Obsessão pelo passado (morto)

No Domingo passei um bom serão: fui assistir ao show do Patuá e diverti-me imenso.
Ao longo da peça fui também ganhando motivação e ideias para temas que poderiam ser aqui abordados na minha coluna, a qual – caso o caríssimo leitor ainda não se tenha apercebido – passou a ser mensal.
Não vou, no entanto, fazer aqui nenhuma crítica à peça “Unga Chá di Sonho” – para isso já basta a habitual apreciação detalhada do colega Leocardo que, aliás, já se encontra disponível no seu blog.
Da última peça do Dóci Papiaçám di Macau quero apenas referir o seguinte: uma vez mais, manifesta a obsessão que nós, antigos residentes de Macau em geral e Macaenses em particular, temos pelo passado.

* * *

O que tenho para dizer vem também na sequência de uma pequena discussão que tive no Facebook com conterrâneos meus quando um ilustre amigo nosso fez um post sobre a ameaça do eventual crescimento urbano para os lados de Coloane e a perda da “alma de Macau”.
Fui ingénuo ao ponto de afirmar publicamente que se devia ter mais visão do futuro, já que existem recursos naturais em Henqin e Zhuhai, que ficam right across the border, e que havemos de ter isso em consideração.
Uma vez que, se Coloane é para mim ao virar da esquina mas, no tempo dos meus avós, ficava longe e era a terra dos piratas e gwai chi lous (*), provavelmente para o meu filho, quando for crescido e as fronteiras com a China forem mais permeáveis – ou até inexistentes – Macau será apenas uma pequena parte de uma grande área metropolitana composta por Hong Kong e pelos municípios de Zhuhai e Shenzen.
De resto, este assunto foi já por mim abordado aqui anteriormente. (**)
Pelo que encaro a actual transformação urbana de Macau com naturalidade e de forma objectiva – não significando necessariamente que goste ou que sinta que esteja tudo a ser feito da melhor forma.
De resto, Macau está em mutação e crescimento territorial desde o século XVI – trata-se de um processo contínuo que teve os seus surtos e ondas, com altos e baixos e intensidades diferentes.
Portanto, nessa perspectiva, o que se está a passar não é forçosamente anormal.
Mas isso pouco importa: naturalmente o meu ponto de vista não foi aceite pelos guardiões da “alma de Macau” e, para evitar o típico escalating fire das redes sociais – onde as pessoas se pegam e se insultam a torto e a direito – deixei morrer o assunto.
Compreendo que o facto de sermos portugueses não deixará de ter o seu peso nessa coisa toda.
Continua presente o fantasma da mudança de soberania e, talvez também fruto de tudo o que se passou com as antigas ex-colónias portuguesas e do trauma daí resultante, o contínuo receio que temos de perder o que se construiu no “passado” – essa tal coisa que recordamos obcecadamente com a típica saudade lusa.

* * *

Também gosto de falar do passado de Macau, sobretudo quando na companhia de maquistas mais antigos que viveram um Macau que nunca vivi e que procuro visualizar também com o auxílio de fotos antigas que, de quando em quando, saboreio com gosto.
(E por falar nisso, vou amanhã ligar ao Dr. Leôncio, que até conheço mais ou menos bem, para ver se ele me passa algum chá.)
No entanto, sou incapaz de afirmar que “aquele” Macau do passado – seja ele qual for, já que todos vivemos um passado diferente, num tempo diferente e de forma diferente – é que era o verdadeiro Macau, o que continha a “alma de Macau” – whatever that means.
Não posso com esse discurso pois sou incapaz de aceitar que se cristalizem conceitos e que uma determinada ideia da cidade – pertencente ao passado – seja utilizada como critério absoluto do que é, ou devia ser, a essência de Macau.
Isto para mim não existe.
Mais,
Fico profundamente aborrecido e não tenho pachorra para aqueles que, afinal, analisando bem as coisas, sabem apenas falar do passado, do presente têm uma opinião crítica que já se tornou lugar comum e não traz novidade nenhuma – o trânsito, as ruas cheias de gente, a poluição e todas essas coisas que, ainda que sejam verdade, estou já cansado de ouvir – e do futuro não têm qualquer tipo de ideia ou visão.
Portanto, que tal pararmos um pouco com essa atitude? Quer se goste, quer não, o passado pertence ao passado. Já morreu. É interessante recordá-lo, mas apenas até certo ponto – e de forma construtiva.
Ora, pensemos antes no modo como devemos educar os nossos filhos para que determinados valores característicos da nossa identidade – e do nosso rico passado – não se percam no futuro.
É que nesse aspecto quer me parecer que pouco ou nada está a ser feito pelos ilustres que vivem frustrados com o presente e passam o tempo a falar do passado.

Sorrindo Sempre

Faz frio? Fecha-se as escolas.
Chuva forte? Fecha-se as escolas.
“Filho, hoje não tens escola, está o sinal de chuvas fortes.”
E o menino, feliz da vida, salta da cama, liga a televisão e passa o dia a ver desenhos animados.
Caríssimo leitor, não sei se está a ver a gravidade da coisa.
Afinal o símbolo da RAEM não é a flor de lótus, planta que nasce humildemente no substracto lodoso e que vai lutando e subindo até se chegar à superfície da água onde se transforma numa linda flor?
Onde andam esses valores?
Já o disse aqui e volto a dizer: andamos a criar flores de estufa.

(*) Malfeitor que rapta crianças.
(**) “Compras no Tin Un ou no Carrefour”, edição de 07.08.2015 do Jornal Hoje Macau.

Compras no Tin Un ou no Carrefour

13 Mai 2016

Unidade na diversidade

“When the historical decision leading to the banking union was taken at the European Council in June 2012, the declared reason was to “ensure that the supervision of banks in all EU member states is equally effective in reducing the probability of bank failures.” One year later, while stressing that the completion of the banking union had become a priority among the policy objectives of European policymakers, the Council stated that “it is imperative to break the vicious circle between banks and sovereigns.” At the origin of these statements, there are the large amounts of money spent by several European governments to bail out those banks involved in the financial crisis that started in 2007.”

The European Banking Union: A Critical Assessment
Angelo Baglioni

O “Dia da Europa”, comemorado a 9 de Maio de 2016, recorda a paz e a unidade que o continente europeu vive desde o final da II Grande Guerra. A data representa o aniversário da histórica “Declaração Schuman”. O ministro dos negócios estrangeiros francês, Robert Schuman, pronunciou, em Paris, a 9 de Maio de 1950, um discurso em que expôs a sua ideia de uma outra forma de cooperação política na Europa, que tornasse impensável uma nova guerra entre os países europeus, propondo a criação de uma “Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) ”.
Os Estados membros fundadores foram a França, República Federal da Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo, e assinada, a 18 de Abril de 1951, em Paris, sendo a primeira de um conjunto de instituições europeias que levariam à actual União Europeia (UE). A proposta de Schuman é considerada como o começo da UE, e desde então, sucedem-se os actos anuais, nessa data, de celebração. O presidente da Comissão Europeia, conjuntamente com os demais comissários, participaram em eventos nacionais e europeus, incluindo visitas às instituições europeias e actividades da UE, tal como o diálogo com os cidadãos, debates, conferências e diversos eventos culturais nos Estados membros.
O dia 9 de Maio, deveria ser uma oportunidade única para promover, ainda mais, a transparência e incentivar a aproximação entre a UE e os seus cidadãos, quando vive a sua pior crise de sempre de natureza económica, financeira, com profundas e graves clivagens internas, causadas pelo fluxo migratório e assolada por denodados actos de terrorismo. As instituições europeias abriram as suas portas, para dar uma oportunidade aos europeus de descobrir o seu trabalho diário. O tema central, da 24.ª edição de visitas de portas abertas, teve como lema a “Unidade na diversidade”, quando a UE vive exactamente o oposto, pois os seus Estados membros, nunca estiveram mais desunidos e fracturados pela adversidade das situações previsíveis, mas incontornáveis que os tem atingido.
A celebração dos sessenta e seis anos da “Declaração Schuman”, embrião da EU, demonstra o quanto é necessário, que se reinvente uma nova Europa, tal como foi pensada pelos seus fundadores, e reavivada por um conjunto de europeus ilustres, que têm vindo a propor um roteiro, para assegurar o futuro da EU, que a continuar a sofrer os impactos que conhecemos e sem uma liderança forte, que una todos os europeus e que nela se revejam, como garantes da sua identidade, a direcção que leva é de colisão e fractura. Seja qual for o resultado do referendo britânico, a Europa e os europeus necessitam urgentemente de um novo alento.
É demasiado o que está em jogo, como seja evitar a marginalização da Europa, não apenas do ponto de vista económico e político, mas também social, moral e cultural. O desafio comum da Europa é conciliar-se com os seus cidadãos confusos, desorientados e cépticos, para voltar a criar uma Europa influente, que tenha um projecto de futuro e de esperança para todos. A UE terá de deixar a política hipócrita das palavras e passar aos actos, resolvendo os problemas que são imensos e se acumulam, caso contrário, morrerá. Se não for dado um novo impulso político aos cidadãos europeus, os demónios populistas que quase a têm destruído, acabarão por vencer.
A história é distinta nas suas formas, mas o resultado poderá voltar a ser desastroso. A fim de se conseguir uma nova dinâmica devem ser valorizados novos êxitos. A UE é a entidade política, económica e mais solidária, menos injusta, mais democrática, pacífica e mais diversificada que a humanidade conheceu, tendo vindo a perder essas preciosas e únicas características, e ímpeto a cada dia, sendo um dos maiores triunfos políticos e económicos da época moderna. Fazer respeitar os seus valores e convertê-la num motor de progresso para todos os cidadãos europeus, exige a adopção de uma estratégia de vulto.
É necessário urgentemente, um itinerário preciso, devendo tal obra ser iniciada, de imediato, pelas instituições europeias e Estados membros, não devendo ser um grupo de países dominados pela Alemanha e França. É necessário o restabelecimento da confiança, e dar um novo impulso à dinâmica europeia que passam por algumas estratégias, sendo o principal, o fortalecimento da democracia europeia, que não consegue responder aos problemas que atingem os cidadãos, não sendo possível, como peregrinamente muitos defendem, considerarem-se europeus, sem uma cultura de cidadania partilhada.
Os Estados membros devem implementar uma educação cívica comum, que a todos sirva e comprometerem-se que o futuro presidente da Comissão Europeia seja eleito em função dos resultados eleitorais provindos das urnas. A democracia deve chegar à Comissão Europeia. É necessário clarificar as regras, para que os referendos sobre a adesão à EU, não se convertam em meros negócios políticos ou de estratégia duvidosa. A Europa “a la carte” não é uma opção, é um desastre. É indispensável, uma iniciativa estratégica, de segurança e defesa dos cidadãos da UE. Os Estados membros devem cumprir os seus compromissos em matéria de segurança interna, intensificando as cooperações policiais – (Europol, que é a agência responsável por garantir o cumprimento da legislação da UE, ajudando os Estados membros a lutar contra a criminalidade internacional e o terrorismo), judiciais (Eurojust, que é um organismo responsável por ajudar as autoridades nacionais a cooperarem para lutar contra as formas graves de criminalidade organizada, que envolvem mais do que um país da UE) e de informação, bem como no plano externo, implementar uma política de fronteiras moderna, suportada num corpo europeu de polícia de fronteiras e infra-estruturas de controlo e acolhimento, que respeitem os valores europeus.
A UE, deve simultaneamente, implementar uma política de estabilização das regiões vizinhas em todos os domínios, quer seja no económico, cultural e diplomático, como no militar. A UE deve tomar a iniciativa que está relacionada com os refugiados. O “Acordo com a Turquia” não é uma solução a longo prazo. O país está inundado de refugiados e o tráfego de pessoas, prospera utilizando outras rotas. A Europa deve escolher outro caminho, que é o de acolher dentro dos limites possíveis, integrar, formar e preparar as condições para o regresso dos refugiados aos seus países, pois não é uma política de portas abertas, recebendo todos, mas apenas, os que estejam dispostos a integrar-se e a aceitar os valores europeus.
Os cidadãos europeus só aceitariam uma tal política se melhorar a sua vida quotidiana. O desafio da segunda fase do plano do presidente da Comissão Europeia para estimular o crescimento, é investir nos sectores com maior futuro, capazes de promover a criação de empregos de proximidade, modernizar de forma duradoura a economia europeia e consolidar a vantagem competitiva, dentro de uma política industrial comum, que permita recuperar a autonomia europeia, como por exemplo, um plano de desenvolvimento e restauração do “habitat”, com a utilização de novos materiais e tecnologias digitais, que transformaria a vida dos cidadãos e conceder-lhe-ia a liderança mundial no sector. É importante considerar a criação de três planos centrados nos transportes, energias renováveis e nas competências digitais do futuro.
A “zona euro”, terá de reforçar o seu potencial de crescimento, a sua capacidade de fazer face a choques assimétricos e favorecer a convergência económica e social. Tal, exige a necessidade de atribuir novas prerrogativas ao “Mecanismo Europeu de Estabilidade”, ou seja, uma competência orçamental para a “zona euro”, e a rápida implementação da união bancária, aproveitando para reformar e corrigir os defeitos existentes. O “Programa Erasmus” deve ser democratizado, alargando o horizonte cultural de toda a juventude europeia, com o fim de incentivar a igualdade de oportunidades e o sentimento de identidade a um projecto comum. Estas iniciativas pretendem, voltar a colocar o cidadão no centro do projecto europeu, e incentivar o crescimento, emprego e a inovação. É possível pôr em prática, se existir a necessária vontade política nos próximos anos.
O presidente Franklin Roosevelt fez, com o “New Deal”, em 1933. As economias avançadas têm essa capacidade, devido às margens não utilizadas do orçamento europeu e ao emprego de novos recursos. Entre as soluções que terão de ser pensadas, está a disponibilidade de recursos e a solicitação de um empréstimo ao “Banco Europeu de Investimentos (BEI) ”. A médio prazo, a mobilização e a reflexão colectiva dos cidadãos europeus, devem ser as premissas da realização de uma nova “Conferencia Intergovernamental (CIG) ”, ou de um novo “Tratado Europeu”, que converta a Europa, numa grande potência democrática, cultural e económica, que garanta no seu espaço interno, a solidariedade e os direitos fundamentais, actualmente em perigo de vida, e que se dote dos meios essenciais para exercer a sua soberania.
O novo “Tratado” a sair desse debate, aplicar-se-ia, apenas aos Estados membros que desejem uma maior integração, e sempre estiveram convencidos de que o interesse geral europeu, não se limita à soma dos interesses nacionais, o que só será possível, se as dezenas de milhões de europeus, acreditarem que o futuro da Europa se escreve unidos, e começarem a mobilizar-se nesse sentido. Assim, se evitaria que a UE se desintegre em pedaços a um ritmo vertiginoso, e cujo sinal é visível, como por exemplo, a decisão da Hungria, a 22 de Outubro de 2015, de construir uma cerca ao longo da fronteira com a vizinha Croácia, também Estado membro da UE.
A crise da “zona euro” fragmentou os fluxos financeiros, causando divergência entre as economias, debilitando o apoio político às instituições da UE e confrontando os cidadãos europeus. Os governos erigem barreiras e restauram controlos fronteiriços, a crise dos refugiados cria obstáculos à circulação de pessoas e ao comércio internacional, e enquanto a Europa se parece desfazer no medo de ataques terroristas, aumenta o risco de que o Reino Unido vote por a abandonar.

