Olavo Rasquinho VozesA indústria pecuária e as alterações climáticas Normalmente, quando se fala de alterações climáticas, o nosso pensamento associa-as imediatamente aos combustíveis fósseis (carvão mineral, petróleo, gás natural). Na realidade, a sua combustão liberta gases de efeito de estufa (GEE), os quais são a principal causa do aquecimento global e, consequentemente, das alterações climáticas. Os gases de efeito de estufa absorvem radiação emitida pelo sol (de pequeno comprimento de onda) e emitem radiação de grande comprimento de onda, na forma de calor, que aquece a Terra. Agem como se fossem um cobertor que envolve o globo terrestre. De uma maneira simplista, pode-se afirmar que o clima é caracterizado pelo comportamento médio dos fenómenos meteorológicos numa determinada região, durante um período de pelo menos de 30 anos, conforme recomendação da Organização Meteorológica Mundial. O conceito de clima é, no entanto, de tal maneira complexo, que até eminentes climatologistas se inibem em o definir. O Professor José Pinto Peixoto (1922-1996), o mais ilustre meteorologista e climatologista português, e um dos mais importantes a nível mundial, para ilustrar esta complexidade costumava afirmar, com um certo sentido de humor, «eu sei o que é o clima, mas se me pedirem para o definir eu não sei», numa alusão ao pensamento de Santo Agostinho quando se referia ao tempo nas suas “Confissões”: “Quid est ergo tempus ?/Si nemo ex me quaerat, scio/si quaerenti explicare uelim, néscio” (O que é o tempo?/ Se ninguém me perguntar, eu sei o que é/ Se me perguntarem e eu quiser explicar, eu não sei!). O sistema climático é composto pela atmosfera, hidrosfera, criosfera, litosfera e biosfera. A interação destas componentes, ativada pela energia solar, comanda o comportamento dos fenómenos meteorológicos e, consequentemente, do clima. Sendo a atmosfera a componente com ação mais direta neste sistema não é de estranhar que a alteração da sua composição se reflita no clima à escala global. Apesar dos esforços das Nações Unidas através das suas agências especializadas, que se traduzem nomeadamente no Protocolo de Quioto e em vinte e sete Conferências das Partes (Conferences of the Parties – COP), a realidade é que os valores da concentração do dióxido de carbono, o principal gás de efeito de estufa, em vez de diminuírem, têm aumentado. A concentração média de CO2 à escala global é atualmente aproximadamente 420 partes por milhão (ppm) enquanto que no início da era industrial era cerca de 280 ppm. Há cerca de 12 mil anos o homo sapiens deixou de ser nómada e passou a organizar-se em assentamentos que a pouco e pouco deram origem a aldeias, vilas e cidades. Deixando de praticar a atividade de recoletores-caçadores, os nossos ancestrais sedentarizaram-se e dedicaram-se à agricultura e à domesticação de animais selvagens, que passaram a ser explorados não só para alimentação, mas também para executar tarefas, como trabalhos agrícolas, transporte de pessoas e bens, etc. À medida que a população mundial tem vindo a aumentar, estas práticas também se intensificaram, o que levou à adaptação de terrenos de modo a torná-los próprios para a agricultura, resultando na destruição de florestas e, consequentemente, na diminuição da biodiversidade. No caso da Amazónia, o desmatamento está intimamente ligado à criação de pastagens para o gado bovino. O aumento da população fez também com que se procedesse à criação e abate intensivo de animais, o que se tornou numa gigantesca indústria. Embora não seja dada a mesma ênfase aos estragos que a pecuária provoca no ambiente, comparativamente aos combustíveis fósseis, a realidade é que essa indústria, devido à desflorestação, ao pastoreio intensivo e deterioração do solo em vastas regiões, é uma das principais causas da degradação do ambiente e do aquecimento global. Assim sendo, não se compreende a não tomada de medidas significativas no que se refere à reformulação dessa indústria. No entanto, na última Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade Biológica (COP15), logrou-se alcançar o Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal, em que se preconizam medidas que poderão levar ao corte de subsídios à pecuária intensiva. A indústria da carne implica a emissão de GEE, principalmente metano (CH4) e óxido nitroso (N2O), os quais são caracterizados por elevado potencial de aquecimento global. Para efeitos comparativos no que se refere à capacidade para contribuir para o aquecimento global, convencionou-se estabelecer o conceito “Potencial de Aquecimento Global” (Global Warming Potential – GWP) que nos permite avaliar a quantidade de calor que um GEE retém na atmosfera em comparação com o dióxido de carbono. Atribuindo ao dióxido de carbono o valor do Potencial de Aquecimento Global igual a 1, o GWP do metano e óxido nitroso são, respetivamente, cerca de 25 e 298. No entanto, a duração da permanência do metano na atmosfera é de cerca de dez anos, a do óxido nitroso mais de cem anos, enquanto que a do dióxido de carbono é superior a mil anos. Apesar de os GEE produzidos pela indústria pecuária não terem merecido tanta atenção por parte do IPCC como os produzidos pela combustão de combustíveis fósseis, a realidade é que a produção industrial de carne é responsável pela injeção na atmosfera de grandes quantidades de GEE. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization – FAO), 18% de todas as emissões dos gases do efeito estufa globais são provenientes da pecuária e a poluição causada por esta indústria tem grande impacto não só na atmosfera, mas também no solo e na água. Cerca de 60% dos gases gerados na produção de alimentos proveem da indústria da carne. Ainda segundo a FAO, para produzir 1kg de carne bovina são necessários aproximadamente 15.400 litros de água, recurso natural que está a tornar-se cada vez mais escasso. Estima-se que o consumo diário de uma pessoa que come regularmente carne é de cerca de 5.000 litros de água, enquanto que um vegetariano consome cerca de metade. Para que a atmosfera não sofra as consequências drásticas do aumento da concentração dos GEE, são necessários esforços não só no que se refere à diminuição drástica da utilização de combustíveis fósseis, mas também no sentido de restringir práticas relacionadas com a indústria pecuária. Para que tal se concretize, não compete apenas aos governos e às empresas pecuárias tomarem medidas nesse sentido, mas também a todos nós. A principal medida, além das que estão relacionadas com a redução do recurso aos combustíveis fósseis, poderá resumir-se ao seguinte: consumir menos carne e não contribuir para o desperdício de alimentos. Calcula-se que cerca de um terço dos alimentos é desperdiçado nos países avançados. Perante esta realidade, os governos deveriam inspirar-se na campanha lançada pelo Presidente da China, Xi Jinping, que considerou o hábito de desperdiçar comida como chocante e preocupante. Na sequência desta campanha alguns restaurantes agiram no sentido de diminuir o desperdício. Além da emissão de GEE, a indústria pecuária está associada à disseminação de doenças que afetam os humanos. São utilizadas quantidades exageradas de antibióticos a fim de se prevenirem doenças nos animais e acelerar o seu crescimento. Não se trata apenas de uma preocupação com a saúde animal, mas de medidas para aumentar a produtividade e, consequentemente, os lucros. Esta prática tem como consequência o aumento da resistência de bactérias que podem afetar a saúde dos que se alimentam de carne. A indústria pecuária implica também práticas nada éticas em relação ao bem-estar animal. É habitual, nos aviários, manterem-se as luzes acesas durante longos períodos para que os animais comam quase continuamente, contrariando o seu ritmo biológico. Em suma, comer menos produtos provenientes da indústria pecuária contribui não só para uma maior sustentabilidade do nosso planeta, mas também para a redução da propagação de doenças nos humanos como, por exemplo, obesidade, doença das vacas loucas, infeções causadas pelas bactérias E. Coli, MRSA, salmonela, etc. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesAs Nações Unidas e a luta contra a perda de biodiversidade Como tem vindo a ser alertado pelas Nações Unidas, as alterações climáticas e a degradação da biodiversidade são dois dos grandes problemas que afetam a sustentabilidade do nosso planeta. Perante esta realidade, a ONU organiza regularmente conferências das partes envolvidas (Conferences of the Parties – COP) com o intuito de atenuar ou até mesmo reverter as suas consequências. Talvez a mais conhecida destas conferências relativas às alterações climáticas seja a COP21, na qual foi alcançado o Acordo de Paris, em 2015. No que se refe à biodiversidade, realizou-se a 15ª COP, em Montreal, de 7 a 19 de dezembro de 2022. Considerada quase unanimemente um êxito pelos representantes de cerca de 190 países, esta conferência logrou atingir o chamado “Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal” (Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework). A COP15 para a biodiversidade realizou-se no âmbito das atividades da Convenção sobre a Diversidade Biológica (Convention on Biological Diversity – CBD), estabelecida em 1993, a qual tem como principal objetivo a tomada de medidas para a recuperação de ecossistemas naturais e evitar a perda acelerada da biodiversidade. Estava inicialmente prevista realizar-se em 2020 em Kunming, capital da província de Yunnan, na China, mas foi várias vezes adiada devido à pandemia COVID-19. Foi designado Presidente desta conferência o ministro da Ecologia e do Meio Ambiente da China, Huang Runqiu. A decadência vertiginosa do número de espécies animais e vegetais e a deterioração de ecossistemas naturais estão intimamente relacionadas com o aumento do número de habitantes do nosso planeta e consequente excesso de exploração agrícola, pesca, caça, desflorestação, uso exagerado de pesticidas, etc. Atualmente cerca de um terço dos terrenos estão degradados e aproximadamente um milhão de espécies correm risco de extinção. Para se ter uma ideia de como a população mundial tem aumentado, basta lembrar que se calcula que há cerca de 12 mil anos não excedia 5 milhões, em 2000 era de cerca de 6 mil milhões, atualmente é de 8 mil milhões e, segundo antevisão da ONU, será de 11,2 mil milhões em 2100. Por ser escassa a percentagem atual das áreas terrestres e marinhas protegidas, apenas cerca de 17% e 10% respetivamente, foram preconizadas medidas para serem aplicadas a médio e longo prazo, algumas das quais não agradarão certamente a certos setores da sociedade, atendendo a que foi decidido acabar com subsídios a atividades que ponham em perigo a preservação de determinadas espécies e ecossistemas. No Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal foram estabelecidas 23 metas a alcançar até 2030, e cinco objetivos até 2050. Das metas sobressaem as seguintes: – Mobilizar, junto a fontes públicas e privadas, pelo menos 200 mil milhões de dólares americanos por ano para financiamento de medidas de preservação e de recuperação da biodiversidade; – Assegurar que pelo menos 30% das áreas degradadas de ecossistemas terrestres, de águas interiores e costeiras e marinhas estejam efetivamente recuperadas; – Reduzir a quase zero a perda de áreas de grande importância para a biodiversidade; – Reduzir a metade o desperdício global de alimentos e reduzir significativamente o consumo excessivo e a produção de resíduos; – Reduzir a metade o excesso de nutrientes e o risco inerente ao uso de pesticidas e produtos químicos altamente perigosos; – Disponibilizar informação necessária aos consumidores para promover padrões de consumo sustentáveis; – Assegurar a participação plena e equitativa na tomada de decisões, sem descriminação de género, de pessoas com deficiência, povos indígenas e comunidades locais, e assegurar a proteção integral dos defensores dos direitos humanos ambientais. Os cinco objetivos, a alcançar até 2050, convergem no sentido da satisfação plena do preconizado nas 23 metas, na “Visão 2050 para a Biodiversidade” e no aumento progressivo do fundo para 700 mil milhões de dólares por ano. Ainda no que se refere à proteção da biodiversidade, os Estados Unidos da América (assim como Andorra, Iraque e Somália) não ratificaram a Convenção devido a razões de índole política. No entanto, os EUA têm manifestado uma atitude mais humana em relação a certas espécies animais do que alguns países que a ratificaram, como o Canadá, Dinamarca (Gronelândia), Japão, Noruega e Rússia, onde continua a ser permitido o aviltante abate de focas-bebés. Nos EUA esse tipo de caça é proibido, segundo a Lei de Proteção dos Mamíferos Marinhos (Marine Mammal Protection Act). As focas abatidas têm em geral menos de três meses, idade em que a sua pele é mais branca e macia, o que satisfaz as exigências da moda. É também oportuno recordar que a guerra na Ucrânia constitui não só um crime contra a humanidade, mas também contra a diversidade biológica. Milhares de animais selvagens e domésticos são vítimas de bombardeamentos indiscriminados. Estão também a decorrer graves atentados à biodiversidade no Mar Negro, onde deram à costa numerosos corpos de animais marinhos, vítimas das atividades dos navios russos. Segundo biólogos, a poluição sonora causada pelas manobras e disparos de mísseis nos navios de guerra e a radiação associada às emissões sonar provocam desorientação nos animais, o que os impede de se alimentar, além de lhes enfraquecer o sistema imunitário. Calcula-se que entre cinquenta mil e cem mil cadáveres de golfinhos deram recentemente à costa do Mar Negro, nas regiões de Odessa, Crimeia, Bulgária, Roménia e Turquia, vítimas da guerra ilegítima, ilegal e irracional que está a decorrer na Ucrânia. Também deram à costa russa, no mar Cáspio, milhares de cadáveres de focas. Segundo a organização conservacionista World Wildlife Fund (WWF) cerca de 20% das áreas protegidas da Ucrânia e 3 milhões de hectares de florestas foram afetados pela guerra. Oito reservas naturais e 10 parques nacionais permanecem sob controlo das tropas russas. Entretanto, a tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil, constitui fator de esperança no que se refere à recuperação da biodiversidade, na medida em que o Plano de Ação para Prevenção e Controlo do Desmatamento na Amazónia Legal, que esteve em vigor de 2004 a 2018, vai ser reposto, o que irá contribuir para a redução assinalável da desflorestação na maior floresta tropical do globo.
Olavo Rasquinho VozesOs Cem Anos de José Pinto Peixoto OS CEM ANOS DO PROFESSOR JOSÉ PINTO PEIXOTO Vem este texto a propósito dos cem anos do nascimento do cientista português mais conhecido internacionalmente na área da Meteorologia e da Climatologia. Se ainda estivesse entre nós, o Professor José Pinto Peixoto celebraria o seu centésimo aniversário em 9 de novembro de 2022. JPP ao longo do tempo JPP, como era conhecido pelos seus alunos, amigos e colegas, nasceu em 1922 em Miuzela, freguesia do concelho de Almeida, distrito da Guarda. A sua área de atuação era tão vasta, que não é fácil classificá-lo: meteorologista, climatologista, cientista, investigador, professor universitário, académico, humanista? Qualquer destas designações lhe assentam bem. METEOROLOGISTA A sua primeira ocupação profissional foi a de prever o tempo no então Serviço Meteorológico Nacional (SMN), do qual foi um dos fundadores. A formação em meteorologia foi inicialmente adquirida num estágio no Observatório Central Meteorológico do Infante D. Luís da Universidade de Lisboa (hoje Instituto Geofísico Infante Dom Luiz), em 1945/46. Antes, porém, em 1944, havia completado a licenciatura em Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A formação em meteorologia prosseguiu em 1947, ano em que frequentou o primeiro estágio para meteorologistas levado a cabo no SMN. Em 1948 frequentou a Universidade de Toronto e acompanhou as atividades de um serviço com mais de setenta anos de experiência, o Serviço Meteorológico do Canadá (fundado em 1871). Permaneceu no SMN desde a sua fundação (1946) até 1969, tendo desempenhado várias funções, nomeadamente meteorologista operacional em Lisboa (onde foi Chefe do Posto Central de Previsão do Tempo – PCPT), no Sal (Cabo Verde) e em Santa Maria (Açores), tendo vindo também a ser designado Diretor da Divisão de Estudos do SMN. Como chefe do PCPT procedeu à sua remodelação, introduzindo métodos modernos de análise e previsão do tempo, incluindo diagramas termodinâmicos para o estudo da estrutura vertical da atmosfera. Como diretor da Divisão de Estudos desenvolveu grande atividade como autor e orientador de numerosos trabalhos nas áreas da meteorologia e do clima, e na formulação dos conteúdos dos programas dos estágios para futuros profissionais de meteorologia, que estiveram na base da formação de várias gerações de meteorologistas. FACULDADE DE CIÊNCIAS E MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY Após ter terminado a licenciatura em Ciências Geofísicas (1952), ingressou nos quadros da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa como Assistente Extraordinário, encarregado da regência da cadeira de Meteorologia sem, contudo, ter quebrado os laços com o SMN. Em 1954, na sequência da atribuição de uma bolsa da Academia das Ciências de Lisboa, desenvolveu durante dois anos atividade na área da investigação no Departamento de Meteorologia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos da América, onde lhe foram atribuídos os títulos de Assistant Research Member e, mais tarde, o de Research Fellow no “Projeto da Circulação Geral da Atmosfera”. Deu também aulas teóricas em cursos pós-universitários do Departamento de Meteorologia do MIT e dirigiu os trabalhos de investigação relativos ao “Projeto das Circulações Planetárias”. No regresso a Portugal, em 1956, foi encarregado da regência das cadeiras de Termodinâmica e Elementos de Mecânica Estatística na Faculdade de Ciências de Lisboa. Apesar do seu trabalho não ter sido contínuo no MIT, foi-lhe atribuída, em 1957, a categoria de Staff Research Member. Em 1958, no âmbito do Ano Geofísico Internacional, colaborou ativamente no estudo do ciclo hidrológico à escala global e, nos anos sessenta e setenta do século passado, continuou a trabalhar no desenvolvimento de modelos de circulação geral. Foi considerado por Abraham Oort e Barry Saltzman, dois dos mais proeminentes cientistas americanos no estudo da meteorologia e do clima, como o maior especialista mundial do sistema hidrológico. A colaboração com o MIT contribuiu grandemente para a preparação da sua tese de doutoramento em Ciências Geofísicas, apresentada em julho de 1959 na Universidade de Lisboa, com o título “Contribuição para o Estudo da Energética da Circulação Geral da Atmosfera”, tendo-lhe sido atribuído por unanimidade o grau de “Doutor em Ciências Geofísicas”. Um dos elementos do júri, durante as provas de doutoramento, referindo-se à pretensão do MIT de que JPP viesse a integrar os seus quadros, teceu o comentário «eles estão à sua espera, com todo o seu poder tecnológico, e o senhor teima em ser português; só temos que lhe agradecer»[i]. Em maio de 1964 foi-lhe atribuído, por unanimidade, o título de Professor Agregado de Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, após a sua dissertação “Aplicação da Análise Espetral ao Estudo da Circulação Planetária da Atmosfera” e, em 1969, o de Professor Catedrático de Física, tendo ocupado esta cátedra até ser jubilado em 1992. Entretanto, durante uma das suas muitas deslocações a Massachusetts, em 1965, foi-lhe concedido pelo MIT o estatuto de Visiting Professor. Desempenhou as funções de Vice-Reitor da Universidade de Lisboa de 1969 a 1973 e foi nomeado Diretor do Instituto Geofísico em 1970, funções que desempenhou até 1996. No início da década de setenta declinou novamente o convite para ingressar nos quadros do MIT como professor porque, segundo ele, não só «tinha saudades cá da Pátria», mas também por ter sido convidado pelo então Ministro da Educação, Veiga Simão, para renovar o ensino da Meteorologia e da Geofísica em Portugal. CLIMATOLOGISTA Muito antes de as alterações climáticas serem um assunto recorrente nos meios de comunicação social, já JPP manifestava preocupação nessa área, através do livro de sua autoria “Influência do Homem no Clima e no Ambiente”. Também teve grande repercussão o seu livro “O Sistema Climático e as Bases Físicas do Clima”, ambos editados em 1987 pela Secretaria de Estado do Ambiente e dos Recursos Naturais. No entanto, a obra que lhe deu maior notoriedade em termos internacionais foi o livro “Physics of Climate”, em coautoria com Abraham Oort. Traduzida em mais de vinte línguas, esta obra, publicada pelo American Institute of Physics de Nova Iorque em 1992, refere-se ao clima como uma entidade com vida própria («… the climate is always evolving and it must be regarded as a living entity»). Nela se explica como os fenómenos ambientais interagem à escala global, recorrendo a uma abordagem integrada das componentes do sistema climático. “Physics of Climate” é ainda hoje, trinta anos depois da sua publicação, considerada de grande utilidade para estudantes e profissionais de meteorologia, climatologia, oceanografia e geofísica. INVESTIGADOR/ CIENTISTA JPP colaborou com o MIT durante quase 30 anos, embora de forma descontínua, em geral em períodos que abrangiam o Natal, a Páscoa e as férias de verão, de maneira a não prejudicar os seus alunos na Faculdade de Ciências de Lisboa. JPP desempenhou um papel importante como investigador, juntamente com outros cientistas do MIT, na investigação sobre modelos de circulação geral da atmosfera, que estiveram na base dos modelos atuais com os quais os centros mundiais de previsão do tempo elaboram as suas previsões meteorológicas à escala global. Segundo Barry Saltzman e Abraham Oort, a intensa colaboração de JPP com o MIT contribuiu grandemente para a formação de novas gerações de investigadores nas áreas do clima e da meteorologia. Quem conhecesse JPP apenas pelos seus trabalhos como cientista, podê-lo-ia imaginar como um indivíduo de cabelos compridos e revoltos, sorumbático, introvertido. Porém, na realidade, era exatamente o contrário. Com o cabelo cortado à escovinha, era extrovertido e extravasava boa-disposição. Era entusiasta, dinâmico, culto e bem-humorado. Como investigador, talvez o resultado mais espetacular do seu trabalho tenha sido a demonstração de que o deserto do Sara se comporta, tal como os oceanos, como uma fonte de vapor de água para atmosfera. Esta realidade foi corroborada pela constatação de que existe uma abundante quantidade de água subterrânea no Sara, em regiões abrangidas parcialmente pela Argélia, Líbia e Tunísia. Apesar de ter sido um dos cientistas de maior notoriedade do seu tempo, JPP não era um homem de certezas absolutas em relação à ciência. Baseado nas “Confissões” de Santo Agostinho, em que o santo se questionava sobre o que é o tempo (“Quid est ergo tempus[ii]?