolsonaro e de Trump singrassem à escala global. Este último já foi apeado do poder, mas ainda permanecem numerosos admiradores seus que poderão fazer com que volte à presidência dos EUA. Espera-se que, para bem da humanidade, o atual presidente do Brasil perca rapidamente as rédeas do poder no seu país, através de impeachment, ou das próximas eleições em 2022. A Academia Real Sueca das Ciências selecionou, algumas vezes, personalidades cujo comportamento posterior à atribuição dos prémios veio mostrar que não eram merecedores destes. Assim, por exemplo, o antigo Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, foi laureado com o prémio Nobel da Paz 1973 (conjuntamente com Le Duc Tho), pelas suas diligências no sentido da concretização do acordo de cessar-fogo na Guerra do Vietname. Nesse mesmo ano foi um dos promotores do golpe de Augusto Pinochet contra o presidente Salvador Allende, democraticamente eleito pelo povo chileno. Esse golpe, que culminou com a tomada do poder pela extrema-direita chilena, deu origem a um regime de terror que perdurou até 1990. Kissinger, em 1975, também foi figura proeminente no apoio político à invasão de Timor. Foi um dos promotores da Operação Condor, iniciada em 1975 sob os auspícios da CIA , que consistiu numa campanha clandestina de repressão e terror de Estado, organizada pelas ditaduras da Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil e, embora menos ativamente, do Equador e Peru. Também Aung San Suu Kyi, líder da oposição ao regime militar que governava o Mianmar desde 1962, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Paz de 1991 pela sua luta não violenta pela democracia e pelos direitos humanos, foi mais tarde acusada de não denunciar as atrocidades perpetradas pelos militares contra a minoria étnica Rohingya. Na sequência das eleições gerais de 2015, em que o seu partido foi vencedor, Suu Kyi era considerada a figura mais influente do governo de Mianmar, desempenhando o cargo de Chanceler e de Primeira Conselheira de Estado, o que lhe permitiria exercer ação moderadora sobre os militares. Há ainda a considerar a atribuição do Prémio Nobel da Paz 2019 ao primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed Ali pelos seus esforços para a paz e a cooperação internacional, principalmente no que se refere aos acordos de paz com a Eritreia. Mais uma vez, o prémio foi atribuído a uma personalidade controversa, na medida em que a sua ação, desde o despoletar da Guerra do Tigré, em novembro de 2020, entre as autoridades regionais da região do Tigré e o governo federal, tem sido muito criticada pela ONU e Amnistia Internacional. Segundo investigações levadas a cabo por estas duas organizações, ocorreram graves violações e abusos dos direitos humanos perpetrados pelas tropas etíopes, nomeadamente no que se refere à repressão dos dissidentes de Tigré, onde tem ocorrido forte repressão através de atos que podem ser considerados crimes de guerra. A atribuição do Prémio Nobel da Física 2021 a cientistas envolvidos no estudo das alterações climáticas, pouco tempo antes da 26ª cimeira da ONU sobre o clima, poderá contribuir para dar maior urgência às decisões a serem tomadas no sentido do cumprimento do Acordo de Paris, ou seja, para que os decisores políticos ajam prontamente no sentido de que o aumento da temperatura média a nível global não atinja 2 ºC, de preferência inferior a 1,5 ºC, em relação aos níveis pré-industriais.
Olavo Rasquinho VozesImplicações das Alterações Climáticas no Leste Asiático Uma pergunta que grande parte dos habitantes do nosso planeta faz é seguramente “será que as alterações climáticas são uma realidade e, no caso de o serem, em que medida irão afetar a região que habito?” Eu próprio pergunto o que irá acontecer na região onde vivo, nas Azenhas do Mar, a cerca de 40 km de Lisboa. A moradia que habito situa-se no declive de uma pequena colina, a cerca de 300 metros de distância da linha de costa, a algumas dezenas de metros de altitude, o que me deixa tranquilo no que se refere à subida do nível do mar. Também o local não é suscetível de ser afetado por cheias rápidas, fenómeno que tem vindo a acentuar-se à escala global. Caso haja episódios de precipitação intensa, a água escoará facilmente para o mar. O mesmo não pensará o proprietário de um pequeno estabelecimento que existia na Praia Pequena, há algumas dezenas de anos, hoje completamente destruído pela fúria do mar. Esta praia é adjacente à Praia Grande, onde por vezes os pequenos quiosques nesta existentes são danificados quando há marés vivas, cujas consequências são agravadas quando coincidem com tempestades. Quem me está a ler (espero que mais alguém para além do revisor deste texto), decerto leitor do jornal “Hoje Macau”, poderá perguntar “onde é que este tipo quer chegar? Será que as Azenhas do Mar e as Praias Pequena e Grande ficam no Leste Asiático?”