A cura dos espinafres

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]alhou esta semana falar com diversas pessoas, de diversas origens, que já tinham estado em Macau anos atrás, recentemente regressados. Uns viventes, outros passantes. A tónica da conversa foi sempre a mesma: “isto já não é o que era”, diziam, no sentido que a velha cidade mediterrânica está a perder-se e com ela, os prazeres do desfrute simples que ela oferecia. Consequentemente, vêem Macau tornar-se num local menos aprazível para se viver, estar, ou visitar.
Por mais campanhas turísticas com filmes faiscantes, por mais eventos no calendário, por mais que se atirem para a lida os chavões “da cultura este-oeste” do “património mundial” e todos os outros, mais ou menos vazios a que já nos habituámos, nada substitui o boca-a-boca, as sensações que daqui se levam para casa e para os blogues. Naturalmente, não estou a presumir ter feito um qualquer estudo de opinião mas, como todos sabemos, esta sensação de ver uma cidade engolida por automóveis, construções de categoria duvidosa e luminárias não é apenas privilégio de alguns nem sequer um segredo, ou uma afirmação passível de ser contrariada.
Mas chega de bater no cego, pois o que vale a pena é reflectir se ainda haverá forma de atalhar caminho.
Tendo em conta que o turismo, pese embora as quebras do jogo e as tentativas de diversificação da economia, continuará a assumir a parte de leão do PIB, considerando a tentativa de diversificação dos mercados emissores em curso, e até o discurso do património e da cultura, parece-me crucial uma meditação profunda sobre as formas de “salvar” a cidade da descaracterização em curso que ameaçam torná-la num lugar vulgar, desagradável, no parente pobre da região pois, para além dos hotéis recheados de entretenimento e dos eventos mais ou menos populares, pouco mais tem para oferecer a quem pretenda uma experiência diferente, o usufruto simples de uma vista, de uma conversa com amigos numa esplanada, de um passeio a pé ou de bicicleta, de algo que lhe permita desligar do local de onde veio e, quiçá, relaxar. Macau antes tinha tudo isso mas agora não. Pode voltar a ter? Talvez, mas precisa-se de visão e coragem política. Existe? Não sei, mas espero que sim.
Há dias neste jornal, a Directora dos Serviços de Turismo, Helena de Senna Fernandes, confessava “dar-lhe jeito” para o seu puzzle de mercado o fecho de ruas e até o ressurgimento de esplanadas que chamava, curiosamente, de “produto”, o que me deixa um pouco inquieto por denotar uma visão demasiado mercantilista da coisa, apesar de saber muito bem que a sua função é vender Macau. Passando por cima disso, interessa é perceber que a dita responsável foi logo avisando para as dificuldades que esses processos podem encerrar percebendo-se claramente que a potencial reacção negativa da população (ou de parte dela) a mudanças radicais pode entravar qualquer tentativa mais ambiciosa.
Todavia, convém não esquecer que uma das principais funções de qualquer Governo é precisamente a capacidade de imaginar, de propor e, acima de tudo, de fazer o que é melhor para os seus governados independentemente destes terem, ou não, a visão de longo prazo do que é melhor para eles. Independentemente de poderes mais ou menos ocultos e retrógrados.
Dando de barato que neste macaíno caso, o problema é mesmo a população em geral, talvez até possamos comparar o que é necessário fazer à postura “come os vegetais porque faz-te bem” que um pai avisado terá obrigatoriamente de assumir berre a criança o que berrar à vista de um espinafre. Mesmo os poderosos imobilistas, se lhes for explicado que mudar também será bom para eles no longo prazo, talvez engulam os espinafres.
Neste caso, o resultado da dieta é melhor ar, mais espaço para as pessoas, a criação de uma oferta turística de facto de excelência, o aumento dos espaços de lazer e, no limite, a promoção da saúde pública (física e mental) que advirá de tudo isso, seguramente muito mais marcante do que qualquer proibição tabagista.
Naturalmente, a Taipa não conta nesta equação, ou pouco, se incluirmos a vila. O foco tem de ser a península de Macau que precisa de se transfigurar e, naturalmente, Coloane que precisa de não se transfigurar mais.
Os espinafres são ruas fechadas ao trânsito, o aumento dos espaços pedonais, a criação de ciclovias e o corte drástico nos espaços de estacionamento. Os transportes públicos têm de mudar, substituídos por opções eléctricas sem emissões e sem ruído, as pessoas têm de ser motivadas para andar a pé, ruas têm de ser fechadas. Não apenas São Lázaro, como Helena de Senna Fernandes revelou existirem planos para, mas também a Almeida Ribeiro e toda a zona envolvente da Rua da Felicidade e Av. 5 de Outubro, a Rua do Campo, o parque de estacionamento junto ao Clube Militar deve devolver ao Jardim de São Francisco o espaço que lhe roubou, até a Avenida da República precisa de ver o espaço pedonal radicalmente aumentado, cortando estacionamento e fechando uma das vias de trânsito, até ambas, e colocar, imagine-se, uma linha de eléctrico ao seu correr como acontece, por exemplo, no Porto, da Ribeira à Foz.
Macau ainda pode mudar. Se temos conseguido aguentar barulhos, mudanças radicais de estilo de vida, inflação, poluição, porque não conseguiremos aguentar andar mais a pé, ou de bicicleta, se soubermos que estamos a transformar Macau numa cidade única e realmente atraente, aproveitando o “Mediterrâneo” que ainda lhe resta? Aquilo que de facto a distingue de tudo o que existe à volta.
Evidentemente, este texto é apenas um enunciado de um leigo, mas não deixa de ser uma provocação para um debate que urge acontecer, um repto para os nossos governantes. Tragam especialistas do mundo fora, de paisagistas a arquitectos, de sociólogos a engenheiros. Criem um grupo diversificado e multidisciplinar para pensar a Macau do séc. XX. Só isso, já seria um acontecimento. Colocar Macau no mapa também passa por arrojar polindo-lhe o brilho dos cobres que lhe restam antes que seja tarde demais.

Destaque
“Os espinafres são ruas fechadas ao trânsito, o aumento dos espaços pedonais, a criação de ciclovias e o corte drástico nos espaços de estacionamento”

Música da Semana

“Don’t Let Me Down & Down” – David Bowie (1993)

“I know there’s something in the wind
That crazy balance of my mind
What kind of fool are you and I?
Scared to death and tell me why
I’m sick and tired of telling you
Don’t let me down and down and down
Don’t let me down and down and down”

13 Abr 2016

Embaraço

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s conversas de café podem ter níveis de profundidade diversos. Há conversas mais metafísicas, mais banais ou aborrecidas. Há conversas sobre o tempo e, dependendo do grupo de amigos que se decidiu encontrar numa esplanada, poderá haver uma ou outra conversa sobre sexo.
O que se passou a seguir poderia fazer parte de um episódio de uma qualquer série de romance e/ou comédia. Falava-se sobre sexo descontraidamente e desprendidamente. Falava-se de imagem corporal e possíveis encontros amorosos. Caiu-se no cliché de até ter uma troca de dicas de maquilhagem e de revelar preocupações maioritariamente femininas.
Uma delas sentiu-se na necessidade de partilhar um momento de embaraço que lhe tinha acontecido recentemente. Um visitante masculino faz-lhe uma visita surpresa no seu domicílio. Alguns entenderão que é chato ter uma visita relâmpago quando uma pessoa não tem tempo de se preparar para a chegada de outrém. O erro cometido, neste caso, foi o de deixar o estendal cheio de roupa interior a secar. Há olhares e constrangimento, pelo menos de uma das partes. O visitante semi-indesejado está à vontade de, contudo, fazer comentários. Aquilo que eram cuecas de conforto e dia-a-dia da nossa protagonista, são erradamente interpretadas como ‘os boxers do amante sortudo’. Não há sortudos, muito menos amantes, são as cuecas feias, grandes e de algodão que todas nós temos nas gavetas. Resultado: embaraço. Embaraço somente para ela, porque ela não foi capaz de lhe retribuir o desconforto ao confessar de quem eram as cuecas na realidade.
Depois de uma confissão embaraçosa, outras deveriam vir atrás. Possuir este tipo de informação sobre alguém, momentos de concentração sanguínea nas bochechas, momentos de claro desconforto e reforço da fragilidade, é muitas vezes percebida como uma vantagem sobre os outros. A norma era agora que todos partilhassem momentos de embaraço e, surpreendentemente ou não, ao rodar a mesa de esplanada, tinham que ver com relações, paixões ou sexo.
Divagações sobre o embaraço não serão especialmente desenvolvidas aqui, mas se não há uma psicologia do corar muito bem estabelecida, é porque é um tópico que dá pano para mangas. Das teorias psicanalíticas clássicas sobre o tema (cerca anos 30), temos a habitual (e estranha) explicação que o corar vem em reposta do medo e vergonha de castração nos homens, e a ausência de pénis nas mulheres: potencialmente legítimo. Da evolução temos mecanismos de comunicação não-verbal onde se mostra desconforto e a confirmação que muito provavelmente se fez porcaria: mais interessante. Os objectos, tópicos ou situações que nos fazem corar, esses é que são construções individuais daquilo que achamos ser certo e errado, em relação às expectativas da população em geral. Tópicos favoritos de embaraço em meios ditos ocidentais são sexo, movimentos intestinais e/ou menstruação. Das mulheres sei ainda que há embaraço quando não atingimos os padrões de estética exigidos. Os exemplos incluem pêlos indesejáveis, maquilhagem inexistente ou borratada até mulheres com o mesmo vestido numa gala (!!!).
A lista é interminável.
Facto: As mulheres têm um sofisticado mecanismo de limpeza e lubrificação vaginal. Facto: A vagina segrega o que tem que segregar. Facto: As mulheres andam com as cuecas sujas de corrimento. E há alguém que saiba de tudo isto? Embaraço. Vergonha. Esconde-se de tudo e de todos. Escondem-se as cuecas depois de despi-las.
Num mundo ideal todas as histórias de embaraço fariam parte de um repertório de comédia, mas, às vezes, constituem um dramatismo tal que poderiam complementar enredos de filmes de terror. Talvez se não houvesse tanto embaraço, tivéssemos menos tanto tabu. E, se houver menos tabu haverá menos embaraço! Coisa curiosa, a condição humana, que de tanta consciencialização se inibe de expressão.