/Si nemo ex me quaerat, scio/si quaerenti explicare uelim, néscio”), JPP manifesta as suas dúvidas, escrevendo em latim, sobre o que é o clima: Quid est clima? (O que é o clima?) Si nemo a me quaerat, scio! (Se ninguém me perguntar, eu sei o que é!) Si quaerenti explicare velim, nescio! (Se me perguntarem e eu quiser explicar, eu não sei!) PRESIDENTE DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA Em 1980 foi designado Presidente da Classe de Ciências da Academia das Ciências de Lisboa e, de 1981 a 1995, foi eleito oito vezes Presidente, nos anos ímpares (nos anos pares a presidência era ocupada alternadamente pelos Presidentes da Classe de Letras). Nestas funções operou uma verdadeira revolução nas instalações, transformando salas degradadas em lugares acolhedores próprios para exposições e reuniões internacionais. Entre os muitos marcos importantes da carreira de JPP, conta-se a realização do simpósio comemorativo dos duzentos anos da Academia das Ciências, em 1981. As relações estreitas do Professor com investigadores de topo na área da Meteorologia e do Clima, permitiram que participassem eminentes cientistas, entre os quais Syukuro Manabe, que veio a ser um dos laureados com o Prémio Nobel da Física em 2021. Este evento teve grande repercussão nos meios científicos internacionais, tendo alcançado grande sucesso o livro “Theory of Climate”, editado em 1983 pela Academic Press, que consta de uma coletânea das comunicações nesse encontro internacional. Talvez influenciado pelas repercussões além-fronteiras das atividades da Academia, JPP gostava de afirmar, com o tom jocoso que o caracterizava, que «somos conhecidos dos Pirenéus para lá, mas ignorados de Vila Franca de Xira para cá». PROFESSOR Como professor tinha qualidades de comunicação extraordinárias, e a sua atitude para com os alunos sempre foi caracterizada como sendo de grande abertura. As aulas eram interativas e dinâmicas, de modo que os alunos eram frequentemente solicitados a dialogar com ele. Era hábito de JPP dirigir-se a alguns dos seus alunos, com os quais se sentia mais à vontade, dando-lhes uma pancada amigável no pescoço ou, durante as aulas, uns toques na cabeça com o ponteiro. Tal aconteceu comigo quando estava distraído numa aula de Meteorologia, depois de uma noite a trabalhar como “previsor” no Posto Central de Previsão do Tempo. «O amigo está a dormir!», e lá vai uma pancadinha com o ponteiro. Não procedia assim com todos, claro, na medida em que poderia haver reações desagradáveis de alguém que pudesse não gostar desse tipo de brincadeiras. Foi o caso, por exemplo, de um colega do SMN que, perante um carolo que lhe causou em certo incómodo, reagiu afirmando «com a idade que tenho nem o meu pai me bate!». Nas aulas ilustrava alguns dos conceitos da física com exemplos da vida do dia-a-dia, o que facilitava a sua assimilação: «A bica é o exemplo à mão do processo termodinâmico irreversível», ou (para ilustrar, dentro de certa medida, a equação da continuidade) «Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem» são exemplos dessa sua atitude. O seu bom-humor manifestava-se frequentemente recorrendo a chistes como, por exemplo, aquilo que ele chamava a Regra dos Três Pês: «Não há nada mais perigoso do que Professor novo, Prostituta velha e Pistola encravada». HUMANISTA Como humanista é de realçar a sua personalidade solidária com os que o rodeavam. Frequentemente se mostrava preocupado com o seu bem-estar, fossem eles familiares, colegas, alunos ou funcionários. É também de salientar a sua contribuição ao incentivar os jovens para seguirem o exemplo dos seus ancestrais mais ilustres, como aquando do lançamento do seu livro “Miuzela, a Terra e as Gentes”, obra de caráter intimista em ele relembra com saudade as figuras que marcaram a sua infância e manifesta o seu carinho pela terra onde nasceu. Nas suas muitas palestras não era raro mencionar pensamentos de figuras proeminentes que condiziam com a sua maneira de ser. É conhecida a citação de Sir Charles P. Snow, novelista e físico-químico inglês (1905-1980), autor do ensaio The two Cultures, por vezes invocada por JPP, «É tão pecado mortal para um elemento da Primeira Cultura (Humanidades) não saber a lei da entropia, como é, para um cientista (Segunda Cultura) não saber quem foi Shakespeare». Assim, como Charles Snow, JPP defendia a construção de pontes para aproximar os profissionais das duas áreas, com o objetivo de beneficiar a sociedade por meio do aprofundamento do conhecimento humano. CIDADÃO JPP teve uma educação religiosa, o que poderá ter contribuído para que, em termos ideológicos, possa ser caracterizado por um certo conservadorismo. Mais do que uma vez, quando casualmente nos encontrávamos, comentava, pondo o braço sobre os meus ombros, «o amigo é da sinistra…, mas da sinistra civilizada!» (Note-se que, em latim, língua que JPP dominava, “sinistra” significa “esquerda”). Numa outra ocasião, em pleno PREC, creio que em 1975, encontrei-o casualmente no aeroporto de Lisboa com “O Diabo” (conhecido jornal assumidamente de direita) debaixo do braço, e aparentemente constrangido terá afirmado que não era dele, mas de pessoa amiga que estava na bicha do check-in, ao que comentei que mesmo que o jornal fosse dele, ninguém teria nada a ver com isso, pois estávamos, finalmente, num país livre. JPP era caracterizado por uma inteligência muito acima da média, mas tinha por vezes dificuldade no desempenho de algumas tarefas comuns. Por exemplo, a sua habilidade para conduzir veículos não era das melhores. Assisti à dificuldade que ele enfrentou ao entrar com o seu automóvel (salvo erro, um Vauxhall), na larga entrada da Alameda das Palmeiras da então Faculdade de Ciências de Lisboa (atualmente Museu Nacional de História Natural e da Ciência). Tentou entrar com um ângulo inadequado, obrigando-o a fazer manobras em plena rua bastante movimentada. Recordo também de lhe ter dado boleia, a seu pedido, para a Cidade Universitária. Não se sentia, segundo ele, com disposição para enfrentar o trânsito. De acordo com testemunhos de colegas meteorologistas que com ele trabalharam operacionalmente, talvez por à previsão do tempo estar intrinsecamente associada alguma incerteza, JPP manifestava por vezes dificuldade na linguagem a usar nos boletins para informação do público. PRÉMIOS E OUTRAS HONRARIAS JPP foi galardoado com vários prémios, nomeadamente o Prémio Artur Malheiros das Ciências Físicas e Químicas da Academia das Ciências de Lisboa (1960); o Prémio Boa Esperança da Ciência e Tecnologia (1989), atribuído pela Junta Nacional de Investigação Científica (atual Fundação para a Ciência e Tecnologia); novamente o Prémio Boa Esperança (1992). Foi condecorado pelo Presidente Mário Soares com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago e Espada em 1993. Em sua homenagem, o seu nome foi atribuído a várias associações, bibliotecas, ruas, etc., nomeadamente: Associação Casa de Cultura Professor Doutor José Pinto Peixoto (Miuzela, Almeida); Centro de Documentação Pinto Peixoto (INMG-Lisboa); Biblioteca José Pinto Peixoto (Instituto Dom Luís da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa); Rua Professor Dr. José Pinto Peixoto (Porto Salvo, Oeiras); Residência Professor José Pinto Peixoto (Iscte – Instituto Universitário de Lisboa); Prémio Nacional José Pinto Peixoto – Ensino Secundário. Em 2003 foi-lhe erigida uma estátua, no Campo Grande, em Lisboa, frente à Faculdade de Ciências. O FECHAR DO CÍRCULO O Professor faleceu em 6 de dezembro de 1996, cerca de quatro meses depois de regressar às suas origens, onde apresentou o seu livro “Miuzela – a Terra e as Gentes”. NOTAS: Este artigo consta de um resumo do texto com o título “Os cem anos do Professor José Pinto Peixoto”, do mesmo autor, a publicar na Newsletter da Associação Portuguesa de Meteorologia e Geofísica (APMG) Agradecimentos a José Rui Amaral, Pedro Alves, Luís Pinto Coelho, Oliveira Pires e à equipa que preparou os números 5 e 6 da 3ª Série – 1987 de “Meteoro” (Boletim do Centro Cultural e Desportivo da Casa do Pessoal do Instituto de Meteorologia e Geofísica) [i] Segundo Mário F. Figueira, em “Meteoro” – Nº 6 da 3ª Série, março de 1987 [ii] Aqui a palavra “tempus” refere-se ao tempo mensurável pelo relógio, e não ao tempo meteorológico
Olavo Rasquinho Vozes42º Artigo – A meteorologia e a guerra da Crimeia As guerras, através da história da humanidade, têm sido a concretização de ódios fomentados por nacionalismos exacerbados ou grandes interesses, sejam eles económicos, religiosos ou outros. Apesar da desgraça e da morte, estão associados às guerras progressos assinaláveis no que se refere ao desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias. Melhor seria que não houvesse esse progresso tão rápido e que a evolução da ciência fosse mais lenta, tendo como finalidade apenas o bem-estar e a sustentabilidade do nosso planeta. Infelizmente não é assim, e desde que o homo sapiens aprendeu a arremessar pedras e a manipular utensílios, quer para fins defensivos, quer ofensivos, parte desse progresso resulta no aperfeiçoamento e no desenvolvimento de armas cada vez mais sofisticadas e destrutivas. A evolução tem sido de tal forma rápida que, mais do que uma vez num curto período de algumas dezenas de anos, a humanidade e o nosso planeta estiveram prestes a serem vítimas de um desencadear de acontecimentos que poderia levar à sua destruição. Foi o que aconteceu durante a crise dos mísseis em Cuba em 1962, e mais recentemente no decurso da corrente Guerra da Ucrânia. No caso desta última, ameaças sobre a utilização de armas nucleares têm vindo a ser manifestadas de forma implícita, e por vezes bem explícita, por responsáveis (eu diria irresponsáveis) altamente colocados na hierarquia do país agressor. Em contrapartida, a ciência avançou de tal forma que a esperança de vida aumentou significativamente nas últimas décadas. Numa área mais restrita, a ciência que trata do estudo das condições meteorológicas e da sua evolução espaciotemporal, a Meteorologia tem prestado incomensuráveis benefícios à humanidade. O caso que pretendo focar constitui um bom exemplo de como um episódio trágico na Guerra da Crimeia de 1853-1856 ilustra bem o aproveitamento de um evento altamente destrutivo para o avanço da Meteorologia. Vejamos então como se processou este evento e quais as suas consequências para o progresso na área da previsão do tempo. Antes, porém, foquemo-nos um pouco na história da Crimeia. Este território, que constitui uma república autónoma pertencente oficialmente à Ucrânia, consiste numa pequena península no sul deste país que separa o Mar Negro do Mar de Azov. Pela sua localização constitui um território de grande importância sob o ponto de vista estratégico, pois situa-se numa região que sofreu a influência de diferentes domínios, nomeadamente o Império Otomano e o Império Russo. Foi habitada por povos com características muito diversas, entre eles os cimérios, romanos, hunos, otomanos e tártaros. O Império Russo, com a czarina Catarina, a Grande, à sua frente, anexou a Crimeia em 1774, na sequência de uma guerra entre os Impérios Russo e Otomano. Em pleno século XX, mais precisamente em 1954, os dirigentes da URSS decidiram transferir a Crimeia da República Socialista Soviética da Rússia para a República Socialista Soviética da Ucrânia, o que foi considerado um ato simbólico de homenagem à amizade entre os povos das duas repúblicas. Nessa altura não era significativo que a Crimeia pertencesse à Rússia ou à Ucrânia, na medida em que ambas as repúblicas estavam sob a alçada do mesmo governo central, o governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Após o colapso da URSS, em 1991, e da proclamação da independência da Ucrânia no mesmo ano, desencadeou-se uma série de acontecimentos que fizeram com que a Crimeia fosse anexada pela Federação Russa, em 2014. Esta anexação até parece ter sido lógica, na medida em que a população da península era maioritariamente de origem russa, o que resultou do facto de que grande parte dos seus habitantes, na sua maioria tártaros, terem sido expulsos em 1944, na sequência das medidas tomadas por Estaline no sentido da deslocação de milhões de cidadãos de umas regiões da URSS para outras. Os autóctones passaram a ser uma minoria, uma vez que os tártaros que haviam sido expulsos e os seus descendentes só foram autorizados a regressar depois da Perestroica, razão pela qual a etnia russa passou a maioritária. A ocupação deu-se através de uma engenhosa invasão em que praticamente não foram disparados tiros, a seguir à qual foi feita uma consulta à população, boicotada pelas minorias ucraniana e tártara e considerada ilegal pela Assembleia-Geral da ONU de 27 de março de 2014. Na sequência do resultado deste plebiscito (95,5% no sentido da integração), a República da Crimeia e a cidade Sebastopol passaram a ser as 84ª e 85ª entidades federais da Federação Russa. Voltando à razão deste texto, foquemo-nos na Guerra da Crimeia de 1853-1856, que opôs o Império Russo à aliança constituída pelo Reino Unido, França, Império Otomano e o Reino da Sardenha. No decurso desta guerra, em 14 de novembro 1854, cerca de 40 navios da esquadra franco-anglo-turca foram afundados por uma forte tempestade no Mar Negro. Este acontecimento contribuiu grandemente para reforçar a ideia da necessidade da criação de um serviço meteorológico internacional, que tivesse como objetivo a observação e registo dos vários parâmetros meteorológicos em diferentes países, e a sua transmissão para os diferentes centros meteorológicos nacionais. Assim, estes poderiam acompanhar a formação, intensificação e percurso de eventuais tempestades, o que permitiria a tomada de medidas no sentido de atenuar as suas consequências. No caso concreto do naufrágio da armada franco-anglo-turca, poder-se-ia ter evitado a destruição de grande parte dos seus navios se essa prática já existisse nessa altura. Mediante este desaire, o astrónomo Urbain Jean Joseph Le Verrier (1811-1877) foi incumbido pelo Imperador Napoleão III de criar um serviço meteorológico em França (Service Météorologique de l’Observatoire de Paris) em 1854. Uma das primeiras tarefas deste serviço consistiu, em 1855, na recolha de valores de parâmetros meteorológicos (pressão atmosférica, temperatura, direção e velocidade do vento, nebulosidade, precipitação, etc.) registados por outros observatórios então existentes, referentes à data do naufrágio e a alguns dias antes. Le Verrier, através do traçado das isóbaras (linhas que unem pontos com igual pressão atmosférica) concluiu que se havia formado a noroeste da Europa, dois dias antes (12 de novembro), uma zona de baixas pressões que se deslocou para sueste, acabando por atingir a região do Mar Negro em que navegava a esquadra. As cartas traçadas por Le Verrier foram das primeiras cartas sinóticas, na sequência do que já havia sido tentado pelo físico alemão, Heinrich Wilhelm Brandes (1777-1834) que, segundo se consta, traçou a primeira carta sinótica no início da década 1820-1830. Cerca de 10 anos após o naufrágio começaram a ser publicados em França boletins com cartas meteorológicas. Na época em que Brandes viveu, ainda não era possível a transmissão em tempo real dos valores dos parâmetros observados, o que só passou a realizar-se a partir da invenção do telégrafo elétrico, em 1835, por Samuel Morse. No entanto, a troca de mensagens meteorológicas só passou a ser feita de forma mais expedida a partir de 1896, ano do registo da descoberta da telegrafia sem fios (TSF) que se deve, entre outros, a Guglielmo Marconi. Alguns dias antes do trágico naufrágio, iniciou-se em Portugal o funcionamento do Observatório Meteorológico do Infante D. Luís (OMIDL), na então Escola Politécnica de Lisboa, em 1 de outubro de 1854. A partir desta data passaram-se a registar observações meteorológicas em Lisboa sem interrupção. O Professor Guilherme Pegado, natural de Macau, foi o grande impulsionador da criação deste observatório, podendo por isso ser considerado o fundador da meteorologia de Estado em Portugal. O Serviço Meteorológico Nacional só foi criado cerca de 92 anos mais tarde, em 1946, o qual resultou da fusão de uma série de serviços departamentais não coordenados entre si. O SMN deu origem mais tarde ao Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG), Instituto de Meteorologia (IM) e ao atual Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Apesar de a Guerra da Crimeia 1853-1856 ter sido uma tragédia que se estima ter custado cerca de 650.000 vidas, um dos episódios que a caracterizou serviu de incentivo à criação do Service Météorologique de l’Observatoire de Paris, em 1854, e mais tarde a uma organização internacional com a missão de coordenar, a nível mundial, as atividades relacionadas com o tempo, o clima e os recursos hídricos. Esta veio a designar-se por Organização Meteorológica Mundial, agência especializada das Nações Unidas. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesOs Mártires da floresta Amazónica Estamos habituados relacionar a Amazónia com o Brasil mas, na realidade, trata-se de uma vasta floresta tropical que se estende por territórios de nove países. É certo que a maior parte se distribui pelo Brasil (cerca de 60%) e Colômbia (cerca de 13%), estendendo-se os restantes 27% pela Venezuela, Equador, Bolívia, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. O termo Amazónia provém do nome do rio Amazonas que, por sua vez, adquiriu esta designação a partir do pressuposto que foram avistadas guerreiras nas suas margens, as quais foram comparadas às amazonas da mitologia grega pelo explorador espanhol Francisco de Orellana, que navegou pelo rio desde os Andes até ao Atlântico, tendo atingido a foz em agosto de 1542. O sistema climático (composto por atmosfera, litosfera, criosfera, hidrosfera e biosfera) depende grandemente de uma das suas componentes, a biosfera, na qual estão inseridas as florestas. A Amazónia desempenha um importante papel no que se refere à atenuação das alterações climáticas, na medida em que se trata da mais vasta floresta tropical, abrangendo uma área de cerca de 5,5 milhões de km2. Constitui uma fonte de oxigénio para a atmosfera e um sumidouro de dióxido de carbono, contribuindo assim para a atenuação da concentração dos gases de efeito de estufa produzidos pelas atividades antropogénicas. Acontece, porém, que está a ser alvo de atentados perpetrados pelos humanos, muito mais intensos desde que a administração do Brasil é chefiada por Jair Bolsonaro. De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazónia (Ipam), a desflorestação da floresta amazónica em território brasileiro aumentou cerca de 56% de 2016-2018 para igual período de 2019-2021 (respetivamente de 20.911 km2 para 32.740 km2), correspondendo este triénio aos primeiros anos do governo atual do Brasil. Estes valores foram obtidos com recurso a satélites pelo insuspeito Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), cujo diretor, Ricardo Galvão, foi demitido por Bolsonaro em 2019 pelo facto de ter permitido a divulgação destes dados. A desflorestação para exploração da madeira e os incêndios, tendo em vista a exploração agropecuária, têm como implicação a aproximação cada vez maior do ponto de não retorno da capacidade de regeneração da Amazónia, que poderá vir a transformar-se numa imensa savana. Portanto, existe o risco desta floresta passar de sumidouro do dióxido de carbono da atmosfera para uma fonte deste gás. O risco desta inversão do papel da floresta poderá contribuir para o aquecimento global e tornar mais difícil o caminho para o combate às alterações climáticas. Além disso, a destruição de que está a ser alvo contraria os direitos dos povos autóctones, expressos na constituição do Brasil de 1988, em que é reconhecido o facto histórico que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil e, como tal, têm o direito a ocupar a terra onde nasceram. Devido à riqueza que encerra, a Amazónia tem sido alvo de frequentes atentados motivados pela ganância, nomeadamente de garimpeiros, agricultores, caçadores e pescadores sem escrúpulos. Contra estas atividades, frequentemente ilegais, têm-se levantado vozes de ativistas, o mais célebre dos quais foi Francisco Alves Mendes Filho. Chico Mendes, como era conhecido, nasceu em 1944 e foi assassinado em 1988, em Xapuri, no Estado do Acre. Na altura em que desenvolvia a sua atividade, o conceito de “alterações climáticas” não era ainda tão popular como nos nossos dias. Apesar disso, pode-se considerar Chico Mendes como um dos pioneiros das lutas contra essas alterações. Foi uma das vozes que mais se fez ouvir, nas décadas de setenta e oitenta do século passado, em defesa dos seringueiros da Bacia do Amazonas cuja subsistência dependia da floresta amazónica. Na qualidade de sindicalista lutou contra a destruição da floresta e em defesa dos povos indígenas, o que não foi do agrado dos grandes fazendeiros que pretendiam destruir grandes extensões de arvoredo para as substituir por pastagem para gado. Chico Mendes, assassinado em 1988 Muitos outros ativistas foram também vítimas da ganância de grandes fazendeiros. A missionária norte-americana Dorothy Stang teve o mesmo destino de Chico Mendes: foi assassinada no Estado do Pará, em 2005, a soldo de madeireiros e proprietários de terras. Dorothy Stang, assassinada em 2005 Também no Pará, em 2011, foram assassinados os cônjuges José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, ambos defensores da floresta, vítimas de interesses de madeireiros e criadores de gado. Os executores do assassinato deste casal foram condenados, mas os mentores, por falta de provas, continuam em liberdade. José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinados em 2011 Ainda em 2011, em Porto Velho, capital da Rondónia, foi assassinado Adelino Ramos, ativista do direito à terra, após denúncia de exploração ilegal de madeira. Adelino Ramos, assassinado em 2022 Segundo o Relatório da ONG Global Witness, referente a 2019, houve neste ano 24 assassinatos relacionados com ativismo em defesa do ambiente em território brasileiro, 90% dos quais ocorreram na Amazónia. Quase todas as vítimas lutavam contra a desflorestação, em grande parte causada por grandes projetos relacionados com a agricultura e a extração mineira. Os defensores da Amazónia tiveram recentemente mais um rude golpe. O jornalista britânico Dom Phillips e o antropólogo e indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira foram assassinados em junho de 2022, em plena Amazónia. Dedicavam-se ambos a investigar atividades ilegais que constituíam verdadeiros atentados à natureza, nomeadamente às comunidades indígenas e à biodiversidade. Dom Phillips trabalhava para várias publicações de grande prestígio, como o Financial Times, The Washington Post, The New York Times e The Guardian. Era também colaborador da Fundação Oswaldo Cruz, instituição de grande prestígio internacional, com atividades nas áreas da saúde, desenvolvimento social, promoção e difusão do conhecimento científico. Segundo o The Guardian, Phillips estava a escrever um livro na área do desenvolvimento sustentável que teria o título “Como Salvar a Amazónia”. Dom Phillips e Bruno Pereira, assassinados em 2022 Bruno Pereira, profundo conhecedor da vida indígena, ajudava Dom nas entrevistas a membros das comunidades amazónicas. Sob pressão de interesses ligados à exploração da floresta, foi exonerado das suas funções como indigenista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) pela administração de Jair Bolsonaro, em 2019. De acordo com dirigentes das comunidades indígenas, Bruno Pereira já havia sido ameaçado por garimpeiros, pescadores e madeireiros. Ambos regressavam de uma visita à Amazónia brasileira nas vizinhanças do Peru e Colômbia. Além destes assassinatos, muitos outros ocorreram, tendo sido a maioria das vítimas membros anónimos das comunidades indígenas. De acordo com uma declaração da Universidade Federal da Baía sobre os assassinatos de ativistas defensores do ambiente, datada de 16 de junho de 2022, o aumento da violência na Amazónia é atribuído ao desmonte de órgãos e políticas públicas de proteção do meio ambiente e ao não reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. A melhor homenagem que se pode prestar a Bruno Pereira, Dom Phillips e a todos que foram vítimas dos interesses ligados aos exploradores sem escrúpulos da Amazónia, é continuar a luta pela responsabilização dos mandantes dos atentados, exigir do Governo do Brasil o reconhecimento dos direitos dos povos autóctones, conforme o estabelecido pela Constituição de 1988, zelar pela manutenção da biodiversidade e proceder à exploração dos recursos naturais de forma sustentável.
Olavo Rasquinho VozesDeclaração de Lisboa sobre os oceanos A temperatura da atmosfera e dos oceanos continua a aumentar, as calotas polares, os glaciares e o gelo marítimo estão a fundir e, como consequência, o nível médio do mar sobe e a erosão costeira intensifica. Além disso, a acidez dos oceanos tem aumentado, o que afeta numerosos ecossistemas oceânicos, entre os quais os bancos de corais, de grande importância para a manutenção da biodiversidade marítima, na medida em que a sua degradação dificulta a reprodução de numerosas espécies piscícolas. Por outro lado, o uso indiscriminado do plástico tem tido como consequência a poluição dos oceanos de tal maneira que já foram detetados vestígios na zona oceânica mais profunda, a fossa das Marianas, no Oceano Pacífico, a uma profundidade de cerca de 11.000 metros. Segundo cálculos das Nações Unidas, os oceanos são recetáculo de cerca de onze milhões de toneladas por ano de material plástico. A situação é de tal maneira grave que partículas ínfimas de plástico já entraram na cadeia alimentar humana. Também o uso exagerado de adubos e pesticidas nas explorações agrícolas contribuem para a poluição dos oceanos, devido ao arrastamento de produtos químicos para os rios que, por sua vez, os transportam para o mar, afetando a fauna e a flora. As Nações Unidas, ciente de que são as atividades humanas a causa principal da degradação dos oceanos, designou o período 2021-2030 por “Década da Ciência dos Oceanos para o Desenvolvimento Sustentável”. Na cimeira da ONU, realizada em 2015 em Nova Iorque, foram estabelecidos 17 objetivos, inseridos na “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, a qual foi formulada com o intuito de erradicar a pobreza até 2030, e proceder ao desenvolvimento económico, social e ambiental, à escala global. O 14º destes objetivos consiste em “conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marítimos para o desenvolvimento sustentável”. Com a finalidade de contribuir para a implementação deste objetivo foi organizada, por Portugal e Quénia, a Segunda Conferência dos Oceanos da ONU, que decorreu em Lisboa, de 27 de junho a 1 de julho de 2022, sob o tema “Salvar os Oceanos, Proteger o Futuro”. Este encontro veio na sequência da primeira conferência que se realizou em Nova Iorque, em 2017, com a finalidade de contribuir para os esforços, à escala global, para a preservação dos oceanos. Estiveram presentes no encontro de Lisboa cerca de 6.700 participantes de 159 países, entre os quais 15 Chefes de Estado, um Vice-Presidente e 124 ministros. Na cerimónia de abertura da conferência, António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, frisou que hoje enfrentamos o que ele designou por “Emergência do Oceano”, e que é altura de alterarmos o nosso comportamento. Os oceanos, rios, lagos, mares e águas subterrâneas, compõem a hidrosfera, a qual, juntamente com a atmosfera, criosfera, litosfera e biosfera constituem o sistema climático. É na superfície dos oceanos, que ocupa cerca de 70% da área do globo, nas regiões compreendidas aproximadamente entre 7 e 30 graus de latitude, em ambos os hemisférios, que se formam os ciclones tropicais (exceto no Atlântico Sul). Estas tempestades, quando se desenvolvem e progridem para latitudes mais altas, transportam energia, o que contribui, conjuntamente com as correntes marítimas, para o equilíbrio do sistema climático. Por outro lado, desenvolvem-se ecossistemas, no seio dos oceanos, que contribuem para a mitigação das alterações climáticas e abastecem a humanidade de recursos alimentares, minerais e energéticos, imprescindíveis para o bem-estar e o desenvolvimento económico da humanidade. Foram os seguintes alguns dos principais assuntos tratados nesta conferência: – O papel dos oceanos na mitigação e adaptação climática; – Preservação da biodiversidade e estabelecimento de instrumentos vinculativos sobre o combate à poluição causada pelo uso abusivo do plástico; – Desenvolvimento de ações de proteção da biodiversidade; – Combate à pesca ilegal, não declarada e não regulamentada, com recurso a ferramentas tecnológicas para monitorização e vigilância; – Aperfeiçoamento dos dados sobre o ambiente marinho e sua divulgação e partilha; – Criação de sinergias e parcerias a níveis nacional e regional, incluindo o envolvimento do setor privado, promovendo oportunidades inovadoras de financiamento para reforçar ações para o desenvolvimento sustentável dos oceanos. A Conferência culminou com a aprovação do texto “O nosso oceano, o nosso futuro, a nossa responsabilidade”, abreviadamente designado por “Declaração de Lisboa”. Espera-se que a Declaração de Lisboa contribua para inverter a situação de degradação dos oceanos, através da cooperação internacional e do estabelecimento de recomendações que, apesar de não serem vinculativas, poderão servir de base para que os países tomem as medidas necessárias para o efeito. Apesar dos esforços da ONU, o conteúdo da Declaração de Lisboa não foi tão longe quanto se pretendia. Foi, no entanto, mais um marco na luta, que se prevê longa, contra as alterações climáticas e a perda da biodiversidade dos oceanos. Na cerimónia de encerramento da Conferência, Peter Thomson, representante de António Guterres, apresentou um pedido de desculpas às gerações mais jovens pela forma como o nosso planeta foi usado e prometeu que a ONU continuará a identificar as soluções para ultrapassar os problemas criados pelas atividades humanas, tendo também manifestado o compromisso de se continuar a identificar soluções para sair dos terríveis problemas criados. A próxima conferência, que se realizará em 2025, será organizada conjuntamente pela França e Costa Rica.