. A realidade é que as alterações climáticas estão a afetar o nosso planeta, e vão continuar a fazê-lo, praticamente à escala global. Para podermos seguir as consequências do evoluir do clima já estão ao nosso alcance ferramentas que nos permitem ter uma ideia do que poderá acontecer no futuro. Uma delas é o Atlas Interativo do IPCC[i], que faz parte do sexto Relatório de Avaliação (AR6)[ii] deste órgão das Nações Unidas, publicado parcialmente em 9 de agosto do corrente ano. Trata-se de uma nova e poderosa ferramenta que nos permite analisar a evolução espacial e temporal (a curto, médio e longo prazo) de alguns dos parâmetros que caracterizam os possíveis tipos de clima suscetíveis de virem a ocorrer, com base em cenários estabelecidos em função da quantidade de gases de efeito de estufa (GEE) devido, principalmente, às atividades antropogénicas. Entre estes parâmetros salientam-se a subida do nível do mar, o aumento da temperatura máxima do ar, o aumento da temperatura da superfície do mar, o número de dias com temperatura superior a 35 ºC ou 40 ºC, etc. Através deste Atlas (que pode ser acedido em https://interactive-atlas.ipcc.ch/) pode-se estimar o que poderá acontecer, em termos climáticos, em diferentes regiões do globo, colocando o cursor num determinado local dos mapas digitais nele contidos. Poder-se-á constatar que as consequências das alterações climáticas, numa determinada região, serão tanto mais gravosas quanto maior for o período abrangido e maior a injeção de GEE. Como é sabido, a Região Administrativa Especial de Macau está situada no Leste Asiático (ou Extremo Oriente), numa zona de monções, em que predominam os ventos húmidos do quadrante sul durante os meses mais quentes e ventos do quadrante norte, mais secos, durante os meses menos quentes. A RAEM é também afetada pelo tempo associado a ciclones tropicais (tempestades tropicais e tufões), em média cerca de seis vezes por ano. Quando a aproximação destas depressões coincide com as marés astronómicas altas, os seus efeitos podem ser agravados no que se refere à ocorrência de inundações nas zonas mais baixas, nomeadamente no Porto Interior. Tendo estes fenómenos ocorrido no passado, o que tem causado graves prejuízos à população, facilmente se pode imaginar o que poderá acontecer no futuro, atendendo à subida do nível do mar e à muito provável maior intensidade dos ciclones tropicais. Tufões intensos estão associados a um fenómeno designado por “efeito barométrico inverso”, que consiste no facto de, quando a pressão atmosférica é muito baixa, haver uma sobre-elevação do nível do mar de cerca de 1 cm por hectopascal (hPa[i]), na região afetada pela tempestade, i.e., o nível do mar sobe cerca de 1 cm quando a pressão desce 1 hPa. Assim, por exemplo, numa situação em que a pressão sobre o mar seja cerca de 1013 hPa antes da aproximação de um tufão com a pressão no centro de 950 hPa, haverá uma subida do nível do mar de aproximadamente 63 cm. A superfície do mar, assim sobre-elevada, que acompanha o tufão, só por si poderia causar inundações em terra. Acontece, porém, que ao efeito de elevação do nível do mar se junta a ação do vento forte que, arrastando a água, dá origem ao que se designa por maré de tempestade. Em 23 de agosto de 2017, aconteceu algo semelhante, na RAEM, durante a passagem do tufão Hato, cujo o valor mais baixo da pressão medida em Macau foi cerca de 945 hPa. O facto de ter atingido terra sensivelmente à mesma hora do máximo da maré barométrica fez com que os três efeitos (pressão extremamente baixa, ventos muito fortes e maré alta) se conjugassem, provocando uma maré de tempestade que causou inundações com graves consequências, causando a perda de vidas e graves prejuízos materiais. A acumulação de água da chuva com a do mar fez com que, em alguns locais, o nível da água atingisse cerca de 5 m acima do solo, conforme medição por instrumentos dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau. Observações via satélite têm confirmado que o nível do mar, à escala global, tem vindo a aumentar cerca de 3,1 mm por ano, o que implica que, dentro de algumas dezenas de