12 Abr 2016

Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stive fora de Macau a maior parte deste Inverno. Depois voltei para uma terra onde o ex-Procurador fora preso, surgira o projecto de um arranha-céus no pulmão da cidade e os taxistas continuam a impor a sua lei no espaço público. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Lá fora, na distante e fria Europa, sofrem-se atentados terroristas; nos fanáticos Estados Unidos debate-se a possibilidade de um homem estranho ser presidente; na aldeia global, emergem os Panama Papers: o capitalismo mostra a sua garra. O mundo discute o racismo, o islamismo, o terrorismo, as fugas de capitais, guerra, refugiados, a poluição. Aqui o homem que nos protegia dos bandidos vai dentro e o Governo hesita em pôr na ordem os carroceiros porque “eles têm um lóbi antigo, do tempo da Revolução Cultural, com ligações ao Governo Central” (???!!!), porque tudo está bem enquanto se puder construir em toda e qualquer parte. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.
A desadequação desta cidade à realidade chega a dar ternura. “Só em Macau”, expressão incensada, está a ganhar dimensões novas, feéricas, audazes. Infelizmente, que nem sempre por bons motivos. Mas, suspendamos os julgamentos e apreciemos o grau de Espanto a que continuamente somos sujeitos.

Como muito bem definiu Descartes e outros sábios, o Espanto provém de um aparecimento súbito de algo inesperado. Na verdade, para o filósofo francês, o Espanto é filho da Admiração: ficar espantado também é admirar se lhe acrescentar o seu carácter de inesperado. Só que, dependendo da causa do Espanto assim ele se pode transformar em outras e diversas emoções. Pode, eventualmente, despertar o riso ou uma contemplação estética. No piores casos, quando a causa do Espanto é algo de ameaçador, pode transformar-se em Medo.

Cada um de nós lidará à sua maneira com os factos espantosos que Macau em catadupa nos proporciona. Tal depende do grau de consciência cívica, do sentido de humor, da paciência e de muitos outros factores que seria fastidioso enumerar. Basta termos esta certeza: será muito difícil encontrar outro abençoado lugar onde tantas vezes nos sintamos assaltados pelo espanto. Cuidei ser a Índia, talvez, e para lá viajei; mas depois de duas semanas nada por ali se comparava com a capacidade feérica de Macau que há 26 anos me espanta. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Não percebemos bem de que se queixam os residentes. Esta cidade está cheia de surpresas, de milagres de unicórnios. Poste-se o cidadão numa paragem de autocarro e constatará que existem três (!) companhias de transportes públicos para servir 35 km2. Contudo, o mais sofisticado neste serviço é o facto dos autocarros com o mesmo número ou que fazem a mesma linha teimarem em andar sempre juntos, uns atrás dos outros, como os elefantes da cauda da mãe. Não gostam de andar sozinhos, é o que é. Tem que se compreender. Depois passa um tempo interminável até que voltem a passar. É um estilo, pronto. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Outro fenómeno interessante, que talvez alguns considerem bizarro, é o aglomerado de empresários nas ou junto das principais cadeiras do poder. Feitas as contas, Macau deve bater recordes. São, literalmente, mais que as mães, porque muitos deles têm irmãos. Já para não falar nos primos, nos filhos e nos cadilhos. Trata-se de uma clientela educada que, com honrosas excepções, prefere comer pela calada. Ainda por cima, esta exagerada concentração serve de alimento aos “opositores do regime” que nela encontram tribuna alta para lançarem os seus protestos e imprecações. É, de facto, espantosa e fascinante esta dialéctica política que, à parte de ser sensaborona (o que lhe acrescenta chique), remete a população para um estado de inércia bovina, o garante imprescindível da harmonia. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

E, como se não bastassem as acções e as não-acções dos nossos queridos governantes têm também surgido nos últimos tempos várias reflexões sobre a comunidade portuguesa aqui residente. Mas atenção: não se trata de coisa fácil visto esta comunidade estar intrinsecamente dividida, à partida, na sábia opinião dos analistas, entre os reinóis (os que nasceram no reino) e os macaenses. Ficámos então a saber que os primeiros se dividem entre os dinossauros e os neo-tugas; e os segundos entre tantas categorias e castas, às quais não é indiferente o bairro de nascimento, que não seriam suficientes as páginas deste jornal. E cada um de nós cultiva a sua ilha, ouve a sua música e esconde ciosamente o que tem. Fantástico! Longe do paraíso original, reinóis ou macaenses ou lá o que nós somos, temos esta capacidade única, espantosa, de nos preocuparmos sobretudo em levantar a pele das nossas próprias costas, sem acinte nem maldade. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

12 Abr 2016

Lições de História

A famosa Batalha do Rio Fei marcou a história da China quando um exército de 800.000 soldados, de uma tribo do Norte, foi derrotado pelo exército do povo Han, de apenas 80.000 homens. Os Han ocupavam os territórios a sul do Rio Fei, fronteira entre as duas tribos. Como os homens do Norte não dispunham de veículos para atravessar o rio decidiram aceitar a sugestão do inimigo, ou seja, esperarem que estes o atravessassem e, na margem norte, travarem a batalha decisiva. O comandante do exército do Norte pretendia atacar os sulistas mal estes desembarcassem, apanhando-os desprevenidos. Contudo a este comandante faltava habilidade e capacidade para organizar, dar directrizes e comunicar de forma eficaz com um exército daquela dimensão. Por seu lado as forças sulistas tinham consciência da sua inferioridade numérica e da sua posição desfavorável, mas eram meticulosos e reuniram informação detalhada sobre todos os pontos fracos do inimigo. Assim que desembarcaram, os homens do Sul lançaram-se ao ataque e, dentro do campo adversário, fizeram correr o boato de que “O exército do Norte já tinha sido derrotado”. Este rumor causou o caos e desmoralizou os homens do Norte levando-os à derrota. O passado não volta, mas situações idênticas podem repetir-se muitos anos mais tarde. É o caso da “simulação de encerramento das escolas devido a chuvas torrenciais” ocorrida a 21 de Março. Esta história pode ser uma preciosa lição para o povo de Macau.
Estes exercícios de simulação são realizados há muitos anos sem qualquer tipo de problema. Mas com o passar do tempo as pessoas têm ficado menos atentas. Estava fora de questão que este exercício de simulação fosse anunciado pela TDM como um encerramento a sério. Depois de comunicados onde foram passadas informações incorrectas, foram posteriormente emitidos outros a corrigi-los. No entanto devido ao lapso de tempo entre as duas peças informativas, e ao mau tempo que se fazia sentir nesse dia, a correcção da notícia em vez de esclarecer a situação, ainda gerou mais confusão. Há alguns anos atrás, quando o avião da TransAsia Airways se despenhou em Taiwan, o piloto comunicou que estava a haver uma falha do motor e accionou o botão para o desligar de imediato. Infelizmente, pressionou o botão errado e provocou a queda do avião. O que conta, quando se lida com emergências, é a capacidade de dar prontamente a resposta adequada. As autoridades em Macau estão obviamente falhas dessa capacidade. O produtor e o editor da TDM deveriam ter sido responsabilizados por esta negligência. Embora a Direcção de Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) tenha actuado de acordo com os regulamentos, não revelou estar preparada para uma crise, nem ter capacidade para responder a uma emergência.
Este caso mostrou alguns problemas preocupantes, também evidenciados pela forma como o departamento responsável lidou com a desinformação nesta matéria. A TDM adiantou-se e veio apresentar um pedido de desculpas, afirmando que o pessoal envolvido seria responsabilizado. Entretanto a DSEJ prestou esclarecimentos através de uma conferência de imprensa. Quando surgiram mais questões sobre as responsabilidades, a DSEJ emitiu um comunicado de imprensa onde apresentava as suas desculpas, uma forma de pôr ponto final no assunto. Se o director da DSEJ tivesse apresentado as suas desculpas em primeira mão aos estudantes, aos pais e às escolas afectadas, poderiam ter sido entendidas pelo público como “desculpas de mau pagador”.
O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura também foi involuntariamente envolvido neste caso por ter confessado a sua desorientação “quando foi levar a filha à escola”. Estas afirmações levaram os média a proceder a umas investigações, porque se descobriu que em declarações anteriores tinha afirmado que as suas duas filhas estavam a estudar em Portugal. Acabou por se apurar ter afirmado publicamente noutra altura que a filha mais nova estava a estudar em Macau. Eu simpatizo com Alexis Tam, mas ele deveria ter tido sabido da notícia onde se dizia que as suas duas filhas estudavam em Portugal.
Os macaenses sempre prezaram a harmonia e a tolerância. Não dão grande importância ao que está certo e errado. Este “deixar andar” acabará por trazer problemas. A história do simulacro é uma lição para o povo de Macau, e para mim também!

8 Abr 2016

O tal canal (o do Panamá)