13 Mai 2016

Recordações do pato amarelo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]dorei, adorei, adorei. Quando dou comigo a pensar no pato amarelo de borracha “ancorado” este mês no Porto Exterior, interrogo-me: “o que diria Warhol?”. É possível que alguns leitores não façam ideia de quem seja Andy Warhol, mas também não são obrigados a conhecer toda a gente, pois não? Fica bem o apontamento cultural, mesmo atendendo ao facto de que Warhol nada diria, uma vez que já lá vão uns bons trinta anitos que o artista foi “fazer tijolo”. A minha opinião sobre o referido objecto, autoria de um holandês, certamente aficionado da passa (isso nem se pergunta, ora essa) é apenas esta: tomates. Isso mesmo, e quando me perguntam “se já fui ver o pato amarelo”, respondo categoricamente que não, pois recuso-me a aceitar por questão de princípio que “ir ver” um pato de borracha coloca-se como alternativa de entretenimento neste bosque desencantado da pasmaceira cultural que é Macau. Quer dizer, “fui ver” as ruínas de Angkor Wat, no Camboja, em finais do ano passado, e ainda no último fim-de-semana “fui ver” a nova peça dos Doçi Papiaçam Di Macau. Ora aqui estão dois bons usos para dar aos olhinhos. Um pato de borracha é que não, “plamordedeus”.
Mas eu sou eu, pronto, e seja lá quanto se pagou para ter ali aquela versão gigantone de um comum objecto que se pode encontrar no banho dos bebés, não saiu do meu bolso (pelo menos directamente, entenda-se), e quem quiser ir lá tirar uma foto a fazer um “vê” com os dedos, força, que no que toca à exposição ao ridículo, do chão já não se passa. E que digo eu, se a amanuense responsável pela parte do circo na dualidade “panis et circenses” se orgulha do pato, e chega mesmo ao ponto de “colocar Macau no mapa”? Já não era sem tempo, ufa, que foi preciso um patão de borracha para fazer aquilo que outros eventos de monta não conseguiram, como são exemplos os Jogos da Ásia Oriental, ou ainda os primeiros Jogos da Lusofonia, que por alguma razão estranha não deixaram o mundo inteiro a suspirar por nós, aqui em Macau, roídos de inveja de nós por não viverem aqui. Ainda bem que foi um pato e não o navio escola Sagres, livra! Isso é que não pode ser, pá. Depois de cinco séculos de humilhação, colonialismo, blá blá blá vir ainda para aí essa “ameaça” da parte dos “piratas”. 12516P19T1
Mas deixemos de lado os piratas e falemos de gente honesta. Está aí mais uma polémica com o selo da Fundação Macau, essa generosa entidade que tão descomprometidamente se oferece para gastar o tesouro, poupando-nos assim a tão enfadonha tarefa. Desta vez a FM decidiu contemplar a Universidade de Jinan com 100 milhões de yuan, que em patacas dá mais trinta e tal milhõezitos, coisa de somenos importância para esta gente – é como quando os arqueólogos falam em “milhões de anos”, como quem bebe um copo de água, estão a ver? O motivo de tanta generosidade é muito simples: a instituição de ensino em causa “contribuiu de forma significativa para o progresso da RAEM”. De facto, e não há metro cúbico de oxigénio que eu respire sem dar graças à Universidade de Jinan, sem a qual Macau não seria muito diferente de um povoado Cromagnon. Só 100 milhões? Têm a certeza que chega? Vejam lá bem.
E foi tudo legal, há que deixar bem claro, e quem disse que não foi? Eu concordo, mas permitam-me que mude por instantes para a norma brasileira da nossa língua: “Foi legal pacas, cara. Pô, essa nota daê chega pa tomá um suco bem acompanhado, e depois caí num sambinha, né? Um rolé responsa , morou?”. Quem nāo pensa assim são os gajos da democracia e etcetera, enfim, os suspeitos do costume, e não é que os tipos até ameaçam com uma manifestação de “milhares segundo a organização” e “meia dúzia de pelintras” segundo as autoridades? Ora essa, mas 100 milhões não chega nem para encher a caixa-forte do outro pato, não o de borracha, mas o Tio Patinhas, essa versão Disney do Dr. Stanley Ho. Grave, grave foi o Atum General ter-se feito àqueles 50 milhões, isso sim, que ao câmbio da humilhação, colonialismo, blá blá blá multiplica-se por mais milhões, enquanto estes cemtozitos, epá, convertem-se em Dongs vietnamitas e pronto, não se fala mais nisso. (Pensando bem o General até foi bem…”sonsinho”, pronto, ficamos por aí).
Ah Macau, Macau, a terra do pato de borracha que daqui a uns dias se vai e não volta mais, deixando aqui sós os outros, os de carne e penas. Adorei, adorei, adorei.

12 Mai 2016

Dois tiros no porta-aviões e um no contratorpedeiro

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]dmito a minha ingenuidade. Admito até a tendência para tomar as coisas pelo seu valor nominal, mas é assim.
Vamos imaginar um cenário, provavelmente irreal, mas possível. Chui Sai On, que um dia deixará a chefia do executivo, terá de viver de alguma a coisa nessa altura. Da fortuna de família, dos negócios que aquela tem, claro que sim. Tudo normal. Mas imagine-se que acontece uma desgraça e tem mesmo de arranjar emprego como o comum dos mortais. Nessa circunstância, ser vice-presidente remunerado do Conselho Geral de uma universidade não parece uma solução de descartar.
Portanto, o argumento de que não tem qualquer tipo de interesse pessoal na universidade não faz qualquer sentido. Não em termos formais. E quando o assunto são decisões políticas e dinheiros públicos todas as questões são formais. Em termos práticos, como presidente do Conselho de Curadores da Fundação Macau, o Chefe do Executivo autorizou a ida de dinheiro público para uma instituição que até lhe pode vir a dar emprego no futuro. Uma situação puramente académica, mas possível. À mulher de César…
Contudo, o problema maior nem sequer é este. O apoio à Universidade Jinan pode também ser entendido como mais dois tiros no porta-aviões do segundo sistema e um tiro no contratorpedeiro que deveria ser a educação superior local.
Como diz o povo, e bem, é pela boca que morre o peixe, e o ouvido do Governo para justificar a benesse à Jinan diz que aquela universidade é crucial para formação de funcionários do território.
Primeiro tiro no porta-aviões.
Diz ainda o Governo ir parte do dinheiro, ou todo, irrelevante, para construir um edifício da Faculdade de Comunicação Social daquela instituição do continente. Segundo tiro no porta-aviões.
Ou seja, poderá o segundo sistema ser interpretado condignamente com pessoas formadas no primeiro?
Fará sentido defender o segundo sistema, quando um dos seus apanágios é uma imprensa livre, investindo-se numa faculdade de comunicação social num país onde esta não o é?
Uma no cravo e outra na ferradura?
Estaria esta estratégia presente nos ideais de Deng Xiao Ping quando imaginou o princípio “Um País, dois Sistemas” ou, tudo somado, e revelamos o espectro do contra-senso?
O tiro no contratorpedeiro é dado quando o Secretário Alexis Tam justifica o investimento dos 100 milhões com o facto de Macau ter cerca de 20 mil quadros formados naquela universidade.
Ou seja, podemos daqui inferir a incapacidade da universidade local em formar quadros para a RAEM? Se assim for, porque assim é?
A sensação que me fica é que por qualquer lado que tentemos pegar neste assunto, não encontramos ponta por onde se lhe pegue.
É por estas e por outras que Taiwan cada vez acredita menos no princípio do velho Deng.

“Watch That Man” David Bowie (1973)

“Watch that man! Oh honey, watch that man 
He talks like a jerk but he could eat you with a fork and 
spoon
Watch that man! Oh honey, watch that man
 He walks like a jerk
But he’s only taking care of the room
Must be in tune”

11 Mai 2016

Direitos Humanos : Um saco de boxe sem protecção

“L´avocat n´oubliera pas, qu’homme du judiciaire ou du juridique, il incarne un contre-pouvoir dans la société civilisé et libérale à laquelle il appartient. Investi à l´intérieur de cette société, d´un prophétisme propre qui lui a été confie par la tradition et l´histoire, il lui appartient de dénoncer les mauvais fonctionnements de la justice et de la société” – Jacques Hamelin et André Damien, Les Règles de la Profession d´Avocat, Dalloz, 1989

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]crime é em si de uma natureza hedionda. A protecção das vítimas é fundamental, mas nada, rigorosamente nada justifica a forma miserável como os direitos humanos foram uma vez mais espezinhados.
Estou perfeitamente tranquilo e seguro no que hoje aqui registo porque não conheço o visado, nunca o vi, nem sequer ao longe, e não sou advogado que no exercício da profissão frequente tribunais criminais ou pratique o direito penal. Mas é evidente que como homem, cidadão e também advogado não podia ficar indiferente ao triste espectáculo a que se assistiu na semana finda em Macau. Nada autorizava o que aconteceu, muito menos da forma ostensiva e repetida como aconteceu.
Quando uma polícia de investigação apresenta os seus detidos à comunicação social, algemados e de capuz na cabeça já não é bonito. Quando esses mesmos detidos são nessas condições identificados pela sua nacionalidade, fazendo-se a distinção entre “cidadãos do continente”, “filipinos”, “residentes de Macau” ou “não residentes” já era igualmente mau. Mas quando, numa cidade como Macau, com uma comunidade portuguesa minúscula se apresenta um cidadão nessas condições e se diz que é português, de apelido tal, com X anos e com Y filhos menores com indicação das idades respectivas, é sinal que foram definitivamente ultrapassados todos os limites do admissível e se transformaram os direitos humanos na RAEM num verdadeiro saco de boxe.
Quando uma polícia ou uma comunicação social permite que assim se actue, sem que fosse imediatamente ouvida na sociedade, uma voz que fosse, uma voz vinda da Faculdade de Direito de Macau, do seio da magistratura ou sequer dos advogados de Macau, está-se a ser objectivamente conivente com uma conduta que nos coloca ao nível dos mais atrasados e subdesenvolvidos países e regiões do mundo, ao lado daqueles que consideram os direitos humanos um campo privilegiado para a prática dos maiores crimes contra a civilização, contra o Estado de direito e contra as sociedades democráticas.
O que na semana finda se deixou que acontecesse, feito pelas autoridades de Macau e por alguma da sua comunicação social, fosse propositadamente para atingir aquele cidadão, fosse para atingir a comunidade portuguesa ou por simples incompetência ou desatenção, é absolutamente intolerável numa sociedade civilizada. Porque ao identificar-se publicamente um detido a quem são imputados crimes de uma violência extrema, eventualmente cometidos sobre menores, dizendo-se sem qualquer pudor o seu apelido, a idade e o número de filhos, sexo destes e respectivas idades, está-se a passar uma sentença de morte cívica a um cidadão que ainda nem sequer foi acusado e cuja detenção ainda não fora validada por um juiz. As consequências, tanto quanto me foi transmitido por terceiros, também foram imediatas, traduzindo-se no despedimento laboral do visado.
E como se isso não bastasse expuseram-se as crianças, que em vez de terem sido protegidas, como se impunha que tivesse acontecido, em especial porque se já estavam traumatizadas mais traumatizadas ficarão quando os colegas, que nisso a escola é terrível, começar a apontá-los a dedo como sendo as vítimas de um celerado, espezinhando-se os seus direitos à reserva e à protecção do Estado de direito.
A forma como este tipo de situações tem vindo a ser tratada degrada-se de dia para dia. Alguns dos maus hábitos anteriores a 1999, designadamente, no que concerne à forma como se lidou com o crime organizado no tempo do último, e de má memória, governador português agravaram-se. Aquilo a que hoje assistimos é a um desmoronar com estrondo do edifício jurídico e judiciário que aqui havia sido construído.
Recordo neste momento o artigo 10.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que creio ainda estar em vigor na RAEM, o qual determina que “[t]odos os indivíduos privados da sua liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana”. Podia também mencionar o artigo 17.º (protecção contra intervenções arbitrárias ou ilegais e contra os atentados ilegais à honra e à reputação), 26.° (proibição das diversas formas de discriminação e protecção contra aquelas que existam) ou os artigos 1.º, 7.º ou 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948. Muitos mais poderiam ser citados.
Aquilo que aconteceu torna-se ainda mais grave porque os crimes em causa são de grande impacto social, criando-se uma situação de alarme que podia e deveria ter sido evitada. Numa região como Macau, numa cidade pequena, cujas fronteiras são altamente vigiadas pelas forças de segurança e de onde é quase impossível um cidadão português sair sem dar nas vistas, teria sido mais do que suficiente e razoável, sabendo-se que se tratava de uma pessoa integrada na comunidade, a trabalhar numa empresa conhecida, ter avisado os postos fronteiriços para a eventualidade de se prevenir a sua saída e ter convocado o visado para ir prestar declarações, se necessário montando um esquema qualquer de vigilância para prevenir eventuais tentativas de fuga e só se o notificado não comparecesse ir então busca-lo a casa e levá-lo sob custódia policial.
Compreendo que esta forma de actuação, não menos eficaz mas seguramente bem menos espectacular, coaduna-se mal com o espectáculo mediático em que as polícias parecem apostadas, o que é feito com a conivência de gente responsável da sociedade civil e o silêncio de quem devia estar na primeira linha da defesa dos direitos humanos em Macau.
Como advogado, membro da Ordem dos Advogados (Portugal) e da Associação dos Advogados de Macau, e conhecedor como sou dos estatutos que regem a minha profissão e, em especial, dos meus códigos deontológicos, na linha do republicanismo cívico aristotélico, não podia ficar calado. A minha cidadania e a profissão que abracei para poder lutar contra as injustiças desta vida e poder melhor servir os meus semelhantes não podiam ficar indiferentes ao que se passou. Não sou, não vivo, nem quero viver numa sociedade de símios, a quem a sorte dos outros é jogada à indiferença e ao arbítrio de quem tem a obrigação de proteger os seus cidadãos.
Os direitos humanos não são um empecilho à vida, nem à realização da justiça. Os direitos humanos e a sua intransigente defesa, em quaisquer circunstâncias, são algo que se impõe a qualquer ser humano e a qualquer cidadão de mediana consciência. E a sua defesa e protecção são um dever indelével dos advogados e de todos os juristas sem excepção. Os direitos humanos não podem continuar a ser tratados em Macau como se fossem um saco de boxe onde são diariamente desferidos golpes, uns a seguir aos outros, sem que alguém diga basta.
Espero que aqueles a quem está cometida a espinhosa tarefa de julgar e de lidar directamente com os crimes em causa tenham consciência do que se está a passar. Seria triste, muito triste, que a decisão que um dia venha a ser tomada seja, ainda que remotamente, influenciada pelo que acontece neste momento.
A magistratura da RAEM tem o dever de pôr termo a este espectáculo indecoroso que está recorrentemente a acontecer em matéria de protecção e respeito pela dignidade humana e de qualquer cidadão. E ela é a última garantia de cumprimento da lei e de protecção dos direitos humanos que os cidadãos têm. Instrumentos jurídicos não faltam. Oxalá que o bom senso também não comece a faltar porque nesse dia estaremos todos desgraçados e a caminho de um inevitável e penoso regresso à Idade Média.