Olavo Rasquinho VozesA guerra na Ucrânia e o ambiente O mundo está a sofrer uma tripla crise: o clima em degradação, a pandemia da Covid-19 e a guerra da Ucrânia. Poder-se-á perguntar: de quem será a culpa? Muito provavelmente do homo sapiens (homem sábio, em latim) que de sábio parece não ter muito. A natureza tem vindo a ser agredida pelos gases de efeito de estufa, produto das atividades desse tal homo sapiens, e a pandemia também parece ter sido causada pela interferência humana na natureza selvagem. E quanto à guerra da Ucrânia, não restam dúvidas nenhumas, mais uma vez o desrespeito pelas regras que deviam regular a convivência entre as nações foram desrespeitadas. Desde 24 de fevereiro de 2022, as alterações climáticas e a pandemia passaram a segundo plano nas atenções dos meios de comunicação social. Apesar das perspetivas em relação às alterações climáticas continuarem a ser grande preocupação a nível global, e de a Covid-19 ainda não estar debelada, os dirigentes do mais extenso país do mundo desencadearam um ato de agressão, sob o pretexto de uma manobra de antecipação perante a ameaça de um outro país, muito mais fraco em termos de poderio militar. Não serviu de atenuante o facto de muitos nacionais de ambos os países terem fortes laços familiares de um e outro lado da fronteira e de haver traços comuns em ambas as culturas e história. O primeiro Estado eslavo, designado por Rússia de Kiev, fundado no século IX, abrangia grande parte das atuais Rússia e Ucrânia. À Rússia de Kiev sucedeu o Estado Moscóvia, que empreendeu, em meados do século XVIII, a reunião de principados russos dispersos, dando origem ao Império Russo, que vingou entre 1721 e 1917. Pedro o Grande, o primeiro imperador, segundo consta, é o grande ídolo do atual presidente da Federação Russa, o qual, saudoso da União Soviética, parece querer constituir um império com a extensão da URSS, cujo desaparecimento foi por ele classificado como a pior tragédia do século XX, esquecendo-se de calamidades como a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Genocídio Arménio perpetrado pelo Império Turco-Otomano (1914-1923), a Grande Fome que assolou Ucrânia nos anos trinta (Holodomor, 1932-1933) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), durante a qual ocorreu o Holocausto. O cristianismo ortodoxo é, ainda hoje, a religião predominante em ambos os países, embora tivesse havido recentemente uma cisão entre as Igrejas Ortodoxas Ucraniana e Russa, acabando com uma união que datava de 1685. Apesar de o próprio presidente da Federação Russa ter afirmado que a Ucrânia é, não só uma parte inalienável da história e cultura da Rússia, mas também seu espaço espiritual, tal não impediu que o povo ucraniano visse as suas cidades bombardeadas indiscriminadamente, e se tornasse vítima de uma guerra não declarada, ilegal e ilegítima. Milhares de vítimas civis, milhões de deslocados internamente e de refugiados são o resultado desta barbaridade, que ainda está longe de terminar. Estranhamente, esta guerra foi abençoada por Cirilo, Patriarca de Moscovo e toda a Rússia e Primaz da Igreja Ortodoxa Russa. Conforme se expressou na liturgia de 6 de março de 2022 (designado por Domingo do Perdão), seria necessário ajudar os dissidentes de Donbass, onde, segundo ele, ocorria um “genocídio” desde 2014. Também afirmou “… esta guerra é contra aqueles que apoiam os homossexuais, como o mundo ocidental, e tentaram destruir o Donbass apenas porque esta terra opõe uma rejeição fundamental aos chamados valores oferecidos por quem reivindica o poder mundial”. Ainda segundo Cirilo, “a guerra não é fisicamente, mas sim metafisicamente importante”. Acontece, porém, que os que têm sido fisicamente eliminados nesta tragédia não são vítimas metafísicas, mas sim bem reais. Apesar de a atitude dos dirigentes da Federação Russa ser denunciada diariamente, não cessam os ataques a infraestruturas civis, entre elas bairros densamente habitados, centros médicos, armazéns de cereais, jardins infantis, escolas, universidades, igrejas, teatros, museus, hospitais, maternidades, etc. A autocracia que reina em Moscovo insiste na política de terra queimada, transformando cidades inteiras em destroços, o que seria inimaginável em pleno século XXI. Antes já o mundo assistira perplexo à destruição massiva de cidades inteiras na Síria, como Alepo, pelo regime sírio coadjuvado pelas tropas russas, nunca imaginando que algo de semelhante poderia ocorrer de novo na Europa. Perante a estupefação do mundo democrático, vemos, quase em tempo real, reportagens sobre o bombardeamento de cidades como Mariupol, Irpin, Busha e Borodyanka, entre tantas outras. É também estranho é que a Federação Russa, país que assinou há escassos anos (1915) o Acordo de Paris para as alterações climáticas, está completamente indiferente ao facto de, com esta guerra absurda, estar a fugir ao compromisso assumido perante a ONU, através das respetivas NDCs (Nationally Determined Contributions), segundo as quais se havia comprometido reduzir 30% das emissões de gases de efeito de estufa, até 2030, relativamente aos níveis de 1990. Uma das consequências desta guerra irracional, estúpida, ilegítima e ilegal, além dos milhares de mortos e milhões de deslocados e exilados, será uma maior degradação do ambiente, o qual decerto sofrerá com a poluição resultante da combustão de milhares de toneladas de combustíveis fósseis utilizados na guerra, assim como com a utilização de minas indiscriminadamente espalhadas não só em áreas urbanas, mas também rurais, onde o cultivo de cereais faz da Ucrânia uma espécie de celeiro do mundo. A Federação Russa está também a fugir ao acordo assumido pela maioria dos governos do mundo durante a Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente, em 2017, que teve como objetivo combater o impacto generalizado da poluição no nosso planeta, trabalhando em conjunto para um mundo livre de poluição, nomeadamente no que se refere à qualidade do ar, da água e do solo. O ambiente na Ucrânia está a ser agredido de tal forma, que pode comprometer a saúde pública e animal nos tempos mais próximos. O impacto de milhares de bombas são um verdadeiro atentado à natureza, provocando crateras no solo, libertação de metais pesados e produtos químicos tóxicos que, espalhados na atmosfera, arrastados pelo vento, e infiltrando-se no solo, rios e lençóis freáticos, prejudicam florestas e campos de cultivo. Em termos ambientais, as repercussões desta guerra far-se-ão sentir não só na Ucrânia e regiões vizinhas, mas também em lugares longínquos. Por exemplo, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, num “tweet” datado de 2 de março de 2022, expressou a opinião de que a guerra na Ucrânia pode constituir um risco para o Brasil, na medida em que acentua a necessidade de se explorar reservas mineiras para extração de potássio, elemento que está na base da fabricação de fertilizantes. Acontece, porém, que parte destas reservas estão em territórios indígenas da Amazónia. Serviu de base para esta pretensão o facto de a Federação Russa ser o principal fornecedor de fertilizantes do Brasil, que importa mais de 90% deste produto para uso na agricultura e que, devido à guerra na Ucrânia e às respetivas sanções, poderá ter muitas dificuldades na sua aquisição. A exploração mineira deste elemento poderá implicar a construção de novas estradas em plena Amazónia, o que forçosamente implicaria maior degradação do solo e dos recursos hídricos em áreas protegidas e, por arrastamento, um perigo para o ambiente, biodiversidade e populações indígenas. Tal pretensão, a ser concretizada, provocaria maior insatisfação das tribos que vivem nesses territórios, o que muito provavelmente se refletiria em desassossego social, o que já está a acontecer através de manifestações que têm vindo a ser realizadas pelos representantes das tribos amazónicas, em protesto contra a desflorestação que se tem vindo a acentuar desde que Bolsonaro foi eleito presidente. Esta exploração de potássio, em plena floresta, iria piorar grandemente a situação ambiental, que já está a ser vítima de cerca de vinte mil garimpeiros que exploram ilegalmente as terras protegidas por lei, na Amazónia, com especial incidência no nordeste do Brasil, onde ouro e diamantes são extraídos sem grandes preocupações no que se refere à poluição dos rios e subsolo. Teme-se, também, que a guerra na Ucrânia venha a provocar maior desflorestação em determinadas regiões da Ásia, como as abrangidas pela Indonésia e Malásia, onde já extensas zonas de floresta tropical, habitat de espécies em via de extinção, foram substituídas pela plantação de palmeiras da espécie elaeis guineensis, cujo fruto está na base da produção do óleo de palma. Isto porque se prevê que vá escassear a produção e exportação de óleo de girassol, de que a Ucrânia e a Federação Russa são grandes produtores. Consequentemente, irá aumentar o preço dos outros óleos vegetais, inclusive do óleo de palma, o que será um incentivo para que os produtores expandam as suas culturas, o que implicará mais desflorestação. Além das consequências ambientais, já se teme a fome generalizada em vastas regiões do globo, devido ao bloqueio dos portos ucranianos do Mar Negro. Por exemplo, o Governo de Cabo Verde, segundo o periódico cabo-verdiano “A Nação”, estima que o número de pessoas com insegurança alimentar quadruplicou em relação à média, em Cabo Verde, podendo ser afetadas cerca de 43 mil pessoas, ou seja, 10% da população. Sob o pretexto duma pretensa “desnazificação”, os governantes da Federação Russa conceberam e estão a executar um plano de destruição de um país. O que está a acontecer na Ucrânia, com a destruição massiva de infraestruturas indispensáveis à vida normal de uma nação, e os incontáveis crimes de guerra que estão a ser perpetrados, aproxima-se muito do conceito de genocídio. Também estão a ser deliberadamente praticados atos que prejudicam gravemente o ambiente de uma maneira extensa e duradoura, o que já está ser classificado por alguns defensores do meio ambiente como “ecocídio”.
Olavo Rasquinho VozesAlterações climáticas 2022 – Mitigação das alterações climáticas Foi dado a conhecer, em conferência de imprensa datada de 4 de abril de 2022, o conteúdo do relatório do Grupo de Trabalho III do IPCC, cujo resumo para os decisores políticos se intitula “Alterações Climáticas 2022: Mitigação das Alterações Climáticas” (Climate Change 2022: Mitigation of climate change). Ficou, assim, completa a missão dos três grupos de trabalho, no que se refere à elaboração do Sexto Relatório de Avaliação (AR6) das Alterações Climáticas, estando previsto para setembro de 2022 a publicação do Relatório Síntese (AR6 Synthesis Report – SYR), o qual constará de um resumo dos relatórios dos três Grupos de Trabalho e dos três relatórios especiais elaborados no sexto ciclo de avaliação das alterações climáticas. Esta parte do Sexto Relatório de Avaliação reflete não só as novas conclusões constantes nos vários trabalhos dos cientistas que colaboram com o IPCC, mas também a contribuição do Grupo de Trabalho III para o Quinto Relatório de Avaliação (AR5), e as dos Grupos de trabalho I e II para o AR6, assim como dos três relatórios especiais. Além dos 6 relatórios regulares, que foram publicados com um intervalo aproximado de seis anos, o IPCC elaborou três outros relatórios especiais, sobre assuntos específicos: “Aquecimento Global de 1,5 °C” (2018), que trata dos impactos do aquecimento global de 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais; “Alterações Climáticas e o Solo” (2019), sobre alterações climáticas, desertificação, degradação e gestão sustentável dos solos; “Oceano e Criosfera num Clima em Mudança” (2019), sobre os efeitos das alterações climáticas nos mares, gelo marítimo e calotas polares. Na elaboração desta parte do AR6 estiveram envolvidos 869 especialistas de 65 países, entre os quais se contam autores, coordenadores e revisores. Foram consultados, ao todo, cerca de 18 000 trabalhos na área das alterações climáticas. Nas edições do “Hoje Macau” de 15 e 16 de setembro de 2021 e 7 de abril de 2022, tivemos a oportunidade de abordar as contribuições, para o AR6, dos grupos de trabalho I (“Física como ciência base”) e II (“Impactos, adaptação e vulnerabilidade”). Falta agora debruçarmo-nos sobre o relatório do Grupo de Trabalho III – “Mitigação das Alterações Climáticas”. Esta parte do AR6, além da “Introdução e Enquadramento”, consta essencialmente de quatro partes: “Desenvolvimentos recentes e tendências atuais”; “Transformações do sistema para limitar o aquecimento global”; “Ligações entre mitigação, adaptação e desenvolvimento sustentável” e “Fortalecimento da resposta às alterações climáticas”. Entre as conclusões do GT III, no que se refere a desenvolvimentos recentes e tendências atuais, realça-se que a média anual das emissões antropogénicas de gases de efeito de estufa (GEE) continuaram a aumentar na década 2010-2019, tendo as áreas urbanas contribuído grandemente para esse efeito. Houve, no entanto, uma diminuição da taxa de crescimento dessas emissões em relação à década anterior. Por outro lado, têm vindo a diminuir significativamente os preços, cerca de 85%, dos custos das energias solar e eólica, assim como das baterias, o que constitui um incentivo para o investimento na área das energias renováveis. Também se verifica que cada vez mais governos têm legislado no sentido da diminuição da taxa de desflorestação, do aumento da eficiência energética e sobre o desenvolvimento das energias renováveis. Porém, na prática, nem sempre esta legislação tem sido aplicada de maneira eficiente. Também se antevê que as emissões globais dos GEE, de acordo com o estipulado nas NDCs anunciadas antes da COP26 (2021), implicariam um provável aquecimento superior a 1,5 °C até ao fim do século XXI, e que a provável limitação do aquecimento abaixo de 2 °C dependeria de uma rápida aceleração dos esforços de mitigação. (Entende-se por NDCs – Nationally Dertermined Contributions – os planos que constam das ações previstas para a redução das emissões dos GEE e medidas de adaptação às alterações climáticas, como contributo nacional para se atingir as metas globais estabelecidas no Acordo de Paris). Na parte referente a “Transformações do sistema para limitar o aquecimento global”, prevê-se que é superior a 50% a probabilidade de que as emissões globais de GEE atinjam o pico antes de 2025, com base em projeções obtidas com modelos que limitam, até ao fim do século XXI, o aquecimento global a 1,5 °C. A probabilidade de se atingir o pico de emissões antes de 2025 passará a ser superior a 67%, de acordo com os resultados dos modelos que limitam o aquecimento global a 2 °C. Também se antevê que, sem um fortalecimento das políticas além das implementadas até o final de 2020, as emissões de GEE podem aumentar para além de 2025, levando a um aquecimento global médio de 3,2 °C até ao fim do século XXI. (Note-se que o aquecimento global tem como referência a temperatura média global entre 1850 e 1900). Na parte referente a “Ligações entre mitigação, adaptação e desenvolvimento sustentável”, constata-se que as ações significativas tendo em vista a mitigação e adaptação aos impactos das alterações climáticas são fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Os objetivos estipulados na Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, deverão ser usados como base para avaliar a ação climática no contexto da sustentabilidade. Note-se que o objetivo nº 13 desta Agenda consiste em “Tomar medidas urgentes no combate às alterações climáticas e seus impactos” (Goal 13 – Take urgent action to combat climate change and its impacts). Constata-se também que existe uma forte ligação entre desenvolvimento sustentável, vulnerabilidade e riscos climáticos, e que, recursos económicos, sociais e institucionais limitados implicam frequentemente grande vulnerabilidade e pouca capacidade adaptativa, especialmente em países em desenvolvimento. Na parte do relatório do Grupo de Trabalho III dedicada ao “Fortalecimento da resposta às alterações climáticas” é realçado que a cooperação internacional é essencial para que se possa alcançar uma atenuação significativa das alterações climáticas, e que os governos têm vindo a tomar, embora com algumas lacunas, medidas preconizadas nos vários acordos e protocolos assinados sob os auspícios da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC), nomeadamente o Protocolo de Quioto (2005), Acordo de Paris (2015) e Pacto sobre o Clima de Glasgow (2021). Fora da UNFCCC têm surgido parcerias entre instituições e iniciativas à escala regional, por vezes com alguma eficácia, envolvendo múltiplos intervenientes. Terminados os relatórios dos Grupos de Trabalho I, II e III do IPCC, e para que esteja completo o Sexto Relatório de Avaliação, resta esperar pelo Relatório Síntese, que deverá conter uma parte dedicada aos decisores políticos, escrita em linguagem não técnica, em que será abordada uma vasta gama de políticas relevantes, com o intuito final de se alcançar o objetivo principal do Acordo de Paris, reiterado no Pacto sobre o Clima de Glasgow, ou seja, manter, até 2100, o aumento da temperatura inferior a 2 ºC, tendo como referência os valores pré-industriais, e incentivar esforços para limitar o aumento a 1,5 ºC. Partindo do princípio de que as alterações climáticas são consequência de mais de um século de emissões de GEE devido ao uso insustentável de energia, estilos de vida e padrões de produção e de consumo, o IPCC, através dos seus grupos de trabalho, continuará a utilizar a Física como ciência base para a compreensão do mecanismo das alterações climáticas e a preconizar a implementação de medidas de adaptação e de atenuação dos efeitos dos GEE. Também nós, como cidadãos comuns, teremos de adaptar o nosso estilo de vida de modo a que possamos contribuir para atingir os objetivos de desenvolvimento sustentável, conforme o preconizado na Agenda 2030 das Nações Unidas.
Olavo Rasquinho VozesSexto relatório do IPCC – Alterações Climáticas 2022 Já não é novidade para ninguém que as alterações climáticas induzidas pelas atividades humanas têm vindo a causar danos a ecossistemas e afetado a vida das populações a nível global, apesar das muitas decisões e recomendações de organizações internacionais no sentido de serem tomadas medidas impeditivas dessa realidade. A ONU, através do seu órgão que monitoriza a evolução do clima, o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), reitera estas recomendações na segunda parte do Sexto Relatório de Avaliação sobre as alterações climáticas (Sixth Assessment Report – AR6). Tomando em consideração que há certos conceitos importantes relacionados com as alterações climáticas, como “impactos”, “adaptação”, “vulnerabilidade” e “mitigação”, a estrutura do IPCC foi de tal maneira estabelecida que foram constituídos grupos de trabalho dedicados à sua avaliação e monitorização. Assim, e entrando em consideração que a Física é a ciência em que se fundamenta o estudo do clima, foram constituídos os seguintes Grupos de Trabalho: Grupo de Trabalho I (The Physical Science Basis) – trata da base física e científica das alterações climáticas; Grupo de Trabalho II (Impacts, Adaptation and Vulnerability) – debruça-se sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade dos sistemas naturais e socioeconómicos às alterações climáticas; Grupo de Trabalho III (Mitigation of Climate Change)”- trata da mitigação das alterações climáticas, ou seja, sobre como atenuar essas alterações. Desde que foi criado, em 1988, o IPCC já elaborou cinco Relatórios de Avaliação com uma periodicidade de cerca de seis anos, além de três relatórios intermédios específicos. São os seguintes os relatórios de avaliação periódicos e as respetivas datas: FAR (First Assessment Report – 1990), SAR (Second Assessment Report – 1995), TAR (Third Assessment Report – 2001), AR4 (2007) e AR5 (2013/2014). Devido à pandemia Covid-19, o AR6 sofreu atraso de cerca de um ano, pelo que as partes a cargo dos Grupos de Trabalho I e II só foram disponibilizadas ao público em agosto de 2021 e fevereiro de 2022, respetivamente. Além dos três Grupos de Trabalho, o IPCC tem ainda um quarto grupo, que se designa por Task Force, cujas funções consistem, entre outras, em supervisionar os inventários nacionais sobre as emissões e remoções de gases de efeito de estufa. As atividades dos três Grupos de Trabalho e da Task Force são apoiadas pelas Unidades de Apoio Técnico (Technical Support Units). No Hoje Macau de 15 e 16 de setembro de 2021, tivemos a oportunidade de abordar a primeira parte do AR6 “Climate Change 2021 – The Physical Science Basis”, correspondente ao Grupo de Trabalho I, o que constituiu uma tentativa de dar a conhecer os principais aspetos do seu conteúdo. Cabe agora a vez de nos debruçarmos sobre a contribuição para o AR6 do Grupo de Trabalho II, intitulada “Climate Change 2022 – Impacts, Adaptation and Vulnerability”, um extenso documento de milhares de páginas. Como é prática habitual do IPCC, foi redigido um resumo, com 35 páginas, com o título “Resumo para os Decisores Políticos” (Summary for Policy Makers – SPM). Tal como nos relatórios anteriores, é utilizada a linguagem habitual do IPCC, em que os níveis de confiança das principais projeções são expressos pelos seguintes qualificadores: nível de confiança muito baixo, baixo, médio, alto e muito alto. Assim, por exemplo, é atribuído o nível de confiança muito alto à projeção de que, no caso do aquecimento global atingir, a curto prazo, o valor de 1,5°C, implicaria o aumento inevitável da frequência de eventos meteorológicos perigosos. Por outro lado, é atribuído o nível de confiança alto à projeção, a médio e longo prazo, de que as alterações climáticas induzirão numerosos riscos aos sistemas naturais e humanos e que os impactos serão várias vezes maiores do que os observados atualmente, no que se refere aos 127 riscos significativos até agora identificados pelo IPCC. Estes riscos abrangem uma vasta gama de setores, nomeadamente saúde, economia, agricultura, infraestruturas e ecossistemas. Os riscos dependerão fortemente das ações de mitigação e adaptação que forem tomadas pelos decisores políticos a curto prazo, e os impactos adversos e as perdas e danos aumentarão a cada incremento do aquecimento global (nível de confiança muito alto). São também usados os seguintes termos para avaliar a probabilidade de ocorrência das várias projeções das consequências das alterações climáticas: praticamente certo (99-100%), muito provável (90-100%), provável (66-100%), tão provável como improvável (33-66%), improvável (0-33%), muito improvável (0-10%), excecionalmente improvável (0-1%). Assim, por exemplo, quando no relatório se afirma que é muito provável que o aumento da temperatura no fim do corrente século, considerando o cenário de emissões intermédias, possa atingir valores entre 2,1 e 3,5°C, é o mesmo que afirmar que a probabilidade de que tal aconteça é de 90% a 100%. Para efeitos de comparação dos valores da temperatura média global à superfície, adotou-se o período 1850-1900 como representativo da era pré-industrial, e os três períodos futuros de referência correspondem a curto prazo (2021-2040), médio prazo (2041-2060) e longo prazo (2081-2100). Neste Relatório são definidos os conceitos que estão na base da designação do Grupo de Trabalho II: “Impactos”, “Adaptação” e “Vulnerabilidade”. O termo “Impactos” refere-se não só às consequências das alterações climáticas nas vidas, meios de subsistência, saúde, bem-estar, atividades sociais e culturais, mas também às consequências nos ecossistemas e espécies. “Adaptação” consiste no processo de ajuste ao clima atual ou futuro e suas consequências no sentido de moderar os danos ou aproveitar os efeitos benéficos. São exemplos de adaptação a barreira no rio Tamisa, construída com o propósito de evitar inundações em Londres causadas por marés cheias e marés de tempestade excecionalmente altas, e o plano para a cidade de Nova Iorque com o mesmo intuito. Plano para proteger Nova Iorque de marés de tempestade “Vulnerabilidade” define-se como a propensão ou predisposição de se ser adversamente afetado e abrange uma variedade de conceitos, incluindo sensibilidade ou suscetibilidade a danos e falta de capacidade de lidar com as alterações climáticas e de a elas se adaptar. Nesta parte do relatório são também definidos outros termos, tais como “risco” (risk), “perigo” (hazard) e “resiliência” (resilience), com o intuito de evitar interpretações frequentemente usadas em linguagem corrente, mas que não correspondem exatamente ao seu significado técnico no AR6. Entretanto, em 4 de abril de 2022, foi divulgada a terceira parte do AR6, pelo Grupo de Trabalho III. António Guterres, Secretário-Geral da ONU, no seu discurso a este propósito, enfatiza “O júri chegou a um veredicto, e é condenatório. Este relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas é uma longa enumeração de promessas climáticas não cumpridas” e termina afirmando “As promessas e planos climáticos devem ser transformados em realidade e ação, agora. É hora de parar de queimar nosso planeta e começar a investir na abundante energia renovável ao nosso redor”.