[dropcap style’circle’]D[/dropcap]epois dos WikiLeaks e das revelações de Edward Snowden, o Madaleno arrependido dos esbirros da CIA, eis mais um fartote de “revelações explosivas”: os papéis do Panamá. E do que se trata? Mais de dez milhões de documentos oficiais que ninguém quer ler por serem uma “seca”, mas toda a gente quer saber os detalhes mais sórdidos e indiscretos – só alguns, vá lá, e mesmo muito condensados ao essencial, que no fundo é apenas no sentido de se confirmar algo que já há muito se suspeitava: “é tudo uma cambada/corja/súcia/máfia”; “só se querem é encher, e o povo à míngua”; “onde é que isto tudo vai parar, meu Deus”; ou “vem agora Jesus, que está na hora de acabar com o mundo”. Pensando bem, “dá menos chatice do que marcar uma consulta no psiquiatra” – pensam as pessoas que têm por hábito atirar com estas “farpas” sem fazerem a mínima ideia do que falam. E isto serve para tudo o mais que dizem sobre seja qual assunto for.
Antes de mais nada, queria felicitar (ou manifestar o pesar, conforme a perspectiva) o povo do Panamá por voltar a ter o nome do seu país nas bocas do mundo. Quem é da minha idade ou mais velho, e não abusou dos inebriantes e demais atordoantes e anestesiantes, recorda-se com toda a certeza do General Manuel Noriega, um déspota que liderou o este pequeno mas simpático estado situado entre a Colômbia e a Costa Rica, e cuja aparência fez dele um “poster boy” dos efeitos do acne juvenil na idade adulta. Depois de seis anos no papel de “generalíssimo”, “el comandante”, “jefe” e “lo tamale mas picante”, não dispensou uma das “saídas de cena em grande estilo” destinadas a líderes do seu calibre. Uma vez que a opção “julgamento sumário de legitimidade duvidosa seguido inevitavelmente de fuzilamento” não lhe agradava por aí além (ali faz muito calor para se andar a levar com tiros), preferiu a ementa “B”, composta de “ligações ao narcotráfico/redes criminosas/CIA/todas as anteriores, que uma vez provadas dão direito a uma longa temporada à sombra”, que no caso dele foram (e ainda vão sendo) trinta anos. Hasta lá vista, muchacho.
De resto, o Panamá liga geograficamente os sub-continentes da América do Sul e Central, cumprindo ainda a nobre (ou desprezível, mais uma vez conforme os gostos) função de escoar bens daqueles mais difíceis de encontrar ao lado da caixa do mini-mercado perto de casa, e já não era notícia desde que os americanos lhes devolveram o controlo das operações do estrategicamente importante Canal do Panamá. Esta agora, só por ser Panamá quer dizer que só o Panamá é que manda ali? Qualquer dia ainda têm que deixar a base das Lajes, sob esse discutível pretexto de estar localizada na área de jurisdição de um outro estado soberano – muito conhecido e popular entre nós, aliás. Assim como é que dá para policiar o mundo, bolas?
E por falar em “policiar” e demais actividades que implicam autoridade, esta revelação vem cair que nem uma bomba em quem ainda acreditava na rectidão, honestidade da classe política mundial – todos os quatro ou cinco deles, e eu não apostava uma pataca na salubridade mental destes indivíduos. Vamos lá deixar de ser anjinhos e vejam antes as coisas deste prisma: se vocês fossem polícias no México, Filipinas ou um desses lugares mais “calientes” onde dia após dia se arriscam a levar um tiro, e em nome da populaça que ainda por cima vos chama nomes e faz cara feia quando passam, em troca de meia dúzia de tostões? Ainda iam ficar do lado da lei e da grei, da integridade, da transparência e todas essas valências que mais parecem cadeiras do curso superior de “Pateta e Parvinho”? Abstenho-me de terminar este parágrafo com uma palavra feia.
Já os políticos, pronto, é o que se sabe, e ao contrário dos polícias não é da sua natureza andar a meter-se em esquemas com elementos marginais da sociedade, ou partir o farol de trás a um tótó qualquer só para lhes sacar uns cobres, nada disso. Os políticos, gente supostamente educada, a elite, os reis da bazófia e do “tá bem tá, vai enganar outro”, mas acabam sempre por enganar o mesmo, preferem actividades mais próximas das ciências económicas, coisa que faz a plebe coçar o piolhinho de ignorância, ou ainda “fuga ao fisco”, que soa a algo muito giro, como o jogo da apanhada, mas é praticado por “gente séria”. E pensando bem, se eles são “eleitos”, colocando-se assim portanto acima dos comuns dos mortais, porque haviam eles de pagar impostos que depois servem para construir estradas, pontes e pagar serviços de utilidade pública, se eles é que deviam estar a ser bem servidos? E para quê, as tais estradas e etecetera, se deviam estar a ser levados em ombros, como prova do nosso reconhecimento pela graça de nos terem presenciado com a sua vinda à terra?
E tudo se resume a um pressuposto muito simples, que deixo aqui na forma de uma pergunta muito simples e nada, mas mesmo nada tendenciosa. E o leitor, gostava de se “abotoar” em grande estilo àquela fatia que cortam do que lhe é merecido, uma vez que foi produto do seu esforço, ou pagar e calar, e continuar a viver como uma borrabotas entre outros borrabotas, e borrabotas morrer e só com direito a um epitáfio na lápide onde se lê “aqui jaz um borrabotas qualquer”? À consideração de V. Exas. Para a semana falarei das Ilhas Virgens Britânicas, que não têm nada, mas mesmo nadinha a ver com Macau. Então, que disparate é esse, querem lá ver…

7 Abr 2016

Não estaremos a esquecer-nos de algo?

Por entre névoas do politicamente correcto, da tolerância e da protecção de minorias, o mundo ocidental parece esquecer-se de algo extremamente importante, algo que resolve muitas das questões existenciais dos dias de hoje. Esquecemo-nos de onde vem o sucesso da forma de vida ocidental que tanto prezamos. Esquecemo-nos do enorme valor do laicismo.
Todos nós já vivemos a opressão religiosa. De Portugal à Dinamarca fomos violentados, queimados e ostracizados. Passámos por tempos onde excomungar era uma terrível ameaça. Mas livrámo-nos disso. Prosperámos porque libertos de conceitos e preconceitos, aprendemos a viver livres e até a respeitar os outros. Escrevemos Tratados da Tolerância e até a Carta dos Direitos Humanos, o único texto realmente sagrado da humanidade. Mas hoje discute-se, como se de repente não soubéssemos, a melhor forma de lidar com os muçulmanos e outros povos que não conseguem distinguir a religião do Estado. Preocupados com eles, coitadinhos, quando devíamos é ter dó por ainda não se terem livrado dos atavismos arcaicos nem perceber que Estado é uma coisa e religião é outra. O problema é também parecermos não saber explicar-lhes nem, tão pouco, lembrar-nos desse facto tão crucial na nossa evolução social recente.
Na Suíça, avançava esta semana o DN, (https://bit.ly/muçuaperto) as autoridades educativas de Therwil, cantão de Basileia, depois de dois estudantes muçulmanos do sexo masculino terem contestado o hábito suíço de dar um aperto de mão aos professores, sancionaram o comportamento pois os estudantes alegaram que, caso o docente fosse do sexo feminino, o costume era contrário às suas crenças religiosas.
Na Alemanha, avança a Russian Television (https://bit.ly/salsichanao), vivem a polémica das salsichas após uma série de escolas, cantinas e enfermarias as terem banido por questões religiosas.
Nos Estados Unidos, orgulha-se a Esquire (!) (https://bit.ly/soldadosikh) que considera, e cito, “uma vitória para a liberdade religiosa” o facto de um soldado-norte americano ter vencido a batalha do turbante alegando, uma vez mais, motivações religiosas para ter uma cobertura capilar diferente da dos demais.
Esta semana, foram várias as vozes a insurgirem-se contra o editorial intitulado “Como chegámos até aqui” do Charlie Hebdo (https://bit.ly/hebdoedita), inclusive a do “The Independent”, um jornal que até tenho em melhor conta. Dizem os recalcitrantes que o Charlie está apenas a incitar ódios contra todos os muçulmanos, um texto inadmissível e desapropriado. Já não “somos todos Charlie”, portanto. Diz o editorial a determinada altura, e cito, “veja-se o padeiro do bairro, que acabou de comprar a padaria que vem substituir a antiga do velhote acabado de se reformar. Ele faz croissants excelentes e é um fulano simpático sempre com um sorriso para os clientes. Está mesmo completamente integrado na vizinhança. E não são nem as suas longas barbas nem a mazela de rezar na testa (indicativa da sua grande devoção) que incomodam a clientela. Estão demasiado ocupados a embrulharem as sandes para o almoço. As que ele vende são fabulosas mas a partir de agora não mais existem as de fiambre nem as de bacon. O que não é um problema porque existem muitas outras escolhas – atum, galinha e os complementos todos. Seria, portanto, pateta resmungar ou armar confusão numa padaria tão adorada. Nós habituamo-nos com facilidade. (…) Nós adaptamo-nos.”
Uns malditos os Charlies que têm o desplante de tocar na ferida. Na realidade, uma sociedade sem capacidade para se sentir a si própria, manietada por sentimentos de culpa e atafulhada de pensamentos tolerantes… Melhor, uma cultura sem coragem de ser por causa dos outros, coitados, que até a invejam, candidata-se ao esquecimento desfeita no pó dos tempos. O que nos falta perceber, no ocidente, é não existir vergonha alguma em sermos como somos, em renegar muçulmanos e todos os outros que entendam a religião como uma condicionante da vida, tal como hoje escarnecemos os inquisidores e moralistas que um dia nos fizeram baptizar um certo período na nossa história como “Idade das Trevas”.
Se não pretendermos voltar a esses tempos assustadores, temos de ser capazes de perceber que a tolerância para com os outros não pode exceder a nossa forma de vida, leia-se os Estados laicos que nos deram a liberdade, a alegria de viver, de dizer o que nos apetece, de criar como nos aprouver, de vivermos como nos der na gana. Mas também alguns do nosso lado tentam fazer-nos voltar atrás, como o beato do novo presidente que na sua primeira missão oficial como representante do Estado (laico) português foi beijar a mão ao Papa, fazendo questão de nos lembrar da “dívida” para com o Vaticano por nos ter reconhecido o país… Não está em causa Francisco, que tem tido um pontificado de mérito, mas o significado da visita. Estivesse lá o Rato Zinger e seria igual. Mas em Portugal ninguém disse nada, ninguém comentou. Talvez por acharmos normal, talvez porque, ingenuamente, pensemos que as trevas não mais voltarão. Mas elas voltam quando desistimos de procurar a luz. Talvez não com a cruz, talvez com um crescente, ou outra coisa qualquer, mas virão se não percebermos o que devemos ao laicismo. Não venham, portanto, com razões religiosas para isto ou para aquilo. Não valem. Não são aceites em Estados laicos. Esquecermo-nos disto leva à crise, ao extremar de posições, à intolerância e, por fim, à guerra.