10 Mai 2016

Relacionamentos

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á solteiros, apaixonados, namorados fechados e abertos, amigos coloridos, casados e parceiros. Há definições e redefinições sociais, pessoais e históricas. Pressões judaico-cristãs, crenças milenares e forças biológicas. Há uma panóplia de relacionamentos e de como eles se criam e desenvolvem. Há narrativas de todos os tipos com os mais distintos desfechos, acompanhadas de alegria, tristeza ou frustração. Há conversas de café e de cerveja que abrem ou fecham os olhos, esclarecem e enaltecem as coisinhas mundanas que muito têm de profundidade (relacional).
Não há um relacionamento igual ao outro, muito menos sexo. Se há espaço de contestação pela solteirice que chateia alguns e que conforta outros, há espaço para definir novas relações e os novos tipos de relacionamento.
Começa-se pelo sexo que depois desenvolve-se num sentido de intimidade único, ou ao contrário, começa-se pelo companheirismo de ir a jantares e ao cinema que quando as borboletas estiverem prontas a explodir, fazem-nas explodir na cama. Não há um caminho real para chegarmos a uma relação. Há honestidade, que nunca foi muito bem praticada, nem com os outros, nem connosco próprios. ‘O que é que realmente queremos?’ Ninguém o sabe ainda. Se o amor cega, o sexo turva a visão. Queremos aquele conforto do sexo ou a atenção romântica sem saber muito bem o que é que isso implica, ou exige. Deixamo-nos levar por moldes cinematográficos sem grande sentido crítico (ou outros moldes quaisquer) e esperamos coisas que podem nem fazer sentido.
O desafio das relações inter-pessoais são a consequência de uma forma de desenvolvimento egoísta, individualista. Os gostos, as manias, os desejos, as crenças, as frustrações de cada um encontram-se com as dos outros. Ainda mais se mostra com a pessoa com quem nos deitamos numa cama, sem roupa, sem protecção, vulneráveis e simples. Mostramo-nos na beleza e podridão e esperamos que o vínculo se formalize, que se torne real, exactamente como o imaginamos. Os corpos dançam da mesma forma que a nossa imaginação cria e o nosso coração acredita.
Se aceitamos a diversidade, em vez de uma história de amor prototípica, sabemos que podemos escolher entre outras opções. Há um certo nível de liberdade para concretizar alguns dos nossos desejos. Por exemplo, investe-se num relacionamento com o número de participantes que quisermos. O poliamor, o nome oficial, é praticado com toda a dedicação possível por aqueles que querem ter um manancial de pessoas com quem lidar, satisfazer e amar. Há quem ainda esteja no extremo oposto, com um parceiro, e que não acredita no sexo, nem o sente. São os novos relacionamentos assexuados que têm ganho adeptos.
Espalha-se amor (e sexo se se desejar) por quem queremos espalhar, mas depois falta o relacionamento. O dia-a-dia que se torna aborrecido mas que se reinventa quando os envolvidos trabalham para isso. São níveis de intimidade distintos à medida que se caminha para à frente no relacionamento. Simplesmente assumir que a definição garante o desenvolvimento é errado. Nesta situação de maior vulnerabilidade (i.e. em relacionamento) luta-se contra o hiato de um dualismo que Descartes previu. A lógica racional e a loucura emocional explicam-se e discutem bastante pelo que acham que deveriam ser e aquilo que estão a sentir.
Afinal, quem não tem medo de relacionamentos?

10 Mai 2016

Uma questão cultural

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]emonstrando uma argúcia e um estilo muito próprios, para além de vasta experiência e engenho, o Secretário para as Obras Públicas e Transportes cunhou a grande tirada filosófica deste Governo até ao momento. Ora diz Raimundo do Rosário, quando não sabe como explicar determinados meandros da política local, que se trata de “uma questão cultural”. De facto. Deve ser.
Repare-se, no entanto, no alcance holístico da expressão: nela cabem os atrasos do metro e do hospital; nela cabem os 100 milhões para a Universidade de Jinan e os seis milhões do pato; nela cabem o que se faz, o modo como se faz e o que se deixa por fazer. Bem vistas as coisas, a “questão cultural” explica muito, para não dizer quase tudo.
Ou seja, Raimundo do Rosário descobriu a pedra filosofal da política da RAEM. Existe, contudo, um detalhe e nos detalhes é que está o diabo que, como se sabe, é legião. É que em Macau não existe apenas uma cultura, pois como se propagandeia vivemos num caldo de culturas; logo, não existirá apenas “uma questão cultural” mas “várias questões culturais”. Percebe-se o poder imenso que daqui deriva. Se já é misterioso referir uma acção política a “uma questão cultural”, imagine-se o que não será poder referir a mesmíssima acção a “numerosas questões culturais”. Justificará tudo, incluindo cravar uma bandeira da RAEM em Marte.
Sugerimos pois um rápido curso de Etnologia na Universidade de Macau para ver se compreendemos a tal cultura local, cujas questões tanto influenciam a política e a vida quotidiana dos cidadãos. Não nos atrevemos, neste exíguo espaço, a abordar um assunto tão complexo, pois a sua vastidão exigiria um estudo que examinasse a possibilidade de um estudo científico, seguido de uma consulta sobre a necessidade de fazer uma consulta para avaliar a sua pertinência. Deixemos isso, portanto, aos nossos competentes académicos, se bem que não sejam tão competentes, segundo o Governo, como os do continente.
Por aqui, ficaremos satisfeitos com uma breve análise dos sintomas que fazem emergir a noção, isto é, discernir em que situações, concretas ou mais ou menos oníricas, se socorre o Secretário da “questão cultural”. Bem sabemos que este desiderato limita sobremaneira a extensão da ideia mas, de momento, são os dados de que dispomos.
Por exemplo, o já “famoso mistério das Obras Públicas” (i.e., porque razão demoram sempre mais dez anos que as privadas, quando são construídas) estará incluído neste menu. Outra é a monomania de contratar determinadas empresas por ajuste directo. Outra ainda é não se conseguir definir um traçado para o metro. Ora todos estes problemas remetem para “uma questão cultural”. E não há volta a dar-lhe que não seja um etnocídio, ou seja, a destruição da cultura instalada. E, claro, ninguém quer ser responsável por uma coisa dessas, seja eu, o Chefe, o Secretário, o Comissário Contra a Corrupção ou o da Auditoria.
A cultura, dizem, tem de ser preservada, protegida, alimentada. É ela o barro da nossa identidade. Ora quem é que quereria estragar esta bela cultura que predomina em Macau? Destruir esta maravilhosa mansão barroca? São décadas de privilégios, lustros de mordomias, anos de enriquecimento desordenado. São noites de luxúria roxa e dias de veludo dourado. De leis feitas à medida de cada carteira, de distribuição sincopada e ordenada pelos mesmos.
Quem quereria acabar com isto, com esta cultura tão entranhada, tão cinzelada e depurada? Acham bem?, perguntaria um deputado famoso pelas suas tiradas desabridas, se não estivesse ocupado em actividades culturais, como a bofetada súbita. E com razão… O que seria de nós sem a cultura?

9 Mai 2016

Celebrar a Europa

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Celebra-se hoje o dia da Europa. Aquela que ficou para a história como a Declaração Schuman foi proferida pelo então ministro dos negócios estrangeiros francês, a 9 de Maio de 1950. Nessa data, Robert Schuman propôs a criação de uma Europa unida. Então apenas ao nível das indústrias pesadas do carvão e do aço. Sessenta e seis anos depois, a maior parte dos sectores de actividade da Europa são “comuns”.
Na sexta-feira, quando recebeu o prémio Carlos Magno, no Vaticano – uma distinção dada a quem se empenhou no reforço da construção europeia –, o Papa Francisco verbalizou um certo negativismo em relação à construção europeia. Um tom que parece alinhado com outros líderes que não têm “apenas” responsabilidades religiosas. Com a crise financeira a não dar sinais inequívocos de recuperação, com a vaga de migrantes a acentuar brechas entre os Estados-membros, com o terrorismo “made in Europa” a levantar dúvidas sobre o processo de integração de minorias, o discurso negativo sobre o estado actual da Europa é até bastante comum.
O optimista Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, a caminho de Moçambique, não deixou de revelar uma certa preocupação, salientando que “a Europa não está fácil”.
Mas regresse-se ao Papa. A política é feita por sinais, através de gestos ou de discursos. E o Papa, que pela primeira vez aceitou um prémio internacional, fê-lo também, uma vez mais, para chamar a atenção dos líderes europeus para o drama dos refugiados. Líderes como Martin Schulz, Presidente do Parlamento Europeu, Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu, Jean Claude Juncker, Presidente da Comissão Europeia, ou Angela Merkel, chanceler alemã, estavam presentes nas primeiras filas. Ouviram o Sumo Pontífice perguntar o que é que tem estado a acontecer com a Europa humanista.
O que é facto é que, embora o Papa esteja numa cruzada por uma Europa mais solidária – e sobretudo para que a política de recepção e acolhimento de migrantes seja diferente e mais eficiente do que aquela que os Estados-membros acordaram –, às vezes parece que está apenas a pregar aos peixes. Uma certa Europa, dos nacionalismos, dos extremismos, da fortaleza continental, não parece estar disponível para o ouvir.
É pois fácil fazer o discurso negativo sobre a União Europeia (UE). É simples apontar os inúmeros erros em que caíram os líderes europeus nos últimos anos. O discurso pela positiva é mais difícil. Há dias perguntava-me, à laia de desafio, uma figura com responsabilidades no mundo da investigação em Macau, nas vésperas de fazer uma intervenção sobre a Europa: “O que hei-de dizer de positivo sobre a UE?” Uma certa narrativa construída na esfera pública e reproduzida pela comunicação social, do descalabro actual da União, é tão forte que até alguns académicos, europeístas convictos – habituados a olhar mais para a árvore do que para a floresta – se deixam ficar com dúvidas.
Apesar de todas as críticas, de todas as dificuldades, a UE merece ser enaltecida. E a campanha do referendo sobre a continuidade do Reino Unido na Europa está a revelar-se um excelente fórum – um fórum insuspeito, aliás, dada a natureza do envolvimento britânico na União, sempre com um pé dentro e outro fora, já que se excluiu de Schengen, do euro, da política europeia de asilo – para se escutar o que de positivo tem a Europa.
A União é um espaço de liberdade como há poucos no mundo. E não é apenas um espaço de liberdade de circulação, de pessoas, de bens, de capitais. É um espaço de liberdade de expressão, entre outros direitos humanos. A organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras divulgou recentemente o seu relatório anual sobre a liberdade de imprensa. Finlândia e Holanda ocupam os dois primeiros lugares do ranking. Seguidos pela Noruega – que estando fora da EU, acompanha a União em muitas das suas políticas, incluindo Schengen.
É um espaço de tolerância democrática. Em que uma coligação de esquerda radical consegue formar governo na Grécia e a extrema-direita chegar à segunda volta das presidenciais na Áustria. É um espaço de aceitação das diferenças e da diversidade, em que um candidato trabalhista, filho de emigrantes paquistaneses, que professa a religião muçulmana (e cuja mulher aparece em público trajando o véu) consegue ser eleito presidente da autarquia de Londres. Num contexto global em que o silogismo refugiados = muçulmanos = terroristas se transformou numa generalização que dificulta o dia-a-dia de milhões de pessoas, não é pouco.
A UE constitui o maior mercado comum do mundo, com mais de 508 milhões de pessoas. O que propicia oportunidades únicas para empresas, pessoas, para o desenvolvimento pessoal, profissional, técnico. A este nível, os programas Erasmus, de intercâmbio de alunos universitários e de estágios no interior da UE para alunos recém-formados, têm feito mais pela criação de uma identidade europeia do que qualquer campanha de informação pública de larga escala ou disciplinas sobre a construção europeia, quer ao nível do ensino secundário quer universitário.
Os fundos comunitários procederam ao desenvolvimento sem precedentes das regiões mais isoladas da Europa. O investimento em países como a Espanha, Irlanda ou Portugal transformou as infra-estruturas destes Estados – entre outros – de uma forma espectacular.
A integração chega a quase todos os níveis. A partir de Julho, por exemplo, vai ser possível viajar pela Europa e falar ao telefone ou usar a internet sem pagar roaming. “Vem tarde”, dirão os mais cépticos. Mas o que é facto é que a União conseguiu convencer as poderosas operadoras de telecomunicações a abdicarem de uma fonte considerável de rendimentos.
A integração europeia e a suas estruturas de diálogo contribuíram para o maior período de paz na história do continente. E este é uma das valências da construção europeia que não se pode ignorar e explica grande parte da capacidade de atracção do continente.
A política dos “pequenos passos” de Schuman trouxe-nos até aqui. A uma Europa multicultural, mas unida à volta de um conjunto de valores. Não são poucos esses traços comuns. Hoje, como sempre, devem ser assinalados. Contra o pessimismo reinante em época de desafios extraordinários.

9 Mai 2016

Estou além

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u li o mais recente livro de Henrique Raposo, “Alentejo prometido”.
Começo por escrever esta frase por que a polémica que ele gerou, algumas semanas antes do seu lançamento, quando a obra não estava ainda disponível quer nas tradicionais livrarias quer nos supermercados – que crime de lesa-majestade esse, o de colocar livros à venda ao lado das couves e dos enlatados – foi desenvolvida sobretudo por aqueles que não leram aquilo que o autor considerou ser o seu primeiro “road book”.
No entanto, essa é, agora, a norma. Comentar sem ler. Criticar sem ver. São os tempos de hoje. Não há volta a dar. O mundo é assim. É o mundo em que se coloca um texto no Facebook que demora no mínimo 20 minutos a ler, mas que, ao fim de dois ou três, tem já dezenas de “likes” e comentários. É o tempo do “posto, logo existo”. Cada vez mais pronunciado. Em média, só para dar dois exemplos antes de voltar ao livro do Raposo, as pessoas passam quatro horas por dia na internet. Um estudante de Hong Kong, para terminar estes parênteses, passa (não escrevo “perde”) duas horas por dia nas redes sociais.
Pois, dizia eu, li essa obra proscrita por uma certa intelectualidade presumida – ai se João Soares fosse também alentejano, o que ele não teria escrito nas redes sociais! Teria seguramente contribuído para que o livro se tornasse mais procurado do que morangos em dia de desconto. Li e gostei do que li.
Primeiro uma declaração de interesses é devida. Comecei a ler o autor há mais de 13 anos. Conheço a sua obra, pois, desde quando ele ainda não era uma figura reconhecida nem escrevia diariamente no Expresso. Quando ele ainda não irritava esses opinadores “online”, em busca de todas as oportunidades para afirmar a sua superioridade. Uma questão de brilhantismo.
Gostei do livro, porque “Alentejo prometido” pretende responder a uma pergunta básica que, creio, muitos dos que têm tido terras distintas como porto de abrigo, se perguntam amiúde, quando a multiculturalidade aperta: onde estão as nossas raízes?
Um enorme amigo, há anos a deambular pelo mundo, três anos aqui, quatro anos além, faz aliás essa pergunta sobre a origem das raízes sempre que conhece alguém. As raízes são fundamentais. De onde vimos? Por onde andaram os nossos familiares? Essas raízes fazem aquilo que somos hoje e ajudam a determinar onde nos vamos encontrar amanhã. E também o que lemos e o que escrevemos. Aquilo que transmitimos aos que nos rodeiam e até o que passamos aos nossos filhos. Às vezes nem notamos que o fazemos. É como se a nossa cultura – o que somos, de onde viemos, para onde vamos – falasse por nós. Como se nos transformássemos numa espécie de instrumento. Numa caixa-de-ressonância.
Tendo a esperança de ainda encontrar no Alentejo esse tronco comum, Raposo foi até ao sul de Portugal, às terras dos seus pais, tios e avós, à procura dos valores, das crenças, em suma, da cultura que marca os alentejanos. Assumiu um risco, coisa que qualquer analista social assume, o de através da sua amostra fazer generalizações e traçar o retrato do Alentejo que conhece. E por isso tenha dedicado alguma atenção à condição feminina e a encontrar explicações para elevada taxa de suicídio entre os alentejanos.
“Alentejo prometido” é antes de mais um livro corajoso. Só alguém com coragem é que se expõe da maneira que Raposo o fez, levando os leitores às origens da sua família, aos problemas e dramas sociais que a marcaram, a ela e às comunidades onde ela esteve e está inserida. A recolha pessoal que fez para o livro, as dezenas de entrevistas que refere e os dados estatísticos que consultou, as obras sociológicas e antropológicas que cita, dão ao livro uma profundidade que as reportagens de fim-de-semana dos jornais não têm.
Como em tudo na vida, não temos que concordar com todas as passagens nem gostar de toda as opções, quer estéticas quer de conteúdo, desta obra profundamente descritiva. Nem concordamos. Mas a conclusão a que chega, de que não se revê naquele Alentejo com que se deparou, é uma constatação até pouco ou nada polémica. Afinal, acontece um pouco a todos – agora a generalização é minha – que acabam por passar grande parte da sua vida fora dos locais onde têm as suas raízes. Embora continuemos a falar delas, elas não voltam a ter a forma nem o significado do tempo em que as experienciámos inicialmente. Porque fazem parte de algo que já não é palpável. As férias grandes – quando havia férias grandes e o tempo avançava sem qualquer vertigem – tinham um sabor que nunca mais saborearemos porque os tempos, esses tempos e as suas circunstâncias, não se repetem. Os primeiros namoros. Os primeiros aromas. Os primeiros sabores. Uma certa inocência que se vai perdendo inexoravelmente. Não há possibilidade física de que volte. E isso, para quem cresceu na grande cidade e só volta amiúde às origens, é uma espécie de corte absoluto. O mesmo acontece a essa espécie urbana de emigrante que dá pelo nome de expatriado que quando regressa a Portugal já não parece sentir-se em casa da mesma forma que se sentia há dez anos. E não é apenas a questão de já não encontrar as casas da aldeia que foram sendo destruídas, ou os amigos que se foram afastando e desaparecendo. É – como sempre – uma questão cultural. E a cultura é tudo. Engloba tudo. Inclusive ter primeiros-ministros detidos e não acusados, ou advogados de primeiríssima dimensão que dizem ignorar o que são off-shores. Um pouco como cantava António Variações, esse não-alentejano, “Porque eu só estou bem aonde eu não estou”.