Olavo Rasquinho VozesTsunamis, Meteotsunamis e outros fenómenos similares Recentemente o público mais atento foi surpreendido pela notícia sobre a ocorrência de um fenómeno pouco vulgar, que consistiu numa perturbação da superfície do oceano Pacífico e que se estendeu pelo Atlântico. Os marégrafos, instalados nas regiões costeiras mais longínquas do local onde foi originado o fenómeno, registaram alterações do nível do mar fora do normal. Os técnicos que procedem à monitorização deste tipo de fenómenos mostraram-se inicialmente surpreendidos, na medida em que não foi registado nenhum sismo que pudesse justificar este tipo de ondas. A surpresa desvaneceu-se quando se tomou conhecimento da ocorrência de uma forte erupção explosiva de um vulcão na região das ilhas Tonga. O Reino de Tonga é um país constituído por 169 ilhas, onde cerca de um quarto são inabitadas. O arquipélago tem uma área de aproximadamente 700 km2 que se estende por uma vasta região de cerca de 700.000 km2, no Pacífico Sul, a sueste das ilhas Fiji, a uma distância aproximada de 3.300 quilómetros a leste da Austrália. As ondas no arquipélago chegaram a atingir cerca de 15 metros, propagando-se, à medida que diminuíam de amplitude, pelo Pacífico, até atingirem regiões tão distantes como o litoral do Japão, Austrália, Nova Zelândia e a costa oeste do continente americano. Propagaram-se também pelo Atlântico, onde, segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), atingiram Portugal, tendo sido o sinal registado de maior amplitude de cerca de 40 cm em Ponta Delgada e Peniche. O vulcão parcialmente submerso Hunga Tonga-Hunga Haʻapai estava latente, entre as pequenas ilhas Hunga Tonga e Hunga Haʻapai, daí a ser designado pela junção dos dois nomes. A erupção ocorreu em 14 de janeiro de 2022, atingindo o seu máximo no dia seguinte, a cerca de 65 km a norte da ilha Tongatapu, onde se encontra a capital Nukuʻalofa, dando origem à formação de uma enorme nuvem de fumo e cinzas, em forma de cogumelo, com o diâmetro de cerca de 260 km. Grande quantidade de cinzas vulcânicas cobriu parte das ilhas, prejudicando culturas e cobrindo a pista de aterragem do aeroporto internacional, o que impediu durante alguns dias a aterragem de aviões com meios de assistência à população. As cinzas vulcânicas prejudicaram também a navegação aérea no espaço aéreo de algumas ilhas do Pacífico Sul. O cabo submarino que liga o Reino do Tonga ao mundo exterior foi também danificado, tendo impedido as comunicações durante alguns dias. Foram registados estragos nas zonas costeiras das ilhas do arquipélago e de algumas regiões bastante longe da zona de geração. No Peru ocorreu um derrame de petróleo correspondente a cerca de 12.000 barris, durante a descarga de um petroleiro, do qual causou grave desastre ecológico a 30 km a norte de Lima, vitimando inúmeros peixes e aves. O número de vítimas mortais foi relativamente baixo, contando-se três no arquipélago de Tonga e duas no litoral do Peru. A explosão, que projetou material vulcânico a mais de 20 km de altitude, gerou uma onda de choque atmosférica que se propagou com velocidade supersónica, dando várias vezes a volta ao globo, potenciando perturbações na superfície dos oceanos que o IPMA classificou como um meteotsunami. No entanto tal designação é discutível. A queda sobre a superfície do oceano de material vulcânico que havia sido projetado poderá também ter contribuído para a geração dessas perturbações, contribuindo assim para reforçar a ondulação causada pela onda de choque. Os meteotsunamis não devem ser confundidos com os tsunamis. Os primeiros são em geral menos intensos e consistem em ondulação de grande comprimento de onda associada a fenómenos atmosféricos caracterizados por variações bruscas da pressão, podendo ocorrer, por exemplo, durante a passagem de formações de cumulonimbus (linhas de borrasca) e frentes frias muito ativas. No que se refere ao fenómeno tradicionalmente designado por tsunami, a sua geração nada tem a ver com fenómenos meteorológicos, mas com a ocorrência de eventos geofísicos abruptos, como sismos submarinos, erupções vulcânicas e deslizamento costeiro ou submarino de terras. A queda de meteoritos no mar pode também provocar tsunamis. (Consta que o desaparecimento dos dinossauros foi consequência da queda de um asteroide que provocou um enorme tsunami há cerca de 65 milhões de anos). Outro fenómeno que poderá ser confundido com tsunami é designado por “storm surge” (traduzido frequentemente para português, embora indevidamente, como “maré de tempestade”). A sua ocorrência resulta do arrastamento das ondas pelo vento contra a costa e a consequente inundação de zonas baixas, quando o mar que se encontra sobre-elevado devido a pressão atmosférica muito baixa (quando a pressão diminui 1 hPa, o nível do mar sobe cerca de 1 cm). Ocorreu um fenómeno deste tipo em Macau, em agosto de 2017, aquando da passagem do tufão Hato. Em novembro de 2013, nas Filipinas, a “storm surge” associada ao tufão Haiyan (chamado Supertufão Yolanda nas Filipinas), foi a causa de muitas das cerca de 6.000 vítimas mortais. As consequências de tsunamis e de “storm surges” são muito semelhantes, embora as características das ondas sejam diferentes. Nas “storm surges” as ondas são sempre causadas pelo vento, têm maior frequência e propagam-se com menor velocidade, enquanto que as geradas pelos tsunamis são em geral consequência de sismos submarinos e são caracterizadas por maior comprimento de onda, menor frequência e muito maior velocidade. As ondas de um tsunami propagam-se em águas profundas com velocidade próxima da velocidade de cruzeiro de aviões comerciais, ou seja, cerca de 900 km/h. À medida que entram em águas menos profundas, a velocidade das ondas diminui e a amplitude aumenta. Ambos os fenómenos geram ondas que, invadindo as zonas baixas do litoral, podem provocar estragos consideráveis e elevado número de vítimas. A semelhança das consequências de tsunamis e de “storm suges” é tão grande que, conforme noticiado na imprensa filipina, o Mayor de Guiuan, a primeira cidade a ser atingida pelo tufão Haiyan, perante a passividade da população relativamente a um aviso de “storm surge”, enviou mensageiros em motociclos para alertar as comunidades costeiras da iminente chegada de um tsunami de grandes proporções. O termo “tsunami” sobressaltou a população que, seguindo instruções, se concentrou em locais de onde pôde ser evacuada. A expressão “storm surge”, difundida em inglês e traduzida para a língua local, foi considerada muito técnica e pouco compreensível por uma população não muito instruída. (Curiosamente, Guiuan teve um papel importante na história das Filipinas. Reza a história que, no século XVI, foi na ilha Homonhon, pertencente àquela municipalidade, que Fernão de Magalhães desembarcou pela primeira vez naquele arquipélago. Talvez por esta razão a população da cidade é maioritariamente católica). Outro fenómeno que poderá ser confundido com tsunamis são as “Seiches” (termo do francês falado na Suíça que significa abanar periodicamente). Trata-se, no entanto, de ondas estacionárias que ocorrem geralmente, em determinadas condições, em bacias parcial ou totalmente fechadas, como por exemplo, o lago Erie, um dos cinco lagos na fronteira entre os EUA e o Canadá, ou no lago Lémand, entre a Suíça e a França. Ocorrem normalmente quando ventos fortes associados a alterações bruscas da pressão atmosférica empurram a massa de água contra um dos limites da bacia. Quando o vento cessa, a massa de água inverte o sentido do deslocamento, oscilando durante horas ou mesmo dias. Tratando-se este texto de um artigo de opinião, permito-me discordar do IPMA no que se refere a ter classificado como um meteotsunami a perturbação dos oceanos Pacífico e Atlântico provocada pela explosão vulcânica do Tonga. Um meteotsunami é um tsunami cujas causas estão relacionadas com fenómenos meteorológicos. Não sendo fenómenos deste tipo a erupção vulcânica nem a onda de choque por ela provocada, não se trata, portanto, de um meteotsunami, mas simplesmente de um tsunami. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesEnergia nuclear – Solução para a neutralidade carbónica? Desde o fim do século passado que os temas mais debatidos a nível mundial são o aquecimento global e as alterações climáticas. Na realidade, apesar de as expressões “aquecimento global” e “alterações climáticas” serem frequentemente usadas indistintamente, o conceito associado à primeira (“aquecimento global”) é menos abrangente do que o segundo. Aquecimento global consiste no aumento, à escala mundial, da temperatura média do globo terrestre e é medido tendo como base a temperatura do ar à superfície, observada em milhares de estações meteorológicas espalhadas pelo planeta, durante períodos mais ou menos longos, de preferência não inferiores a 30 anos. O IPCC, órgão científico das Nações Unidas, atribui às atividades humanas a causa principal do aquecimento global e, consequentemente, das alterações climáticas. Quando se afirma que um dos objetivos do Acordo de Paris é prevenir que o aumento da temperatura tenha como limite 2 °C até ao fim do século, preferencialmente até 1,5 °C, embora se refira à temperatura média do ar à superfície, subentende-se que o conceito “aquecimento global” abrange também as restantes componentes do sistema climático: hidrosfera (constituída por oceanos, mares, rios e lagos), litosfera, criosfera e biosfera. Apesar das numerosas ações que têm sido conduzidas com recurso ao multilateralismo, envolvendo universidades, ONGs, várias agências e programas das Nações Unidas, como a OMM e a UNEP, o problema das alterações climáticas tem vindo a agravar-se dramaticamente. A temperatura das várias componentes do sistema climático tem subido com graves implicações para a sustentabilidade da biodiversidade e da vida humana. Segundo a OMM, com base em dados referentes ao período de janeiro a setembro de 2021, a temperatura média global em 2021 teve um aumento de 1,09 °C, em relação a 1850-1900 e, em algumas regiões, o aumento tem sido muito mais acentuado, como na região ártica, onde, em 20 de junho de 2020, foi registada a temperatura recorde de 38 °C, na cidade russa Verkhoyansk, a 115 km a norte do círculo polar ártico É já lugar-comum afirmar que a causa da degradação do clima consiste no aumento da concentração dos gases de efeito de estufa (GEE) que são injetados na atmosfera, devido à queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral). Após o Protocolo de Quioto (ratificado em 2005) e 26 COPs, entre as quais a COP21 (2015), em que foi alcançado o Acordo de Paris, e a recente COP26, realizada em novembro de 2021, em que foi estabelecido o Pacto do Clima de Glasgow, a realidade é que a concentração de gases de efeito de estufa na atmosfera não cessa de aumentar. Apesar de todas as tentativas para reduzir a concentração dos GEE na atmosfera, nomeadamente o dióxido de carbono, o mais significativo destes gases, a realidade é que, de acordo com o diretor-executivo da International Energy Agency (IEA), é muito provável que a queima de carvão atinja o recorde anual em 2022. A China, um dos maiores consumidores deste combustível (mais de metade do consumo mundial) comprometeu-se a começar a reduzir o seu consumo somente a partir de 2025, o que vai permitir que durante os próximos quatro anos venha a aumentar o seu consumo. Analogamente, a Índia, responsável pela substituição da expressão “eliminação progressiva” (phase out), em relação ao carvão, por outra mais atenuada, “redução gradual” (phase down), no texto do Pacto do Clima de Glasgow, também continuará a aumentar a utilização do carvão nos próximos anos. Perante esta realidade, e apesar de cada vez mais se recorrer às energias renováveis, também referidas como energias verdes, é lícito duvidar se o preconizado no Pacto do Clima de Glasgow está ao alcance da humanidade. Segundo este documento, para que se possa atingir um dos objetivos principais do Acordo de Paris (limitar o aquecimento global a 2 °C até ao fim do século, de preferência até 1,5 °C), terá de se proceder a reduções rápidas, profundas e sustentáveis das emissões de GEE, incluindo a redução das emissões globais de dióxido de carbono de aproximadamente 45% até 2030, relativamente aos níveis de 2010, de forma a se atingir a neutralidade carbónica por volta de 2050. São muitas as vozes segundo as quais tal não será possível sem o recurso à energia nuclear. Perante esta dificuldade, o lóbi nuclear tem intensificado a sua atividade, desenvolvendo argumentos no sentido de que esse objetivo só será possível com recurso à energia nuclear. Acontece, porém, que a energia nuclear, apesar de não implicar a produção de GEE, não se pode considerar energia limpa, na medida em que é utilizada a fissão nuclear, processo em que é gerado lixo radioativo. A fissão nuclear consiste no processo em que um núcleo instável é fragmentado em núcleos cuja soma das massas é menor que a massa inicial, produzindo-se, assim, uma transformação de massa em energia, conforme a equação de Einstein, E=mc2 . É o que acontece quando se recorre ao bombardeamento, com neutrões, de núcleos de átomos de urânio-235 de modo que estes se fragmentem, dando origem a partículas menores e uma forte libertação de energia. Neste processo, parte da massa inicial é transformada em energia, utilizada para produzir vapor através do aquecimento de água. Este vapor, sob elevada pressão, atua sobre as pás de uma turbina que, por sua vez, aciona um gerador elétrico. Acontece, porém, que o urânio é um mineral não muito abundante, e da sua desintegração resulta lixo radioativo, o que impede que a energia nuclear com recurso à fissão possa ser unanimemente classificada como energia renovável. Além disso, está associada à fissão nuclear a ocorrência de desastres ambientais com graves consequências, como os de Three Mile Island (EUA, 1979) Chernobil (URSS, 1986) e de Fukushima (Japão, 2011), o que tem motivado fortes movimentos populares no sentido de pressionar os governos para desistirem deste tipo de energia. Assim, por exemplo, o recurso à energia nuclear na União Europeia não é consensual. Enquanto que alguns países continuam a fomentar a construção de novos reatores, outros estão a desmontar os existentes ou, pura e simplesmente, não os chegam a instalar. Este é o caso de Portugal, que não tem nenhum reator nuclear a produzir energia, nem pretende recorrer à sua instalação futura. Enquanto que a França, que produz cerca de 75% da sua eletricidade com recurso a esta energia, continua a investir em reatores nucleares, a Alemanha tem planos para desativar aqueles que ainda possui. Três das centrais nucleares para produção de eletricidade na Alemanha, em funcionamento desde meados da década de 1980, foram desativadas no último dia do ano de 2021, estando previsto o mesmo destino para as três que restam em 31 de dezembro de 2022. A França está acompanhada, no seu ponto de vista, por outros países como a Polónia e a Eslováquia. Por outro lado, a Bélgica e o Luxemburgo alinham com a Alemanha no que se refere à necessidade do abandono deste tipo de energia. Outros países, como a Itália, são mais prudentes e mantêm uma posição intermédia. No final de 2021, a Comissão Europeia submeteu aos países membros da UE um projeto de plano em que considera que, em determinadas condições, a energia nuclear e o gás natural podem ser considerados sustentáveis para fins de investimento, o que provocou, por parte do porta-voz do governo alemão, a afirmação de que a Alemanha considera a tecnologia nuclear perigosa e que rejeita expressamente a avaliação da Comissão. Entre os que defendem a utilização da energia nuclear para atingir o preconizado no Acordo de Paris e no Pacto do Clima de Glasgow, conta-se o diretor da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), Rafael Mariano Grossi. Segundo ele, deve-se abdicar de ideologias e encarar com realismo a evidência de que sem energia nuclear não se conseguirá abdicar dos combustíveis fósseis. Não havendo unanimidade no que se refere à utilização de energia nuclear com recurso à fissão, há já países, empresas, organizações e até empreendedores a título individual (e.g. Bill Gates) a investir na investigação sobre a fusão nuclear. Enquanto que na fissão nuclear se recorre à fragmentação de núcleos para gerar energia, a fusão nuclear é um processo em que se fundem dois ou mais núcleos de átomos, daí resultando um núcleo maior, cuja massa é menor que a soma das massas dos núcleos iniciais, libertando-se quantidade enorme de energia. Trata-se de um processo em que se recorre à união de átomos de isótopos de hidrogénio, inesgotáveis na natureza, o que permitirá classificar a energia nuclear como energia renovável. Acontece, porém, que este processo não se tem mostrado rentável, na medida em que, com a tecnologia atualmente existente, tem sido necessária mais energia para desencadear a fusão do que a energia que dela resulta. Entre os vários projetos experimentais envolvendo fusão nuclear, conta-se o International Thermonuclear Experimental Reactor (ITER), instalado no sul de França (Saint-Paul-les-Durance), que consiste no resultado da conjugação de esforços e financiamento da China, Coreia do Sul, EUA, Índia, Japão, Reino Unido, Rússia, Suíça e União Europeia. Nas palavras do presidente da França, Emannuel Macron, a energia produzida com recurso à fusão nuclear será “limpa, segura e praticamente ilimitada”. Não se espera, no entanto, que haja resultados que permitam a sua exploração rentável antes de cerca de vinte anos. Um outro projeto de fusão é o que decorre na National Ignition Facility (NIF), em Livermore, na Califórnia, em que se usa tecnologia laser para fundir átomos de hidrogénio. Também a China, além de envolvida no projeto ITAR, desenvolve, desde 2006, o estudo Experimental Advanced Superconducting Tokamak (EAST) em que são aquecidos isótopos de hidrogénio (deutério e trítio) a temperaturas elevadíssimas, da ordem de 150 milhões de graus Celsius, obtendo-se uma massa no estado de plasma constituído por partículas subatómicas que se fundem, dando origem a hélio e libertação de enormes quantidades de energia. O grande problema consiste no facto de a tecnologia atual não estar ainda suficientemente evoluída para controlar toda a fusão de modo que a quantidade de energia resultante seja muito superior à utilizada para desencadear o processo. Perante o avanço da tecnologia, é lícito esperar que, no prazo de uma ou duas décadas, se possa unanimemente considerar a energia nuclear, com recurso à fusão, energia limpa e renovável, que poderá contribuir para que se atinja a neutralidade carbónica a meio do século corrente, conforme preconizado no Pacto do Clima de Glasgow.