David Bowie – All the Madmen (1970)

(Where can the horizon lie 
When a nation hides 
Its organic minds in a cellar…dark and grim
They must be very dim) 

Day after day 
They take some brain away 
Then turn my face around 
To the far side of town 
And tell me that it’s real 
Then ask me how I feel 

6 Abr 2016

A Economia Circular

“The global population is forecast to reach 9 billion by 2030, including 3 billion new middle-class consumers. This places unprecedented pressure on natural resources to meet future consumer demand. The circular economy is a redesign of this future, where industrial systems are restorative and regenerative by intention and design. At the same time, its potential for innovation, job creation and economic development is huge: estimates indicate a trillion-dollar opportunity.”
World Economic Forum, Davos, 2016

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Europa que utilize eficazmente os recursos é uma das sete iniciativas emblemáticas que formam parte da estratégia “Europa 2020”, que pretende criar um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo, sendo actualmente a principal estratégia da europeia para criar crescimento e emprego, com suporte do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu. Esta iniciativa emblemática, pretende criar um quadro político, destinado a apoiar a mudança para uma economia eficiente no uso dos recursos, e de baixa emissão de carbono, que ajude a melhorar os resultados económicos, e simultaneamente reduza o uso dos recursos, identificar e criar novas oportunidades de crescimento económico, estimular a inovação e a competitividade da União Europeia (UE), garantir a segurança do fornecimento de recursos essenciais, lutar contra as alterações climáticas e reduzir os impactos ambientais do uso dos recursos.
A estratégia “Europa 2020” foi lançada em 2010, para relançar o crescimento e o emprego. Esta estratégia visa não apenas a saída da crise, da qual as economias estão a recuperar gradualmente, mas também colmatar as deficiências do modelo de crescimento e criar condições para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. Foram definidos cinco objectivos principais que a UE deverá atingir, até ao final de 2020. Os objectivos dizem respeito ao emprego, à investigação e desenvolvimento, ao clima e energia, à educação e à inclusão social e redução da pobreza. A iniciativa simbólica oferece um quadro de medidas de forma coerente, a longo prazo, e outras a médio prazo, entre as quais, se conta uma estratégia destinada a converter a UE numa economia circular, assente numa sociedade de reciclagem, de forma a reduzir a criação de resíduos, e a utilizá-los como recursos.
A economia circular é um conceito económico que se inclui no quadro do desenvolvimento sustentável, e cujo objectivo é a produção de bens e serviços, conjuntamente reduzindo o consumo e o desperdício de matérias-primas, água e fontes de energia. Trata-se de desenvolver uma nova economia circular, não linear, assente no princípio do encerramento do ciclo de vida dos produtos, serviços, resíduos, materiais, água e energia. A economia circular é o cruzamento das visões ambientais e económicas O sistema linear da nossa economia, como a extracção, produção, utilização e eliminação atingiu os seus limites, começando a sentir-se o esgotamento de um conjunto de recursos naturais e de combustíveis fósseis.
A economia circular propõe um novo modelo de sociedade que utiliza e optimiza os produtos armazenados e os fluxos de materiais, energia e resíduos, e o seu objectivo é a eficiência do uso dos recursos. A economia circular é fonte geradora de emprego. O sector da gestão dos resíduos representa em muitos países milhares de postos de trabalho, e num contexto de escassez e flutuação dos custos das matérias-primas, a economia circular contribui para a segurança do fornecimento e reindustrialização dos países. Os resíduos de uns convertem-se em recursos de outros. O produto deve ser desenhado para ser desconstruído. A economia circular consegue converter os nossos resíduos em matérias-primas, paradigma de um sistema do futuro, gerador de emprego local e não deslocável. A economia circular assenta em vários princípios, como os da eco-concepção, que considera os impactos ambientais ao longo do ciclo de vida de um produto, e integra-os desde a sua criação.
A ecologia industrial e territorial é outro dos princípios que preconiza o estabelecimento de um modo de organização industrial num mesmo território, caracterizado por uma gestão optimizada dos produtos armazenados e dos fluxos de materiais, energia e serviços. A economia da funcionalidade é um outro princípio importante, pois privilegia o uso face à posse, a venda de um serviço face a um bem. O segundo uso é um princípio a ter em conta, dado defender a reintrodução no circuito económico dos produtos que não condizem com as necessidades iniciais dos consumidores. O princípio da reutilização é um dos princípios essenciais, pois entende que reutilizar certos resíduos ou algumas das suas partes a funcionar, servem para a criação de novos produtos. O princípio da reparação põe ênfase na descoberta de uma segunda vida para os produtos maltratados.
O princípio da reciclagem defende o aproveitamento dos materiais que se encontram nos resíduos. O princípio da valorização defende o aproveitamento energético dos resíduos que não podem ser reciclados. A economia circular tem como destinatários, quer os funcionários públicos responsáveis pelo desenvolvimento sustentável e do território, bem como as empresas que procuram ganhos económicos, sociais e ambientais, assim como a sociedade que deve questionar sobre as suas reais necessidades. O desenvolvimento da economia circular deve ajudar a reduzir o uso dos recursos, a diminuir a produção de resíduos e a controlar o consumo de energia, devendo participar igualmente, na reorientação produtiva dos países. Assim, além dos benefícios ambientais, esta actividade emergente é geradora de riqueza e emprego, incluindo as do âmbito da economia social, em todo o território de um país, e o seu desenvolvimento deve permitir uma vantagem competitiva no contexto da globalização.
O Comissário Europeu para o Ambiente, Assuntos Marítimos e Pesca, durante a realização do “III Fórum Internacional sobre Economia e Eficiência dos Recursos”, afirmou que era necessário transformar a Europa numa economia eficiente nos recursos, ainda que a eficiência tão só não fosse o bastante, pois também teria de se assegurar, que uma vez utilizados os produtos, alimentos e bens, fossem seleccionados os seus materiais e usados várias vezes. A Europa utiliza uma média de dezasseis toneladas de materiais por pessoa anualmente para funcionar a economia, e cerca de seis toneladas por pessoa, transformam-se em resíduos, e quase metade dos resíduos gerados, terminam em aterros.
A parte integral da abordagem da UE para a eficiência dos recursos deve separar-se da economia linear, de onde são extraídos os materiais da terra para fabricar os produtos, usar e depois os eliminar, até uma economia circular, onde os resíduos e os subprodutos do final de vida dos produtos usados entram num novo ciclo de produção, como matérias-primas secundárias. O uso de resíduos como a principal fonte de matéria-prima fiável é essencial à UE. Existe uma forte motivação económica e empresarial, a favor da economia circular e da eficiência dos recursos. A Comissão Europeia, como órgão colegial e solidário, adoptou a eficiência dos recursos, como um pilar central da sua estratégica económica estrutural “Europa 2020”. A relação da boa gestão dos resíduos foi o tema central da Comissão Europeia, em 2014.
A Comissão Europeia incluirá nos seus projectos, um pacote muito mais amplo sobre a eficiência dos recursos e a economia circular, dado que os resíduos são apenas uma etapa no ciclo de vida dos produtos. O presente modelo económico de tomar, fazer e descartar assenta em dispor de grandes quantidades de energia e outros recursos baratos e de fácil acesso, mas que estão a chegar ao limite da sua capacidade física. A economia circular é uma alternativa atractiva e viável, que começou a ser explorada por muitas empresas de diversos sectores e países, proporcionando múltiplos mecanismos de criação de valor, não ligados ao consumo de recursos limitados. O consumo apenas se pratica em ciclos biológicos eficazes, ou seja, o uso substitui o consumo, numa verdadeira economia circular. Os recursos renovam-se dentro do ciclo biológico, ou recuperam-se e restauram-se, por força do ciclo técnico.
Adentro do ciclo biológico, distintos processos permitem regenerar os materiais descartados, apesar da intervenção humana, ou sem que esta seja necessária. É de realçar que no ciclo técnico, com a suficiente energia disponível, a intervenção humana recupera os diversos recursos e refaz a ordem, dentro da escala temporal que se apresenta, pois manter ou aumentar o capital, pressupõe características diferentes em ambos os ciclos. A economia circular assenta em três princípios essenciais, cada um dos quais aborda diversos desafios, em termos de recursos e do sistema a que têm de enfrentar as economias industriais. O primeiro princípio consiste em preservar e melhorar o capital natural, controlando as existências limitadas e equilibrando o fluxo de recursos renováveis. Tudo se inicia desmaterializando a utilidade, ou seja, proporcionando utilidade de forma virtual, sempre que seja possível.
O sistema circular, quando sejam necessários recursos, selecciona-os de forma sábia, escolhendo as tecnologias e processos que empreguem recursos renováveis que obtenham melhores resultados, sempre que tal seja viável. A economia circular melhora o capital natural, aumentando o fluxo de nutrientes do sistema e cria condições que, por exemplo, permitam a reconstituição do solo. O segundo princípio, consiste em optimizar o uso dos recursos, rodando produtos, componentes e materiais com a máxima utilidade, em todo o momento, tanto nos ciclos técnicos, como nos biológicos, o que pressupõe desenhar para que o processo de fabricação, restauração e reciclagem, se possa repetir, e que os componentes e materiais recirculem e continuem a contribuir para a economia. Os sistemas circulares empregam laços internos mais ajustados, sempre que possam preservar mais energia e outros valores, como o trabalho incorporado. Este tipo de sistemas reduz a velocidade de rotação dos produtos ao aumentar a sua vida útil, e incentiva a sua reutilização.
A acção de compartilhar faz aumentar a utilização dos produtos. Os sistemas circulares maximizam o uso de materiais com base biológica no final da sua vida útil, ao extrair valiosos elementos bioquímicos, e fazer que passem em cascata a outras aplicações distintas, e cada vez mais básicas. O terceiro princípio consiste em incentivar a eficácia do sistema, revelando e eliminando externalidades negativas, incluindo a redução de prejuízos, diminuindo os danos ao uso humano, como os relacionados com os alimentos, mobilidade, habitação, educação, saúde e descanso, bem como gerir externalidades, como o uso da terra, poluição atmosférica, águas e ruído, emissão de substâncias tóxicas e as alterações climáticas.
O 9.ª edição do “Fórum e Exposição Internacional de Cooperação Ambiental de Macau (MIECF na sigla na língua inglesa) ” , com o lema “Economia Verde – Oportunidades para a Gestão de Resíduos” , e o conceito “Pensar Verde, Ambiente Limpo, Viver Bem”, realiza-se entre 31 de Março de 2016 e 2 de Abril de 2016, tendo um “Fórum Verde” onde será debatido, o tema capital “From Waste to Resources and Rewards – The Roadmap towards Circular Economy”.