5 Mai 2016

Aquela máquina

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]fa, que nos livrámos de boa, caro leitor, upa upa, olarilas. Nem quero imaginar o que seria tivesse estado eu naquele dia no Posto Fronteiriço das Portas do Cerco, quando se deu a avaria do sistema informático de verificação do BIR, que deixou apeados e à chuva, COITADINHOS (entra música de violino), milhares de residentes que…que o quê? Ah, iam à China, ou voltavam de lá, sei lá, raramente o fazem por uma questão de vida ou de morte, ou para servir uma causa nobre, mas tenho a certeza que se fosse comigo, despejava ali o meu reportório completo de obscenidades em versão trilingue.
Confesso que adoro aquele novo sistema que permite aos residentes de Macau passarem na migração através de não uma mas sim duas portinholas – uma que lê o “chip” do BIR e outra que lê a impressão digital – dispensando assim ter que ir fazer fila e dar de caras com um simpático sr. agente, que lá vai fazer o frete de verificar se estamos autorizados a bazar daqui p’ra fora, ou se o nosso bebé de meses de idade não calha ter o mesmo nome de algum professor universitário honconguense, e assim deixar-nos à porta a chuchar no dedo. E adoro esse sistema porque é isso mesmo: a única coisa boa de todo esse enfado que é viajar, especialmente se for de avião, onde se chega a perder mais tempo a passar nos “checkpoints” e à espera do que no voo propriamente dito. Precisavam de me ver aqui há umas semanas, voltava eu do Laos via Kuala Lumpur, a passar nas tais portinhas, com o mesmo entusiasmo de uma criança de três anos que racionaliza o funcionamento dos elevadores. Se me tirassem isso pá, tinham que me aturar , ai tinham pois.
Entendo, entendo muito bem, sim senhor, que apesar de estar aqui a tratar do incidente com ligeireza, este sucedeu-se logo na véspera do feriado do 1 de Maio, um dos dias mais movimentados do ano no posto fronteiriço. Achei estranho, contudo, foi – e mais uma vez, diga-se de passagem – a forma trapalhona com que as autoridades lidaram com o caso, necessitando de mobilizar um contingente de simpáticos agentes para verificar os cartões. Onde é que já se viu?!?! Imagino até a conversa entre um “xô” comandante e um desses agentes, subitamente convocado para reconhecer centenas de carantonhas:
– “Epá Fong, anda daí que tens que vir aqui para as Portas do Cerco verificar os BIRs. Toca a andar”.
– “Mei-ah, tai lou…ma fan. Mande os ursos irem lá meter o cartão naquelas portinhas, que já era altura de aprenderem a mexer naquilo”. [de facto aqui a ignorância ainda é muita].
– “Não dá, pá, é que o sistema informático avariou e as máquinas não funcionam”.
– “Sistema avariado? Máquinas não funcionam??? Impossível!”.
Sim, e nesse chuvoso dia as Forças de Segurança aprenderam uma valorosa lição: as máquinas avariam-se. Quem diria, e quem sabe se da próxima vez não antecipam essa possibilidade e lembram-se assim de, sei lá, convocar um contingente a entrar em acção na eventualidade de se dar o mesmo problema? Ou não, o que digo? Afinal os secretários, procurados et all eram (e são, e são!) pessoas de bem, acima de qualquer suspeita, e até parece um insulto considerar-se a possibilidade de serem julgados numa instância judicial sem a possibilidade de recurso para outra superior. O quê, julgados? Ai, ai, cala-te boca.

5 Mai 2016

Pato sem tomate(s)

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]pato é amarelo. O pato é grande. O pato não passa despercebido. O pato está ali na água. O pato não está ali na mesa, nem é Pato à Milanesa. Não há como fugir ao pato, se bem que o pato não corra atrás de nós.
O pato é um pato e todos nós sabemos o que é ser pato. Coitados dos patos que não têm culpa de nós acharmos que ser pato é ser parvo, tal como os ursos não têm a culpa que os ursos entre nós pouco tenham a ver com eles, tal como as cabras e os cabrões, os porcos, as lesmas, as preguiças ou os camelos, os burros e os fuinhas não têm culpa da nossa remota incompatibilidade com o reino animal, da nossa tendência de apelidar de bicho tudo aquilo que não gostamos de ser, mesmo que os bichos não sejam aquilo que pensamos serem.
A questão deste pato não é o seu potencial artístico nem as suas qualidades estéticas. O mal deste pato não é se é se não se equivale a Degas, como disse Carlos Marreiros. O mal deste pato nem sequer é a sua evidente falta de penas mas sim a pena que faz a evidência de vivermos numa cidade de patos, ou melhor, numa cidade em que gostam de nos fazer de patos, partindo do princípio que os patos são parvos. Neste sentido, este pato é um grande pato e não é nada parvo.
Se a arte, entre outros méritos, tem a faculdade de obrigar a pensar, a quantidade de tinta que este amarelo pato tem feito correr e a enormidade de electrões
espalhados pelas redes sociais em forma de crítica, sarcasmo, apoio, veneração ou mesmo “selfies”, este pato é um pato de sucesso.
Se a arte, entre outros méritos, tem a faculdade de desnudar questões, de apontar o dedo para a ignomínia, para a insensatez ou até para a cupidez e, seguramente, para a estupidez, este pato é um pato de sucesso.
Ninguém como este singelo cochicho teve ainda o condão de trazer de forma tão vigorosa para a macia opinião pública local a evidência de que os que cá estão não gostam dos que cá estão.
Ou seja, parafraseando José Drummond na sua entrevista esta semana ao HM, “Macau é um embaraço para os artistas” justificando assim a impraticabilidade de aqui se viver como artista em função dos preços de habitação e até da comida, mas o que podia ser feito com os milhões gastos no borrachinha, este pato é um pato fundamental. DonaldDuck
A questão dos milhões leva-nos do mundo animal para o mundo vegetal e até aos proverbiais tomates, ou à falta deles, pois é precisamente isso que este enorme pato revela apesar do seu ar bonacheirão e inocente.
Talvez depois deste pato, os patos que agora o pagaram venham a descobrir os tomates necessários para alimentar o molho dos artistas locais, ganhando coragem para encomendarem coisas extravagantes. Provavelmente não, mas o pato abriu a discussão.
“O mal…” diz o pato sem falar “… é os locais estarem manietados pela incapacidade de olharem de frente aqueles que não apoiam preferindo por isso distribuir migalhas a todos em vez de um pão decente a quem tem os tomates, e a capacidade, para fazer uma salada decente”.
Nesta quase alucinação colectiva em que se tornou a febre das indústrias criativas locais, não há tomates para se perceber que uma cidade de meia dúzia não pode gerar milhares de artistas.
O que este patarrão torna por demais evidente é não faltar dinheiro no burgo apesar da pretensa crise anunciada, tal como esparrama nas fuças de qualquer um como os milhões nele empregues nunca seriam entregues a um artista local que tal ousasse. Como não são entregues a um realizador local com tomates para fazer um filme decente, a um qualquer artista local com a ousadia de pensar grande, a quem quer que seja a pretender fazer obra que leve Macau para o mundo.
A preferência é, ao invés, apostar na produção consistente de merda, e aos quilos, destinada a encher arquivos e estatísticas no delírio de mostrar como os criativos locais são geniais e aos molhos. Em Macau, a ordem é para pensar pequeno, para não dar nas vistas, porque se for para dar espectáculo é melhor importar. Como diz o adágio local, “em tábua com pregos, o saliente deve ser martelado”.
A aposta tem de ser segura porque os tomates são caros e ninguém os tem para arriscar, nem a clarividência (o mais grave) para o perceber. Por isso, talvez utilizando um adágio importado a mensagem passe melhor, fique-se a saber que “quem não arrisca, não petisca”.

Música da Semana

“Come and Buy My Toys” David Bowie (1967)

“You shall own a cambric shirt
You shall work your father’s land
But now you shall play in the market square
Till you’ll be a man
Smiling girls and rosy boys
Come and buy my little toys
Monkeys made of gingerbread
And sugar horses painted red”

4 Mai 2016

O pato não é mau

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou contra o pato. Ao que parece, a amarela criatura faz pessoas felizes e a felicidade não tem preço certo. Certos jantares de certas associações custarão mais caro à RAEM e servirão menos gente. Temos pois que o pato “serve” e serve para alguma coisa, o que não se pode dizer de tudo o que custa 6 milhões de patacas.
Para além disso, o pato desenvolve as “indústrias criativas” como as confecções de bolos, cartazes, bolachas, carnes frias e porta-chaves, conseguindo assim o Governo de Macau atingir um dos seus mais sonantes e misteriosos objectivos. Cada pato seu paladar. Portanto, que cem patos desabrochem por essa cidade adentro. No campo culinário, a tentação é muita. Imaginamos o casamento do Pato à Pequim com o Arroz de Pato, por exemplo…
E ainda há mais: o pato servirá de pretexto para introduzir as crianças, através de desenhos, fotografias, instalações e talvez jogos de vídeo, ao mundo da pataria, que é como quem diz da arte contemporânea, de onde brotou o pato em questão.
Antes de ser contemporânea, a arte implicava o aprendizado da técnica, o domínio dos materiais para além, obviamente, de ter em si implícito um discurso, uma ou múltiplas intenções. Existia então na arte essa capacidade de nos fazer experimentar um infinito que se transmuta em Uno, somente como instante ou experiência do instante.
A obra era então inesgotável, qual conjunto de vectores de sentidos e de possíveis e impossíveis leituras. Havia o “texto”, a textura e o contexto e tudo isto formava um “caso”, caso esse que nos sufraga enquanto sujeitos e nos eleva enquanto humanos. A arte mostrava-nos o que não poderíamos ser, mas poderíamos procriar.
A arte do pato é outra. O pato é outra coisa. É uma ideia. Nada mais. Uma ideia que se instala efemeramente na praça pública para gáudio da população. E com ela a população será, eventualmente, feliz. Ou distraída. Ou entretida. Não interessa. E em tudo o que fizerem com o pato, cada um procurará a sua individualidade, a sua pequena diferença, ainda que esta seja imitar o próximo. O pato não é mau.

3 Mai 2016

Até que a morte os separe

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]os vinte e quatro anos vivi num daqueles países ultra-conservadores que, assim que descobriam que eu não tinha um namorado, muito menos um noivo, não se acanhavam em perguntar: ‘o que há de errado contigo?’. A falácia envolvia premissas à partida falaciosas: é solteira, ainda para mais mulher, e, por isso, deve ser insuportável.
Tive a possibilidade de crescer num ambiente onde o casamento não é encarado como o passo mais importante da vida de uma pessoa e deixo-me sempre surpreender quando o é. Diz-se que é preciso arranjar um companheiro ou um namorado, mas melhor será um cônjuge. O que será das nossas vidas sem um papel que diga que estamos legalmente ligados a alguém, ou sem a formalização que (talvez) estamos prestes a criar uma família e garantir a continuação da espécie? Tradições judaico-cristãs que o incentivaram, sem dúvida, mas que podem traduzir-se na contemporaneidade por… romântismo. O que há de mais romântico do que a possibilidade de amar o outro até que a morte os separe? Muito pouco. Provas de amor verdadeiro, diz a cultura mainstream, envolve um anel e um pedido. Porque tu es especial, tu és o melhor que há, tu és a pessoa da minha vida. O sexo, por sua vez, tem uns certos momentos de susto quando pensa na exclusividade sexual até à campa. O sexo gosta de novidade, mas também gosta do à vontade e da familiaridade do mesmo parceiro. O sexo gosta de viver no paradoxo, enquanto que o amor tem uma opinião matrimonial muito clara.
Este não é um tratado anti-casamento. Este é um tratado que defende a liberdade de escolha ao pedir a libertação de pressões, bocas e comentários de tudo e todos. Deixem as pessoas solteiras em paz. Por melhor que esteja comprovado que a solidão aumenta a mortalidade em 26%, não é muito claro se a mortalidade vem do stress que é ser solteiro e ter pessoas a chatear-nos a cabeça, ou se é porque podemos cair na banheira e morrer de traumatismo craniano porque ninguém nos levou ao hospital mais cedo. A ironia está que produzimos sociedades que incitam muito menos sentido de comunidade e cooperação, mas somos extremamente cruéis com os que foram ‘deixados para trás’. A alcunha usada na China para as mulheres que têm quase trinta e não são casadas ainda. Posso inventar razões possíveis, mas talvez, simplesmente, não se querem casar. Ponto. Funny Face
Para os lados mais europeus, a crise não tem dado muito apoio ao matrimónio. Se na China os homens precisam de um bom dote (i.e. uma casa totalmente paga), na Europa nem juntando os trapinhos e as esmolas se consegue comprar casa e começar uma vida. Já para não falar na festa de casamento, que não é barata. Ou mesmo na preocupação profissional extrema, que leva homens e mulheres a dar muito mais importância à satisfação profissional do que à necessidade dos votos.
O casamento não é um mar de rosas, malmequeres ou orquídeas. Não se esqueçam que há desafios diários para o casal, os desafios emocionais e relacionais pagam as contas aos terapeutas conjugais. Hipoteticamente falando, o sexo fica aborrecido, as pessoas ficam chatas ou a rotina desgasta. Por alguma razão a taxa de divórcio está nos 70% em Portugal. Os outro 30% ainda vão dando o exemplo de boas práticas. O pessoal ama-se, quer-se e satisfaz-se na dança que regenera anos e anos de relacionamento. Porque o companheirismo alimenta o amor e vice-versa, pelas experiências românticas e pela possibilidade e compatibilidade de resolver qualquer obstáculo que apareça à sua frente.
Um relacionamento a longo-prazo, sólido, vem naturalmente até certo ponto. Há trabalho por desenvolver, há investimento, compromisso e criatividade. Se as pessoas julgam que o casamento é o caminho certo porque é a escolha natural, desenganem-se. Estar solteiro pode ser um caminho natural também, solteiro com gatos e cães, solteiro com uma amante de vez em quando, solteiro com a namorada a longo-prazo: tudo pode ser natural. Porque a felicidade é o maior cliché de todos os tempos, sem estado civil associado.

3 Mai 2016

O Brasil e o futuro (I)

“What is Brazil’s strategy to cope with the emerging world order? The question has come up time and again in scholarly writings as analysts try to project whether Brazil is bound to be a “responsible stakeholder” or a spoiler of the emerging system. Brazil is as vibrant and messy a democracy as any other: Brazilian presidents preside over an often-fractured governing coalition and they face the challenge of managing a vast federal state with an unruly set of bureaucracies and semi-independent agencies operating within it.”