anos (a manter-se, ou a aumentar esta tendência) as consequências dos ciclones tropicais em Macau serão tendencialmente mais gravosas. Consultando o Atlas Interativo, aparece-nos um globo terrestre em rotação, com uma legenda indicando as variáveis “temperatura” e “precipitação”. Clicando na primeira, pode-se observar o aumento das extensões geográficas abrangidas pelos incrementos da temperatura média de 1,5 ºC, 2 ºC, 3 ºC e 4 ºC, tendo como referência o período 1850-1900. Analogamente, clicando em “precipitação”, pode-se também estimar o aumento das extensões abrangidas pelo incremento desta variável, a nível global, correspondentes a esses diferentes acréscimos de temperatura. É facilmente compreensível esta última constatação, na medida em que, quanto maior for o aquecimento global, maior será a evaporação e, consequentemente, maior a concentração de vapor de água na atmosfera. Este vapor, ao condensar, provocará uma cobertura de nuvens tanto mais extensa e compacta quanto maior a concentração de vapor de água na atmosfera. Estarão, assim, criadas as condições para forte precipitação, reforçando o que já está a acontecer no que se refere à tendência de aumento de frequência e intensidade das chamadas cheias rápidas, que apanham de surpresa os habitantes das regiões onde esses fenómenos ocorrem, como o que aconteceu no verão de 2021, na Europa e na China, onde houve centenas de vítimas provocadas por fenómenos deste tipo. Para construir este Atlas, o IPCC recorreu ao acoplamento de vários modelos climáticos, tendo em consideração as constantes interações entre as diferentes componentes do sistema climático (atmosfera, hidrosfera, criosfera, litosfera e biosfera). Com este intuito, o IPCC desenvolveu representações gráficas, através das quais se pode extrair informação climática regional que poderá servir de base à tomada de medidas, a nível governamental, no sentido de diminuir o impacto das alterações climáticas. Por exemplo, se pretendermos estimar qual o aumento do nível do mar na região de Macau, acedemos ao sítio do Atlas Interativo do IPCC, clicamos no quadro “Regional Information”, aparece-nos um mapa-múndi sobre o qual clicamos em “Variable”, escolhemos “Sea level rise” e colocamos o cursor no ponto do mapa correspondente à região “East Asia”. Na parte inferior do ecrã aparece-nos um gráfico no qual é possível extrair o valor da subida do nível do mar a curto, médio e longo prazo. Poder-se-á estimar que a subida nessa região seria de cerca de 1 m em 2100. Procedendo analogamente para outras variáveis, como, por exemplo, o aumento da temperatura máxima anual, podemos concluir que seria de aproximadamente 3 ºC em 2100. Isto para o cenário designado por SSP5-8.5, que corresponde a altas emissões de GEE. O Atlas Interativo constitui, assim, uma ferramenta a que os assessores técnicos dos governos poderão usar no sentido aconselhar os decisores políticos sobre a tomada de medidas, no sentido de atenuar a vulnerabilidade dos respetivos territórios, adaptando as estruturas de modo a melhor enfrentarem as alterações climáticas. [i] hPa (Hectopascal) – unidade de pressão correspondente a 100 Newton por metro quadrado. Antigamente designava-se por milibar (mb).
Olavo Rasquinho Vozes6º Relatório do IPCC – Alterações climáticas 2021 Como é sabido, a Organização das Nações Unidas foi criada com a missão de promover a paz no nosso planeta. A primeira organização internacional com esse objetivo, a Liga das Nações, iniciou a sua atividade logo após a primeira guerra mundial, em 1919. Apesar de ter falhado ao não conseguir evitar a II guerra mundial, a Liga serviu de inspiração para o nascimento da ONU, em 1945. A atividade das Nações Unidas não se limita a aspetos relacionados com a paz mundial. Entre as suas várias agências especializadas e programas destacam-se a Organização Meteorológica Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, sob os auspícios dos quais foi criado o IPCC, em 1988, com o intuito de monitorizar as alterações climáticas e disponibilizar, para os decisores políticos, avaliações regulares sobre essas alterações, os seus impactos, riscos futuros e opções de adaptação e mitigação. Ao longo dos seus 33 anos o IPCC já publicou, além de outros documentos intermédios, cinco Relatórios de Avaliação (Assessment Reports – AR) completos sobre a evolução das alterações climáticas, e parte do sexto relatório (AR6), que foi dado a conhecer há algumas semanas. O Relatório de Avaliação anterior (AR5) havia sido