Olavo Rasquinho VozesCimeira sobre o clima de Glasgow (COP26) – Sucesso ou fracasso? Muitos de nós, pelo menos aqueles que têm mais de 40 anos, lembrar-se-ão certamente do muito debatido “buraco do ozono”. Na década de 80 do século passado, a grande preocupação de muitos cientistas e daqueles que se interessavam pela sustentabilidade da vida no nosso planeta, era a rarefação do ozono na chamada ozonosfera, camada da estratosfera entre 20 e 30 km de altitude, onde se concentra cerca de 90% do ozono atmosférico, que constitui uma espécie de filtro de parte da radiação ultravioleta emitida pelo sol. A diminuição da concentração desse gás permitia que parte dos raios ultravioletas prejudiciais (raios ultravioleta B) atingissem a superfície do globo, em especial na região da Antártida e países em latitudes altas, como a Argentina e parte do Chile, afetando a saúde dos humanos e outros animais. O termo “buraco” foi adotado pelos meios de comunicação social, mas, na realidade, tratava-se de uma zona em que a concentração daquele gás se apresentava acentuadamente mais atenuada do que o habitual. Curiosamente, o ozono (O3), cujas moléculas são constituídas por três átomos de oxigénio, desempenha um papel importante quando na ozonosfera, mas é prejudicial na camada limite da atmosfera, onde nós desenvolvemos as atividades no dia a dia. A formação do ozono nesta camada ocorre quando determinados gases, como os óxidos de azoto e compostos orgânicos voláteis, reagem com o oxigénio na presença da radiação solar. Quando respirado, pode provocar inflamação das vias respiratórias, por vezes com graves consequências em pessoas com doenças respiratórias. A sua concentração tende a aumentar em zonas urbanas e industriais, em determinadas condições meteorológicas, principalmente quando ocorrem anticiclones estacionários, aos quais estão associados grande estabilidade atmosférica e ventos fracos. Menciono esta situação anómala (do buraco do ozono), na medida em que a sua atenuação constituiu um exemplo de como é possível reverter situações de degradação do ambiente causadas pelas atividades humanas. Uma vez comprovada que a causa dessa diminuição de concentração era devida à ação de determinados gases de efeito de estufa (GEE) que também afetam o ozono estratosférico (ODS – ozone depleting substances), os cientistas induziram os decisores políticos a tomarem medidas no sentido da proibição do seu uso. Na realidade, após o Protocolo de Montreal, entrado em vigor em 1989, em que se preconizou a eliminação progressiva dos ODS, a concentração do ozono estratosférico evoluiu no sentido do seu aumento. Hoje considera-se este facto como um exemplo em que foi possível evitar, em larga medida, a degradação do ambiente causada pelas atividades antropogénicas. A aplicação das medidas preconizadas no referido Protocolo teve tal êxito que levou Kofi Anan (Secretário-Geral da ONU entre 1997 e 2006 e prémio Nobel da paz 2001) a afirmar que “talvez seja o mais bem-sucedido acordo internacional de todos os tempos”. Outro exemplo de êxito de tomada de medidas com sucesso no sentido da melhoria do ambiente, embora numa área mais restrita, foi o Clean Air Act de 1956, que consistiu numa lei do Parlamento do Reino Unido com a finalidade de reduzir a poluição causada pela queima de carvão em lareiras domésticas e fornos industriais na região de Londres. Esta medida foi tomada na sequência de vários episódios de poluição extrema causada por smog (mistura de fumo e nevoeiro – smoke + fog), nomeadamente o Great Smog de Londres, entre 5 e 9 de dezembro de1952, que causou a morte de cerca de 12.000 pessoas. Exemplos como este constituem um fator de esperança no que se refere à possibilidade, não direi de recuperação das características do clima, mas de atenuação da sua degradação, no sentido de limitar o progressivo aquecimento e as consequências que comprovadamente daí advêm. É conveniente relembrar que o Acordo de Paris, alcançado cerca de16 anos depois do falhado Protocolo de Quioto (ratificado em 1999), consistiu essencialmente em compromissos a nível global no sentido de reduzir a emissão de GEE, mitigar as consequências das alterações climáticas e tomar medidas financeiras e estruturais para a adaptação a essas alterações. Para concretizar estas pretensões foram estabelecidos os seguintes principais objetivos: 1) manter, até 2100, o aumento da temperatura inferior a 2 graus Celsius, tendo como referência os valores pré-industriais, e incentivar esforços para limitar o aumento a 1,5 ºC; 2) Promover a capacitação dos países para enfrentar os impactos das alterações climáticas; 3) Tornar os fluxos financeiros consistentes com uma via de desenvolvimento com baixas emissões e resiliente ao clima. Na cimeira de Glasgow, que se realizou de 31 de outubro a 12 de novembro de 2021, esteve prestes a alcançar-se unanimidade no que se refere à proposta de acabar com o uso do carvão. A Índia exerceu, no entanto, forte pressão para impedir esta recomendação, tendo conseguido que no texto final da COP26 se substituísse o termo “eliminação progressiva” (phase out), referente ao uso do carvão, por “redução gradual” (phase down). Provavelmente, se fosse só este país a propor esta alteração, teria havido maior resistência no sentido de tal não ser aceite, mas a China e outras economias emergentes também se manifestaram nesse sentido. Outros, embora não se tivessem manifestado, devem ter esfregado as mãos de contentamento quando a alteração foi aprovada (estou a pensar nos representantes da Austrália, por exemplo). Fazendo um balanço das discussões e, perante o resultado final, não se pode dizer que a Cimeira de Glasgow tenha sido um fracasso, mas esteve longe de satisfazer os mais exigentes, entre eles António Guterres, Secretário-geral das Nações Unidas, que, no seu discurso de encerramento, se referiu ao resultado da cimeira nos seguintes termos: “Os textos aprovados são um compromisso. Refletem os interesses, as condições, as contradições e o estado da vontade política no mundo de hoje. São passos importantes, mas, infelizmente, a vontade política coletiva não foi suficiente para superar algumas contradições profundas”. Do Pacto de Glasgow sobre o Clima (Glasgow Climate Pact), assinado por governantes de cerca de 200 países, ressaltam, entre outros, os seguintes compromissos e constatações: Finalização do Livro de Regras de Paris (Paris Rulebook), documento que consta de orientações detalhadas sobre como os países devem proceder para alcançarem a neutralidade carbónica. Necessidade de os países desenvolvidos cumprirem totalmente a meta anual de US$100 mil milhões para apoio aos países em desenvolvimento, com urgência, com a devida transparência na implementação das suas promessas (compromisso estabelecido anteriormente, mas não integralmente cumprido). Compromisso de atualização anual das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs – Nationally Determined Contributions) em vez de a cada cinco anos, conforme havia sido estipulado no Acordo de Paris. (Entende-se por NDCs os planos que constam das ações previstas para a redução das emissões dos GEE e adaptação às alterações climáticas, como contributo nacional para se atingir as metas globais estabelecidas no Acordo de Paris). Foi também um ato significativo a assinatura por parte de 140 países e Comissão Europeia da “Declaração de Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra” (Glasgow Leaders’ Declaration on Forests and Land Use), em que se estabelece o compromisso de se acabar com o desmatamento até 2030. A área abrangida por estes países é de cerca de 90% da cobertura florestal mundial. Entre os que assinaram a declaração contam-se o Brasil, China, EUA, Indonésia, Malásia e Rússia, países com grande extensão de florestas. Pena é a Bolívia e a Venezuela, onde se encontra parte da Amazónia, não a tenham assinado. Os diplomatas brasileiros presentes na COP26 foram bastante construtivos nas discussões realizadas na cimeira de Glasgow, o que contrastou com a política atualmente a ser praticada pelo atual governo brasileiro. Segundo o Observatório do Clima, apesar da atitude colaborante sob pressão internacional, o atual governo tem vindo a desmontar políticas de combate à desflorestação e tem, pelo menos, cinco projetos de lei no Congresso que amnistiam o roubo de terras e põem em risco as terras indígenas, as quais constituem barreiras eficazes contra a destruição da floresta. (O Observatório do Clima é uma rede de 37 entidades da sociedade civil brasileira que tem por objetivo discutir as alterações climáticas no contexto nacional). Também segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazónia (Imazon), a Amazónia brasileira perdeu 10.476 km² de floresta entre agosto de 2020 e julho de 2021, o que corresponde a 57% mais do que no mesmo período anterior (agosto 2019/julho 2020), além de ser a maior destruição da floresta dos últimos 10 anos. (O Imazon é um instituto brasileiro de investigação cuja missão é promover conservação e desenvolvimento sustentável na Amazónia) Será que a humanidade, analogamente ao que sucedeu com o Protocolo de Montreal e o Clean Air Act de 1956, estará preparada para tomar medidas drásticas no sentido de pôr em prática as recomendações do Acordo de Paris e, mais recentemente, da cimeira da ONU sobre o clima, realizada em Glasgow? Esperemos pela COP27, que se realizará de 7 a 18 de novembro de 2022, em Sharm El-Sheikh, no Egito…
Olavo Rasquinho VozesOs Prémios Nobel e as alterações climáticas Foram recentemente laureados com o Prémio Nobel da Física 2021 três eminentes cientistas intimamente ligados à investigação sobre as alterações climáticas: Klaus Hasselmann, Syukuro Manabe e Giorgio Parisi. Este ano o prémio incidiu sobre o ramo da física que trata de sistemas físicos complexos e, sendo o clima um sistema deste tipo, é natural que as alterações climáticas fossem alvo da atenção da Academia Real Sueca das Ciências, contribuindo, assim, para chamar a atenção para a degradação do clima, nas vésperas da 26ª Conferência das Partes (COP26) da Convenção-Quadro sobre as Alterações Climáticas das Nações Unidas , que está a decorrer em Glasgow entre 31 de outubro e 12 de novembro. Metade do prémio foi atribuído conjuntamente a Klaus Hasselmann e Syukuro Manabe, pela contribuição de ambos para a modelação física do clima da Terra, o que permitiu quantificar a sua variabilidade e prever o aquecimento global de forma fiável. A outra metade foi atribuída a Giorgio Parisi pela descoberta da interação da desordem e flutuações em sistemas físicos da escala atómica à escala planetária. Klaus Hasselmann, oceanógrafo alemão, natural de Hamburgo e nascido em 1931, é professor no Instituto alemão de Meteorologia Max Planck. Referindo-se ao problema das alterações climáticas, tem vindo a realçar que o principal obstáculo à sua resolução consiste no facto de os decisores políticos e o público não estarem cientes que é solúvel, bastando para isso utilizar tecnologias já existentes e investir na inovação em novas tecnologias no sentido de reduzir significativamente as emissões de dióxido de carbono por parte dos humanos. Numa entrevista publicada em 1988, já Hasselmann avisava que, dentro de 30 a 100 anos, o nosso planeta enfrentaria alterações do clima muito significativas. Syukuro Manabe, meteorologista e climatologista nipo-estadunidense, nasceu em 1931, em Shingu (Japão). Emigrou muito novo para os EUA, onde desenvolveu a sua atividade profissional na Universidade de Princeton, sendo autor de trabalhos que demonstram que o aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera causada pelas atividades humanas é a principal causa do aquecimento global. Contribuiu grandemente para o desenvolvimento do primeiro modelo climático que permitiu antever a evolução da temperatura e o comportamento do ciclo hidrológico em função do aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera. De acordo com Manabe, a atribuição deste prémio deu a si e aos outros dois modeladores do clima a credibilidade e o reconhecimento que sempre desejaram. Ambos contribuíram para o primeiro (AR1) e terceiro (AR3) Relatórios de Avaliação do IPCC sobre o estado do clima, em 1990 e 2001, respetivamente, e Hasselmann também contribuiu para o segundo Relatório de Avaliação (AR2), em 1995. Giorgio Parisi, físico italiano, nascido em Roma em 1948, é professor de Teorias Quânticas na Universidade de Roma “La Sapienza”. Desenvolveu trabalhos revolucionários na área da teoria de sistemas complexos que contribuíram para melhor compreender a evolução temporal do sistema climático. Parisi declarou recentemente, numa conferência de imprensa, que a atribuição do prémio é importante não só para ele, mas também para os outros dois laureados, na medida em que as alterações climáticas são uma grande ameaça para a humanidade e é extremamente importante que os governos ajam com determinação o mais rapidamente possível. Não é a primeira vez que o Prémio Nobel á atribuído a personalidades relacionadas com as alterações climáticas. Em 2007, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído conjuntamente a Albert Arnold Jr (Al Gore), que havia sido Vice-Presidente dos Estados Unidos da América de 1993 a 2001, e ao IPCC pelos esforços no sentido de aprofundar e disseminar um maior conhecimento sobre as alterações climáticas devidas a atividades antropogénicas. Muito antes, em 1903, o prémio Nobel da Química foi atribuído ao físico-químico sueco Svante Arrhenius (1859-1927), não por atividades relacionadas com o clima, mas em reconhecimento dos serviços prestados ao avanço da química através dos seus trabalhos sobre a dissociação eletrolítica. No entanto, embora não fosse essa a razão da atribuição do prémio, Arrehnius já havia chamado a atenção para o facto de que o aumento da concentração de dióxido de carbono implicaria o aumento da temperatura da Terra. Os prémios Nobel nem sempre beneficiaram da aprovação unânime da sociedade. Certamente os negacionistas não terão apreciado esta escolha da Academia Real Sueca das Ciências. Políticos como Bolsonaro e Trump muito provavelmente não terão concordado com a seleção dos laureados. Ambos têm sido responsáveis pela degradação do ambiente, não só nos respetivos países, mas também à escala global. Bolsonaro, alterando a legislação que impedia a exploração desenfreada dos recursos mineiros e florestais da Amazónia, demitindo personalidades das suas funções, como por exemplo Ricardo Galvão, Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), pelo facto de ter divulgado dados sobre a desflorestação da Amazónia. Trump ficou bem conhecido por negar as alterações climáticas, retirando os EUA do Acordo de Paris, proibindo instituições americanas (como por exemplo a NOAA ) de empregarem expressões com “alterações climáticas” e “aquecimento global”, colocando à sua frente personalidades negacionistas. Seria um desastre se as ideias (ou ausência delas) de Bolsonaro e de Trump singrassem à escala global. Este último já foi apeado do poder, mas ainda permanecem numerosos admiradores seus que poderão fazer com que volte à presidência dos EUA. Espera-se que, para bem da humanidade, o atual presidente do Brasil perca rapidamente as rédeas do poder no seu país, através de impeachment, ou das próximas eleições em 2022. A Academia Real Sueca das Ciências selecionou, algumas vezes, personalidades cujo comportamento posterior à atribuição dos prémios veio mostrar que não eram merecedores destes. Assim, por exemplo, o antigo Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, foi laureado com o prémio Nobel da Paz 1973 (conjuntamente com Le Duc Tho), pelas suas diligências no sentido da concretização do acordo de cessar-fogo na Guerra do Vietname. Nesse mesmo ano foi um dos promotores do golpe de Augusto Pinochet contra o presidente Salvador Allende, democraticamente eleito pelo povo chileno. Esse golpe, que culminou com a tomada do poder pela extrema-direita chilena, deu origem a um regime de terror que perdurou até 1990. Kissinger, em 1975, também foi figura proeminente no apoio político à invasão de Timor. Foi um dos promotores da Operação Condor, iniciada em 1975 sob os auspícios da CIA , que consistiu numa campanha clandestina de repressão e terror de Estado, organizada pelas ditaduras da Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil e, embora menos ativamente, do Equador e Peru. Também Aung San Suu Kyi, líder da oposição ao regime militar que governava o Mianmar desde 1962, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Paz de 1991 pela sua luta não violenta pela democracia e pelos direitos humanos, foi mais tarde acusada de não denunciar as atrocidades perpetradas pelos militares contra a minoria étnica Rohingya. Na sequência das eleições gerais de 2015, em que o seu partido foi vencedor, Suu Kyi era considerada a figura mais influente do governo de Mianmar, desempenhando o cargo de Chanceler e de Primeira Conselheira de Estado, o que lhe permitiria exercer ação moderadora sobre os militares. Há ainda a considerar a atribuição do Prémio Nobel da Paz 2019 ao primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed Ali pelos seus esforços para a paz e a cooperação internacional, principalmente no que se refere aos acordos de paz com a Eritreia. Mais uma vez, o prémio foi atribuído a uma personalidade controversa, na medida em que a sua ação, desde o despoletar da Guerra do Tigré, em novembro de 2020, entre as autoridades regionais da região do Tigré e o governo federal, tem sido muito criticada pela ONU e Amnistia Internacional. Segundo investigações levadas a cabo por estas duas organizações, ocorreram graves violações e abusos dos direitos humanos perpetrados pelas tropas etíopes, nomeadamente no que se refere à repressão dos dissidentes de Tigré, onde tem ocorrido forte repressão através de atos que podem ser considerados crimes de guerra. A atribuição do Prémio Nobel da Física 2021 a cientistas envolvidos no estudo das alterações climáticas, pouco tempo antes da 26ª cimeira da ONU sobre o clima, poderá contribuir para dar maior urgência às decisões a serem tomadas no sentido do cumprimento do Acordo de Paris, ou seja, para que os decisores políticos ajam prontamente no sentido de que o aumento da temperatura média a nível global não atinja 2 ºC, de preferência inferior a 1,5 ºC, em relação aos níveis pré-industriais.
Olavo Rasquinho VozesImplicações das Alterações Climáticas no Leste Asiático Uma pergunta que grande parte dos habitantes do nosso planeta faz é seguramente “será que as alterações climáticas são uma realidade e, no caso de o serem, em que medida irão afetar a região que habito?” Eu próprio pergunto o que irá acontecer na região onde vivo, nas Azenhas do Mar, a cerca de 40 km de Lisboa. A moradia que habito situa-se no declive de uma pequena colina, a cerca de 300 metros de distância da linha de costa, a algumas dezenas de metros de altitude, o que me deixa tranquilo no que se refere à subida do nível do mar. Também o local não é suscetível de ser afetado por cheias rápidas, fenómeno que tem vindo a acentuar-se à escala global. Caso haja episódios de precipitação intensa, a água escoará facilmente para o mar. O mesmo não pensará o proprietário de um pequeno estabelecimento que existia na Praia Pequena, há algumas dezenas de anos, hoje completamente destruído pela fúria do mar. Esta praia é adjacente à Praia Grande, onde por vezes os pequenos quiosques nesta existentes são danificados quando há marés vivas, cujas consequências são agravadas quando coincidem com tempestades. Quem me está a ler (espero que mais alguém para além do revisor deste texto), decerto leitor do jornal “Hoje Macau”, poderá perguntar “onde é que este tipo quer chegar? Será que as Azenhas do Mar e as Praias Pequena e Grande ficam no Leste Asiático?”. A realidade é que as alterações climáticas estão a afetar o nosso planeta, e vão continuar a fazê-lo, praticamente à escala global. Para podermos seguir as consequências do evoluir do clima já estão ao nosso alcance ferramentas que nos permitem ter uma ideia do que poderá acontecer no futuro. Uma delas é o Atlas Interativo do IPCC[i], que faz parte do sexto Relatório de Avaliação (AR6)[ii] deste órgão das Nações Unidas, publicado parcialmente em 9 de agosto do corrente ano. Trata-se de uma nova e poderosa ferramenta que nos permite analisar a evolução espacial e temporal (a curto, médio e longo prazo) de alguns dos parâmetros que caracterizam os possíveis tipos de clima suscetíveis de virem a ocorrer, com base em cenários estabelecidos em função da quantidade de gases de efeito de estufa (GEE) devido, principalmente, às atividades antropogénicas. Entre estes parâmetros salientam-se a subida do nível do mar, o aumento da temperatura máxima do ar, o aumento da temperatura da superfície do mar, o número de dias com temperatura superior a 35 ºC ou 40 ºC, etc. Através deste Atlas (que pode ser acedido em https://interactive-atlas.ipcc.ch/) pode-se estimar o que poderá acontecer, em termos climáticos, em diferentes regiões do globo, colocando o cursor num determinado local dos mapas digitais nele contidos. Poder-se-á constatar que as consequências das alterações climáticas, numa determinada região, serão tanto mais gravosas quanto maior for o período abrangido e maior a injeção de GEE. Como é sabido, a Região Administrativa Especial de Macau está situada no Leste Asiático (ou Extremo Oriente), numa zona de monções, em que predominam os ventos húmidos do quadrante sul durante os meses mais quentes e ventos do quadrante norte, mais secos, durante os meses menos quentes. A RAEM é também afetada pelo tempo associado a ciclones tropicais (tempestades tropicais e tufões), em média cerca de seis vezes por ano. Quando a aproximação destas depressões coincide com as marés astronómicas altas, os seus efeitos podem ser agravados no que se refere à ocorrência de inundações nas zonas mais baixas, nomeadamente no Porto Interior. Tendo estes fenómenos ocorrido no passado, o que tem causado graves prejuízos à população, facilmente se pode imaginar o que poderá acontecer no futuro, atendendo à subida do nível do mar e à muito provável maior intensidade dos ciclones tropicais. Tufões intensos estão associados a um fenómeno designado por “efeito barométrico inverso”, que consiste no facto de, quando a pressão atmosférica é muito baixa, haver uma sobre-elevação do nível do mar de cerca de 1 cm por hectopascal (hPa[i]), na região afetada pela tempestade, i.e., o nível do mar sobe cerca de 1 cm quando a pressão desce 1 hPa. Assim, por exemplo, numa situação em que a pressão sobre o mar seja cerca de 1013 hPa antes da aproximação de um tufão com a pressão no centro de 950 hPa, haverá uma subida do nível do mar de aproximadamente 63 cm. A superfície do mar, assim sobre-elevada, que acompanha o tufão, só por si poderia causar inundações em terra. Acontece, porém, que ao efeito de elevação do nível do mar se junta a ação do vento forte que, arrastando a água, dá origem ao que se designa por maré de tempestade. Em 23 de agosto de 2017, aconteceu algo semelhante, na RAEM, durante a passagem do tufão Hato, cujo o valor mais baixo da pressão medida em Macau foi cerca de 945 hPa. O facto de ter atingido terra sensivelmente à mesma hora do máximo da maré barométrica fez com que os três efeitos (pressão extremamente baixa, ventos muito fortes e maré alta) se conjugassem, provocando uma maré de tempestade que causou inundações com graves consequências, causando a perda de vidas e graves prejuízos materiais. A acumulação de água da chuva com a do mar fez com que, em alguns locais, o nível da água atingisse cerca de 5 m acima do solo, conforme medição por instrumentos dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau. Observações via satélite têm confirmado que o nível do mar, à escala global, tem vindo a aumentar cerca de 3,1 mm por ano, o que implica que, dentro de algumas dezenas de anos (a manter-se, ou a aumentar esta tendência) as consequências dos ciclones tropicais em Macau serão tendencialmente mais gravosas. Consultando o Atlas Interativo, aparece-nos um globo terrestre em rotação, com uma legenda indicando as variáveis “temperatura” e “precipitação”. Clicando na primeira, pode-se observar o aumento das extensões geográficas abrangidas pelos incrementos da temperatura média de 1,5 ºC, 2 ºC, 3 ºC e 4 ºC, tendo como referência o período 1850-1900. Analogamente, clicando em “precipitação”, pode-se também estimar o aumento das extensões abrangidas pelo incremento desta variável, a nível global, correspondentes a esses diferentes acréscimos de temperatura. É facilmente compreensível esta última constatação, na medida em que, quanto maior for o aquecimento global, maior será a evaporação e, consequentemente, maior a concentração de vapor de água na atmosfera. Este vapor, ao condensar, provocará uma cobertura de nuvens tanto mais extensa e compacta quanto maior a concentração de vapor de água na atmosfera. Estarão, assim, criadas as condições para forte precipitação, reforçando o que já está a acontecer no que se refere à tendência de aumento de frequência e intensidade das chamadas cheias rápidas, que apanham de surpresa os habitantes das regiões onde esses fenómenos ocorrem, como o que aconteceu no verão de 2021, na Europa e na China, onde houve centenas de vítimas provocadas por fenómenos deste tipo. Para construir este Atlas, o IPCC recorreu ao acoplamento de vários modelos climáticos, tendo em consideração as constantes interações entre as diferentes componentes do sistema climático (atmosfera, hidrosfera, criosfera, litosfera e biosfera). Com este intuito, o IPCC desenvolveu representações gráficas, através das quais se pode extrair informação climática regional que poderá servir de base à tomada de medidas, a nível governamental, no sentido de diminuir o impacto das alterações climáticas. Por exemplo, se pretendermos estimar qual o aumento do nível do mar na região de Macau, acedemos ao sítio do Atlas Interativo do IPCC, clicamos no quadro “Regional Information”, aparece-nos um mapa-múndi sobre o qual clicamos em “Variable”, escolhemos “Sea level rise” e colocamos o cursor no ponto do mapa correspondente à região “East Asia”. Na parte inferior do ecrã aparece-nos um gráfico no qual é possível extrair o valor da subida do nível do mar a curto, médio e longo prazo. Poder-se-á estimar que a subida nessa região seria de cerca de 1 m em 2100. Procedendo analogamente para outras variáveis, como, por exemplo, o aumento da temperatura máxima anual, podemos concluir que seria de aproximadamente 3 ºC em 2100. Isto para o cenário designado por SSP5-8.5, que corresponde a altas emissões de GEE. O Atlas Interativo constitui, assim, uma ferramenta a que os assessores técnicos dos governos poderão usar no sentido aconselhar os decisores políticos sobre a tomada de medidas, no sentido de atenuar a vulnerabilidade dos respetivos territórios, adaptando as estruturas de modo a melhor enfrentarem as alterações climáticas. [i] hPa (Hectopascal) – unidade de pressão correspondente a 100 Newton por metro quadrado. Antigamente designava-se por milibar (mb).