Shaper Nations: Strategies for a Changing World Hardcover
William I. Hitchcock, Melvyn P. Leffler and Jeffrey W. Legro

A presidente do Brasil anunciou um crédito extraordinário aos bancos estatais, grupos de agricultores e empresas, a 29 de Janeiro de 2016, de forma a ajudá-los a superar a pior crise que o país atravessa nos últimos cem anos. O ministro das Finanças anunciou, sete medidas para conceder os créditos às diferentes áreas da economia, dado ser obrigação do governo fazer um melhor uso dos recursos existentes. As medidas projectadas e a serem executadas, constam linhas de crédito e o uso de fundos de pensões para incentivar maiores investimentos em habitação e infra-estruturas.
As medidas criaram apreensão entre os investidores, por recearem que o país abrande o seu programa de austeridade e regresse às políticas fiscais frouxas do primeiro governo da presidente brasileira. O país atravessa a recessão mais profunda desde a “Grande Depressão” da década de 1930. Após uma queda de 3 por cento do PIB, em 2015, o FMI prevê outro recuo de 1 por cento para 2016, e adverte do risco de contágio na região. O governo da presidente brasileira, começou a esgotar a sua capacidade de resposta, depois de ter registado um deficit de 6,2 por cento do PIB, em 2014 e uma dívida pública superior a 60 por cento.
A inflação é de cerca de 10 por cento. A dívida das empresas aumentou no equivalente a 15 por cento do PIB, desde 2007. A taxa de inflação é de 10, 2 por cento, equivalente 10,4 milhões de pessoas sem emprego, ou seja, diariamente ficam desempregadas duzentas e oitenta e duas pessoas. A somar à desastrosa situação económica, a presidente do Brasil está a ponto de se ver profundamente envolvida no escândalo denominado de “Petrolão”, pasmando o mundo político internacional.
O Brasil amanheceu a 4 de Março de 2016, surpreendido e conturbado, pois o ex-presidente Lula da Silva, foi denunciado por um senador arrependido, que procurava aliviar a sua condenação no escândalo de corrupção na “Petrobras”, tendo sido detido por ordem judicial, por se recusar a colaborar com a justiça, e submetido a interrogatório, sobre presumíveis dádivas recebidas. É acusado de conhecer profundamente o processo de corrupção desde o seu início. A mesma acusação é feita contra a presidente, ainda em exercício de funções, reavivando a tese do “impeachment” ou julgamento político.
A situação apesar de séria e grave, não obscurece a profunda crise económica que o país vive, continuando a classe média abastada, a praticar o consumo de luxo, enquanto os sectores menos endinheirados diminuíram grandemente a procura de bens e serviços, numa economia que se contraiu 3,8 por cento, em 2015, sofrendo o maior recuo dos últimos vinte e cinco anos. A estrela das economias emergentes vai a caminho de sofrer a sua pior recessão, desde 2010, quando as estatísticas sérias no país apresentaram um crescimento da economia de 7,5 por cento. A previsão para 2016 é de um crescimento de -4 por cento do PIB. Os despedimentos no sector privado, em Janeiro de 2016, foram de cem mil trabalhadores, tendo sido despedidos, um milhão e quinhentos mil trabalhadores, em 2015.
As vendas a retalho diminuíram 7 por cento, e a inflação actual situa-se em 11 por cento, com tendência a subir. O deficit orçamental é imenso e representa 10,8 por cento do PIB, não se atrevendo a presidente brasileira a tomar sérias medidas para o reduzir, com receio da reacção popular poder agravar a recessão. É preciso salientar que a actual situação brasileira se deve à queda mundial dos preços dos produtos básicos e do petróleo, em especial; à total falta de investimento e às tentativas de reduzir o deficit, depois das imensas e desnecessárias despesas dos últimos anos, pelo que a gravidade da sua situação económica terá um forte impacto negativo, sobre as economias dos demais países do continente sul-americano.
O Brasil terminou 2015, no meio de um grande escândalo político, considerando o “impeachment” da presidente, rebaixando o grau de investimento, acumulando uma taxa de depreciação nominal relativamente ao dólar, em cerca de 47 por cento e removendo o ministro da Fazenda, por estar a presidente Dilma contra a política de ajustes fiscais que defendia anteriormente. Esta última situação não apenas mostrou a debilidade política da presidente, que tinha apoiado fortemente o ex-ministro da Fazenda no processo de ajuste, mas também uma falta de apoio do arco político da governação, para continuar com a política de ajuste fiscal. O ex-ministro da Fazenda veio a ser nomeado director financeiro do Banco Mundial.
Os acontecimentos fizeram que o então ministro do Planeamento ganhasse à presidente Dilma, o braço de ferro relativamente à facção mais ortodoxa. Todavia, o facto de o Brasil ter chegado a esta situação faz todo o sentido, para quem tem seguido a evolução da sétima economia mundial e a primeira da região, à qual os demais países vizinhos observam com particular preocupação, por ser o destino principal das suas exportações industriais. A economia brasileira, na primeira presidência de Dilma, de 2011 a 2014, cresceu a um ritmo médio anual de 2,2 por cento, em 2014 paralisou, e em 2015 sofreu uma contracção de 3,2 por cento, em termos reais, ou seja, os cinco anos de Dilma no governo federal, a economia brasileira acumulou uma subida de apenas 5,8 por cento, ou seja de 1,1 por cento anuais
O investimento interno bruto, foi de longe, a componente da procura global que teve o pior desempenho, tendo caído pelo segundo ano consecutivo a um ritmo de 12,7 por cento anuais, superando a enorme contracção de 8,9 por cento, registada em plena crise do real, em 1999, tendo alcançado o nível mais baixo de participação no PIB, desde 2007. Assim, não só foi importante o mau desempenho do sector privado, mas também a paralisação das obras públicas, pelo que o consumo privado se contraiu de forma significativa em cerca de 3 por cento anuais, registando a primeira contracção desde que o Partido dos Trabalhadores (PT) ganhou as eleições, em 2003.

A despesa pública manteve-se relativamente estável em cerca de 0,4 por cento anuais e por consequência, a procura interna contraiu-se 4,5 por cento, em 2014, tendo ultrapassado folgadamente o ritmo de contracção registado durante a crise do real, em 1999. O sector das exportações foi o único amortecedor do ritmo de queda do PIB, apesar do contexto internacional se encontrar, em plena deterioração. A forte depreciação do real, em particular, o volume das exportações de bens e serviços conseguiram atingir um aumento de 4 por cento anuais, e as importações caíram 12,4 por cento, proporcionando una forte melhoria do saldo líquido. Quanto aos sectores produtivos, a indústria teve de longe o pior desempenho, com uma queda média de 5,6 por cento anuais. Foi o segundo ano consecutivo em queda do sector industrial, que acumula um recuo de 1,2 por cento, desde que Dilma assumiu a presidência.
À recessão declarada pelo nível de actividade económica, em geral e industrial, em particular, há que acrescentar a aceleração da subida da taxa da inflação que atingiu 10,7 por cento, em 2015, muito acima do limite máximo da taxa de 6,5 por cento objectivo da politica monetária, tratando-se do maior aumento, desde 2002. A maior parte da causa dos problemas económicos e políticos que o Brasil enfrentou em 2015, deram-se em 2014, pois foram consequência directa da má estratégia eleitoral do PT, para conseguir a reeleição de Dilma Rousseff.
A vertente económica dessa estratégia teve como suporte uma política fiscal super expansiva e como consequência, desde 1997, o sector público não conseguiu ter um superavit primário em 2014 e 2015, tendo o deficit antes do pagamento dos juros da dívida pública, atingido 0,9 por cento do PIB. É de recordar, que apesar de o Brasil ter um “stock” de dívida de 66 por cento do PIB, sendo 13 por cento acima do nível em que Dilma iniciou a sua primeira presidência, a taxa média é de cerca de 14 por cento anual, dado que a maioria da dívida, é de curto prazo, denominada em reais, consumindo 8,5 por cento do PIB para o pagamento dos serviços da dívida.

É de realçar que para entender o mau desempenho da produção e da procura interna, em geral, e do consumo privado, em particular, deve-se ter em conta que na última década, a massa salarial cresceu mais que a produção, a que se acrescentou a disponibilidade de crédito a taxas de juros historicamente mais acessíveis. Esse círculo, então virtuoso, começou a reverter-se nos últimos anos. Os salários têm vindo a cair, em termos reais, desde Março de 2015, a um ritmo de 4,5 por cento anuais e a taxa de desemprego, subiu 3 por cento, atingindo os 8 por cento, o que implica que se perderam mais de um milhão de postos de trabalho, em 2015.

As previsões do mercado, indicam que a taxa de desemprego será de cerca de 10 por cento no final de 2016, e sendo obrigado o governo a implementar o ajuste fiscal, decide não o fazer pela impossibilidade de aumentar os impostos, dado atingirem uma pressão olímpica de 36 por cento do PIB, não tendo o PT melhor ideia que cortar nos subsídios de desemprego e parar as obras públicas. Assim, neste contexto é difícil procurar uma solução pelo lado das exportações. A desaceleração da China, principal destino dos produtos brasileiros não permite ser optimista quanto ao futuro, e daí se prever uma contracção mínima de 1 por cento para o PIB, em 2016, que conjuntamente com o desempenho da economia em 2015, será o pior biénio, desde a crise da década de 1930, e em tais condições, é de crer que o Banco Central não voltará a cumprir a meta inflacionária antes de 2019.

O Brasil não aproveitou a oportunidade que lhe foi concedida pela calma internacional, não tendo conseguido avançar rapidamente para resolver os problemas estruturais relacionados com o atraso do investimento em infra-estruturas, baixa qualificação da sua mão-de-obra, altíssima pressão fiscal e um complexo emaranhado burocrático que desincentiva os investimentos. O PT, ao contrário, decide entregar assistência, subsidiar tarifas de serviços públicos de má qualidade, empréstimos ao consumo e estabelecer um conjunto de desagravamentos fiscais às indústrias.
Tal política incentivou o consumo, através da despesa pública e empurrou a inflação, conseguindo esconder as debilidades do esquema de política económica até ao ponto de baixar a água e ficarem a descoberto todas as inconsistências. O mercado reagiu, reduzindo o seu nível de exposição e elevando o custo do endividamento, e foi especialmente depois de perder as notas de grau de investimento, que o milagre brasileiro se apagou por algum tempo.

2 Mai 2016

Ele disse (Um soco nos pulmões)

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uem é Português está cá por Macau já há algum tempinho e não se cinge à sua “bolha” ou “mundinho” (eh, eh), e convive amiúde com a fauna local, acaba por detectar certas tipicidades linguísticas que lhe podem parecer um tanto ou quanto “estranhas” – digamos que se entra em “choque cultural”, que é algo que deixa sempre os apreciadores deste tipo de picuinhices de antenas no ar. “Ah ah, olha que giros que eles são…até parecem gente, não é?”. Já sei, já sei, “ninguém disso isto”, claro, mas quantas vezes não pensaram, ah? Hipócritas…bem, voltando à vaca fria, ou na sua versão local, ao búfalo de água asiático frio.
Um dia destes enquanto contribuía para o progresso e desenvolvimento da RAEM, estavam duas colegas minhas na amena cavaqueira ao mesmo tempo que trabalhavam no duro (convém salvaguardar as criaturas, pobrezitas), quando a certo momento uma delas faz um comentário que terá sido entendido pela outra como “atrevido”, uma vez que esta retorquiu com uma expressão que considero assaz curiosa: “dou-te um soco nos pulmões”, ou em chinês, “頂你個肺”. Mais ou menos isto, uma vez que no linguajar cantonês corrente isto dito soa a qualquer coisa como “téng lei gó fái”, sendo “téng” o verbo “socar”, ou “esmurrar”, e “fái” o correspondente ao principal órgão do aparelho respiratório, o “pulmão”. Mas atenção, que isto é dito com uma ligeireza que possivelmente é daquelas coisas que “saem”, como “ai Jesus, Deus me livre” para nós, e as duas lá concluíram a galhofa na paz dos anjinhos, sem uma nuvem de afronta ou desaforo no horizonte – “Dou-te um soco nos pulmões, ah ah!”. Que simpático, deveras.
Claro que para os padrões ocidentais algo como “dou-te um soco nos pulmões” leva-nos inevitavelmente a projectar visualmente esta ideia, e ao notar uma reacção da minha parte, a minha colega estranhou, e lá lhe expliquei que nós portugueses, e (creio que) Ocidentais em geral temos igualmente expressões semelhantes para aquele contexto em particular, mas nada de tão gráfico, e ao ponto de especificar o órgão a ser atingido pelo tal soco “a fazer de conta”. Penso que a terei deixado meio sem jeito, ou talvez tenha dado a entender que a civilização dela é mais propensa para a barbárie, ou que fica mal a uma senhora usar este tipo de linguagem, sei lá, e a este ponto deixem-me que vos diga, e em jeito de desabafo, que o melhor é não pensar muito no assunto. Sejam vocês mesmos, pronto, e usem o critério que acharem mais indicado. Afinal não estamos aqui perante o dilema de tapar nus artísticos em vésperas da visita de altos dignatários da República Islâmica do Irão, pois não?
Tudo isto é para ser levado “na desportiva”, lá está, mas há contudo um hábito local ao qual não me consigo habituar, e pode-se mesmo dizer que me causa uma certa…”espécie”, para não dizer coisa pior. Quando vamos a uma repartição pública e quejandos só para dar um exemplo prático, escutar a expressão “gói huá” – ele/ela disse. Isto acontece normalmente quando pedimos uma informação, ou um esclarecimento, e na dúvida o funcionário que nos atende pede ajuda a um colega, regressando a nós começando por nos elucidar com um “ele disse”, ou “o meu colega disse” – e isto é tão frequente que é preciso andar-se mesmo “desligado” para não reparar. Como agiria o leitor perante esta situação, digamos, em Portugal, por exemplo? E que tal: “Ai sim, então importa-se que eu fale antes com o seu colega, uma vez que para pombo-correio você não leva lá muito jeito”? Pode ser que eu esteja apenas a ser “esquisito”, mas isto irrita-me tanto como aqueles médicos que dizem aos familiares de um doente às portas da morte qualquer coisa como “agora está nas mãos de Deus”. Dá vontade de perguntar onde é que podemos encontrar este tal senhor Deus, uma vez que gostaríamos de ficar a par da situação, e já agora não ser tratados como tótós.
Mas isto do “ele disse” parece ser uma coisa “normal” por estas bandas, e creio que nem sequer se pensa em algo tão sério como a assumpção das responsabilidades, e quanto mais se colocam em causa valores como a própria dignidade. “É assim”, e pronto, e pode ser que esteja a chover a cântaros lá fora, que se disserem isto a alguém que ainda não saiba, e este no caso de o transmitir a terceiros cuidará sempre por começar a frase com “ele disse”. A propósito, não viram no último fim-de-semana a entrevista com a secretária da tutela (esta tutela, é preciso dizer mais?). Tive a ligeira impressão que as respostas seriam sempre as mesmas, independentemente de quais fossem as perguntas. Acredito mesmo que só não tivemos um festival de “ele disse” porque…bem, não havia ninguém que pudesse dizer mais, fosse do que fosse. Ah sim, e tudo isto que vos acabei de contar, “ele disse”. Ele, pronto, agora puxem vocês pela cabeça.

28 Abr 2016

Vinte e quatro ou vinte seis?