divulgado em 2013. A periodicidade destes relatórios é de cerca de 6 anos. O mais recente sofreu atraso devido às circunstâncias relacionadas com a epidemia COVID-19. O IPCC não recorre a especialistas próprios, elabora os seus relatórios com base em estudos de centenas de cientistas pertencentes a diversas instituições, nomeadamente universidades, institutos e organizações intergovernamentais. O AR6 resulta das contribuições de três Grupos de Trabalho: Grupo de Trabalho I (Física como ciência base), Grupo de Trabalho II (Impactos, adaptação e vulnerabilidade) e Grupo de Trabalho III (Mitigação). A parte correspondente ao Grupo de Trabalho I foi apresentada em conferência de imprensa a 9 de agosto do ano corrente. As partes referentes aos Grupos de Trabalho II e III ainda não estão completas, prevendo-se a sua apresentação em fevereiro e março de 2022, respetivamente. Será também publicado um Relatório Síntese, nos fins de setembro desse mesmo ano. Uma das organizações intergovernamentais que tem vindo a colaborar com o IPCC, o ESCAP/WMO Typhoon Committee, tem o seu secretariado sedeado em Macau. A sua colaboração tem consistido na coordenação de estudos elaborados por meteorologistas e climatologistas dos catorze países e territórios daquela organização intergovernamental, situados nos limítrofes do noroeste do Pacífico Norte e do Mar do Sul da China. No caso específico do atual relatório, o Comité dos Tufões contribuiu com a publicação “Terceira avaliação dos impactos das alterações climáticas sobre os ciclones tropicais na região do Comité dos Tufões” (título original: Third assessment on impacts of climate change on tropical cyclones in the Typhoon Committee Region”), publicado em 2020. (Curiosamente o secretariado deste Comité está sedeado na Avenida 5 de Outubro, data da implantação da República Portuguesa, em 1910, a algumas centenas de metros do Largo General Ramalho Eanes, em Coloane, o que ilustra, em certa medida, a ligação histórica entre Macau e Portugal). A parte recentemente publicada, correspondente ao Grupo de trabalho I, é um extenso documento com 3.949 páginas, em que se apresentam, de modo exaustivo e com base científica, o estado atual do clima e os vários cenários que poderão condicionar a evolução das alterações climáticas em função da injeção de gases de efeito de estufa (GEE) e as suas implicações para o futuro do planeta. Como é prática habitual, foi também publicado o “Resumo para os Decisores Políticos” (Climate Change 2021 – The Physical Science Basis – Summary for Policymakers – SPM), que consiste num documento de 41 páginas, com linguagem mais acessível, não só sobre o estado atual do sistema climático e as suas possíveis alterações devido à ação antropogénica, mas também sobre como limitar as implicações dessas alterações nas diferentes regiões do globo. O SPM consta de quatro partes: A – O Estado Atual do Clima; B – Climas Futuros Possíveis; C – Informação Climática para Avaliação de Riscos e Adaptação Regional; D – Limitando Futuras Alterações Climáticas. No que se refere à parte A, há a salientar as seguintes constatações: 1) Não há dúvida que as atividades humanas têm vindo a provocar o aquecimento da atmosfera, do oceano e da terra. Têm ocorrido alterações rápidas e generalizadas na atmosfera, oceanos, criosfera e biosfera. 2) A escala de alterações recentes no sistema climático e o estado atual de muitos aspetos do clima são sem precedentes, desde há milhares de anos. 3) As alterações climáticas induzidas pelas atividades humanas estão a acentuar muitos extremos climáticos e meteorológicos em todas as regiões do globo, nomeadamente ondas de calor, precipitação intensa, secas e ciclones tropicais. A parte B do Resumo para os Decisores Políticos (Climas Futuros Possíveis) consta essencialmente dos resultados de modelos de previsão climática em resposta a cinco cenários diferentes, estabelecidos em função das quantidades de GEE injetadas na atmosfera, obtendo-se, assim, projeções dos aumentos de temperatura relativos a períodos a curto (2021-2040), médio (2041-2060) e longo prazo (2081-2100), tomando sempre como referência a temperatura média global referente ao período 1850-1900. Nos relatórios do IPCC são usados, entre outros, os seguintes termos para indicar a probabilidade de ocorrência dos resultados dos modelos: praticamente certo (99-100%), muito provável (90-100%), provável (66-100%), tão provável como improvável (33-66%), improvável (0-33%), muito improvável (0-10%), excecionalmente