A criosfera e o clima

A forma simplista de nos referirmos ao clima, definindo-o como um sistema constituído por cinco componentes (atmosfera, litosfera, hidrosfera, criosfera e biosfera) que interagem entre si, esconde uma verdade bem mais profunda que consiste no facto de se tratar de um sistema altamente complexo, o que levou o climatologista português Professor José Pinto Peixoto (JPP) (1922-1996), inspirado nas Confissões de Santo Agostinho1, a afirmar:

“Quid est clima? (O que é o clima?)

Si nemo a me quaerat, scio! (Se ninguém me perguntar, eu sei o que é!)

Si quaerenti explicare velim, nescio! (Se me perguntarem e eu quiser explicar, eu não sei!)”

Este sistema, de acordo com JPP e Abraham Oort na obra “Physics of Climate”2, escrita em coautoria (1992), está sempre a evoluir e deve ser considerado como uma entidade com vida própria (“[…] the climate is always evolving and it must be regarded as a living entity”).

Devido à confusão que por vezes se estabelece entre “tempo” e “clima”, talvez seja conveniente relembrar que são conceitos bem diferentes. Não é correto usar a expressão “condições climatéricas”, frequentemente referida para designar “condições meteorológicas” ou o “tempo”. Recordo-me frequentemente do desabafo de um colega meteorologista que se queixava que «sentia o ouvido arranhar» quando ouvia tal expressão. Por outro lado, o termo “climatérico”, não se deve empregar quando se pretende referir o “clima”. Trata-se de um galicismo que se pode confundir com “climactérico”, palavra que em medicina se refere ao período em que se verificam alterações físicas e psíquicas consideráveis (como, por exemplo, a menopausa e a andropausa). Para aumentar a confusão, e segundo o acordo ortográfico de 1990 (AO90), esse termo médico pode-se também escrever “climatérico”, como, aliás, é referido no Brasil.

Os conceitos de “clima” e “tempo” são diferentes. O primeiro refere-se, numa determinada região, às condições meteorológicas médias durante um período mais ou menos longo, de preferência não inferior a trinta anos, enquanto “tempo” (“condições meteorológicas” ou “estado do tempo”) se refere ao que está a acontecer ou a um período relativamente curto. Assim, por exemplo, não se deve afirmar que “o espetáculo ao ar livre foi adiado devido às condições climatéricas”, mas sim “o espetáculo ao ar livre foi adiado devido às condições meteorológicas”.

Todas as componentes do sistema climático têm grande importância e, embora a atmosfera seja a componente central, não se pode desprezar o papel que a criosfera desempenha, a qual está a diminuir de extensão em ritmo acelerado devido à fusão do gelo que a compõe. A implicação desta realidade sobre a sustentabilidade da vida na terra justifica que lhe dediquemos alguma atenção. A criosfera é constituída por grandes massas de gelo e de neve continentais, glaciares, gelo marinho, lagos e rios congelados, solo permanentemente congelado (permafrost), solo sazonalmente congelado e precipitação sólida.

A redução da área abrangida pelas camadas de gelo e de neve está a provocar diminuição do albedo3 (ou coeficiente de reflexão) médio do planeta. Quanto mais branca é uma superfície, maior é a radiação refletida, ou seja, maior o albedo. A neve e o gelo têm um albedo relativamente elevado, enquanto a água líquida tem um albedo menor, o que faz com que quanto menor for a área abrangida pelo gelo e neve, menor será a radiação solar refletida e, consequentemente, maior a radiação absorvida pelos oceanos.

Nas últimas décadas, devido aos gases de efeito de estufa (GEE), o aquecimento global tem causado o degelo de parte significativa da criosfera, o que, juntamente com a dilatação das massas de água oceânicas, também provocada por este aquecimento, continuará a provocar a subida do nível do mar. Segundo o “Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas sobre o Oceano e a Criosfera num Clima em Alteração” (The Intergovernmental Panel on Climate Change Special Report on the Ocean and Cryosphere in a Changing Climate), a taxa de aumento médio global do nível do mar, no período 2006-2015, foi cerca de 2,5 vezes a taxa referente ao período 1901-1990. Por outro lado, a fusão do gelo contido no permafrost implica a libertação de metano, um dos mais poderosos GEE, o que também contribui para a aceleração do aquecimento global.

O eventual desaparecimento de toda a criosfera, que atinge uma espessura de cerca de 4 km na parte leste da Antártida e 3 km na Gronelândia, teria consequências drásticas para a sustentabilidade do nosso planeta. Segundo cálculos de cientistas que colaboram com o IPCC, o desaparecimento total dos glaciares implicaria uma subida do nível médio do mar de cerca de 40 cm, a fusão das camadas de gelo da Gronelândia causaria um aumento de 7,2 m e se todo o gelo da Antártida fundisse a subida seria de cerca de 58 m! Entretanto, na segunda metade do século passado, a fusão parcial do gelo dos glaciares e das calotas polares já causaram um aumento do nível do mar de cerca de 2,5 cm, acrescido de cerca de 1 cm devido à fusão parcial do gelo que cobre a Gronelândia. Antevê-se que o ritmo desta subida continuará a aumentar, o que terá como implicações o aumento do fluxo migratório de populações que habitam zonas do litoral mais baixas, nomeadamente em algumas ilhas do Pacífico e do Índico e, num futuro a médio e longo prazo, também dos habitantes das zonas baixas do litoral de alguns países como Bangladeche, China, Índia e Países Baixos.

Imagens de satélite da NASA permitem constatar que a área abrangida pela extensão mínima do gelo marinho no Ártico, em 2012, era cerca de metade da extensão mínima referente a 1979.

De acordo com o IPCC, as alterações que se antevê que ocorram na criosfera e nos oceanos até ao fim do século XXI, dependem dos cenários de emissões de GEE adotados nos modelos climáticos. Assim, por exemplo, num cenário de altas emissões, as consequências serão bem mais graves do que num cenário de baixas emissões. No entanto, em qualquer dos cenários, a perda de massa de gelo, a degradação do permafrost e o aquecimento, a acidificação e a desoxigenação dos oceanos levar-nos-ão a situações em que a adaptação às alterações climáticas se torna cada vez mais difícil.

Referências

“Quid est ergo tempus?/Si nemo ex me quaerat, scio/si quaerenti explicare uelim, néscio” (Santo Agostinho, em “Confissões”)

Traduzida em mais de vinte línguas, esta obra, publicada em 1992 pelo American Institute of Physics de Nova Iorque, explica como os fenómenos ambientais interagem à escala global, recorrendo a uma abordagem integrada das componentes do sistema climático.

O albedo de uma superfície que reflete toda a radiação incidente é 1, enquanto o de uma superfície negra ideal, que absorve toda a radiação é 0. O albedo médio do globo terrestre é cerca de 0,3. O do gelo marinho é entre 0,5 e 0,7 e o do mar alto é cerca de 0,06.

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