5 Abr 2016

Futurista

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]futuro que, envolvido em desconhecimento tenta despir-se de mistério através da nossa imaginação, é desvendado pelos tarólogos, videntes, autores de ficção científica e futuristas. Uns com maior margem de erro que outros, prevêem o futuro com as ferramentas que lhes estão disponíveis. Com alguma certeza se afirma que os futuristas são os mais sensatos nas suas previsões porque passam a maior parte do seu tempo em torno da reflexão do desenvolvimento tecnocrático em relação ao comportamento humano: e são pagos para isso. Se se podem esperar avanços tecnológicos na mundanidade do dia-a-dia, certamente presenciaremos inovações sexuais ‘digitais’ e ‘robóticas’, para além de todas as outras inovações que certamente terão impacto na forma como as pessoas se relacionam umas com as outras e, por consequência, na forma como o sexo será pensado e vivido.
Se esta tendência de desenvolvimento trará máquinas de prazer imediato à lá orgamastron do Woody Allen: é provável que sim. Num futuro não muito longínquo, o sexo não será necessário para fins reprodutivos e por isso toda a função recreativa será enaltecida ao máximo. O sexo vai continuar a ser prazeroso porque o é, se será melhor ou pior, não fazemos a mais pequena ideia. Na qualidade de futurista sexual não-qualificada, diria que a tendência para uma sexualidade muito individualizada (para não dizer solitária) será generalizada. Em 20 anos conta-se com avanços tecnológicos suficientemente relevantes para, se assim desejarmos, adquirir robots de habilidades sexuais/românticas. Prevê-se que se desenvolvam formas de inteligência artifical capazes de proporcionar momentos de intimidade para não só oferecer orgasmos de qualidade, mas também palavras de conforto durante mimos pós-coito. Finalmente podemos criar o parceiro sexual à nossa medida.
Na minha condição de futurista amadora, é-me difícil imaginar todo esse possível avanço como favorável à condição humana. O pessimismo corre-me nas veias e com isso vem a projecção de um futuro onde as relações humanas, que já são desafiantes em condições mais ‘normais’, possam ser descartadas por relações artificiais, que são muito mais fáceis de serem estabelecidas. Se queres um giraço com a voz do Paul Newman, que te diga coisas bonitas antes de adormeceres enquanto te abraça carinhosamente, podes tê-lo por uma generosa quantia e daqui a uns belos anos. Será que vamos passar mais tempo à procura do sistema artificial ideal do que do parceiro ideal? Se podemos talhar tudo o que queremos à nossa medida, haverá algum desejo de nos envolvermos com outros humanos, que são tão complicados, implicativos, mas, acima de tudo, reais como nós próprios? Se a tecnologia se estabeleceu para facilitar as nossas vidas, poderá chegar a um ponto demasiado facilitador que nos impossibilita de sequer bater com a cabeça em frustração? E se isso acontecer, será que vamos conseguir valorizar o bom sexo, o bom amante ou a boa intimidade?
Mas até que o ‘robot encantado’ seja uma realidade, tem havido desenvolvimentos que até dão jeito. Há uma maior preocupação em educar e esclarecer, que tem incentivado a criação de apps e sites de auto/hetero-descoberta. Ou até o auxílio masturbatório tem sido alvo de grande criatividade. O Autoblow 2 é um exemplo de avanço tecno-sexual, onde um fellatio pode ser simulado, não por um tubo de borracha sem graça, mas por um complicado mecanismo de sucção e movimento que pode proporcionar o melhor fellatio das nossas vidas (parece uma explicação simplória, mas a geringonça é de uma sofisticação nunca antes vista). Outro avanço que me tem fascinado mais ainda, veio preencher a vida dos casais em relacionamentos à distância. Os ‘teledildonics’ são brinquedos sexuais que podem ser controlados remotamente, permitindo, assim, o proporcionar de momentos sexy entre o casal, mesmo que geograficamente separados.
A esperança é que esta revolução silenciosa se estabeleça a seu tempo, e que a adaptação seja igualmente gradual. Porque ninguém sabe qual é o verdadeiro futuro do sexo.

5 Abr 2016

O não-lugar

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]cidade é composta por elementos ordinários e elementos de excepção.
Para o turista, o elemento de excepção é muitas vezes o que define a imagem da cidade que está a visitar. Em Paris, por exemplo, poderá ser a Torre Eiffel ou os Campos Elísios.
No entanto, não é certamente essa a imagem que o parisiense tem como identificadora da sua cidade. Poderá até vir a ser algo completamente oposto e distante: grafittis; hip-hop, breakdance e parkour; habitação social nos subúrbios; metro com pneus de borracha.
Porque, verdadeiramente, o que define a identidade da cidade é o ordinário – e não a excepção.

* * *

Fallen Angels, de Wong Kar-wai (1995) é indubitavelmente o meu filme preferido desse célebre realizador.
Muitas são as interpretações possíveis para essa obra-prima. Para mim foi sempre uma crítica à forma como a tecnologia se intromete na interacção do dia-a-dia entre humanos e à tendência para a despessoalização, sobretudo nas grandes cidades – nesse caso, Hong Kong. E, no meio de tudo, chega-se à conclusão que afinal quem melhor consegue entrar em comunicação com os outros é um mudo.
Mas o que verdadeiramente me seduz nesse filme é a forma como Wong Kar-wai retrata Hong Kong – não há aqui um único plano do famosíssimo skyline da cidade, nem tampouco qualquer outro landmark dessa metrópole internacional.
O que há é um leque de espaços que não são lugares singularmente conhecidos, mas que, não obstante, definem incontestavelmente a imagem e identidade de Hong Kong para quem a conhece bem: os corredores de uma estação de MTR; um McDonald’s qualquer no seio da cidade com os seus néons; uma tasca chinesa; os elevadores e a caixa de escadas de um bloco de habitação económica; o interior de um cross-harbour tunnel.
Talvez daí o meu fascínio pelo espaço que não é lugar.

* * *

O não-lugar é esse espaço supostamente sem identidade própria, de passagem, que serve uma função e ao qual não foi sequer dada especial atenção a nível de desenho, não tem grandes aspirações nem dignidade nesse sentido, mas que a cidade, sendo um organismo complexo formado pelos mais diversos equipamentos urbanos, precisa de ter para o seu bom funcionamento.
Nomeadamente,
A caixa de escadas de acesso ao pódio que cheira a mofo por causa da humidade.
O corredor que liga o edifício de escritórios à traseira da cozinha do restaurante onde o cozinheiro corta a carne com o patrão todas as manhãs.
A paragem de autocarros com o painel publicitário retro iluminado.
A casa de banho pública com o aviso para puxarmos o autoclismo no fim da coisa.
O guichet de pagamento do parque de estacionamento onde trabalha o velho que veste o pui-sam branco (*) e tem um leque de rota. (**)
A bomba de gasolina e o cantinho para encher pneus.
A passagem pedonal subterrânea que cheira a chichi.
Esses espaços não aparecem nos guias turísticos. No entanto o nosso dia-a-dia é muitas vezes vivido apenas nesses espaços, nesses não-lugares.
No nosso Macau em particular, o centro histórico e outros espaços de excepção há muito que deixaram de ser nossos. O Largo do Senado – um lugar – passou praticamente para uso exclusivo dos turistas.
O comércio é apenas para eles – quem tem fome que coma ouro, perfumes ou cosméticos.
Não tenho qualquer problema com isso – e não estou a ser cínico. Na verdade, estou-me até borrifando um pouco para isso porque (1) felizmente ou infelizmente, parece ser um fenómeno comum em todas as cidades que vivem do turismo e (2) conforme acima referido, tenho um fascínio particular pelo não-lugar das cidades. Portanto, os monumentos que vão para as urtigas.
Porque o não-lugar é o que define a nossa identidade.
O ordinário e o vulgar que se repete nas cidades tem para mim muito mais valor que a excepção.
Em Macau gosto da pastilha das paredes exteriores, dos aquários com néon verde à porta dos restaurantes, do aparelho de ar-condicionado clandestinamente instalado, da placa onde se lê “indicação do piso parado ao nível dos pisos”, do portão metálico castanho escuro que não condiz com nada do que está à volta e onde a velhinha pendura os cabides com cuecas e deixa secar a esfregona ao fim da tarde.
Porque é isso que caracteriza a minha cidade. O Farol da Guia, as Ruínas de São Paulo e essas coisas todas – sim, são peças bonitas de excepção e muito me orgulho de as ter na minha cidade. Mas deixo-as para os turistas e as suas selfies.
A minha cidade não é, por isso, a cidade do lugar, mas sim a do não-lugar.

Sorrindo Sempre

Já o disse várias vezes aqui: gosto genuinamente de Hong Kong.
Mas, entre outros, há uma coisa que me aborrece profundamente em Hong Kong: aquele típico indivíduo bem comportadinho, que foi sempre bom aluno (ou se calhar até não, não sei, enfim, mas nunca teve uma única negativa porque não fez nada na sua adolescência senão estudar e, como tal, nunca bebeu, fumou nem namorou), cursou sei lá o quê, mas algo a ver com números, talvez estatística, tem um trabalho estável e é, em geral, um tipo competente. E habituado a seguir regras, a cumpri-las todas, todinhas, sempre, porque é assim que deve ser, é assim que está correcto.
E qualquer coisa que não esteja de acordo as regras, ou conforme sempre se fez em estrita concordância com os procedimentos previamente estipulados por escrito, ai meu Deus, pânico, situação gravíssima, ai ai ai…
Por outras palavras, aquele tipo quadrado e estupidamente boring.
Hong Kong está cheio dessas pessoas, essas flores de estufa, esses calhaus, esses anti-criativos, esses ignóbeis. Tenho um nome muito bom para essas pessoas, mas não vou aqui escrever por ser inadequado.
Isto tudo a propósito do meu fim-de-semana em Hong Kong. Passei um sábado no Ocean Park com os meus filhos e o que para mim foi sempre um amusement park – e de alta qualidade, diga-se – onde supostamente se vai para se divertir sem complexos, para have fun de uma forma relaxada… O que encontrei pela frente foi regras, e regras, e mais regras. Em todo o lado.
O expoente máximo foi atingido quando um funcionário entrou em discussão com o meu filho – de 5 anos – a propósito de um jogo de barraquinha em que atiramos saquetas de areia contra cubos de madeira com o objectivo de as derrubar. Porque, segundo as REGRAS, só se pode atirar uma saqueta de cada vez. Mas o meu filho, espertinho, decidiu atirar duas – e derrubou os cubos.
Foi imediatamente confrontado pelo funcionário de uma forma estupidamente autoritária e bruta: “Sorry, that’s not allowed! One at a time, it’s written here! No prize for you!”
É assim: não parti a cara ao homem porque não faço essas coisas diante do meu filho. Mas desejo o pior a esse homem. A sério. E que arda eternamente no inferno com as suas regras.