improvável (0-1%). Assim, quando se afirma que é muito provável que o aumento da temperatura no fim do corrente século, considerando o cenário de emissões muito altas, possa atingir valores entre 3,3 e 5,7 °C, é o mesmo que afirmar que a probabilidade de que tal aconteça é de 90% a 100%. O quadro resume o aumento muito provável da temperatura média global correspondente aos cinco cenários estabelecidos: Emissões muito baixas, Emissões baixas, Emissões intermédias, Emissões altas e Emissões muito altas. De acordo com este quadro, é muito provável que o aumento da temperatura a longo prazo (2081-2100) esteja compreendido entre 1,0 e 1,8 °C no cenário de baixas emissões de GEE. Analogamente, também no fim do século, no cenário emissões intermédias o aumento de temperatura seria muito provavelmente de 2,1 a 3,5 °C e no cenário de emissões muito altas, de 3,3 a 5,7 °C. Se não houver um esforço concertado a nível global para reduzir as emissões de GEE, a situação atual poderá evoluir de modo a ser enquadrada no cenário mais pessimista (usualmente referido como “business as usual”), é muito provável que o aumento da temperatura no fim do corrente século possa atingir valores entre 3,3 e 5,7 °C, o que seria catastrófico para a vida no nosso planeta. Ainda segundo o AR6, de acordo com estudos paleoclimáticos, foi há mais de 3 milhões de anos a última vez que a temperatura média do ar (em relação ao período 1850-1900) se manteve igual ou acima de 2,5 °C. A parte C do SPM (Informação Climática para Avaliação de Riscos e Adaptação Regional), trata de informações sobre como o sistema climático responde à influência da interação da atividade humana com fatores naturais e a própria variabilidade interna, tendo em vista o planeamento de medidas de adaptação e de redução de riscos à escala regional. A parte D (Limitando as Futuras Alterações Climáticas) debruça-se sobre a necessidade de limitar as futuras alterações climáticas, enfatizando que o controlo de possíveis climas futuros está intimamente relacionado com redução drástica das emissões de CO2. Realça também a constatação de que existe uma relação quase linear entre as emissões de dióxido de carbono produzido pelas atividades humanas e o aumento global da temperatura. Estabelece que para cada mil gigatoneladas de CO2 acumulado na atmosfera corresponde um aumento global de temperatura de cerca de 0,45 °C. O passar do tempo tem revelado que as projeções do IPCC são por vezes ultrapassadas pela realidade. Em certas regiões do globo o aquecimento tem sido superior ao previsto. Assim, por exemplo, a temperatura média do ar em zonas terrestres próximas do círculo polar ártico atingiu recentemente valores nunca registados, o que tem facilitado a ocorrência de incêndios na tundra e nas florestas da Sibéria onde, na cidade Verkhoyansk, a temperatura atingiu 37 °C em junho de 2020. O aumento de temperatura em regiões de latitudes tão elevadas tem vindo também a causar o degelo em vastas áreas em que o solo húmido permanece quase permanentemente gelado, formando o que se designa por pergelissolo (permafrost, em inglês) e que, ao fundir, provoca a libertação de grandes quantidades de metano, o que contribui para reforçar o aquecimento global. O aumento da temperatura nestas regiões tem sido duas vezes superior à média global. Comparado com o CO2, o metano, como gás de efeito de estufa, é cerca de 20 vezes mais potente, embora permaneça muito menos tempo na atmosfera. Outra implicação das alterações climáticas é o aumento do nível médio do mar, devido não só ao degelo de grande parte das calotas polares e de glaciares, mas também à dilatação provocada pelo aquecimento. Segundo medições obtidas via satélite, o nível do mar tem aumentado cerca de 3 cm por década. Através do AR6 pode-se ter acesso a um simulador que nos disponibiliza um mapa com as projeções de subida do nível do mar. Um sinal de que as alterações climáticas são uma realidade é o facto de ter chovido significativamente, em 14 e 15 de agosto do corrente ano, no ponto mais alto da Gronelândia, algo que nunca tinha acontecido desde que há registos das ocorrências de fenómenos meteorológicos. O tipo de precipitação normal nessa região é a queda de neve. A chuva contribui para acelerar o ritmo do degelo nas calotas polares. Este acontecimento ilustra bem uma das constatações do AR6 no que se refere ao agravamento das condições favoráveis ao degelo na Gronelândia, que tem vindo a acentuar-se nas últimas duas décadas devido às emissões de GEE.