Olavo Rasquinho Vozes6º Relatório do IPCC – Alterações climáticas 2021 Como é sabido, a Organização das Nações Unidas foi criada com a missão de promover a paz no nosso planeta. A primeira organização internacional com esse objetivo, a Liga das Nações, iniciou a sua atividade logo após a primeira guerra mundial, em 1919. Apesar de ter falhado ao não conseguir evitar a II guerra mundial, a Liga serviu de inspiração para o nascimento da ONU, em 1945. A atividade das Nações Unidas não se limita a aspetos relacionados com a paz mundial. Entre as suas várias agências especializadas e programas destacam-se a Organização Meteorológica Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, sob os auspícios dos quais foi criado o IPCC, em 1988, com o intuito de monitorizar as alterações climáticas e disponibilizar, para os decisores políticos, avaliações regulares sobre essas alterações, os seus impactos, riscos futuros e opções de adaptação e mitigação. Ao longo dos seus 33 anos o IPCC já publicou, além de outros documentos intermédios, cinco Relatórios de Avaliação (Assessment Reports – AR) completos sobre a evolução das alterações climáticas, e parte do sexto relatório (AR6), que foi dado a conhecer há algumas semanas. O Relatório de Avaliação anterior (AR5) havia sido divulgado em 2013. A periodicidade destes relatórios é de cerca de 6 anos. O mais recente sofreu atraso devido às circunstâncias relacionadas com a epidemia COVID-19. O IPCC não recorre a especialistas próprios, elabora os seus relatórios com base em estudos de centenas de cientistas pertencentes a diversas instituições, nomeadamente universidades, institutos e organizações intergovernamentais. O AR6 resulta das contribuições de três Grupos de Trabalho: Grupo de Trabalho I (Física como ciência base), Grupo de Trabalho II (Impactos, adaptação e vulnerabilidade) e Grupo de Trabalho III (Mitigação). A parte correspondente ao Grupo de Trabalho I foi apresentada em conferência de imprensa a 9 de agosto do ano corrente. As partes referentes aos Grupos de Trabalho II e III ainda não estão completas, prevendo-se a sua apresentação em fevereiro e março de 2022, respetivamente. Será também publicado um Relatório Síntese, nos fins de setembro desse mesmo ano. Uma das organizações intergovernamentais que tem vindo a colaborar com o IPCC, o ESCAP/WMO Typhoon Committee, tem o seu secretariado sedeado em Macau. A sua colaboração tem consistido na coordenação de estudos elaborados por meteorologistas e climatologistas dos catorze países e territórios daquela organização intergovernamental, situados nos limítrofes do noroeste do Pacífico Norte e do Mar do Sul da China. No caso específico do atual relatório, o Comité dos Tufões contribuiu com a publicação “Terceira avaliação dos impactos das alterações climáticas sobre os ciclones tropicais na região do Comité dos Tufões” (título original: Third assessment on impacts of climate change on tropical cyclones in the Typhoon Committee Region”), publicado em 2020. (Curiosamente o secretariado deste Comité está sedeado na Avenida 5 de Outubro, data da implantação da República Portuguesa, em 1910, a algumas centenas de metros do Largo General Ramalho Eanes, em Coloane, o que ilustra, em certa medida, a ligação histórica entre Macau e Portugal). A parte recentemente publicada, correspondente ao Grupo de trabalho I, é um extenso documento com 3.949 páginas, em que se apresentam, de modo exaustivo e com base científica, o estado atual do clima e os vários cenários que poderão condicionar a evolução das alterações climáticas em função da injeção de gases de efeito de estufa (GEE) e as suas implicações para o futuro do planeta. Como é prática habitual, foi também publicado o “Resumo para os Decisores Políticos” (Climate Change 2021 – The Physical Science Basis – Summary for Policymakers – SPM), que consiste num documento de 41 páginas, com linguagem mais acessível, não só sobre o estado atual do sistema climático e as suas possíveis alterações devido à ação antropogénica, mas também sobre como limitar as implicações dessas alterações nas diferentes regiões do globo. O SPM consta de quatro partes: A – O Estado Atual do Clima; B – Climas Futuros Possíveis; C – Informação Climática para Avaliação de Riscos e Adaptação Regional; D – Limitando Futuras Alterações Climáticas. No que se refere à parte A, há a salientar as seguintes constatações: 1) Não há dúvida que as atividades humanas têm vindo a provocar o aquecimento da atmosfera, do oceano e da terra. Têm ocorrido alterações rápidas e generalizadas na atmosfera, oceanos, criosfera e biosfera. 2) A escala de alterações recentes no sistema climático e o estado atual de muitos aspetos do clima são sem precedentes, desde há milhares de anos. 3) As alterações climáticas induzidas pelas atividades humanas estão a acentuar muitos extremos climáticos e meteorológicos em todas as regiões do globo, nomeadamente ondas de calor, precipitação intensa, secas e ciclones tropicais. A parte B do Resumo para os Decisores Políticos (Climas Futuros Possíveis) consta essencialmente dos resultados de modelos de previsão climática em resposta a cinco cenários diferentes, estabelecidos em função das quantidades de GEE injetadas na atmosfera, obtendo-se, assim, projeções dos aumentos de temperatura relativos a períodos a curto (2021-2040), médio (2041-2060) e longo prazo (2081-2100), tomando sempre como referência a temperatura média global referente ao período 1850-1900. Nos relatórios do IPCC são usados, entre outros, os seguintes termos para indicar a probabilidade de ocorrência dos resultados dos modelos: praticamente certo (99-100%), muito provável (90-100%), provável (66-100%), tão provável como improvável (33-66%), improvável (0-33%), muito improvável (0-10%), excecionalmente improvável (0-1%). Assim, quando se afirma que é muito provável que o aumento da temperatura no fim do corrente século, considerando o cenário de emissões muito altas, possa atingir valores entre 3,3 e 5,7 °C, é o mesmo que afirmar que a probabilidade de que tal aconteça é de 90% a 100%. O quadro resume o aumento muito provável da temperatura média global correspondente aos cinco cenários estabelecidos: Emissões muito baixas, Emissões baixas, Emissões intermédias, Emissões altas e Emissões muito altas. De acordo com este quadro, é muito provável que o aumento da temperatura a longo prazo (2081-2100) esteja compreendido entre 1,0 e 1,8 °C no cenário de baixas emissões de GEE. Analogamente, também no fim do século, no cenário emissões intermédias o aumento de temperatura seria muito provavelmente de 2,1 a 3,5 °C e no cenário de emissões muito altas, de 3,3 a 5,7 °C. Se não houver um esforço concertado a nível global para reduzir as emissões de GEE, a situação atual poderá evoluir de modo a ser enquadrada no cenário mais pessimista (usualmente referido como “business as usual”), é muito provável que o aumento da temperatura no fim do corrente século possa atingir valores entre 3,3 e 5,7 °C, o que seria catastrófico para a vida no nosso planeta. Ainda segundo o AR6, de acordo com estudos paleoclimáticos, foi há mais de 3 milhões de anos a última vez que a temperatura média do ar (em relação ao período 1850-1900) se manteve igual ou acima de 2,5 °C. A parte C do SPM (Informação Climática para Avaliação de Riscos e Adaptação Regional), trata de informações sobre como o sistema climático responde à influência da interação da atividade humana com fatores naturais e a própria variabilidade interna, tendo em vista o planeamento de medidas de adaptação e de redução de riscos à escala regional. A parte D (Limitando as Futuras Alterações Climáticas) debruça-se sobre a necessidade de limitar as futuras alterações climáticas, enfatizando que o controlo de possíveis climas futuros está intimamente relacionado com redução drástica das emissões de CO2. Realça também a constatação de que existe uma relação quase linear entre as emissões de dióxido de carbono produzido pelas atividades humanas e o aumento global da temperatura. Estabelece que para cada mil gigatoneladas de CO2 acumulado na atmosfera corresponde um aumento global de temperatura de cerca de 0,45 °C. O passar do tempo tem revelado que as projeções do IPCC são por vezes ultrapassadas pela realidade. Em certas regiões do globo o aquecimento tem sido superior ao previsto. Assim, por exemplo, a temperatura média do ar em zonas terrestres próximas do círculo polar ártico atingiu recentemente valores nunca registados, o que tem facilitado a ocorrência de incêndios na tundra e nas florestas da Sibéria onde, na cidade Verkhoyansk, a temperatura atingiu 37 °C em junho de 2020. O aumento de temperatura em regiões de latitudes tão elevadas tem vindo também a causar o degelo em vastas áreas em que o solo húmido permanece quase permanentemente gelado, formando o que se designa por pergelissolo (permafrost, em inglês) e que, ao fundir, provoca a libertação de grandes quantidades de metano, o que contribui para reforçar o aquecimento global. O aumento da temperatura nestas regiões tem sido duas vezes superior à média global. Comparado com o CO2, o metano, como gás de efeito de estufa, é cerca de 20 vezes mais potente, embora permaneça muito menos tempo na atmosfera. Outra implicação das alterações climáticas é o aumento do nível médio do mar, devido não só ao degelo de grande parte das calotas polares e de glaciares, mas também à dilatação provocada pelo aquecimento. Segundo medições obtidas via satélite, o nível do mar tem aumentado cerca de 3 cm por década. Através do AR6 pode-se ter acesso a um simulador que nos disponibiliza um mapa com as projeções de subida do nível do mar. Um sinal de que as alterações climáticas são uma realidade é o facto de ter chovido significativamente, em 14 e 15 de agosto do corrente ano, no ponto mais alto da Gronelândia, algo que nunca tinha acontecido desde que há registos das ocorrências de fenómenos meteorológicos. O tipo de precipitação normal nessa região é a queda de neve. A chuva contribui para acelerar o ritmo do degelo nas calotas polares. Este acontecimento ilustra bem uma das constatações do AR6 no que se refere ao agravamento das condições favoráveis ao degelo na Gronelândia, que tem vindo a acentuar-se nas últimas duas décadas devido às emissões de GEE.
Olavo Rasquinho VozesCONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS (COP26) Sob o lema “Unindo o Mundo para Enfrentar as Alterações Climáticas”, sob a presidência do Reino Unido e em parceria com a Itália, irá realizar-se em Glasgow entre 31 de outubro e 12 de novembro de 2021 a 26ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (26th Conference of the Parties of the United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC). Os grandes objetivos da COP26, que se realiza com um ano de atraso devido à pandemia Covid-19, consistem em (1) garantir que a neutralidade carbónica seja atingida até 2050 e que o aumento da temperatura não ultrapasse 1,5 graus Celsius; (2) proteger as comunidades e os habitats naturais; (3) mobilizar meios financeiros necessários para o cumprimento dos dois primeiros objetivos; (4) no trabalho de todas as partes interessadas em estreita colaboração. Além destes objetivos pretende-se também completar o livro de regras (Paris Rulebook) em que se estabelecem as diretrizes de funcionamento, na prática, do Acordo de Paris. Para a concretização dos objetivos, os decisores políticos serão convidados a tomar medidas necessárias à eliminação do uso do carvão, reduzir o desmatamento, incrementar o uso de veículos elétricos e incentivar o investimento em energias renováveis. O primeiro ministro do Reino Unido, Boris Johnson, numa declaração por ele assinada, resume da seguinte forma o princípio básico em que deve assentar esta conferência: “Garantir um futuro melhor para nossos filhos e gerações futuras exige que os países tomem medidas urgentes no próprio país e no exterior a fim de reverter a tendência das alterações climáticas. À medida que nos aproximamos da crucial Conferência COP26, no Reino Unido, é com ambição, coragem e colaboração, que devemos aproveitar conjuntamente este momento, de modo a que possamos restaurar o nosso planeta, tornando-o mais limpo e mais verde”. Esta declaração, politicamente correta, contradiz a atitude que o atual primeiro ministro do RU tem demonstrado em relação à crise climática. A sua forma de encarar as alterações climáticas, como, aliás, outras áreas, tem sido ziguezagueante. Chegou a escrever artigos que refletiam o seu ceticismo sobre este assunto e, quando membro do parlamento, votou contra a captura e armazenamento de CO2 e a favor da tributação em projetos de energia renovável. Seja ou não sincero na sua posição atual, o certo é que o RU se disponibilizou para acolher a próxima Conferência das Partes. O mesmo não aconteceu com o Brasil no que se refere à COP anterior. Este país, que se havia oferecido como anfitrião da COP25, deu o dito por não dito sob a presidência de Bolsonaro. Em novembro de 2018 foi anunciada a quebra deste compromisso, sob o pretexto de restrições orçamentais e a transição entre governos. Perante esta recusa, o Chile ofereceu-se então como anfitrião, no entanto, devido à agitação social que antecedeu a data prevista para a cimeira, a COP25 acabou por se realizar em Madrid, de 2 a 13 de dezembro de 2019, por acordo mútuo entre o Chile, Espanha e a ONU. A UNFCCC, que entrou em vigor em 1994, foi assinada por 198 países que se juntaram no sentido de se estabelecerem objetivos genéricos tendo em vista enfrentar as alterações climáticas. É um dos três tratados internacionais adotados na Cimeira da Terra do Rio, que se realizou no Rio de Janeiro em 1992. Os outros dois, a Convenção Sobre a Biodiversidade e a Convenção de Combate à Desertificação, estão também intimamente ligados à crise climática. A COP26, em que participarão chefes de estado, cientistas, organizações internacionais, ONGs e outras entidades privadas, é a cimeira mais importante deste tipo desde a COP21, em 2015, quando quase 200 países chegaram ao histórico Acordo de Paris. O Papa Francisco, que considera as alterações climáticas “um dos fenómenos mais graves e preocupantes de nosso tempo”, anunciou a sua intenção de participar na cimeira. Sejam quais forem as recomendações, conclusões e compromissos que serão acordados na COP26, não será fácil pô-los em prática, na medida em que a produção de energia com recurso a combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral), principal causa da injeção de gases de efeito de estufa (GEE) na atmosfera, dificilmente será substituída por processos limpos, nomeadamente com recurso ao vento, sol, geotermia, recursos hídricos, hidrogénio e fusão nuclear. Atualmente, quase 30 anos depois da entrada em vigor da UNFCCC (1994), 16 anos depois da ratificação do Protocolo de Quioto (2005) e da realização de 25 COPs , cerca de 84% da energia à escala global ainda é produzida com recurso a combustíveis fósseis. Apenas cerca de 11% da energia é de origem renovável. No que se refere à energia nuclear, que contribui com cerca de 4% para o total da energia produzida globalmente, deve-se considerar não-renovável, na medida em que o urânio não é abundante na natureza. No futuro poder-se-á classificar a energia nuclear como renovável quando se recorrer à fusão nuclear, cuja matéria prima, o hidrogénio, existe abundantemente. A China é um dos países onde se procede experimentalmente à fusão nuclear de núcleos de isótopos de hidrogénio através do Experimental Advanced Superconducting Tokamak (EAST), a cargo do Institute of Plasma Physics of the Chinese Academy of Sciences (ASIPP), em Hefei, no vale do rio Yangtzé, onde se consegue confinar plasmas a temperaturas elevadíssimas, com recurso a potentes ímanes que geram campos magnéticos muito intensos. Recentemente, segundo órgãos estatais chineses, conseguiu-se atingir, no ASIPP, cerca de 120 milhões de graus Celsius durante 101 segundos, tendo-se atingido um pico de 160 milhões de graus, durante 20 segundos. A fusão nuclear, que acontece naturalmente no sol e nas estrelas, dá-se quando dois núcleos de elementos leves se fundem para formar um núcleo mais pesado, gerando-se grande quantidade de energia. Fundindo dois núcleos de isótopos de hidrogénio, o deutério e o trítio, obtém-se um núcleo de hélio, sendo a massa deste menor que a soma das massas dos núcleos que lhes deram origem. Parte da massa dos dois núcleos iniciais transforma-se em energia, de acordo com a célebre equação de Einstein E = m.c2 (a energia gerada é igual ao produto da massa transformada pelo quadrado da velocidade da luz). Apesar de até hoje não ser possível proceder à fusão nuclear de forma que a energia produzida possa ser controlada e usada para fins pacíficos, já se recorreu experimentalmente a este processo para fins bélicos, com o fabrico das chamadas bombas termonucleares ou bombas de hidrogénio. Os EUA fizeram explodir uma bomba deste tipo em 1952, e a ex-URSS em 1961. A fusão nuclear será muito provavelmente discutida na COP26, assim como a parceria de 35 membros (entre os quais União Europeia, Índia, China, Japão, Coreia do Sul, Rússia e EUA), que procede atualmente, em regime experimental, a experiências de produção de energia a partir de isótopos de hidrogénio, através do International Thermonuclear Experimental Reactor (ITER), instalado no sul de França. Apesar de todos os investimentos em energias renováveis, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera não diminuiu. Antes pelo contrário, aumentou significativamente. Estima-se que no início da era industrial a concentração era de cerca de 280 partes por milhão (ppm). De acordo com dados do observatório de Mauna Loa, no Hawaii, onde se encontra a estação que há mais tempo monitoriza a concentração deste gás, esta, em 6 de julho de 2021 era de 418,94 ppm. Embora haja nitidamente discrepâncias entre as intenções manifestadas por muitos decisores políticos e as suas atitudes na prática, é de esperar que a opinião pública continue a pressionar os governantes no sentido da concretização do Acordo de Paris. A COP26 pode contribuir para esse efeito. Caso contrário, as novas gerações terão razão em nos acusar pelo estado em que lhes legaremos o planeta que habitamos. Como diria Ban Ki-moon, não há planeta B.
Olavo Rasquinho VozesBill Gates e a crise climática A luta contra as alterações climáticas tem vindo a ser liderada pela Organização das Nações Unidas através de algumas das suas agências especializadas e programas, nomeadamente a Organização Meteorológica Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente. Foi sob os auspícios destas duas entidades que surgiu o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), que é o órgão das Nações Unidas para monitorizar as alterações climáticas, reunir estudos de numerosos cientistas e apresentar relatórios periódicos sobre o estado do clima. Além da ONU, muitas outras entidades desenvolvem atividades na luta contra a crise climática, nomeadamente organizações intergovernamentais, universidades, ONGs e outras instituições privadas. É na área da iniciativa privada que Bill Gates, conhecido mundialmente por ter sido cofundador da Microsoft, tem vindo a desempenhar um papel de grande relevância. Não se limita a contribuir financeiramente com milhões de dólares para um mundo mais sustentável, mas também a desenvolver grande atividade, informando-se junto de cientistas sobre as implicações das alterações climáticas, participando ativamente em reuniões de caráter científico e em encontros promovidos pela Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC) e outras entidades. Bill Gates tem transmitido os conhecimentos adquiridos a governantes e público interessado, através de entrevistas, intervenções em diferentes meios de comunicação e redes sociais e, mais recentemente, através do livro “Como Evitar um Desastre Climático – As soluções que temos e as inovações necessárias”. Em 2015, durante a COP21 na capital francesa, Gates foi um dos que colaborou na redação do Acordo de Paris, tendo apresentado uma tese em que se realça que só será possível alcançar a neutralidade carbónica caso se recorra a forte investimento em inovação tecnológica, enfatizando que essa tarefa compete não só aos governos, mas também aos privados. Anunciou, nesta conferência, a criação de um grupo de investidores de vários países que se comprometeram com a iniciativa Breakthrough Energy, através da qual se pretende investir na inovação tecnológica no sentido de um melhor aproveitamento das energias renováveis tendo em vista o alcance da neutralidade carbónica. Foi também anunciada por Bill Gates a iniciativa complementar “Mission Innovation: Accelerating the Clean Energy Revolution”. Os seus investimentos, tendo em vista a sustentabilidade do planeta, incidem sobre várias áreas, entre as quais a fissão nuclear com recurso a reatores nucleares avançados, investigação sobre reatores de fusão nuclear, baterias de grande capacidade de armazenamento e biocombustíveis. Segundo ele, sem inovação tecnológica será impossível atingir o preconizado no Acordo de Paris, ou seja, que o aumento da temperatura média global do ar seja inferior a 2 graus Celsius no final do século XXI e, tanto quanto possível, inferior a 1,5 graus, tendo como referência os níveis pré-industriais. Ainda de acordo com a opinião de Gates, com o conhecimento tecnológico atual não haverá condições para que a energia verde fique mais barata do que a energia obtida a partir de combustíveis fósseis. Aponta, por exemplo, a dificuldade em armazenar energia elétrica produzida a partir do vento e do sol, devido à sua intermitência, o que a torna menos eficaz do que a produzida com recurso aos combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral). As baterias atualmente existentes não têm grande capacidade, sendo necessárias quantidades enormes de baterias para um armazenamento eficaz. Além da energia eólica e solar, Bill Gates também se refere a outros tipos de energia limpa em que considera necessário investir, como a geotérmica, das ondas e hidrogénio. O recurso ao hidrogénio como combustível seria uma boa solução para evitar o inconveniente da intermitência da produção das energias eólica e solar, mas para produzir este gás é necessário recorrer a energia elétrica, e o processo só poderá ser considerado limpo se esta energia não for produzida por combustíveis fósseis. Por enquanto a produção de energia com recurso ao hidrogénio é ainda altamente controverso. Veja-se, por exemplo, a celeuma que se está a levantar em Portugal sobre os planos para a produção de hidrogénio em Sines. O conhecimento atual nesta área é ainda insuficiente para se poder garantir que essa produção seja rentável. O atual governo de Portugal aposta no hidrogénio como fonte de energia, tendo prevista, no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a quantia de 186 milhões de euros para a produção de hidrogénio e outros gases de origem renovável, o que é considerado insuficiente pelos potencias investidores que pretendem ser parceiros do Estado. Apesar de ser um entusiasta das energias limpas, Gates não acredita que, só por si, elas nos poderão conduzir à tão almejada “garantia de acesso a energia acessível, confiável, sustentável e moderna para todos”, conforme preconizado no número 7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Programa das Nações Unidas. Assim, enquanto não existir tecnologia para a exploração de centrais de fusão nuclear, ter-se-á de recorrer à fissão nuclear, embora com reatores mais aperfeiçoados. Com base neste seu pensamento, Gates anunciou recentemente investir na construção de um reator nuclear avançado, designado por Natrium, no Estado de Wyoming, o que mais produz carvão mineral nos Estados Unidos da América. Para esse efeito, e com a colaboração do Departamento de Energia dos EUA e de outros investidores, entre eles o seu amigo Warren Buffet, pretende-se investir cerca de mil milhões de dólares. Este interesse pela energia nuclear parece ser um contrassenso por parte de Bill Gates, na medida em que esta energia, tal como é produzida atualmente, com recurso à fissão nuclear, não é na realidade energia limpa, atendendo a que é gerado lixo radioativo, tando durante a produção de eletricidade como na extração mineira do urânio. Apesar de não implicar injeção de gases de efeito de estufa (GEE) na atmosfera durante o processo de produção de energia, os governos de muitos países resolveram não recorrer à fissão nuclear, pressionados pela opinião pública e desencorajados pela possibilidade de acidentes como os que ocorreram, por exemplo, em de Three Miles Island (EUA, 1979), Chernobil (Ucrânia, 1986), Seversk (Sibéria, 1993), Tokaimura e Fukoshima (Japão, respetivamente em 1999 e 2011). As populações dos países que recorrem à fissão nuclear são por vezes sobressaltadas por notícias sobre a fuga de gases radioativos gerados aquando do processo de produção de eletricidade. Recentemente, a população de Macau foi alertada por um incidente na central nuclear de Taishan, onde foi detetado um aumento do nível de radiação num dos dois reatores, sem que tivesse havido fuga de radioatividade para o exterior. Atendendo à pouca distância, cerca de 80 km a sudoeste de Macau, e à direção predominante dos ventos de monção que sopram do quadrante sul durante a estação mais quente, Macau é suscetível de ser afetado por gases radioativos, em caso de acidente grave nesta central. A fissão nuclear, com recurso ao urânio, consiste na fragmentação das moléculas deste elemento e consequente libertação de energia que é aproveitada para o aquecimento de água, cujo vapor é utilizado para a laboração de turbinas que, por sua vez, geram eletricidade. A fusão nuclear, contrariamente à fissão nuclear, consiste numa reação nuclear em que os átomos de dois elementos leves são combinados, formando um átomo mais pesado. No caso dos átomos dos elementos leves serem de hidrogénio, forma-se um átomo de hélio e liberta-se uma quantidade gigantesca de energia. O problema reside no facto de, para se dar a fusão, é necessário aquecer gás (em geral o hidrogénio ou um isótopo seu) a temperaturas altíssimas de modo a que se transforme em plasma, que é uma espécie de quarto estado da matéria, em que as partículas que o compõem estão carregadas de eletricidade, o que faz com que tenha de ser controlado com poderosíssimos ímanes. As grandes vantagens da fusão consistem essencialmente em as fontes de hidrogénio serem praticamente inesgotáveis, os níveis de contaminação serem baixos e não existir o risco de uma reação em cadeia suscetível de provocar desastres, como no caso da fissão. A fusão nuclear, que ocorre naturalmente no Sol e nas estrelas, ainda não é utilizável industrialmente, na medida em que, com a tecnologia atual, seria necessário mais energia para desencadear o processo do que a que seria produzida. A inovação nesta área poderá fazer com que se possa produzir energia em grandes quantidades sem emissões de GEE e sem fugas de radioatividade. Atualmente está a ser construído, no sul de França, um reator experimental de fusão nuclear, designado por International Thermonuclear Experimental Reactor (ITER), cuja construção se iniciou em 2010, fruto de uma parceria de 35 membros, incluindo EUA, União Europeia, Reino Unido, China e Índia. Espera-se que, com esta iniciativa, se possa provar que a fusão nuclear é uma solução energética viável para a descarbonização do nosso planeta. É opinião de muitos dos que se debruçam sobre a problemática da produção de energia que a dicotomia energias renováveis/energia nuclear é um falso problema, na medida em que os dois tipos de energia terão de se complementar para que se atinja a neutralidade carbónica até 2050, conforme estipulado no Acordo de Paris.