(*) 背心 : camisola interior sem mangas, muito popular localmente
(**) Palavra em patuá derivada do Rotan, em Malaio, referente ao material vulgarmente conhecido por Rattan.

1 Abr 2016

Livro interdito

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a altura em que este artigo for publicado o Congresso Nacional Popular e a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês terão terminado as suas cimeiras. No meu próximo artigo darei a minha opinião sobre o assunto. Para começar, vamos falar sobre a interdição de um livro.
Enquanto decorriam estas duas cimeiras, fui a uma livraria em Zhuhai. Um dos livros que comprei intitula-se “Abandonar o Regime Imperial” com o sub-título “Uma Retrospectiva da Dinastia Qing até à República”. A investigação deste período, desde a antiga Dinastia Qing até aos alvores da República, está actualmente em voga e publicam-se muitos livros sobre a matéria. O propósito deste livro, à semelhança dos que foram publicados para assinalar o 100º aniversário da Revolução Xinhai, o 200º aniversário da primeira Guerra Sino-Japonesa e o 70º aniversário da Guerra de Resistência do Povo Chinês, é comemorativo e introspectivo. Depois de ter regressado a Macau, fiquei a saber, através de um jornal de Hong Kong, que o livro tinha sido interditado e a sua venda nas livrarias tinha sido proibida. Mal podia acreditar que o livro tinha sido banido e interroguei-me se os média de Hong Kong não teriam lançado este boato. Para descobrir a verdade voltei a algumas livrarias de Zhuhai, onde tinha estado há três dias atrás. O livro já não estava nos escaparates. Mas porque é que teria sido banido?
“Abandonar o Regime Imperial” é na verdade uma compilação de artigos publicados pelo autor em diversas revistas e jornais chineses, ao longo de sete anos. O conteúdo do livro não releva qualquer assunto secreto, nem de alguma forma polémico, já que todos os artigos eram conhecidos. Conta a história da China desde a Revolução de Xinhai até à vitória na Guerra Sino-Japonesa, sem referir a Guerra Civil Chinesa (entre o Partido Comunista Chinês e o Partido Nacionalista). O conteúdo do livro não fere de forma alguma qualquer sensibilidade. Além disso, qualquer livro que seja publicado na China, tem de ser previamente submetido à aprovação do Gabinete para Administração da Imprensa e da Edição. E como o livro é distribuído por todo o País através das Livrarias Xinhua, nunca deveria ter sido classificado como “publicação interdita”. Então qual será a verdadeira razão por trás de tudo isto?
Por vezes a política assemelha-se a uma lufada de ar que não conseguimos agarrar. Se tivermos de avançar um motivo para esta interdição, poderia alvitrar que as situações descritas podem ser encaradas como uma sátira a situações actuais, por exemplo, referir a antiga Dinastia Qing para representar os nossos dias e referir Hong Xiuquan (líder chinês da Rebelião Taiping contra a Dinastia Qing) para representar Mao Tsé Tung. Mas mais uma vez não parece razão plausível para banir um livro constituído por uma compilação de artigos já anteriormente publicados. As minhas dúvidas acabaram por se esclarecer quando li uma publicação online, uma análise política sobre a luta política no seio do Partido Comunista Chinês. A interdição do livro poderia ser, eventualmente, uma forma de descrédito através de meios políticos. A interdição não é sustentável, mas a intenção é criar terror.
A minha especulação pode ser apenas hipotética. Mas num contexto de luta pelo poder tudo é possível. Por vezes é difícil distinguir entre o verdadeiro e o falso, só o tempo pode apurar a verdade dos factos.
Dentro de ano e meio, terão lugar as eleições para a Assembleia Legislativa de Macau. Recentemente os candidatos potenciais iniciaram algumas acções, numa tentativa de obter as atenções do público, as suas palavras e actos destinam-se a colocá-los sob as luzes da ribalta. Existem candidatos que afirmam lutar pela democracia, outros empunham a bandeira da democracia, mas não estão focados no bem-estar social, sim em serem populistas. Em poucas palavras, apresentam diversas propostas para questões como a conservação das montanhas de Coloane, a construção do Edifício de Doenças Transmissíveis, a preservação, ou demolição, da fachada do Hotel Estoril, ou sobre a questão das crianças macaenses que vivem na China e o seu regresso às famílias. Para as pessoas que não estão familiarizadas com estas questões, por vezes é difícil distinguir os que estão verdadeiramente empenhados em encontrar soluções para estes problemas daqueles que só pretendem publicidade e ganhar votos.
Foi interditado um livro que não deveria ter sido. Os que falam sobre democracia podem acabar por ser apenas populistas. Os motivos que se escondem por trás de tudo isto podem ser muito mais interessantes do que nos faz crer a versão oficial.

1 Abr 2016

Palmyra libertada

[dropcap]O[/dropcap] exército sírio libertou Palmyra das mãos dos bárbaros e, para surpresa geral, a destruição não foi tão maciça como se temia. É certo que alguns dos principais monumentos foram dinamitados, o grau de vandalismo e os seus efeitos estão ainda por calcular. Contudo, dizem as notícias, poderia ser bem pior.

A pergunta que me assalta é: Porquê? Qual a razão (ou acaso) que terá poupado o grosso das ruínas de Palmyra? Que fenómeno terá detido a barbárie, que os homens do Daesh trazem acantonada no coração? Estando ali, entre ruínas pagãs, deveriam ter arrasado tudo, destruído radicalmente os vestígios de outras crenças, incendiado os restos e espalhado as cinzas aos ventos do deserto. Isso não aconteceu. A destruição foi significativa mas não foi total. A mão bárbara suspendeu o acto, não o levou até ao fim. Porquê?

Numa visita a um templo de Angkor Wat, junto a uma enorme estátua de um buda, um guia contava que, durante o regime despótico, um destacamento de Khmers Vermelhos se preparava para a destruir mas que uma voz, vinda do artefacto, fôra por todos ouvida, pondo em fuga os soldados de Pol Pot.

Não sei se em Palmyra sucedeu a mesma coisa. Se uma voz ressoou do interior das pedras, das colunas, dos arcos, evitando a sua destruição. No entanto, a ter existido, prefiro acreditar que essa voz veio do fundo da consciência daqueles homens: é o rumor da História à qual todos pertencemos e sem a qual faríamos muito menos sentido. Eles saberiam, no fundo, que se estavam a destruir a si mesmos, a uma parte da sua identidade e isso soa tão indiscutivelmente ao Mal como um crime cometido contra o próprio sangue.

Não terá sido nada disto. Talvez falta de explosivos. Talvez demasiadas mulheres para violar, talvez demasiados sábios para cortar a cabeça. Talvez outra razão qualquer. Seja ela qual for, a História resiste, não somente como memória de factos, de reinos ou de actos heróicos. Resiste, sobretudo, a Beleza e é ela que nos permite aceder às partes mais interessante dos humanos que nos antecederam. Era esta beleza intemporal, inesgotável enquanto fonte de informação e incomparável enquanto fonte de deleite, que dormia prisioneira em Palmyra, depois de ter sido violada pelo Daesh. Agora terá de ser gentilmente acordada.

30 Mar 2016

Ficção? Já foi

Escrevia há tempos nesta página que vivíamos tempos interessantes convicto de atravessarmos um período de profunda transição onde grande parte do que temos vindo a assumir como pressupostos de vida se vêem em profunda crise. Admitia estarmos à beira de uma revolução. Não necessariamente daquelas com ao tiro e à bomba (quer dizer…) mas uma profunda remodelação de forma de vida. Todavia, não pensava que a coisa pudesse ser tão dramática.
Lia a semana passada um artigo (https://bit.ly/aistatus) de Scott Santens, escritor, activista e psicólogo (scottsantens.com), uma explanação brilhante sobre o estado actual da Inteligência Artificial (IA), um assunto que, aliás, o Hoje Macau (HM) abordou na edição de ontem. Basicamente, argumenta ele que, e copio do artigo de ontem, “quando o AlphaGo derrotou o tricampeão Europeu de Go a comunidade científica começou a perceber que as mudanças que se esperavam bem mais para frente vão começar bem mais depressa. Apenas meses antes, vários especialistas entendiam que precisaríamos de mais uns 10 anos para tal ser possível.” Argumenta ainda Santens, com base num estudo do Bank of America do final do ano passado sobre a revolução robótica (https://bit.ly/botrevolution), que esta conquista é apenas mais um sinal que passámos do paradigma da evolução tecnológica linear para uma evolução parabólica, significando isso que a partir de agora tudo vai acontecer a um ritmo muito mais acelerado.
Scott faz ainda referência a vários sistemas de inteligência artificial actualmente em desenvolvimento, com especial destaque para o “Amélia” da IPsoft, em beta teste em várias grandes empresas mundiais, que irá substituir todos os serviços de assistência ao cliente e de telefonistas, estimando-se na ordem dos 250 milhões de postos de trabalho (!) a serem extintos em todo o mundo. “Amélia”, descreve Santens, aprende em segundos o que a nós, humanos, leva meses e fala mais de 20 idiomas. Mas há mais: um estudo da Universidade de Oxford prevê que nos próximos 20 anos cerca de metade dos empregos nos Estados Unidos venham a ser entregues a máquinas porque elas já não se vão limitar a actividades mecânicas e repetitivas mas chegar muito mais longe. Até às artes…
Isto leva-nos à questão essencial: se as máquinas vão fazer o nosso trabalho, nós vamos fazer o quê? Se as empresas vão ter trabalhadores gratuitos, para onde vai o dinheiro? Scott encontra-se no grupo, onde se inclui Andrew Ng, cientista chefe da Baidu e fundador do projecto de Deep Learning “Google Brain” entre muitos outros, que advoga o rendimento universal garantido para toda a gente e a necessidade urgente que os governos têm de se debruçar sobre o assunto. Porque vai ser um problema, algo que vai transfigurar a vida na Terra sem comparação com algo visto no passado.
Por isso, torna-se absolutamente necessário que todos, e não apenas os governos, em casa, nas escolas e entre grupos de amigos comecemos a debater o advento da IA pois quanto mais se pensa mais são as questões que se levantam. Como vamos reagir ao ócio? Como vão reagir as máquinas? Que vamos fazer com a nossa vida? Como é a vida quando o trabalho desaparecer?…
Isto, claro, partindo do princípio que as máquinas não nos vão tomar como um vírus e acabar connosco como, aliás, Stephen Hawking e até Bill Gates temem. Para já, sinto apenas reforçada a ideia de que o discurso político do crescimento económico está morto e enterrado e tem de ser substituído pelo discurso da distribuição, pelo da mudança de paradigma de vida.
Mesmo após a pesquisa que efectuei, parece-me irreal escrever sobre isto. Mas não é. A verdade é que estamos prestes a entrar na realidade de “2001: Odisseia no Espaço”, “Ex Machina”, “Matrix” e “Exterminador” todos juntos e de uma assentada. Porque não é apenas a IA em plena evolução pois, como a Boston Dynamics está farta de provar, os robots já mexem e andam quase como nós. Ao ponto da Google querer vender esta sua divisão pois as imagens do seu mais recente robot, o Atlas, estão a apavorar meio mundo. Em boa verdade, não é muito difícil imaginar um bicho daqueles com uma arma nas mãos deixando-nos a pensar no que andarão a fazer os produtores de armamento no segredo dos seus laboratórios…
Stephen Hawkins, no final do ano passado, disse mesmo que as máquinas podem acabar connosco porque são muito inteligentes. De facto, quando ainda brandimos Corões e Bíblias para provar um qualquer ponto invisível no céu e destruímos o meio ambiente para ganhar mais uns trocos, esta assumpção não tem nada de extraordinário.
Estamos perante uma revolução como nunca foi vista. O prof. Lionel Ni, no artigo de ontem do HM, comparava a emergência da IA com a invenção da máquina a vapor mas eu acho que ele está ser demasiado comedido. Para mim, o que aí vem situa-se para além do domínio do que consideramos fantástico. Com uma pequena diferença: é híper real e está aí, a bater-nos à porta. Já não é ficção.