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“Dia da Saudade”, 24, como lhe chamam os reaccionários, o (primeiro) “Dia da Liberdade”, 26, como lhe chamam os revolucionários e, pelo meio, outro dia, o 25, que tudo mudou.
Esta semana, neste mesmo jornal, interrogavam-se as pessoas se se devia, ou não, festejar mais o 25 de Abril em Macau. Naturalmente, em Macau, Portugal ou Cochinchina, o fim de uma ditadura que cerceava a liberdade de expressão e encarcerava os que ousavam discutir os princípios políticos do Estado deve ser celebrado.
Todavia, mais do que celebrado, mais do que slogans ocos do género “25 de Abril para Sempre” parece-me essencial que percebamos claramente que legado foi esse do 25 de Abril, se as expectativas geradas (muitas) foram cumpridas e se, no limite, o 25 de Abril tinha mesmo de acontecer.
Para mim existem duas vantagens essenciais que saíram de Abril de 1974: o laicismo e a liberdade de expressão. O resto nunca iremos saber se foram consequências dos tempos, ou da revolução.
Portugal em vez de passar a vida a falar de cravos e de heróis de natureza duvidosa como Costa Gomes, Spínola, Vasco Gonçalves e até Mário Soares entre vários outros, deveria era interrogar-se dos pressupostos que levaram à revolução e se a transição de regime, que começava a tardar, não poderia ter acontecido de outra forma.
Nós temos um hábito secular de nos perdoarmos e mostrar, especialmente a nós próprios, como somos um povo fora de série que faz coisas especiais. Algumas fizemos, sim, como partir mar adentro à procura de outros mundos, apesar das críticas dos cépticos (tão bem imortalizadas por Camões no seu Velho do Restelo), ou termos sido os primeiros europeus, juntamente com a Bielorrúsia, a abolirmos a pena de morte nos finais do séc. XIX. Mas também organizámos o primeiro mercado de escravos africanos em 1444, em Lagos, e mantivemos o negócio por séculos. 27416P18T1
Dourar a pílula é uma especialidade que dominamos. O 25 de Abril não é diferente. Se custa perceber como não foram julgados os criminosos da PIDE que encarceraram e torturaram milhares de pessoas, nem foram assacadas quaisquer responsabilidades políticas a ninguém pelos mesmos factos, também custa perceber como ainda não se debate realmente (42 anos depois!) as verdadeiras motivações de Abril ou as negociatas efectuadas em sequência. Se custa perceber como nunca foi escalpelizado o lastimável processo de descolonização, também custa perceber como o tal Portugal novo, pós-Abril, deixou transformar a sede da PIDE num condomínio de luxo vedando assim as novas gerações à visualização in loco do horror daqueles cárceres. Um apagamento histórico absolutamente inaceitável num país que se diz moderno e democrático.
Para além do laicismo e da liberdade de expressão, o 25 de Abril trouxe outras melhorias de relevo como as férias e respectivos subsídios para os trabalhadores, a aparente igualdade entre sexos e, seguramente, um novo papel para a mulher na sociedade, acesso generalizado à educação mas também originalidades como a desditosa Reforma Agrária que apenas serviu para destruir a produção agrícola nacional, para não falar das não menos célebres nacionalizações.
Quarenta e dois anos depois, as pessoas têm férias, sim, mas somos dos que menos temos na Europa. Também pertencemos ao grupo dos países cujos cidadãos têm menos capacidade para as gozar independentemente de dias e subsídios e, segundo dados do Eurostat, dos que menos viajam para fora do país juntamente com a Espanha e a Roménia. Apenas 10% dos que viajam vão para fora.
As mulheres viram o seu papel reformado mas será que hoje já têm condições de absoluta igualdade perante o emprego? (pergunta retórica) Temos educação acessível mas, mesmo assim, o abandono escolar em Portugal é ainda um dos mais altos da União Europeia.
Em 1974 também se prometia “casa para todos” e todos sabemos como a coisa está.
Quanto mais se olha, mais parece que o 25 de Abril foi apenas uma tentativa de golpe de Estado falhado por militares fartos da guerra. Mas mesmo essa questão, a das colónias, já vinha a ser debatida nos meandros do Governo desde meados dos anos 50, falando-se de Federalismo e até de Independência.
Em 1961, a constituição de um Estado Federal, abrangendo Portugal e as suas colónias, tinha sido publicamente defendida por Henrique Galvão e Humberto Delgado, então exilados no Brasil. Mais tarde, veio a ser o próprio Marcello Caetano, último primeiro ministro do Estado Novo, a defendê-la. Dizia ele em meados dos anos 60 que “para as colónias da África Tropical a era do império ainda não passou. A hipótese federativa, como termo político da evolução colonial, não parece de excluir. É certo que os portugueses não mostraram nunca uma grande tendência para os regimes federativos; mas isso não significa que com o tempo não venham a compreender a sua prática”.
O projecto que apresentou era o de uma Constituição Federal, criando uns “Estados Portugueses Unidos”. Tal modificação constitucional passaria pela transformação do Estado unitário em Estado federal, formado por três Estados Federados (Portugal, Angola e Moçambique), enquanto Cabo Verde receberia o estatuto de Ilha Adjacente e as demais Províncias ultramarinas ficariam com o mero estatuto de Província. Provavelmente, mais tarde ou mais cedo, o sistema evoluiria para independência num sistema “a la Commonwealth” mas, pelo menos talvez tivesse poupado anos de guerra em Angola e Moçambique, talvez a transição tivesse sido mais suave e mais inteligente.
Não pretendo fazer a apologia de Marcello que, por muito visionário que fosse, não foi capaz de perceber o que estava à sua volta, não foi capaz de reformar a seguir ao Salazar, não foi sequer capaz de entender que ir para o Quartel do Carmo era um erro estratégico, ou que entregar o poder a Spínola era a última coisa que deveria fazer, no seu próprio interesse e do país que não pretendia ver cair no caos. Apenas questiono se não teria existido melhor solução para a transição de regime.
Na realidade, hoje no primado da democracia e da liberdade, continuamos dependentes de um sistema de clientelismo muito ao género da I República como Vasco Pulido Valente salienta: “desde a consolidação da monarquia liberal que o jornalismo e a literatura bramiram contra a compra do eleitorado por “favores” do governo, empregos, dinheiro e privilégios. Desde Herculano e Júlio Dinis, que sempre se esquece, até Ramalho, Eça, Fialho e, claro, os “neogarrettianos”, não houve cão nem gato que não condenasse os partidos por se alimentarem de “dependentes do Estado”. Os milhares de páginas que se escreveram contra esta ficção ou, se quiserem, contra esta fraude constituem a mais longa e coerente tradição política portuguesa. A República com a sua violência e o seu compadrio confirmou com vigor tudo aquilo em que o país piamente acreditava. E Salazar, ao contrário da lenda, assentou a sua ditadura num apetite geral de um “pulso forte” que servisse a “nação” e desfizesse as clientelas”. Ou seja, virámos o disco para vir a tocar o mesmo?
Mudámos, mudámos muito e muitas coisas para melhor. Mas o mundo também mudou e na maioria dos países europeus para muito melhor que nós ou não continuássemos, apesar de todas as reformas, apertos de cinto e quejandos, com um défice sistemático equivalente a 3% do PIB.
Celebrar Abril, ou seja, a queda de uma ditadura é essencial mas para nada servirá se não formos capazes de o entender em toda a sua dimensão, de nos entendermos em toda a nossa capacidade para perceber se, de facto, ganhámos ou não um país novo.

Música da semana

“The man who sold the world” David Bowie (1970)

“Man is an obstacle, sad as the clown, Oh by jingo 
So hold on to nothing, and he won’t let you down, Oh by jingo 
Some people are marching together and some on their own
Quite alone 
Others are running, the smaller ones crawl
But some sit in silence, they’re just older children 
That’s all, after all” 

27 Abr 2016

Corpo e Corpos

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]corpo, o veículo sexual, composto por partes e órgãos com o potencial nervoso para proporcionar dor e prazer, nunca terá sido tão contestado ou discutido como é agora. O corpo que erroneamente objectifica o que somos, apesar de redutor em perspectiva, não deixa de ser o nosso cartão de visita. Por isso, as aparências, por mais superficiais que sejam, continuam a pesar na forma como julgamos e agimos.
Envolvemo-nos com quem achamos simpáticos, divertidos ou amorosos, ao mesmo tempo que os achamos atraentes, bem parecidos ou sexy. E porque estamos cientes dos vectores que levam à atracção e quiçá ao sexo, preocupamo-nos com nós próprios de formas mais ou menos obsessivas. Temos que nos sentir bonitos, temos que perceber o nosso corpo como atraente.
O conceito de imagem corporal e as suas dinâmicas são recorrentemente referidos nos vários veículos de discurso público porque, vivem-se tempos onde existem problemáticas sérias na forma como vemos, sentimos e pensamos o nosso corpo. As doenças como anorexia nervosa ou bulimia poderão ser consequências graves para quem tem uma imagem corporal negativa. Estas são as condições extremas que merecem a atenção de especialistas, mas num grande espectro de gravidade menor, onde a imagem corporal negativa continua a trazer problemas, vivem-se os dramas do desfasamento daquilo que somos, aquilo que achamos ser e aquilo que queremos ser.
Vivem-se tempos onde somos bombardeados por imagens de magreza extrema e exagerada de uma minoria populacional, quando ao mesmo tempo se luta contra a epidemia da má alimentação e obesidade. Vivem-se tempos onde ter rugas é pouco natural e ter pêlos nos sovacos sinal de pouca higiene. Vivem-se tempos de uma expectativa de beleza demasiado rígida e transversal a toda a população, quando no mundo pós-moderno nos definimos pela diversidade. Vivem-se tempos onde nos podemos fotografar e publicar para todos verem e, assim, receber os elogios que precisamos (que a nossa auto-estima precisa) e esperar que ninguém (na necessidade de melhorar a sua) nos ofenda, ou que gozem sem dó nem piedade, pela ‘imperfeição’ percebida. Vivem-se tempos onde há desafios públicos para provar a nossa magreza ou abundância de peito. Nas redes sociais chinesas, mulheres têm-se fotografado com uma folha de papel à frente para provarem que a sua cintura é mais estreita que a largura de um A4, antes disso, propunham-se a fotografar com uma caneta por baixo da mama, porque só quem possuía peitos generosos poderia aguentar a caneta assim mesmo – sem qualquer outra ajuda. Vivem-se tempos onde a imagem das mulheres (e suponho que dos homens também) são digitalmente alteradas para parecerem alguém, tão perfeitinho, que não existe. Vivem-se tempos onde os homens não estão livres de pressões de beleza e que ainda não estão à vontade para falarem sobre isso. Vivem-se tempos onde somos influenciados por um sistema que incentiva e perpetua todas estas percepções e padrões de comportamento. Vivem-se tempos onde existe uma pressão absurda de beleza sobre todos nós, os comuns mortais, que lutam contra (por vezes inevitáveis) lavagens cerebrais.
Não é preciso ser um génio para rapidamente perceber que uma imagem corporal negativa traz consequências ao bem-estar físico e emocional. Esta percepção negativa de nós próprios traz desconforto e estranheza, olhar-se ao espelho torna-se uma tortura e estar socialmente com as outras pessoas será como exercitar meta-meta-cognição em loop ao constantemente reflectir: ‘será que estou/sou atraente?’. A ansiedade será controlada com actos ritualizados de constantes idas à balança, contagem de calorias diárias, planear começo de dietas quase todas as segundas-feiras (dietas absurdas sem hidratos de carbono ou gordura).
A dificuldade será saber como parar estas dinâmicas, as forças sociais que controlam a nossa ligeira obsessão pelo irreal físico. Para que não nos rotulem de vítimas de um sistema, como podemos, afinal, travar o culto exagerado do copo?

26 Abr 2016

Fascismo nunca mais!

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje comemora-se o 25 de Abril, Dia da Liberdade. Pela quadragésima segunda vez. Ou seja, já haveria tempo para ter sido encetada uma séria reflexão sobre esse conceito belo e complicado: Liberdade. Claro que quem não viveu as ditaduras, possui uma experiência limitada da questão. É compreensível. E, no caso radical da malta a quem a Natureza não dotou de mais de três neurónios, é até esperável, ainda que não desejável. Isto faz-me tudo muita impressão. Sobretudo a facilidade e impudência com que, por vezes, se fala.
Repare-se no que aconteceu aqui em Macau, a propósito do processo de destituição de Dilma Roussef: Jane Martins, presidente da Casa do Brasil de Macau, disse a este jornal que preferia ver os militares no governo do seu país do que o Partido dos Trabalhadores (PT).

Questionada no Facebook por compatriotas naturalmente indignados, a senhora em questão empina-se dizendo que é a sua opinião e que o que mais preza é a “liberdade de expressão”. Portanto, arroga-se do direito de preferir um governo militar (como os que governaram anteriormente o Brasil) a um governo do PT.

Na verdade, engana-se redondamente, porque não se pode usar a liberdade de expressão para pugnar pela sua extinção. Os governos militares no Brasil instalaram a censura, perseguiram pessoas pelos seus ideais, prenderam-nas e torturaram-nas. Foram, na realidade, os grandes responsáveis pelo estabelecimento da corrupção que infesta todos os quadrantes da vida política brasileira, pois criaram um regime nela baseado que, apesar do advento da democracia nos anos 80 do século XX, ainda predomina como a lista da Odebrecht demonstra. Com os militares no governo, a liberdade de expressão, que Jane Martins tanto diz prezar, seria limitada ao encómio e à mentira.

Mas o que é interessante no discurso da presidente da associação local acaba por ser a crença em que a “sua liberdade de expressão” pode ser exercida de qualquer maneira e, por exemplo, pode defender o fim da liberdade para os outros, como ela fez ao preferir um regime fascista a um governo eleito democraticamente. Ora é claro que não é assim porque (lugar comum, mas difícil de entender por certas pessoas) a minha liberdade acaba onde começa a dos outros…

Senão, repare-se, qualquer um poderia dizer de Jane Martins o que Maomé não disse do toucinho: insultá-la, acusá-la de corrupção, de gestão danosa da sua associação, de estupidez congénita, de comportamento moralmente duvidoso, até de ser fisicamente repugnante, sem apresentar qualquer prova ou justificação que não fossem as suas intervenções públicas, no Facebook e o direito à liberdade de expressão.

Certamente que a “Querida Líder” da comunidade brasileira de Macau não iria gostar. Provavelmente avançaria com um processo no tribunal que, talvez daqui a cinco anos, eventualmente, depois de muito advogado e muita discussão sobre liberdade de expressão, resultaria em muito pouco. Contudo, os danos causados na sua reputação seriam irreparáveis. Será que “liberdade de expressão” significa que vale tudo?

Penso que não. Existe uma coisa chamada ética pessoal que nos impede de tomar esse tipo de atitude. A liberdade não pode ser utilizada para tirar liberdade aos outros porque tal não é um conceito, mas uma posição de força real, de violência exercida sobre corpos, de fascismo, de repressão.

Depois de assistirmos ao espectáculo degradante dos deputados no Brasil, não surpreendem tanto as declarações da presidente local, que considero do mesmo calibre. Ou seja, assistimos a uma breve reprodução no Oriente dos dislates ouvidos em Brasília. Faltou Deus e a família… E não se trata de ter emitido uma opinião pessoal, porque nenhum jornal lhe perguntaria o que pessoalmente acha sobre isto ou aquilo mas sim, como é óbvio, como presidente da associação a que preside.

Minha querida Amélia António, presidente da Casa de Portugal… olha se fosse brasileiro… nestes momentos (e não só) é que percebemos como somos bem representados… Fascismo nunca mais!