Olavo Rasquinho VozesO estado do clima São de tal maneira frequentes as referências ao aquecimento global e às alterações climáticas que, por vezes, se confundem os dois conceitos. O aquecimento global refere-se ao aumento da temperatura média do ar, à escala global, enquanto que alterações climáticas se trata de um conceito mais vasto, que inclui o aquecimento global e as suas consequências, como sejam o aumento da frequência e intensidade de fenómenos meteorológicos, como tempestades, degelo das calotas polares e gelo marítimo, ondas de calor, secas, etc. Pode-se afirmar que o aquecimento global é um dos muitos sintomas das alterações climáticas. Note-se que, quando se fala na temperatura do ar sem se especificar a que altitude se refere, subentende-se que é entre 1,25 a 2 dois metros de altura, medida num abrigo meteorológico sobre terreno com relva. Embora tenha sido em pleno século XIX que os cientistas começaram a dar grande importância ao facto de determinados gases na atmosfera terem a capacidade absorver calor, só nos anos oitenta do século passado foi possível antever, em termos quantitativos, o efeito que esses gases tinham no aumento da temperatura à escala global. Foi James Edward Hansen, climatologista americano, que, recorrendo a um modelo climático por si construído, em 1981, chegou a conclusões que levantaram grande celeuma no meio científico, antevendo que a temperatura média do ar poderia sofrer um aumento de 3,0 ºC a 4,5 ºC até 2100, valores muito próximos dos constantes nos relatórios do IPCC, apesar de nessa altura a capacidade dos computadores ser muito menor do que a dos atuais. Já antes, nos anos setenta, Hansen havia colaborado na elaboração do Relatório Charney, no qual se alertava o governo dos EUA sobre as implicações do uso intensivo do carvão como combustível. devido às emissões de dióxido de carbono. Este relatório constitui uma base científica sólida do que se convencionou designar por aquecimento global. Em 1988, Hansen proferiu uma palestra perante o Congresso dos Estados Unidos que causou grande controvérsia, não só nos meios científicos e políticos, mas também no público mais atento aos grandes problemas da humanidade. Era tão crente das suas conclusões, que se tornou ativista e foi várias vezes preso por incitar a manifestações populares contra o uso de combustíveis fósseis, alertando para as graves consequências para o equilíbrio do sistema climático. Já passaram algumas dezenas de anos e, apesar da criação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC) e dos 25 encontros científicos, designados por Conferências das Partes (COPs), promovidos no âmbito desta Convenção, e dos compromissos assumidos, a concentração de gases de efeito de estufa (GEE) continua a aumentar. Os termos da UNFCCC foram submetidos à apreciação dos Estados participantes na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro de 3 a 14 de junho de 1992, tendo entrado em vigor em 21 de março de 1994. Foi numa das 25 COPs promovidas por esta Convenção que se negociou o Acordo de Paris (COP 21, 2015), que veio a substituir o Protocolo de Quioto a partir de 2020. O Acordo de Paris constitui o primeiro tratado internacional a pressionar os aderentes a executarem planos de ação para reduzirem os GEE, induzindo os países a colaborarem dentro das suas possibilidades, exigindo, no entanto, a execução das chamadas NDCs, sigla em inglês de Nationally Determined Contributions (Contribuições Determinadas a Nível Nacional). Apesar das ações no âmbito destes tratados internacionais, promovidas sob os auspícios das Nações Unidas, para alertarem os governos sobre a necessidade do cumprimento das respetivas recomendações e decisões, as medidas tomadas até agora não têm sido de molde a reduzir as emissões dos GEE e travar as graves consequências desta inação. No último relatório sobre o estado do clima elaborado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), designado por “State of the Global Climate 2020”, são destacadas as seguinte conclusões: As concentrações dos principais gases de efeito estufa, dióxido de carbono, metano e óxido nitroso (CO2, CH4 e N2O), continuaram aumentar apesar da redução temporária das emissões em 2020, devida às medidas tomadas em resposta à COVID-19. 2020 foi um dos três anos mais quentes já registados. Os últimos seis anos, incluindo 2020, foram os mais quentes desde que há registos. A temperatura atingiu 38,0° C em Verkhoyansk, na Federação Russa, em 20 de junho de 2020, o valor mais alto registado a norte do Círculo Polar Ártico. A tendência de subida do nível do mar está a aumentar. Além disso, o armazenamento de calor pelo oceano e a acidez estão também a aumentar, o que implica diminuição da capacidade do oceano para moderar as alterações climáticas. A extensão do gelo marítimo do Ártico em setembro de 2020 foi a segunda menor registada. O recuo do gelo no Mar de Laptev, a norte da Ásia, foi o mais precocemente observado desde que há satélites meteorológicos. A tendência de perda de massa de gelo na Antártida acelerou por volta de 2005 e, atualmente, a Antártida perde aproximadamente entre 175 e 225 milhões de toneladas de gelo por ano. A estação de 2020 dos furacões no Atlântico Norte foi excecionalmente ativa. Furacões, ondas de calor extremo, secas severas e incêndios florestais causaram prejuízos de dezenas de milhares de milhões de dólares e elevado número de mortes. Durante o primeiro semestre de 2020 foram registados cerca de 9,8 milhões de migrantes, em grande parte devido a riscos e desastres hidrometeorológicos. Interrupções nas atividades agrícolas devido à Covid-19 agravaram o impacto de fenómenos meteorológicos em toda a cadeia alimentar, intensificando os níveis de insegurança alimentar. De acordo com o último relatório da Agência Internacional de Energia, divulgado em 20 de abril deste ano, esta organização antevê que em 2021 ocorrerá muito provavelmente o segundo maior aumento anual de sempre de emissões de dióxido de carbono. Entretanto, o regresso dos Estados Unidos da América ao Acordo de Paris constitui uma esperança para humanidade, na medida em que, sendo o segundo maior emissor de GEE, poderá contribuir grandemente para o cumprimento deste tratado internacional. A União Europeia, apesar da renitência de alguns membros, está a elaborar a Lei Europeia do Clima, preconizada no Pacto Ecológico Europeu, com cuja implementação se pretende atingir a neutralidade carbónica em 2050. Um dos países mais renitentes é a Polónia, país em cerca de 80% da eletricidade é produzida em centrais de carvão. Portugal tem vindo a tomar algumas ações significativas no sentido da diminuição da utilização de combustíveis fósseis, encerrando a central termoelétrica de Sines, em 14 de janeiro de 2021, e programando a cessação do funcionamento da central do Pego, em novembro próximo. Com este encerramento, o carvão deixará de ser utilizado para a produção de eletricidade no nosso país. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesA defesa do ambiente e os primeiros 100 dias do governo de Joe Biden É já um lugar-comum afirmar que as alterações climáticas têm vindo a afetar o nosso planeta, o que se reflete na subida da temperatura média do ar e dos oceanos, no aumento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos, nomeadamente ondas de calor, secas, inundações, cheias e tempestades. Em apoio desta interpretação, a última época dos furacões no Atlântico Norte foi a mais ativa de sempre desde que há registos, tendo ocorrido trinta ciclones tropicais aos quais foram atribuídos nomes próprios (tempestades tropicais e furacões). O número foi de tal modo elevado em 2020, cerca do triplo da média anual, que os 21 nomes da lista se esgotaram, o que fez com que se tivesse de recorrer a letras do alfabeto grego, o que só havia acontecido, desde que há registos, em 2005. São também atribuídos às alterações climáticas o comprovado degelo de grande parte das calotas polares e a diminuição de caudal de muitos glaciares. Como consequência deste degelo, a subida do nível médio do mar tem vindo a aumentar. Para este aumento também contribui a diminuição da área coberta pelo gelo marítimo, na medida em que passa a haver menos reflexão da radiação solar e, consequentemente, maior aquecimento da água, e mais evaporação. O vapor de água transporta energia sob a forma de calor latente de evaporação que, por sua vez, é libertada para atmosfera, aquando da condensação, o que contribui para a formação e intensificação de tempestades. Partindo do princípio de que as alterações climáticas têm como causa principal a injeção na atmosfera de milhares de milhões de toneladas de gases de efeito de estufa (GEE), com especial ênfase para o dióxido de carbono, os meios científicos têm vindo a realçar que, para evitar um desastre climático, é necessário que se atinja o mais breve possível a neutralidade carbónica, ou seja, quando for nulo o balanço entre a quantidade de dióxido de carbono injetado na atmosfera e a quantidade desse gás que dela se retira, num determinado período. Para se conseguir a tão almejada neutralidade carbónica, há que diminuir drasticamente as fontes de GEE e aumentar a eficácia dos sumidouros. As fontes são essencialmente as atividades antropogénicas relacionadas com a utilização de combustíveis fósseis, nomeadamente os transportes, a produção de aço, cimento e alumínio. Quanto aos sumidouros, há a realçar as florestas, os oceanos e o solo. O grande problema é que, enquanto as fontes têm vindo a aumentar, os sumidouros têm diminuído de eficácia. A área coberta por florestas tem vindo a diminuir, devido a incêndios e desflorestação, e o aumento da temperatura dos oceanos faz com que diminua a sua capacidade de absorver o dióxido de carbono. Para se poder atingir a neutralidade carbónica em 2050, os governos têm de tomar medidas adequadas em termos de legislação e promover a investigação científica e a inovação tecnológica. Em relação a estas duas últimas, a iniciativa privada terá também um forte papel a desempenhar. Alguns governos têm vindo a tomar medidas nesse sentido. Também o Conselho e o Parlamento da União Europeia (UE), chegaram recentemente (em 20 de abril de 2021) a um acordo político provisório visando legislação que leve à neutralidade carbónica da UE em 2050. Se se continuar a injetar GEE ao ritmo atual, ou em maiores quantidades, não se conseguirá travar o a subida da temperatura para valores inferiores a 2º Celsius, de preferência inferiores a 1,5º C, em relação aos valores da era pré-industrial, conforme preconizado pelo Acordo de Paris. Para que tal possa ser alcançado até ao fim do século XXI, é essencial atingir a neutralidade carbónica por volta de 2050. Caso contrário, a temperatura continuará a aumentar para valores que, segundo o IPCC, poderão atingir 3º C ou mais, no final do século. Trata-se de uma tarefa gigantesca, na medida em que não só não se dispõe atualmente da tecnologia necessária para esse efeito, mas também há que ultrapassar os preconceitos de alguns governantes e os poderosos lóbis negacionistas das alterações climáticas. A derrota de Trump nas últimas eleições presidenciais e a rapidez com que Joe Biden (há quem lhe chame Speedy Joe) tem vindo a reverter as decisões do seu antecessor no sentido de os EUA voltarem ao multilateralismo e à política de defesa da sustentabilidade do planeta, faz com que os americanos venham, muito provavelmente, a conquistar o lugar de líderes mundiais no combate às alterações climáticas. Os avanços nesta área foram enormes nos primeiros cem dias de governo do novo presidente dos EUA, tendo sido as seguintes as principais medidas: regresso ao Acordo de Paris; cancelamento da construção do oleoduto de Keystone XL; substituição de cientistas negacionistas nomeados por Trump em lugares chave da NOAA; compromisso de redução, até 2030, das emissões de dióxido de carbono de 50 a 52% até 2030, em relação aos níveis de 2005; início do processo de restabelecimento dos regulamentos revogados durante a presidência de Trump; realização da Cimeira de Líderes sobre o Clima, iniciada simbolicamente no dia 22 de abril, Dia da Terra, em que participaram 40 governantes, incluindo chefes dos governos dos países mais poluidores e de alguns países mais vulneráveis. A cimeira consistiu essencialmente em depoimentos dos governantes, em que assumiram compromissos de os respetivos países virem a reduzir as emissões de GEE. Participaram também ativistas e representantes de organizações empenhadas na defesa da sustentabilidade do nosso planeta. No que se refere ao oleoduto Keystone XL, com a extensão prevista de cerca de 1.900 km, o Presidente Obama, considerando que os riscos eram muito superiores aos benefícios, já havia rejeitado, em 2015, a autorização para a sua construção. Trump, no entanto, em 2017, revogou a decisão de Obama e assinou uma licença para que a empresa TransCanada iniciasse os trabalhos, o que motivou grandes manifestações populares contra tal medida. Agora foi a vez de Joe Biden, no seu primeiro dia como presidente, cancelar a autorização de Trump para continuar as obras dessa polémica infraestrutura. Seria conveniente que, caso seja eleito um presidente republicano em 2024, esse processo esteja definitivamente encerrado e não se volte a revogar a revogação da construção do oleoduto. São as seguintes algumas das promessas de reduções de emissões de GEE anunciadas na cimeira: Canadá: 40-45% até 2030 (em relação a 2005) EUA: 50-52% até 2030 (em relação a 2005) Japão: 46-50% até 2030 (em relação a 2005) Reino Unido: 78% até 2035 (em relação a 1990) União Europeia: 55% até 2030 (em relação a 1990) No início da intervenção do primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, um problema técnico impediu que se ouvisse a sua voz, o que foi interpretado por alguns observadores como sendo uma metáfora da sua atitude pouco entusiasta em relação aos objetivos da cimeira. A Austrália é um dos maiores exportadores mundiais de carvão, utilizado pelos importadores na produção de aço e de eletricidade. Alguns dos seus maiores clientes, nomeadamente a Coreia do Sul e o Japão, estão a diminuir significativamente a utilização deste mineral e, de futuro, a China também seguirá esse caminho. Uma das declarações mais importantes desta cimeira consistiu do anúncio de Xi Jinping de que a China limitaria estritamente o aumento do consumo do carvão nos próximos cinco anos e o reduziria gradualmente nos cinco anos seguintes. Causaram surpresa as declarações do presidente Jair Bolsonaro, que é internacionalmente conhecido como negacionista confesso das alterações climáticas, admirador de Trump, e mentor do aligeiramento das ações de monitorização da desflorestação da Amazónia e da alteração das regras de proteção do ambiente. Quem não visse que era ele a falar, atribuiria o seu discurso a qualquer entusiasta do combate às alterações climáticas. Tratou-se de uma cimeira em que os participantes não se encararam olhos nos olhos e, portanto, muito menos eficiente do que as que são levadas a cabo presencialmente. Apesar de haverem já muitas críticas, principalmente nos EUA, pelo facto de Biden não ter convidado um único cientista, este encontro virtual pode ser considerado um passo importante para a preparação da COP26, a realizar em Glasgow em novembro de 2021, na medida em que pode ser um contributo para que os líderes políticos mundiais se consciencializem da necessidade de assumirem compromissos, por escrito, relativamente às metas a cumprir no sentido de se concretizar a neutralidade carbónica o mais rapidamente possível, preferencialmente antes de 2050. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesO Oceano, o clima e o tempo O Dia Meteorológico Mundial (DMM) é celebrado em 23 de março desde 1961, no mesmo dia em que entrou em vigor a Convenção da Organização Meteorológica Mundial (OMM), em 1950. Anualmente é escolhido um tema, que é desenvolvido para chamar a atenção das autoridades e do público para um determinado assunto. O tema deste ano, “O Oceano, o Clima e o Tempo”, serve de pretexto para enfatizar a interdependência entre a hidrosfera e a atmosfera, as quais, conjuntamente com a criosfera, a litosfera e a biosfera, compõem o sistema climático. Quando nos referimos ao “tempo”, pensamos em nuvens, vento, chuva, céu limpo ou nublado, frio ou calor, etc., que poderão ocorrer hoje, amanhã ou, em geral, num período relativamente curto. Já quando nos referimos ao clima, a imagem que nos vem ao espírito é a do tempo médio num período mais longo. Normalmente, para caracterizar o clima de uma região, recorre-se aos valores médios dos parâmetros meteorológicos registados durante um determinado período, de preferência 30 anos no mínimo. Nunca é demais realçar a importância dos oceanos para o tempo e o clima. A sua proximidade atua como que um íman que atrai as populações. Estima-se que cerca de 40% da população mundial habita numa faixa de 100 km junto ao mar. Por outro lado, aproximadamente 90% do comércio mundial é feito através de rotas marítimas. Neles são despejadas diariamente milhares de toneladas de efluentes domésticos, industriais e agrícolas, frequentemente não devidamente tratados. Os derramamentos de óleo e a exploração mineira oceânica também contribuem para a sua poluição. Os oceanos ressentem-se do aquecimento global devido à crescente injeção de gases de efeito estufa na atmosfera, aumentando a sua temperatura, o que potencia a fusão do gelo marítimo, o aumento do nível do mar e a danificação de ecossistemas, como os recifes de coral, de grande importância para a reprodução de numerosas espécies piscícolas. A OMM conta com 193 membros, em que 187 são Estados e 6 são Territórios Membros. Macau foi admitido como Território Membro em 23 de janeiro de 1996, ainda sob administração portuguesa. Curiosamente, para certos assuntos, o voto de um Território Membro vale tanto como o de um Estado Membro. É o caso, por exemplo, da nomeação do Secretário-Geral, que é feita durante os congressos, de 4 em 4 anos, com base no resultado da votação de todos os Estados e Territórios Membros. Assim, para este efeito, o voto de Macau conta tanto como o voto de um grande país, como o Canadá ou a Federação Russa. Pode-se então afirmar que a China tem direito a 3 votos para a eleição do Secretário-Geral, o cargo executivo mais importante da OMM. Os votos de Macau e de Hong Kong são teoricamente independentes dos da China, mas é natural que haja um acordo informal para que convirjam no mesmo candidato. No XIV Congresso da OMM (Genebra, 5-24 maio 2003), o delegado do México criticou este processo de nomeação do Secretário-Geral, tendo pedido esclarecimento por que razão a China tinha direito a 3 votos, o que a colocava em vantagem em relação aos outros países (neste congresso foram apenas 2 votos, por a delegação de Macau não ter podido participar devido à pneumonia SARS). Perante este comentário, o Secretariado da OMM explicou que a China e o Reino Unido haviam solicitado ao XII Congresso (Genebra, 30 maio-21 junho 1995), a inclusão de Hong Kong com a designação “Hong Kong, China” como Território Membro, e que a China e Portugal procederam de igual modo no XIII Congresso (Genebra, 4-26 maio 1999). Ambos os pedidos foram aceites, na medida em que estas regiões administrativas possuem Serviços Meteorológicos próprios, condição para que pudessem usufruir desse direito, conforme estipulado na Convenção da OMM. A China não é caso único, atendendo a que há outros países que também têm direito a mais do que um voto, como, por exemplo, o Reino Unido e a França, devido a administrarem territórios ultramarinos, considerados Territórios Membros. Ninguém acreditaria que os Territórios Caribenhos Britânicos, ou a Polinésia Francesa, votariam de maneira discordante das respetivas potências administrantes. A realidade é que, nos corredores da sede da OMM, durante os congressos, os representantes de alguns países continuam a comentar este processo de eleição. Voltando ao tema do DMM deste ano, é importante salientar a necessidade de assegurar o equilíbrio entre as várias componentes do sistema climático, com especial ênfase para os oceanos e a atmosfera, que têm vindo a sofrer degradação das suas características. Os oceanos cobrem cerca de 70% da superfície da Terra e constituem o maior condicionador das condições meteorológicas. A alteração das suas características repercute-se no comportamento do tempo e, consequentemente, do clima. O aquecimento global, que se atribui à injeção de gases de efeito de estufa resultantes de atividades antropogénicas, afeta não só a atmosfera mas também os oceanos. O aumento da temperatura da água do mar potencia a evaporação, o que implica transferência de energia do mar para a atmosfera, sob a forma de calor latente de evaporação. Perante esta realidade, é natural que haja tendência para uma maior frequência e (ou) intensidade de ciclones tropicais. O que aconteceu na estação dos furacões de 2020, no Atlântico Norte, favorece esta interpretação, na medida em que houve 30 ciclones tropicais aos quais foram atribuídos nomes próprios (tempestades tropicais e furacões), o que fez com que se esgotassem os nomes da lista previamente elaborada pelo Comité dos Furacões (com sede em Miami), entidade homóloga do Comité dos Tufões (com sede em Macau). As listas dos furacões são usadas rotativamente de 6 em 6 anos. Assim, a lista usar em 2021 será a mesma de 2026, exceto no que se refere a eventuais ciclones tropicais cujos nomes virão a ser retirados, devido à sua forte atividade e consequências nefastas. Estas listas constam de 21 nomes de pessoas, alternadamente femininos e masculinos, em ordem alfabética, sem usar 5 letras (Q, U, X, Y e Z), pouco utilizadas como primeiras letras de nomes próprios. A estação dos furacões de 2020 foi, desde que há registos, a mais ativa de sempre. A seguir ao último nome da lista teve de se recorrer, pela segunda vez, a letras gregas para os designar. Foram 9 os ciclones tropicais que excederam a lista: Alpha, Beta, Gamma, Delta, Epsilon, Zeta, Eta, Theta e Iota. Curiosamente, a primeira destas (Alpha) foi atribuída a uma tempestade subtropical que se dissipou sobre Portugal, em 18 de setembro de 2020. A primeira vez que se recorreu ao alfabeto grego foi em 2005, em que ocorreu a segunda estação de furacões mais ativa. A seguir à letra “W” (Wilma) teve de se designar os ciclones tropicais seguintes por Alpha, Beta, Gamma, Delta, Epsilon e Zeta. Foi neste ano que o furacão Vince, anterior ao Wilma, afetou a Madeira e o sul de Portugal continental, já como tempestade tropical. Note-se que têm havido discussões no Comité de Furacões para acabar com a prática de designar as tempestades tropicais e os furacões por letras do alfabeto grego, o que levou à decisão de que, de futuro, não serão mais usadas. Chegou-se à conclusão que as populações têm tendência a subestimar a perigosidade destes sistemas meteorológicos quando não se lhes atribui nomes próprios. Assim, no Atlântico Norte, se na próxima estação de furacões o número de ciclones tropicais ultrapassar 21, aplicar-se-ia uma lista suplementar já estabelecida para esse efeito, com o mesmo número de nomes da lista inicial. O 22º ciclone tropical passaria a chamar-se “Adria” e o último da lista suplementar teria “Will” como nome. É de salientar que os ciclones tropicais se formam sempre sobre os oceanos, em zonas em que a temperatura da água é mais elevada (estatisticamente no mínimo 26,5 graus Celsius), e que, apesar de serem fenómenos por vezes extremamente violentos, são imprescindíveis para o equilíbrio do sistema climático, fazendo com que haja transporte de energia das latitudes mais baixas para as mais altas. Nunca foi tão importante como agora compreender a interação entre os oceanos, o tempo e o clima, na medida em que, sem este conhecimento, não se poderá concretizar o objetivo nº 14 da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015: “Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marítimos para o desenvolvimento sustentável”. A ONU, atenta a esta realidade, deu início este ano à “Década da Ciência do Oceano para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030)”.
Olavo Rasquinho VozesNão há planeta B O nosso planeta, com a idade aproximada de 4,5 mil milhões de anos, é um pequeno corpo celeste, comparado com os milhares de milhões de astros que se distribuem pelo universo, que, por sua vez, já conta com cerca de 13,8 milhares de milhões de anos. O acaso fez com que o sistema solar se encontre na Via Láctea, uma dos muitos milhões de galáxias que se distribuem pelo espaço. Este sistema, de que a Terra faz parte, orbita a cerca de 26 mil anos-luz da zona central da galáxia, onde existe o imenso sorvedouro que é o buraco negro Sagittarius-A*. Tivemos a sorte de o nosso planeta ter massa suficiente para gerar a atração gravítica necessária para não deixar escapar a camada gasosa que o envolve para o espaço exterior. A vida à superfície não poderia existir com as características atuais, se a Terra não estivesse protegida por filtros naturais constituídos pela camada de ozono estratosférico, que filtra radiações na banda do ultravioleta, e por um campo magnético que impede que a radiação cósmica nos atinja. Assim protegidos, as várias espécies animais e vegetais foram-se espalhando e reproduzindo. Algumas destas espécies sofreram extinções, grande parte destas associadas ao aumento das concentrações de dióxido de carbono e a outros fatores, entre os quais o choque de um asteroide há cerca de 65 milhões de anos. Entretanto, há alguns milhões de anos, certos primatas deram origem a hominídeos, que evoluíram, sendo o homo sapiens o resultado mais recente dessa evolução. Nómadas, os sapiens sobreviviam como caçadores-coletores até que introduziram a prática da agricultura, há cerca de 12 mil anos, passando, a partir daí, a interferir de maneira cada vez mais acentuada com o meio ambiente. Esta influência passou a ser muito mais intensa a partir de meados do século XVIII, com o início da revolução industrial, passando a serem injetadas na atmosfera quantidades cada vez maiores de gases de efeito de estufa (GEE), entre os quais o dióxido de carbono (CO2). Para termos uma ideia deste aumento, não será demais mencionar que a concentração média global anual do CO2, o principal dos GEE, aumentou desde a revolução industrial, de cerca de 280 partes por milhão (ppm) para 410 ppm em 2019 (de acordo com o WMO Greenhouse Gas Bulletin). Através de medidas preconizadas pelo Protocolo de Montreal, relativo às substâncias que empobrecem a camada de ozono, que entrou em vigor em 1989, a humanidade conseguiu inverter a tendência para a diminuição do ozono estratosférico, restituindo-lhe a concentração necessária para impedir que os raios ultravioletas atinjam a superfície do globo terrestre com intensidade prejudicial à vida. Este Protocolo é considerado um dos mais bem-sucedidos no que se refere à intervenção humana em prol do ambiente. O mesmo já não se pode afirmar em relação ao Protocolo de Quioto (entrado em vigor em 2005), que não surtiu efeito no que se refere ao seu objetivo principal: diminuir a injeção de GEE na atmosfera. Sucedeu-lhe o acordo de Paris (que entrou em vigor em 2016), o qual está a ser motivador de medidas que estão a ser tomadas a nível global, embora ainda sem grande convicção por parte de alguns governos. Se fizermos uma análise ao comportamento humano através dos tempos, concluiremos que a nossa espécie tem atuado sem o devido cuidado para preservar as condições que nos foram oferecidas pelo acaso, injetando quantidades elevadas de GEE na atmosfera, danificando o ambiente que nos rodeia e, consequentemente, reduzindo drasticamente a biodiversidade do nosso planeta ao contribuir avassaladoramente para a extinção de outras espécies animais e vegetais. Como é do conhecimento geral, o assunto “alterações climáticas” é dos que mais preocupam os cientistas, grande parte dos governos e o público mais esclarecido. Há, no entanto, quem considere, mesmo no meio científico, haver um exagero nas estimativas levantadas por numerosos estudos no que se refere aos valores da subida da temperatura do ar e do nível médio do mar. Existem mesmo lóbis, pagos por magnatas da exploração de combustíveis fósseis e da exploração florestal, no sentido de desacreditarem esses estudos e tentarem inculcar a ideia de que o aquecimento global é uma farsa. Os negacionistas do aquecimento global estão em geral associados a movimentos de extrema direita, tendo mesmo alcançado algum sucesso no que se refere a ajudar políticos a conseguirem lugares cimeiros a nível governamental. Veja-se, por exemplo, os êxitos obtidos em eleições democráticas pelo atual presidente do Brasil, e pelo prévio presidente dos EUA, que alcançaram o sucesso com a ajuda desses lóbis, recorrendo frequentemente a redes sociais, difundindo fake news. É aceitável que haja gente, menos esclarecida, que duvide da influência das atividades humanas sobre o aquecimento global e, consequentemente, sobre as alterações climáticas. Os próprios cientistas que estudam este assunto não falam em certezas absolutas. As conclusões do IPCC são expressas em termos de probabilidades de diversos graus, e não de certezas. Assim, nos seus relatórios, são usados, entre outros termos, “provável” e “muito provável”, que correspondem às probabilidades de 66 a 100% e de 90 a 100%, respetivamente, de determinados valores de parâmetros climáticos virem a ser atingidos. Suponhamos que os negacionistas têm razão e que as atividades antropogénicas nada têm a ver com as alterações climáticas. Mesmo assim, valeria sempre a pena recorrer a fontes de energia renovável em vez de combustíveis fósseis, na medida em que há algo que não pode ser negado, que se baseia na observação do que já aconteceu, e não em projeções para o futuro: são injetadas na atmosfera, anualmente, milhares de milhões de toneladas de GEE, que, juntamente com outros poluentes, provocam anualmente cerca de 9 milhões de mortes precoces, devido à sua inalação. Está provado estatisticamente que uma em cada cinco mortes precoces são causadas direta ou indiretamente pela inalação de gases resultantes da combustão de combustíveis fósseis, nomeadamente dióxido de enxofre (SO2), dióxido de azoto (NO2) e monóxido de carbono (CO). Seguindo o acordado internacionalmente, utiliza-se a expressão “dióxido de carbono equivalente” (CO2e) para designar a medida da quantidade de GEE equivalente à quantidade de CO2, em termos de potencial de aquecimento global. Seguindo este critério, pode-se afirmar que são emitidos anualmente cerca de 50 mil milhões de toneladas de CO2e. Será que, perante o perigo de um desastre climático, haverá condições de habitabilidade fora da Terra? Existem, de facto, outros planetas fora do sistema solar, os chamados exoplanetas, mas até agora não foi possível descobrir nenhum relativamente perto, cujas condições de habitabilidade se aproximem das existentes na Terra. Um dos mais próximos, designado por Gliese 832 c, encontra-se a cerca de 16 anos-luz da Terra, isto é, se fosse possível uma nave espacial voar à velocidade da luz, demoraria 16 anos a lá chegar. Como estamos muito longe dessa possibilidade, é melhor convencermo-nos que não existe um planeta B ao nosso alcance, como afirmou o ex-Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, numa alocução na Universidade de Stanford, em janeiro de 2013: “There can be no Plan B because there is no Planet B”. Perante esta realidade, se se quiser que haja condições propícias a uma vida saudável no nosso planeta, há que seguir o preconizado pelo Acordo de Paris, cujo objetivo principal consiste na tomada de medidas, a nível global, no sentido de que o aumento da temperatura média do ar seja inferior a 2 graus Celsius no final do século XXI e, tanto quanto possível, inferior a 1,5 graus, tendo como referência os níveis pré-industriais.