Música da Semana

David Bowie – Saviour Machine (1970)

Your minds are too green, I despise all I’ve seen
You can’t stake your lives on a Saviour Machine

I need you flying, and I’ll show that dying

Is living beyond reason, sacred dimension of time
I perceive every sign, I can steal every mind

Don’t let me stay, don’t let me stay
My logic says burn so send me away

30 Mar 2016

Quem foi, foi

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uem foi outrora um amante e o deixou de o ser, junta-se à colecção daqueles que deixámos para trás, mas que, ainda assim, preenchem histórias e as memórias românticas/sexuais de uma vida. As separações e os divórcios vão acumulando um manancial de pessoas popularmente conhecidas por ‘ex’. Pessoas com quem partilhámos grandes momentos de intimidade, sem roupa, com gemidos, outros sorrisos e às vezes choros. E agora já não se partilha: é a morte do conjunto, da sinergia. O fim de relacionamentos românticos traz a dor de perda e a necessidade de um processo de luto, com a excepção que ninguém morreu, só o relacionamento. Morrem relacionamentos, partem-se corações, fala-se de dor e chora-se (bastante) por ela, perdemo-nos em ataques de ansiedade e em negativismo. A vida nunca será a mesma. E com corações partidos criam-se mundos de vidas, de músicas, literatura e arte. Não só pela necessidade de ventilação pelo criador, mas pela partilha que poderá levar a tantos outros corações a se sentirem entendidos. Há sempre corações a precisarem de cura.
Independentemente da duração do relacionamento, cada um de nós desenvolve-se e cresce em função desta ligação que apareceu com a mais bela história de amor e de sexo e que, por várias razões, pode torna-se num thriller de ansiedade e tristeza. Acabar com um relacionamento traz dificuldades emocionais, por mais psicologicamente apto que uma pessoa se possa sentir. A nossa identidade é moldada e incorporada na coisa que se cria. A coisa que se cria é uma vida a dois que, ao terminar, obriga a um renascimento individual. Torna-se num período de negociação de identidade, e o luto não é só do desaparecimento do outro, mas do desaparecimento de si próprio com o outro.
Não admira, portanto, que mesmo com relacionamentos que estejam com os pés para a cova e a morte esteja mais do que anunciada, que a tristeza persista. Para os não-pessimistas a cisão permite mudança e oferece-nos liberdade para fazermos aquilo que nos dá na gana. Mas o desconhecido não deixa de ser o desconhecido, nem deixa de ser assustador para muitos.
O que deixámos no passado são pessoas que muito provavelmente nos tocaram nus e com quem fodemos continuamente. Por isso, para além de um coração partido temos um sexo destroçado. Os órgãos nunca mais se tocarão, os corpos nunca mais se enrolarão nos lençóis que trocaram em conjunto. Porque se há um coração em sofrimento e uma cabeça num constante diálogo interno de raiva, insatisfação e de auto-comiseração, o sexo demorará a encontrar uma nova via de expressão. Depois de um hábito sexual, por mais excitante que seja diferença, o sexo sente-se arrancado do conforto que é estar com alguém de quem se gosta e de quem se conhece as manhas (sexuais).
Os popularmente conhecidos como ‘rebound’ são aqueles engates de pouca ligação emocional: uma ligação estritamente sexual na esperança que o acto faça esquecer o anterior amante e amor. O problema, e muitos esquecem-se disso, é que não se trata de uma forma de resolução eficaz, bom sexo não vai cuidar uma ferida emocional da mesma forma que um sentimento de satisfação pessoal vai em muito influenciar sexo potencialmente espectacular, ou seja, alta auto-estima resulta em sexo fantástico, mas sexo fantástico não vai necessariamente contribuir para um aumento de auto-estima, especialmente quando nos sentimos emocionalmente debilitados por uma separação.
Se há dicas para emocionalmente ultrapassar separações, com alguma certeza afirmo que não há dicas para o luto sexual por aí. O pénis e a vagina precisam de ser ouvidos e entendidos, de alguma forma. No remoinho maniaco-depressivo onde o coração e o cérebro se encontram em permanente conflito, quanto espaço o sexo precisa?

29 Mar 2016

A Europa em risco de desintegração

“The European Union, in turn, would be diminished by Britain’s departure. Britain would cease to play its historic role of maintaining a balance between hostile blocks on the continent. Its departure would powerfully reinforce a process of economic and political disintegration that is already under way.”
The Tragedy of the European Union: Disintegration or Revival?