25 Abr 2016

Estandarte da democracia

Depois de Au Kam San ter anunciado no início deste ano o seu afastamento da Associação de Novo Macau, as actividades da Associação passaram a ser matéria de interesse dos média em geral e de alguns jornalistas mais entusiastas em particular. Algumas das coberturas jornalísticas foram feitas por preocupação genuína com os destinos da Associação, outras com o intuito de confundir os leitores quanto à natureza deste grupo político e, ainda outras, apenas pelo desejo de verem a Associação de Novo Macau “ir por água abaixo”.
A estação televisiva de Macau chegou mesmo a dedicar tempo de antena para cobrir os conflitos internos da Associação de Novo Macau. O julgamento sobre o valor de alguém deverá basear-se no seu comportamento e nos seus desempenhos e não naquilo que diz. Uma revista macaense mensal publicou em destaque na edição de Abril uma série de artigos sob o título “Votos para a Assembleia Legislativa em 2017”, onde se falava da Associação de Novo Macau. De seguida vou apresentar a discussão de um destes artigos, na esperança de criar alguma mobilização para o processo eleitoral do próximo ano.
O primeiro destes artigos referia a demissão de Ronny Tong Ka-wah do Partido Cívico de Hong Kong e o seu subsequente afastamento do Conselho Legislativo, para criticar o abandono de Au Kam San da Associação de Novo Macau, considerando-o uma violação da ética política. Na declaração de demissão, Au Kam San mencionou que parte do seu salário de deputado da Assembleia Legislativa era dado à Associação, a qual usava uma percentagem deste dinheiro para financiar a organização recém-criada “Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau”. Aparentemente, Au não beneficiava em nada com estas disposições e afastou-se da Associação de Novo Macau (que o tinha nomeado para concorrer às eleições para a Assembleia Legislativa) sem ter previamente consultado a sua direcção, o que é obviamente injusto para a Associação. A ética política constrói-se a partir da conduta pública das pessoas que se envolvem politicamente. Quando o meu mandato como presidente da Associação de Novo Macau chegou ao fim, Jason, Chao e Sou Ka Hou sucederam-me no cargo. Por coincidência, estes dois jovens tinham sido os segundos candidatos do grupo “Associação de Novo Macau Democrática”, liderada por Au Kam San, na corrida para as Eleições da Assembleia Legislativa.
O artigo também recomendava aos jovens que “não se deixassem ficar à sombra das conquistas do passado” incentivando-os a criar o seu próprio caminho e a abrir mais perspectivas para as novas gerações. Quanto à estratégia a adoptar pela Associação de Novo Macau na corrida às eleições de 2017, o artigo sugeria que Ng Kuok Cheong (actual deputado) fosse o segundo candidato e que permitisse que um jovem com capacidade e talento político fosse o primeiro. É uma forma de deixar que o sénior lidere o júnior e também de tentar conquistar dois lugares na Assembleia. A viabilidade desta estratégia está, contudo, dependente da decisão da Associação de Novo Macau e da vontade de Ng Kuok Cheong. Mas inegavelmente, após anos de trabalho, está na altura da Associação de Novo Macau ajudar a passar o testemunho à geração mais nova. Como segundo candidato Ng Kuok Cheong tem menos hipóteses de obter um lugar do que se encabeçasse a lista. Mas se a Associação de Novo Macau usar como slogan “Novo Macau Democrática” e formar um grupo independente para concorrer às eleições, aumenta as possibilidades de obter dois lugares. De acordo com outros artigos desta série, uma das razões pela qual a Associação de Novo Macau perdeu um lugar, nas passadas eleições, ficou a dever-se ao facto a alguns dos eleitores que apoiam a Associação terem pensado que as duas equipas lideradas pelos deputados Au e Ng já tinham a vitória garantida e que os seus votos já não eram necessários.
Em 2017 a Associação de Novo Macau celebrará os seus 25 anos. O denominado “Estandarte da Democracia” de Macau conheceu obstáculos e desafios nestas duas décadas e meia. Para além do apoio dos seus membros, é importante que a Associação conquiste o reconhecimento e o apoio do público em geral. Posto isto, 2016 vai ser um ano de dificuldades e labuta para a Associação de Novo Macau, mas sem desafios não existem vitórias.

22 Abr 2016

Que cara de 25 de Abril é essa, pá?

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]alta menos de uma semana para que se assinale mais um aniversário do nosso “own private putsch”: o 25 de Abril, vulgo Revolução dos Cravos, que se assinala a…isso mesmo, acertaram – a 25 de Abril! (A propósito, ainda é feriado?). A tal Revolução, muito à maneira lusitana do “se me vou a ti fico todo partido”, foi feita sem derramamento de sangue, julgamentos sumários, fuzilamentos, guilhotinas e o diabo a sete, e ainda bem! Que selvagens, estes gajos que resolvem “limpar o sebo” a quem antes curvavam a espinha até quase bater com o nariz no chão. E pensando bem, que oportunistas, também. O que reza a História é que os tais capitães do mês corrente chegaram junto do manda-chuva de então, que curiosamente ostentava o mesmo nome próprio que o actual (facto preocupante, será?), e a conversa terá ocorrido mais ou menos nestes termos:
– “Sr. Presidente do Conselho, vimos em nome do Movimentezasforssasarmadas…”
– “Já sei, já sei, poupa-me essa conversa de comuna da treta, querem que eu dê de frosques, é isso?”
– “Se não for pedir muito…”
– “Tem mesmo de ser?”
– “Bem, estão ali fora uns tipos com calças de boca-de-sino e com uma aparência de Cromagnons que apesar de não saberem muito bem ao que vêm, não estão com cara de quem lhe vem cantar o “Angola é nossa”, e sinceramente não me estava a apetecer nada ver como é por dentro o sr. Presidente do Conselho, por isso…”
– “Claro, claro, compreendo. Além do mais essa alternativa entra em conflito com a minha agenda pessoal, onde o primeiro ponto passa por continuar vivinho da Silva. Pronto, vamos a isso, e como é, afinal?”
– “Hmmm…Argentina ou Brasil?”
– “Brasil, e isso pergunta-se? Agora despachem-se senão daqui a pouco nada se resolve sem que antes se façam plenários e votações e não sei que mais, e sinceramente não me apetece nada ter que aturar…ugh…’opiniões divergentes’”.
E assim foi, só que em vez de viverem todos felizes “para sempre”, este período de tempo que costuma ser bem mais demorado, esgotou-se ao fim de alguns anos, e agora que estamos prestes a chegar aos 42 anos de núpcias com a democracia, esta está cada vez pior, a fazer lembrar a mãezinha dela, essa velhaca. Pode-se dizer que os Portugueses se estão a divorciar da democracia, por assim dizer, ou que esta “perdeu o gás”, ou “passou do prazo”, e seja qual for a analogia que se quiser usar, as coisas chegaram a tal ponto que há quem defenda que “antes era melhor” Antes, recordam-se? Quando se demorava um dia inteiro para chegar de Lisboa ao Porto e se morria de coisas tão corriqueiras como sarampo, ou de uma simples interrupção voluntária da gravidez? Claro que não, ora essa – a malta que diz que no tempo do tio Salazar “é que era” está só armada em esquisita. Querem chamar a atenção, com o a tipa que está no baile da paróquia a dançar com um tipo qualquer que conheceu dez minutos antes e passa em frente do marido umas dez vezes só porque ele está a conversar com outra.
O diagnóstico não é tão complicado de se fazer, e não sendo eu propriamente uma autoridade na matéria, tenho uma teoria: os políticos passaram das marcas. Isso mesmo, e não é por acaso que deparamos com acontecimentos bizarros, como um “impeachment” da “presidenta” do Brasil, ou a divulgação dos tais “papéis do Panamá” – mal por mal, aqui em Macau o pior que aconteceu foi aparecerem uns relatórios médicos supostamente confidenciais espalhados por toda a Avenida Rodrigo Rodrigues.
Falando sinceramente, o pessoal entende perfeitamente que isto da política é uma chatice, e que nem a brincar alguém vai nessa conversa de que os tipos estão ali no espírito do servidor dos interesses da nação, blá blá blá e mais não digo para não passar por pateta, mas epá, vamos lá a ver uma coisa, vejam lá se disfarçam, e fazem qualquer coisinha pelo povão. Saquem, pilhem, inscrevam-se já no próximo campeonato das evasões fiscais, comparem os sacos azuis para ver qual é o maior, tudo isso, mas façam qualquer coisinha pela malta primeiro. E depois a gente desculpa-vos, que é como quem diz, ofende a vossa cidadania mais a das vossas progenitoras – coisa que alivia, e se recomenda, até – e no fim vai votar outra vez em vocês, ou no vosso lado B, o instrumental. E não é assim que funciona a tal democracia? Feliz 25 de Abril a todos! Atenção: feliz, fe-liz. Vamos lá fazer uma carinha mais simpática para honrar os capitães, e que tal?

21 Abr 2016

Viver que nem um Pachá?

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uns bons anos atrás alguém, de quem não me lembro o nome mas que seria um dos braços direitos de Lawrence Ho, dizia-me que “daqui a uns anos o entretenimento vai ser o grande negócio”. O City of Dreams ainda não estava construído mas já naquela altura, por via dos estudos que tinham feito em Las Vegas, percebiam que, mais tarde ou mais cedo, o entretenimento iria ser fundamental na equação dos complexos casineiros.
Nestes quase 15 anos que levo de Macau, pertenço ao grupo daqueles que mais tem lamentado a falta de uma vida nocturna em condições, urbana, moderna, com opções variadas e música decente. Quando cheguei ainda existia o saudoso Signal, obra do incontornável Suki Lor, responsável pelo lançamento de vários Disc Jockeys locais e por aquele espaço fora de série. Mas a debandada lusa pós 99 acabou com os clientes nocturnos e o Signal estiou. Depois disso, tem sido o deserto, excepção feita às festas mais ou menos privadas que iam acontecendo aqui ou ali. Lembro-me quando apareceram os bares do Lago Nam Van, também. Ia ser a “Lan Kwai Fong de Macau”, garantiam os promotores na altura. Viu-se. Agora ainda não se percebeu muito bem o que será, com a epidemia de “criatividade comportada” que assolou a cidade, não colocaria as minhas fichas todas no assunto. Mais tarde ainda apareceu o Sky 21, um local com todas as condições para ser um dos bares mais destacados na Ásia, mas que depois de um início extremamente prometedor acabaria por se transformar na actual “Taberna da Bela Vista”, onde jogos de futebol durante os grandes campeonatos internacionais e música de péssimo gosto em regime constante fazem parte da oferta. Os tempos foram andando e até o próprio grupo de Lawrence Ho começou por prometer (em vão) com o lançamento do Bar do Altira para depois nos trazer uma coisa chamada Cubic que, bem… enfim…
Mas lá está, são hotéis, têm hóspedes e mercados, fazem o que precisam para eles. Mas uma cidade internacional, como tantas vezes Macau diz pretender ser na voz dos seus principais líderes, não pode ficar refém de hotéis e precisa de uma vida nocturna animada, evoluída e diversificada onde a regra não sejam selecções musicais de terceira categoria ou bandas de que ninguém se lembra o nome e que normalmente animam muito mais quando poisam os instrumentos e desligam os microfones. “Ah mas isso são tiques de estrangeiro”, dirá alguém. Quando alguém diz isso proponho-lhe que visite Pequim, Xangai, até Zhuhai ou Shenzhen e evito, propositadamente, referir Hong Kong.
Com a pressão do quotidiano em alta na cidade que um dia foi “laid back”, cada vez mais as pessoas precisam de desopilar sem ter necessariamente de acabar em locais de mau álcool e mau gosto ou a pagar preços árabes por um copo de qualquer coisa.
Além disso, quando se pretende desenvolver as indústrias criativas tem de se entender que uma cidade com criativos precisa de zonas de lazer públicas com opções a preços normais. Grande parte da criatividade surge na interacção, na discussão, nos copos, à noite.
Recentemente, grupo de Lawrence Ho também nos trouxe o Pachá que, quer se queira quer não, é um clube de primeira e finalmente alguma coisa mudou. É claro que o prestígio depois nota-se nas bebidas (pela hora da morte e não particularmente bem servidas) mas finalmente temos um clube de nível mundial em Macau. O problema é sair caro pois os residentes não estão aqui de férias, a menos que comecem a dar-nos desconto, tipo jet foil. Não era má ideia, hein pessoal do Pachá?…
Por lá, nestas últimas semanas, tivemos de uma assentada Paul Oakenfold e Afro Jack, entre outros que por ali passaram antes, mas também devo realçar o apoio que o Pachá tem dado aos DJs locais com presenças assíduas “à mesa”, essencial para manter viva a chama da terra.
Fui ver os dois. Oakenfold foi uma sombra de si próprio. Começou bem mas depois levou-nos para aqueles corredores estreitos e tortuosos da EDM (Electronic Dance Music, uma designação para mim abusiva pois, para os menos avisados, pode parecer que se refere a toda a música de dança electrónica, mas não é, acreditem, é apenas um subgénero de má catadura) e acabou com meia dúzia de festeiros na pista, mas foi importante perceber que o cota está vendido e acabado nestas lides e mais vale dedicar-se à produção que tão bem fez ao longo dos anos para ver se deixa de precisar da EDM para pagar a renda.
Afro Jack foi outra coisa completamente diferente. Com uma actuação muito bem produzida a tirar máximo proveito das características da sala, leia-se ecrã da cabine e o fabuloso sopro de ar fresco que jorrava inclemente sobe a pista acompanhado de fumo inodoro (excelente) sempre que a música chegava a um clímax. Sala cheia, jardim cheio, energia no máximo.
Já estivemos mais longe de ombrear com outras cidades de relevo mas ainda não chega. É sempre bom ter-se uns Rolls Royce à disposição como o Pachá, mas a massa crítica não será criada se não existir uma zona de entretenimento, pública, gerida por pessoas com vistas largas, urbanas e não por tasqueiros de bairro sem a mínima sensibilidade. Porque o que está a faltar nesta equação é a cidade. Não nos podemos reduzir ao que os hotéis fazem ou deixam de fazer. A cidade tem de estar presente com as suas próprias opções de entretenimento popular. Provavelmente já não será a zona do Lago Nam Van, talvez nem as Casas da Taipa porque quando os governos se imiscuem demasiado nestes processos dá invariavelmente barraca ou saem locais inócuos que funcionam apenas para a fotografia e aparatos oficiais. No entanto, para já mantenho-me positivo e expectante. Todavia, se os meus piores temores se confirmarem, é preciso pensar onde vamos ter a nossa zona de bares, música e esplanadas, pois a vida criativa e salutar não é possível sem uma vida nocturna diversificada e de qualidade. Um lugar de referência, livre de espartilhos, que atraia os locais e os de fora, que junte comunidades e nos permita refrescar não só as goelas mas principalmente as ideias.

Música da Semana

“Modern Love” David Bowie (1984)

“(…) I know when to go out
And when to stay in
Get things done [spoken]

I catch a paperboy
But things don’t really change
I’m standing in the wind
But I never wave bye-bye

But I try
I try

There’s no sign of life
It’s just the power to charm
I’m lying in the rain
But I never wave bye-bye

But I try
I try (…)”


20 Abr 2016

Go China!