Olavo Rasquinho Vozes“Speedy Joe” e a década mais quente (2011-2020) De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), as décadas desde 1980 têm sido caracterizadas por temperaturas médias do ar cada vez mais altas a nível global. Na década de 2011-2020, a temperatura foi a mais alta desde que há registo regular dos parâmetros meteorológicos, sendo os anos 2016, 2019 e 2020 os mais quentes. Este último foi caracterizado pela temperatura média de 14,9 graus Celsius, aproximadamente 1,2 graus acima do valor médio pré-industrial, tendo como referência o período de 1850 a 1900. Esta conclusão é baseada na análise dos registos de conjuntos de dados observacionais de várias instituições meteorológicas e climatológicas, entre as quais National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), Goddard Institute for Space Studies, United Kingdom’s Met Office Hadley Centre e East Anglia’s Climatic Research Unit. Apesar do fenómeno La Niña ter contribuído para o arrefecimento do globo na parte final de 2020, este ano foi quase tão quente como 2016, em que a tendência de aquecimento foi reforçada pela ocorrência de um episódio El Niño. Como já é do conhecimento do público interessado por questões relacionadas com o tempo e o clima, El Niño e La Niña são fenómenos que ocorrem com certa periodicidade no sistema oceano/atmosfera, no Oceano Pacífico equatorial central e equatorial oriental, que afetam a circulação geral da atmosfera e o clima regional em muitas partes do globo. A designação El Niño deve-se ao facto deste fenómeno ocorrer num período que abrange a época do Natal (El Niño Jesus, em espanhol). Afeta grandemente a indústria pesqueira do Peru, na medida em que a água mais aquecida afasta o fitoplâncton, que constitui a base da alimentação dos cardumes que predominam habitualmente nessa região quando as águas estão mais frias. Contrariamente, o fenómeno La Niña é caracterizado pelo arrefecimento da água superficial, o qual está relacionado com a intensificação dos ventos alísios que convergem nessa região, fazendo com que a água à superfície seja arrastada e substituída por água mais fria vinda de maior profundidade, fenómeno que se designa por afloramento (em inglês upwelling). Em geral, nos anos de eventos El Niño a temperatura média global é mais alta do que nos anos neutros ou de La Niña. Atualmente (fevereiro de 2021) está a ocorrer um evento La Niña que se antevê que perdure até meados da próxima primavera do hemisfério norte. Apesar da ocorrência de La Niña, segundo o Met Office, antevê-se que o ano 2021 seja um dos mais quentes de sempre (de acordo com a Press Release da OMM, datada de 18 de Janeiro de 2021, “… the Met Office annual global temperature forecast for 2021 suggests that next year will once again enter the series of the Earth’s hottest years, despite being influenced by the temporary cooling of La Niña…”). O Secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, afirmou recentemente que, devido ao aquecimento global, apesar de La Niña corresponder a temperaturas mais baixas a nível global, os episódios mais recentes de La Niña têm sido caracterizados por temperaturas mais altas do que nos anos com fortes eventos El Niño, no passado. O consistente aumento da temperatura média global, e as suas implicações, têm causado grande preocupação na comunidade científica, governos e público mais informado. António Guterres, Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, afirmou recentemente: “A confirmação pela Organização Meteorológica Mundial de que 2020 foi um dos anos mais quentes já registados é mais um lembrete gritante do ritmo implacável das alterações climáticas, que estão causando a destruição de vidas e meios de subsistência no nosso planeta. Hoje estamos com 1,2 graus de aumento de temperatura e já testemunhamos extremos climáticos sem precedentes em todas as regiões e em todos os continentes. Estamos caminhando para um aumento catastrófico da temperatura de 3 a 5 graus Celsius neste século. Fazer as pazes com a natureza é a tarefa definidora do século XXI. Deve ser a prioridade máxima para todos, em todos os lugares”. Esta tendência para o aumento da temperatura média global faz com que se esteja cada vez mais próximo do limite inferior do aumento de temperatura preconizado pelo Acordo de Paris, que visa que o aumento não atinja 2 graus até ao fim do século, preferencialmente 1,5 graus, acima dos níveis pré-industriais. A figura que acompanha este texto ilustra, de acordo com o IPCC, o aumento real da temperatura média global de 1950 a 2005 (curva a preto) e projeções do aquecimento global até ao fim do século XXI nas seguintes condições: se não forem tomadas medidas para redução significativa dos gases de efeito de estufa, o aumento seria de quase 5 graus Celsius (curva a vermelho); se forem tomadas essas medidas, o aumento seria de cerca de 1,6 graus (curva azul). Há outras antevisões, como a que vem expressa no Global Annual to Decadal Climate Update (2010-2024), preparado pelo Met Office, em que se admite uma probabilidade de aproximadamente 70% de que um ou mais meses durante os próximos 5 anos serem caracterizados por um aumento da temperatura de pelo menos 1,5 graus Celsius. É muito provável que o nosso planeta caminhe para uma tragédia se entretanto os governos não puserem em prática as medidas preconizadas pelo Acordo de Paris. É inquestionável que tem havido cada vez mais fenómenos meteorológicos e climatológicos extremos, tais como ondas de calor e secas, que potenciam fogos florestais mais vastos e frequentes que destroem enormes áreas florestais, reduzindo drasticamente a biodiversidade, injetando na atmosfera quantidades enormes de fumo e gases de efeito de estufa (GEE) que se espalham, arrastados pelo vento, à escala planetária. Há, entretanto, sinais de que os governos estão a tomar consciência desta realidade. Assim, por exemplo, sob a coordenação da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, estão a ser dados passos significativos para a implementação do Acordo Verde Europeu (European Green Deal), programa que tem como principal objetivo tornar a Europa, até 2050, o primeiro continente neutro no que se refere à emissão de GEE, preservando, entre outros aspetos, o ambiente natural e a biodiversidade. Mais recentemente, logo após a tomada de posse de Joe Biden, surgiu a boa notícia que os EUA irão voltar ao Acordo de Paris. Ficará na história o texto assinado por Biden no primeiro dia da sua administração: “ACCEPTANCE ON BEHALF OF THE UNITED STATES OF AMERICA – I, Joseph R. Biden Jr., President of the United States of America, having seen and considered the Paris Agreement, done at Paris on December 12, 2015, do hereby accept the said Agreement and every article and clause thereof on behalf of the United States of America – Done at Washington this 20th day of January, 2021”. Na sequência desta decisão, o Secretário-Geral da ONU difundiu a seguinte declaração: “Saúdo calorosamente as medidas do presidente Biden para entrar novamente no Acordo de Paris sobre Alterações Climáticas e juntar-se à crescente aliança de governos, cidades, estados, empresas e pessoas empenhados em medidas ambiciosas para enfrentar a crise climática”. Uma outra medida da administração Biden consistiu na dispensa dos cientistas negacionistas David Legates e Ryan Maue das suas funções na NOAA. Ambos haviam sido nomeados pela administração Trump para altos cargos desta agência com o intuito de calar as vozes discordantes da sua política no que se refere às alterações climáticas. A investidura de Joe Biden constitui uma esperança para a humanidade no que se refere à atenuação das alterações climáticas As Executive Orders sobre a crise climática, no sentido de recuperar o tempo perdido durante a administração Trump, foram tantas e tomadas tão rapidamente que não ficaria mal alcunhar o presidente Biden de “Speedy Joe” em vez de “Sleepy Joe”, como Trump ironicamente lhe chamava… *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesO acordo de Paris na era pós-Trump Passados cinco anos após a entrada em vigor do Acordo de Paris, o presidente Donald Trump deu instruções para que os EUA se retirassem, o que veio a concretizar-se em 4 de novembro de 2020, data em que formalmente se deu a quebra do compromisso. Recorde-se que o Acordo de Paris é um tratado internacional no âmbito das atividades da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change-UNFCCC), que tem como objetivo a tomada de medidas, pelos Estados aderentes, no sentido de que o aumento da temperatura média do ar seja inferior a 2 graus centígrados no final do século XXI e, tanto quanto possível, inferior a 1,5 graus, tendo como referência os níveis pré-industriais. Este tratado internacional foi aprovado por 195 países em 12 de dezembro de 2015 e entrou oficialmente em vigor em 4 de novembro de 2016, altura em que 55 países que produzem 55% das emissões globais dos gases de efeito de estufa (GEE) o ratificaram. De acordo com projeções do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC), estima-se que, se a temperatura média do ar aumentar 2 ou mais graus celsius até ao fim do século, dar-se-á a fusão de grande parte do gelo da Gronelândia, Antártida, Oceano Ártico, assim como dos glaciares que ainda persistem, nomeadamente nos Alpes, Himalaias, Andes e Islândia. Este degelo implicaria um fluxo de água líquida que provocaria a subida do nível médio do mar de forma significativa, o que faria com que vastas zonas litorais do nosso planeta se tornassem inabitáveis, não só devido às marés astronómicas mais pronunciadas, mas também às marés de tempestade frequentemente associadas a depressões muito cavadas, como por exemplo os ciclones tropicais (tufões e furacões). O degelo no Oceano Ártico não contribuiria diretamente para a subida do nível médio do mar, na medida em que a água líquida proveniente da fusão do gelo, menos denso, iria ocupar o mesmo espaço do gelo submerso. No entanto, sendo o poder refletor do gelo muito maior do que o da superfície líquida, o degelo de vasta áreas implicaria menor reflexão da radiação solar e uma maior absorção pela superfície líquida do mar e, consequentemente, um aumento da sua temperatura. O ar, em contacto com o mar, também teria tendência para aumentar a sua temperatura, potenciando o aquecimento global. Os modelos de previsão do clima entram em consideração com esta realidade, além de outros parâmetros (nebulosidade, fluxo energético associado a correntes marítimas, etc.), de maneira que os resultados que nos dão são uma aproximação do que poderá ser a realidade futura. Numa das suas primeiras declarações, Joe Biden realçou a intenção de regressar ao Acordo de Paris, o que não implica a sua ratificação automática, na medida em que esta depende do senado. Este órgão tem constituído frequentemente uma barreira às intenções dos Presidentes dos EUA. Por exemplo, durante a administração de Bill Clinton, o senado impediu a ratificação do Protocolo de Quioto, com a argumentação de que seria potencialmente prejudicial para a economia americana, apesar de ter sido assinado pelos EUA em novembro de 1998. Isto apesar de o Vice-Presidente Al Gore ter sido um dos principais paladinos da importância desse Protocolo. Os EUA também não têm sido um bom exemplo de cooperação internacional noutras áreas. Foi o que aconteceu com o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, que entrou em vigor a 1 de julho de 2002, após a ratificação do Tratado que lhe deu origem, por 76 países, entre os quais a Rússia e 19 membros da NATO. Os EUA, que sempre tiveram uma atitude ambígua em relação a este tribunal, acabaram por assinar o Tratado em 31 de dezembro de 2000, no final do mandato da administração Clinton. Acontece, porém, que a Administração Bush, que lhe sucedeu, anulou a adesão em maio de 2002, alguns meses antes do Tratado ter entrado em vigor. A saída de Trump da presidência dos Estados Unidos da América constitui uma esperança para os que acreditam que o Acordo de Paris possa vir a ser bem-sucedido. Isto não só por os EUA serem a segunda maior potência responsável pela emissão de GEE a nível global, mas também pelo facto de os seguidores de Trump se sentirem desmoralizados pela sua derrota eleitoral. Talvez seja o caso do seu duplo sul-americano, Bolsonaro, que provavelmente se sentirá agora mais isolado após a queda do seu ídolo. Curiosamente, ambas as personalidades, Trump e Bolsonaro, têm sido apoiadas por equipas constituídas por negacionistas das alterações climáticas, por vezes com aspetos que, se não fossem trágicos, seriam anedóticos. Steve Bannon, o antigo conselheiro e diretor da campanha eleitoral de 2016, de Trump, teve recentemente um comportamento de tal forma abjeto, que algumas redes sociais removeram o vídeo de sua autoria onde sugeria a decapitação de Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, e de Christopher Wray, diretor do FBI, e a exibição das suas cabeças à entrada da Casa Branca, como “um aviso a burocratas federais”. Essa figura sinistra, Steve Bannon, esteve também em contacto, em 2018, com Eduardo Bolsonaro, filho do então candidato Jair Bolsonaro, tendo-se prontificado para prestar consultoria informal na área da análise de dados na Internet, o que terá ajudado a manipular a opinião pública através notícias falsas nas redes sociais. Também movimentos europeus de extrema-direita têm vindo a usufruir do apoio de Steve Bannon. Coerentemente com as suas ideias negacionistas, o então candidato a presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, manifestou durante a sua campanha eleitoral a intenção de o Brasil se retirar do Acordo de Paris, apesar de o Congresso o ter ratificado em agosto de 2016. No entanto, mediante pressão política, acabou por desistir da ideia. Durante a vigência da administração Trump, os EUA tomaram outras atitudes inamistosas para com a comunidade internacional. Assim, além da saída do Acordo de Paris, também se retiraram de outros pactos e fóruns multilaterais, nomeadamente da UNESCO e do acordo nuclear com o Irão. A decisão de retirada da UNESCO, que está em sintonia com a aversão de Trump ao multilateralismo, tomada em outubro de 2017, foi justificada pela necessidade de a organização necessitar de uma reforma profunda e de deixar de manifestar preconceitos anti-israelitas. A administração Trump iniciou também o processo de saída da Organização Mundial da Saúde (World Health Organization – WHO), da qual os EUA são membro desde 1948, ano da entrada em vigor da sua constituição. Acontece, no entanto, que a retirada não se poderá concretizar antes de julho de 2021, altura em que a administração Biden já contará com meio ano de exercício. Se a nova administração conseguir impor a sua vontade, a intenção de Trump será frustrada. Tenhamos esperança que a nova administração dos EUA consiga impor a vontade de regressar ao Acordo de Paris e que a COP26, a realizar em Glasgow em novembro de 2021, venha a constituir um marco histórico na concretização dos esforços da comunidade científica, no sentido de que se caminhe para um futuro mais promissor no que se refere à sustentabilidade do nosso planeta. *Meteorologista
Olavo Rasquinho VozesDavid Attenborough – Uma vida em defesa do mundo natural David Attenborough, naturalista, grande comunicador da BBC, desde há cerca de 60 anos tem vindo a desenvolver ação altamente meritória em defesa do mundo natural, através de um grande número de documentários, palestras e entrevistas. Desde criança que a sua curiosidade pela história natural o levou a aprofundar os conhecimentos sobre a fauna e a flora em todo o mundo. Grande parte da vida profissional foi dedicada a dar a conhecer a vida selvagem ao grande público e, como ele próprio afirma, considera-se privilegiado por a sua profissão lhe ter proporcionado conhecer os mais diversos habitats. Sente-se, no entanto, simultaneamente angustiado pela degradação de que a biodiversidade tem vindo a ser alvo. Em sua homenagem, a Netflix estreou recentemente o documentário produzido pela Silverback Films e World Wide Fund for Nature (WWF), intitulado “David Attenborough – Uma Vida no Nosso Planeta”, em que o naturalista faz um balanço das transformações da vida selvagem que testemunhou no decorrer da sua longa vida (nasceu em 8 de maio de 1926). Durante uma hora e vinte e três minutos temos a possibilidade de apreciar imagens de documentários anteriores, acompanhados da narração sobre o que observou há dezenas de anos e aquilo que se nos depara atualmente. No início do seu testemunho, David Attenborough mostra imagens desoladoras da cidade Pripyat em ruínas, na então Ucrânia soviética, onde, nas suas vizinhanças, ocorrera em 26 de abril de 1986, o grave acidente na central nuclear de Chernobil. O rebentamento das instalações nucleares, consequência de mau planeamento e erro humano, gerou a emissão de radiação que contaminou trabalhadores da central, habitantes das povoações próximas, e o meio ambiente. A radiação afetou também os países vizinhos e chegou a ser detetada em regiões tão longínquas como o Japão. O naturalista considera que este desastre foi um acontecimento isolado, mas que a verdadeira tragédia do nosso tempo se desenrola diariamente, quase impercetivelmente, que consiste na perda de grande quantidade de locais selvagens devido à sobre-exploração dos recursos em todo o planeta. Lemos e visualizamos com frequência, nos meios de comunicação social, artigos e documentários sobre o impacto das atividades antropogénicas no nosso planeta, mas raramente temos acesso a provas tão evidentes como as que nos são apresentadas neste testemunho. É-nos dado a comparar vários habitats como eram há dezenas de anos e como estão agora. Por exemplo, as florestas no Bornéu, que foram em grande parte dizimadas e substituídas por dendezeiros, o que provocou uma diminuição do número de orangotangos de cerca de dois terços em pouco mais de sessenta anos; a cobertura de gelo do Oceano Ártico, no verão, reduzindo-se de ano para ano; recifes de corais totalmente destruídos; zonas marítimas alvo de sobre-exploração da pesca; etc. Assistimos a cenas dramáticas da vida de animais selvagens, como orangotangos tentando sobreviver em florestas destruídas Uma sequência de imagens de satélite mostra-nos a redução da área abrangida pelo gelo no Oceano Ártico, que tem vindo a sofrer, no verão, uma diminuição de cerca de 40% em 40 anos. São particularmente chocantes as imagens que nos mostram milhares de morsas a aglomerarem-se numa praia no litoral nordeste da Rússia, onde são forçadas a descansar devido à escassez de plataformas de gelo. Por o espaço ser restrito, atropelam-se mutuamente, muitas acabando por se despenharem por uma zona rochosa escarpada, dando-nos a sensação de suicídio coletivo. Na realidade, segundo o naturalista, trata-se de uma tentativa malsucedida de regresso ao mar, na medida em que estes animais têm fraca visão e, orientando-se pelo olfato, acabam por se despenharem por um penhasco que se lhes depara pelo caminho. A longa vida de David Attenborough permitiu-lhe acompanhar o aumento da população mundial e avaliar o impacto negativo deste crescimento sobre a biodiversidade. As provas de que esse aumento populacional não foi acompanhado por medidas de sustentabilidade são tão avassaladoras que se torna moralmente obrigatório ver e rever este testemunho. Narrando a sua experiência, analisa a evolução da Terra, lamentando a perda de habitats onde outrora proliferavam animais selvagens. Atribui as causas deste desastre ao aumento desregrado da população mundial, à queima de combustíveis fósseis e, consequente, ao aumento da concentração de gases de efeito de estufa, em especial do anidrido carbónico, e à destruição de habitats selvagens. À medida que a narrativa decorre, pode-se constatar a seguinte progressão da população mundial, a sua correspondência com a concentração de dióxido de carbono na atmosfera e a regressão da natureza selvagem: ANOS POPULAÇÃO (Milhares de milhões) CO2 NA ATMOSFERA (Partes por milhão-PPM) NATUREZA SELVAGEM RESTANTE 1937 2,3 280 66% 1954 2,7 310 64% 1960 3,0 315 62% 1978 4,3 335 55% 1997 5,9 360 46% 2020 7,8 415 35% Perante a influência tão negativa das atividades humanas sobre o ambiente, David Attenborough corrobora a opinião de muitos cientistas de que estamos a deixar o Holocénico, período geológico em que a estabilidade do clima é uma das principais características, e que estamos a entrar noutro período, em que a influência dos humanos se reflete de maneira trágica sobre o nosso planeta. O testemunho é dramático mas não derrotista, propondo alterações no comportamento humano de modo a reverter a tendência para o agravamento da situação da vida selvagem. Assim, preconiza a substituição do uso de combustíveis fósseis pelas energias renováveis (solar, eólica, hidráulica e geotérmica), estabilização da população mundial, reflorestamento, enfim, como realça, “… deixarmos de estar apartados da natureza e passarmos a fazer parte dela”. Relata como exemplo o que foi feito na Costa Rica, onde, há um século, mais do que três quartos estavam cobertos por floresta. Porém, até à década de 80 do século passado, essa área foi reduzida a um quarto, devido ao abate descontrolado de árvores. Perante esta realidade, o governo decidiu subsidiar os proprietários para replantarem árvores nativas, o que implicou que a floresta voltasse a cobrir, ao fim de 25 anos, metade do país. “Imaginem que conseguíamos isso à escala global…”, comenta o naturalista. Tal como no início, o documentário termina com imagens de Chernobil, mostrando a natureza a recuperar em Pripyat, mais de trinta anos depois do desastre. A floresta invadiu a cidade abandonada e a vida selvagem retomou o seu ciclo. As últimas frases do testemunho do naturalista constituem uma mensagem de esperança: “Durante muito tempo eu, e talvez vocês, tememos o futuro. Mas está a tornar-se evidente que nem tudo é uma desgraça. Temos a oportunidade de nos redimir, de concluir a jornada de desenvolvimento, de gerir o nosso impacto e, mais uma vez, de ser uma espécie em equilíbrio com a natureza. Tudo o que precisamos é de vontade para o fazer. Temos agora a oportunidade de criar o lar perfeito para nós próprios, e de recuperar o mundo rico, saudável e maravilhoso que herdámos. Imaginem só…”.