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]em dúvida que esta foi uma semana especialmente e homossexualmente animada na China. Casos judiciais, hashtags no Weibo, e muitas vozes expressando-se pelo direito à igualdade foram proclamados pela comunidade LGBT chinesa, e não só.
No Verão passado, Sun Wenlin e o seu companheiro Hu Mingliang, fizeram um ano de namoro e decidiram casar-se. A homossexualidade não é criminalizada na China desde 1997, nem é oficialmente considerada uma doença desde 2001. Se o preconceito ainda existe, e se ainda existem psiquiatras a administrar terapias de choque a homossexuais – porque pensam conseguir “curá-los” – garante-se que sim, é uma tendência opinativa que, infelizmente, ainda anda por aí. Este casal, contudo, fez história ao tentar oficializar a sua união: a proposta de matrimónio foi recusada e ainda foram bombardeados com sugestões tradicionalistas de que uma família pressupõe um homem, uma mulher e a possibilidade de ter filhos. Eles não fizeram mais nada e levaram o caso a tribunal, alegando que a legislação chinesa não proíbe o casamento homossexual nem explicitamente sugere que o casamento só pode acontecer entre um homem e uma mulher.
A audiência aconteceu na cidade de Changsha, onde muitos membros da comunidade LGBT chinesa viajaram para apoiar a causa. Trezentas pessoas rodearam o tribunal e outras cem estiveram na assistência. Sem grandes surpresas, ao fim de poucas horas de audiência, o pedido de matrimónio foi recusado ao casal. Mas, Sun Wenli garante que vai recorrer as vezes que forem necessárias, porque, casar-se com a pessoa de quem gosta, é o que ele quer. É o que todos queremos. Todos reconhecem que isto de derrota teve muito pouco porque deu azo a um mediatismo e a uma mobilização estupenda, o que possibilitou a discussão entre todos. Foi o primeiro caso de tentativa de casamento homossexual na China, e, certamente, não será o último. O facto de ter sido discutido em contexto judicial, já é razão para alguma esperança. Afinal, foi com alguma surpresa que o casal e o advogado receberam a notícia que o estado de Hunan estava disposto a ouvi-los e aos argumentos a favor da sua união.
A partir daqui as vozes multiplicaram-se pelas redes sociais e nasceu um hashtag que apela ao fim dos casamentos de fachada. Neste momento, imensas pessoas estão a dar a cara a esta trend e garantem que não irão cair em pressões societais ditas ‘normativas’. São homossexuais que não irão casar-se com heterossexuais para manter as expectativas familiares porque, afinal de contas, ninguém na parelha vai ficar muito feliz. Até os pais de filhos homossexuais têm deixado mensagens no Weibo a garantir que incentivarão os seus filhos a casarem com quem eles quiserem.
Também muito recentemente, um trabalhador transgénero processou a companhia onde trabalhava por despedimento sem justa causa, ao revelar a sua preferência sexual e de género. O trabalhador em questão nasceu mulher, mas sente-se homem. Por isso, assim que começou a mostrar a sua verdadeira identidade masculina, foi acusado de não respeitar as regras do empregador. Foi despedido e agora espera um veredicto do processo em 45 dias, com a esperança de que o caso possa de alguma forma contribuir para o fim da discriminação dos transgénero no contexto laboral.
Não podia estar mais orgulhosa, a China fez-me muito feliz esta semana. Se no ano passado a opinião geral era que só daqui a 20 anos poderia ver-se o reconhecimento dos direitos da comunidade LGBT na China, à luz destes micro-passos, parece que já não é uma realidade assim tão longínqua. Pode estar mesmo ao virar da esquina! Apesar de tudo, o sistema não está a desmotivá-los. Há legitimidade na luta que ainda mal começou. Desenganem-se se acham que as opiniões e acções discriminatórias são subtis. Têm havido outros casos de queixas relativas ao constante estigma, até em manuais escolares, ou censura, na televisão e na internet, que façam referência à homossexualidade. Ao que parece há 16 milhões de mulheres na China casadas com homens homossexuais. Não será altura de permitir a liberdade, e a felicidade, para quem a quiser aceitar?

19 Abr 2016

Rua de Macau II

[dropcap style=’circle’]”R[/dropcap]Rua de Macau” é um filme da autoria do nosso cineasta Sérgio Perez. Lançado em 2008, conta a história de Miri, uma chinesa de Macau sofisticada, recém-regressada do estrangeiro onde concluiu os seus estudos. (*)

Miri deixa-se deslumbrar pela nova indústria do jogo. Sente-se atraída pela escala, opulência e requinte das novas propriedades acabadas de inaugurar. Por outro lado, entusiasma-se também com a nova comunidade de expatriados anglofónicos que vai populando Macau e com a qual se identifica.

A pequena cidade adormecida onde Miri cresceu, transformou-se e deixou de ser o backwater onde nada se passava. Agora sim, é uma cidade. E internacional.

Por mero acaso – e depois de ter rejeitado um expatriado à porta de um bar – Miri decide dar uma volta a pé por Macau. É assim que descobre um pequeno e humilde restaurante português nas vísceras da malha antiga da cidade.

Interessa-se pelo estabelecimento onde fotografias antigas de Macau com jogadores de hóquei em campo na Caixa Escolar enfeitam as paredes e onde se come minchi ao som de música em patuá. Mas, sobretudo, interessa-se por Miguel, um rapaz Macaense simples, interessante e bem-parecido, filho do dono desse pitoresco estabelecimento.

Apaixonando-se por Miguel, Miri acaba também por se apaixonar pelo charme do seu antigo Macau.

Mas um dia cai em si e decide que não é nada daquilo que quer – e regressa ao seu Macau do bling-bling.

* * *

“Rua de Macau” foi rodado numa época em que a cidade se transformou num grande estaleiro, palco da primeira onda de construção dos novos empreendimentos da indústria do jogo, bem como de outras tantas infra-estruturas materializadas pelo governo visando preparar Macau para a metamorfose que advinha.

O tempo passa num instante e o filme – que contou com a colaboração do autor desta coluna – está perto de fazer 10 anos. Pelo que ora se decidiu desenvolver aqui uma sequela, uma actualização e contextualização com a nova realidade – de uma forma muito pessoal e peculiar.

* * *

Rua de Macau II

No dia seguinte Miri, confusa e sozinha em casa, contempla a ideia de ir ter com Miguel para lhe explicar a razão da reacção brusca e agressiva da noite anterior. Na verdade, tratou-se tudo de um equívoco.

Miri sabe que deixou Miguel magoado e, por isso, sente-se mal. Tem a consciência pesada e quer ir ter com ele para que possam pelo menos manter uma relação como amigos.

No entanto, hesita.

Não por medo ou por pensar que, regressando ao restaurante onde Miguel trabalha, irá emocionar-se novamente com aquele ambiente de fotografias antigas, comida portuguesa e músicas em patuá.

Tem também a certeza que nem o olhar charmoso de Miguel a fará vacilar.

O problema não está aí.

Miri hesita porque o restaurante fica numa zona altamente inacessível da cidade. É que Miri é sofisticada, mas mora nos blocos de habitação social de Seac Pai Van.

Não conduz porque a carta de condução que tirou no estrangeiro ainda não foi aceite em Macau – a última explicação que lhe deram foi que no país onde tirou a carta conduz-se do lado contrário, pelo que o processo demora um pouco mais.

Vai ter de ir de autocarro. É uma viagem longa – está habituada a comutar diariamente apenas entre Seac Pai Van e Cotai, onde trabalha – e não lhe agrada a ideia de ter de atravessar a cidade toda num autocarro que, quase sempre, está cheio de operários das obras que circulam em grupo porque vivem todos juntos em apartamentos transformados em dormitórios.

Ainda assim, persistente, vai ao seu iMac e faz uma pesquisa para saber qual o autocarro que deve apanhar para se chegar àquele fim-do-mundo. Enerva-se porque não consegue encontrar, de uma forma intuitiva, a informação que procura. E recorda-se que o website da Reolian era, nesse aspecto, o melhor de todos pois permitia visualizar todas as linhas de autocarro em interacção com imagens de satélite do Google Maps.

Agora, encontra apenas tabelas e mais tabelas com números dos autocarros e respectivas paragens identificadas ou pelo nome da rua ou, pior, pelo nome do prédio adjacente – e mais nada.

“Like, I’m supposed to know all the names of the streets or the names of the buildings? WTF?”.

Frustrada e irritada, Miri dá um muro na parede. Por sorte, esta manteve-se intacta – podia ter sido pior.

É no meio disto tudo que Miri recebe uma notificação no seu iPhone 6. Trata-se de um aviso de chuvas intensas. Por essa razão, as escolas vão-se manter fechadas. “Good”, pensa Miri. Finalmente algo positivo, pois não havendo escola haverá menos tráfego – a eventual viagem até ao restaurante será menos morosa.

No entanto, à cautela, decide ficar em casa e não arriscar pois desconfia que a notificação de chuvas intensas se trate apenas de um simulacro. Nunca se sabe e não vale a pena verificar pela televisão pois também eles participam nos simulacros.

* * *

Miguel está sentado sozinho numa mesa do restaurante onde trabalha.

É-lhe servido pelo pai um minchi com arroz branco, mas sem ovo estrelado – Miguel ficou traumatizado com o episódio dos ovos falsos vindos da China e, desde então, deixou de comer ovo.

Nem a criação do Centro de Segurança Alimentar o curou desse trauma. A imagem que viu no noticiário de uma falsa gema de ovo cozida com textura a borracha a saltitar como uma bola de pelota basca ficou-lhe gravada na memória para sempre.

Com ovo ou sem ovo, Miguel decide ir ter com Miri. Sabe que ela mora no Seac Pai Van, que isso fica no fim-do-mundo, mas está decidido a embarcar numa viagem que, com azar, poderá até vir a ser mais longa do que uma ida a Hong Kong.

Miguel tem uma mota, mas prefere ir de autocarro. É que, mesmo com a faixa reservada para motociclos da Ponte de Sai Van, tem consciência do perigo que é atravessar a ponte de mota.

Amor é também determinação e coragem, está certo. Mas Miguel perdeu recentemente um amigo, vítima de um acidente, e não quer arriscar.

O que Miguel não sabe é que está para vir uma grande tempestade de chuvas intensas. Miguel, sendo Maquista, tem por teimosia instalado no seu telemóvel a versão em língua portuguesa da aplicação que faz essas notificações – mesmo sabendo que, por esse motivo, essas tardam a chegar porque precisam de ser traduzidas; ou por vezes não chegam sequer a ser enviadas.

No caso em concreto, fica-se sem perceber bem o que aconteceu – o filme não revela esse pormenor desnecessário.

Por outro lado, o seu pai irritou-se com todo o episódio dos anteneiros e a partir daí deixou-se de ver televisão no restaurante. É que o homem, sendo um antigo de Macau, apreciava a clandestinidade do sistema montado pelos anteneiros e das 90 patacas que pagava por mês que lhe dava acesso a todos os canais, incluindo o tal de desporto tailandês onde via o seu futebol.

Assim, quando se deu cabo do esquema e se criou a Canais de Televisão Básicos de Macau, S.A., por solidariedade com os anteneiros o velho botou prontamente a televisão no lixo.

Desconectado e sem informação actualizada, Miguel está à espera do autocarro numa paragem provisória sem cobertura – porque a rua está em obras para a instalação de cabos da MTEL – quando cai uma chuvada que o deixa molhado até à cueca. Frustrado, regressa ao restaurante.

* * *

Passado uns tempos, quis o destino que Miri ganhasse uma oportunidade para finalmente ir ter com Miguel ao restaurante: foi notificada pelo Centro de Saúde da Areia Preta para ir a uma consulta marcada uns anos atrás.

É que, tal como muitos que não têm casa própria, Miri mudou de casa umas 20 vezes antes de se fixar em Seac Pai Van. E, pelo percurso, chegou a morar na Areia Preta.

Deslocou-se a essa zona da cidade através da Uber. Por azar, o carro que a transportou foi parado pela polícia. Miri é persuadida pelos agentes da autoridade a confessar que estava a utilizar um transporte ilegal. Ao condutor foi aplicada uma multa pesada.

Atrasada, Miri acaba por faltar à consulta. Decide então caminhar em direcção ao restaurante. Para a sua enorme surpresa, o estabelecimento já lá não estava. No seu lugar encontra uma loja que vende não se sabe bem ao certo o quê. Perdida, Miri pergunta ao homem da loja – um sujeito com ar de artista – pelo restaurante.

“Não sabes?”, respondeu o artista. “Não aguentou a renda e fechou as portas!”.

Surpreendida e insatisfeita, Miri responde: “E tu? Como aguentas tu a renda?”

“Tenho um subsídio do Fundo das Indústrias Criativas.”

Miri encolhe os ombros e desiste. Afasta-se de tudo e todos, sorrindo sempre.


(*) “Rua de Macau” tem a duração de 45 minutos e está disponível no YouTube, podendo ser visto no topo deste artigo.

15 Abr 2016

Virgens britânicas, ilhas

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“caso” dos papéis do Panamá – chamá-lo de “escândalo” seria demasiado presunçoso – está para lavar e durar. Eis a novela da vida real por excelência, a confirmação em papel timbrado de tudo o que a vizinha cusca do andar vinha andando a dizer todo este tempo, em suma, “ainda bem que não é comigo…mas antes fosse…”, suspira o Zé pagante. Da “vox populi” tenho ouvido coisas como “quer dizer, a gente fazia uma ideia, mas não assim tanto…”. Tanto? Onze milhõezinhos de páginas? O que é isso, quando há processos judiciais que se arrastam durante anos a fio que chegam a produzir literatura quase tão extensiva quanto isso? Isto é malta que gosta de por o preto no branco, deixar tudo por escrito, não vá o Diabo tecê-las. Afinal com o dinheiro não se brinca: compra-se antes a brincadeira.
Mas deixemo-nos de conversa fiada, e vamos ao tema que prometi na semana passada que iria hoje abordar: as Ilhas Virgens Britânicas, o último grito em paraísos fiscais, sucedendo assim às Ilhas Caimão, muito na berra durante os anos 80 e 90 do findo século XX. E o que têm estas ilhas em comum, além da insularidade e do facto de ambas ficarem localizadas no Mar das Caraíbas? Bem, assim de repente só me consigo lembrar de uma coisa: nada sabemos de nenhuma delas, nem de empresas “offshores”, e no fim ficamos meio abananados, pensando que se calhar seria melhor se soubéssemos, indiferentes ao que dissesse o raio da velha, a tal vizinha de cima.
Por incrível que pareça, há um compatriota nosso bem conhecido que deve saber imenso sobre as Ilhas Virgens Britânicas, e alguém insuspeito também: André Vilas-Boas. Esse mesmo, o treinador de futebol actualmente ao serviço dos russos do Zenit foi em tempos seleccionador das Ilhas Virgens Britânicas, quando ainda se sabia menos das mesmas. Desconheço se foi mesmo treinador da selecção desse micro-estado da América Central, mas não tenho razões para duvidar disso – quem ia querer incluir uma banalidade dessas no seu currículo? O caso mudava de figura se o técnico por quem os adeptos portistas devem estar a esta hora a suspirar afirmasse que tem uma empresa “de facto” naquele país. Com uma população de 30 mil habitantes (menos que a Rinchoa) não deve ser difícil escolher o onze para alinhar pela selecção. Difícil sim deve ser arranjar tempo, uma vez que existindo mais empresas com capitais anónimos do que pessoas, os “virgenenses britânicos” devem estar TODOS empregados em mais que uma delas, e mal lhes sobra tempo para dançar o limbo. Ou será mesmo assim?
A capital deste “paraíso fiscal”, que é para onde o Tio Patinhas vai quando morrer, é uma cidade que dá pelo nome de Road Town, que fica localizada em Tortola, a maior ilha do Pequeno Arquipélago. A segunda maior ilha chama-se “Virgem Gorda”, e agora já sei o que estão a pensar: “é por isso que ainda é virgem”. Ai ai, seus marotos. Adiante. Em Road Town existe um tal “Offshore Incorporations Centre”, que é onde estão sediadas as tais empresas que são agora notícia. Ena, aquilo é que deve ser um alvoroço por ali, com todas aquelas empresas, e tal. Deve ser coisa para fazer Wall Street corar de inveja, certo? Nada disso; se atentarem ao endereço da sedes destas empresas, vão ver que começam com “P.O. Box”, seguida de um número, ou seja, uma mera caixa postal. Sou até capaz de “apostal” (eh, eh) que nem isso lá têm, e no limite há uma barraca qualquer com um infeliz sentado ao lado de um telefone, e cuja única função é atender e confirmar que “sim senhor, ali é a empresa tal do senhor tal, e ele agora não pode atender porque está numa reunião”.
Mas atenção, porque isto “tem uma razão de ser”, como escutei um senhor falar na televisão no outro dia, e as “offshores” “têm uma razão de ser”. Não duvido, mas não me parece que montar empresas fictícias em locais que ninguém sabe onde ficam e cuja mera menção do nome nos fazem lembrar “raggae” ou calipso com a finalidade de fugir ao fisco sejam uma “razão de ser” válida. Pelo menos para mim. Ah, e a propósito, já viram a quantidade de homenzinhos microscópicos oriundos das Ilhas Virgens Britânicas, os tais que trabalham dentro de caixas postais, que investiram em Macau? Imaginem que a área comercial quase toda da cidade, do Largo do Senado até ao património histórico foi açambarcada por “virgens britânicos”, e isto debaixo dos narizes dos nossos “tai lous”! Isso mesmo, pessoal: lá virgens podem ser eles, mas parvos é que não são mesmo nada.

14 Abr 2016