George Soros and Gregor Schmitz

O sistema de controlo de fronteiras europeu teve fortes probabilidades de se estalar em pedaços, após a reunião a 7 de Março de 2016, entre a União Europeia (UE) e a Turquia. Estava em causa o problema dos imigrantes, pois mais de cinquenta mil refugiados da Síria e do Iraque inquietam a Grécia, que não sabe o destino a dar-lhes, enquanto os países próximos, liderados pela Áustria, constroem barreiras físicas e impõem rígidos controlos. O primeiro-ministro inglês e o presidente francês, entretanto, reuniram-se na França, por causa das comemorações relativas ao centenário aniversário da batalha do Somme, a mais sangrenta da I Guerra Mundial.
A ansiedade do primeiro-ministro inglês reside no próximo referendo britânico que decidirá se existirá “Brexit”, ou seja, se a “Ilha” abandona ou não a UE. O presidente francês, não consegue entender esta frivolidade inglesa, quando a Europa faz face ao enorme problema dos refugiados, apelidada de nova invasão dos bárbaros e a uma grave crise económico. A chanceler alemã jogava o seu futuro político, pois necessitava de convencer a Turquia, a assumir o papel da Grécia e conter as centenas de milhares de refugiados no seu território, em troca de importantes ajudas económicas, que seriam de três mil milhões de Euros iniciais e a promessa de retirar do congelador a integração da Turquia na UE.
A Turquia não é fácil de ser convencida, mais quando, está envolvida no conflito militar generalizado da Síria, e na sua eterna luta contra os curdos. Os Estados membros da UE, pela primeira vez, não demonstram vontade de assumir posições colectivas e preferem a situação oposta, privilegiando soluções nacionais, como é evidente nos casos da Hungria, Áustria, Eslovénia e da Macedónia (Estado candidato à integração desde 2004). Esta sintonia pode ser nefasta, agravada em caso da saída britânica, conjuntamente, com um agravamento da crise de refugiados, a UE não ficaria destruída, mas irremediavelmente prejudicada e com menor relevo global.
A UE com quinhentos milhões de habitantes pode absorver um milhão de refugiados por ano, devidamente repartidos entre os seus Estados membros, após resolução das crises económicas e financeiras de alguns países e do desemprego. A Alemanha não tem capacidade para resolver por si só, o grave problema que atormenta a Europa. Existe o risco de várias divisões. A primeira é Norte-Sul, onde o esquema de Schengen, constituído pelo grupo de países que aceitam estrangeiros em um dos países membros, sendo suficiente para que se desloquem pelos demais, pode ser anulado. A segunda, também Norte-Sul, é o futuro do Euro. A moeda comum tem fortes condicionantes em países como a Grécia, mas também, em Itália, Espanha e Portugal. A terceira, é uma nova divisão Este-oeste, onde os governos democráticos ocidentais começam a sentir dificuldades, com regimes com tendências autocríticas como nos Balcãs, todos herdeiros de anos de dominação do modelo soviético.
O “Brexit”, o novo fantasma que agoira a Europa, e que ninguém parece animado a prever o resultado do referendo inglês, é incómodo, pois o resultado pode ser “SIM” e o Reino Unido sai da EU, e poderá acontecer que a Suécia e a Dinamarca sigam o desastroso exemplo. Após um lento processo evolutivo de integração de sessenta anos, emerge a possibilidade do retrocesso. A UE iniciou negociações com a Turquia a 28 de Fevereiro de 2016, para tomar medidas para cortar o fluxo de imigrantes que entram na Europa, e em troca, receberá ajuda financeira e apoio à sua pretensão de entrada no bloco dos vinte e oito Estados membros. Assim, o governo turco foi pressionado pela UE e pela Alemanha para rejeitar sistematicamente imigrantes não sírios, e a tomar medidas para combater o contrabando, tendo chegado a uma plataforma de entendimento.
A sua implementação, apesar das contrapartidas tentadoras irá ser muito difícil, pois o seu conteúdo, tem por objectivo terminar com a crise de imigração que assoma a Europa. As estratégias implementadas para reduzir a quantidade de pessoas que fogem para a Europa fracassaram. A Turquia concorda em aceitar todos os imigrantes resgatados, em águas internacionais pela missão da NATO. O presidente do Conselho Europeu, advertiu que as portas da Europa se encerravam para todos os que não estavam a ser perseguidos, e assim, em conformidade com tal aviso, a Europa implementará o seu sistema de devolver os imigrantes sem condições de poderem obter o estatuto de refugiado. É de notar que cerca de duas mil pessoas chegam diariamente, às ilhas gregas, sendo metade de não sírios, e em 2016, chegaram por mar aos países europeus, um milhão e duzentos mil imigrantes.
O acordo com a UE é muito sedutor, pois a Turquia recebe o equivalente a seis mil e seiscentos milhões de dólares para deter os refugiados; visto para os seus cidadãos poderem entrar nos Estados membros e negociações para integrar a UE. A Turquia para controlar as entradas dos imigrantes, como contrapartida, recebe muito mais do que lhe foi oferecido há seis meses. A questão dos refugiados ameaça a unidade europeia, e provoca uma enorme e não prevista crise. O acordado menciona que cada refugiado que a Turquia leve para o seu território da Grécia, a UE aceitará um refugiado sírio, tendo começado a produzir efeitos, desde 17 de Março de 2016, e não para momento posterior a ser negociado, como se tem vindo a afirmar.
O acordado só não estaria em vigor nessa data, se a Turquia por razões fortemente fundamentadas e reais, apresentasse novas exigências. É uma aposta colossal que veio comprometer o futuro político do chanceler alemã, como era de prever. O estreitar de relações com a Turquia, trouxe um profundo descontentamento a diversos Estados membros, pois o seu governo, diariamente, torna-se mais autoritário, e no momento das negociações, privou do exercício de actividade um jornal opositor. O acordo significa um retorno em massa de refugiados que enchem os alojamentos provisórios de toda a Grécia, e obrigam a implementar medidas de segurança excepcionais nos Balcãs, Hungria, Eslováquia e Áustria, permitindo que a UE se concentre nos seus problemas económicos, em especial na falta de crescimento e recessão.
A maioria dos Estados membros da UE estão incomodados por um acordo cozinhado exclusivamente entre a Alemanha e a Turquia, à margem das instituições da UE, que previam estar a trabalhar no acordo. A Alemanha teve eleições regionais a 13 de Março de 2016, tendo a extrema-direita populista ganho à direita, e o líder conservador da “União Social – Cristã da Baviera (CSU, na sigla em língua alemã) ” e primeiro-ministro do estado da Baviera, ter renovado os seus ataques à chanceler alemã, aquando do seu triunfo nas eleições. A CSU é meio-irmão da “União Democrata – Cristã (CDU, na sigla em língua alemã) ” da chanceler alemã, prometendo retomar a sua luta contra a política de refugiados do governo federal, após o enorme avanço do partido anti-imigração “Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em língua alemã) ”, com três anos de existência, ter obtido resultados inéditos nas eleições, sendo no estado federado da Saxónia – Anhalt de 22,8 por cento dos votos.
O que aconteceu nas eleições regionais não pode ser ignorado, pois tratou-se de um movimento tectónico na paisagem política alemã, tendo aumentado as pressões sobre Angela Merkel, que tudo fez para conseguir apoio à sua política de portas abertas aos refugiados, antes de começar o Conselho Europeu de 17 e 18 de Março de 2016, que iria aprovar os resultados da “Cimeira da União Europeia e Turquia”, realizada a 7 de Março de 2016, e o subsequente acordo, resultado de intensas e difíceis negociações continuadas após a Cimeira. A Alemanha promotora do acordo com a Turquia provocou não apenas uma desusada tensão política interna, mas também dentro da UE. O acordo estabelece que a Turquia aceita que a UE lhe devolva todos os imigrantes que cheguem de forma ilegal, com as contrapartidas anteriormente discutidas e aceites.
A chanceler alemã fiel à sua ideia, respondeu a todos os ataques, prometendo manter a sua posição, e sem contar, sofre uma importante derrota frente ao partido anti-imigração. Tal resultado afirma claramente que o discurso populista encontra uma terra de cultivo ideal para os alemães expressarem o seu descontentamento com a entrada de um milhão de refugiados, atribuindo-lhes todas as dificuldades porque passa a Alemanha e toda a UE. A Alemanha perdeu apoio e controlo na Europa. O gatilho para fazer explodir a bomba foi a invasão de imigrantes. A política de portas abertas para os refugiados ressoa por todo o mundo. O pré-candidato republicano Donald Trump, considerado como um dos perigos globais, afirmou que a Alemanha era um desastre e muitos líderes europeus, especialmente da Europa de Leste, partilham a mesma opinião, e por tal razão, a extrema-direita ganhou as eleições regionais.
É estranho que a reacção não se tenha produzido antes, se pensarmos que a Alemanha recebeu mais de um milhão de refugiados, em menos de um ano. Além do assunto dos refugiados, é evidente que a posição de Angela Merkel, cada dia se debilita mais no cenário mundial. O ano passado, por contraste, encontrava-se no apogeu do seu poder, e quinze dias antes, negociou um rápido, desesperado e instável acordo com a Turquia para travar a entrada de refugiados na Alemanha, e como resultado perdeu as eleições. A perda de autoridade sofrida, quer na Alemanha, como na Europa, alimentam-se mutuamente, porque a incapacidade de deter a entrada de refugiados na Europa, desgastou o apoio que tinha no seu país, e os eleitores começaram a virar-lhe as costas.
A ideia de que os turcos possam entrar sem visto na Europa, desagrada fortemente o presidente francês, e as críticas intensificaram-se até à realização do Conselho Europeu. Todavia, muitas da críticas são profundamente injustas, pois a Alemanha não é responsável pela guerra civil na Síria, nem pela existência do Estado Islâmico e ressurgimento dos talibãs no Afeganistão. Os resultados das eleições regionais na Alemanha são uma clara penalização para os dois grandes partidos que dominam a vida política alemã há setenta anos, a CDU de Angela Merkel e o “Partido Social-Democrata Alemão (SPD, na sigla em língua alemã) ” devido às suas políticas de abertura aos refugiados, mas também para a UE.

24 Mar 2016

Rota do prazer

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou editor, não sou escritor, não sou organizador de nada. Nem mesmo da minha vida, que de cada vez que julgo estar a reorganizá-la se desorganiza logo de seguida, por qualquer razão, deixando-me sem jeito.

A confrontação com esta realidade ajuda-me a imaginar, porque não posso fazer mais do que isso, o que será a organização de um festival literário que envolve cerca de seis dezenas de entidades, entre patrocinadores principais e secundários, muitos editores e dezenas de autores que chegam dos cinco continentes, visitas a escolas, momentos e espaços para crianças, jovens e adultos, palestras, conferências, exposições, espectáculos musicais, do fado à ópera chinesa, projecção de filmes, lançamento de livros, reservas em hotéis, serviços de catering, organização de viagens, coordenação de horários, workshops de escrita e leitura, sessões de poesia, acompanhamento de convidados, num conjunto de actividades que se desenrola em múltiplos espaços, com recolha de imagens, e onde tudo acontece em três línguas que nada têm em comum (português, chinês e inglês), havendo por isso mesmo exigências de tradução simultânea para que as iniciativas recolham o interesse do público e não se tornem numa chatice.

Se a tudo isto somarmos o facto de haver público interessado, de várias nacionalidades e de todas as idades, de diariamente se poderem ler entrevistas nos jornais locais com os autores convidados, escutar programas na rádio ou ir acompanhando o que se vai passando pela televisão, vendo-se crianças, jovens, adultos e menos jovens, pais e filhos, ouvindo, debatendo, discutindo, aprendendo em salas cheias, sendo possível encontrá-los em simultâneo nos diversos eventos sem que a idade, a experiência ou o currículo façam alguma diferença, e em que os que gostam de livros se misturam com os que começam a gostar por se sentirem estimulados pelo ambiente para gostarem e apreciarem a leitura e a escrita, poder-se-á ter uma ideia, estando longe, do trabalho envolvido e da importância de uma iniciativa desta natureza numa cidade de 650 mil habitantes.

Existe nisto tudo uma dimensão extraordinária, que vai para lá daquilo que seria a imaginação quando a poucos quilómetros daqui a censura é um dado adquirido, não há liberdade de acesso à Internet, raptam-se editores e livreiros e há quem cumpra pesadas penas pelo simples facto de não pensar de acordo com os cânones oficiais. É verdade que mesmo aqui a democracia não passa de uma miragem, mas ter a possibilidade de ouvir quem vem do outro lado da fronteira discutir abertamente com quem chegou de países livres e de terras de democracia consolidada questões relacionadas com a liberdade de expressão e de edição e com os direitos humanos faz da Rota das Letras um espaço único de intercâmbio de ideias, de reflexão, de crítica e debate.

A cidade abre-se para receber os visitantes, acompanhá-los e aprender com as suas experiências. Torna-se possível falar abertamente com os autores, ouvir o que têm para contar e ensinar, e tudo pode acontecer numa sessão de apresentação de uma obra, num workshop ou partilhando-se uma refeição que a própria organização se encarregou de preparar com inscrições abertas a quem queira participar. E até pode dar-se o caso de se ser apresentado e almoçar ou jantar com autores que nunca se leu e em que a leitura é estimulada por esse encontro. Numa dessas ocasiões, estando eu já sentado com mais alguns convivas numa das mesas de um restaurante por onde a Rota passou, vieram perguntar-me se ali à minha beira se podiam sentar três dos autores. Tive então o gosto de conhecer e trocar impressões com gente de estilos e preocupações muito distintas — um é escritor, tradutor e professor da Universidade Nova, com passagens pelo Massachusetts e Vermont, o outro é especialista em Pessanha e Bocage, escreveu sobre Moraes e Raul Proença, e o terceiro é uma das estrelas da nova literatura do Brasil, vencedor do Prémio Machado de Assis, reconhecido cronista e foi escritor-residente da Universidade da Califórnia (Berkeley) — no que se revelou um momento de excelente convívio que me fez interessar por escritas para mim ainda desconhecidas. Não deixa de ser fascinante poder ler um autor consagrado que não se conhecia depois de se ter tido a sorte de com ele conviver primeiro. Em vez de se ler o livro ou conhecer a obra e só depois, um dia, encontrar o autor, toma-se um outro percurso. O exercício aqui será o de procurar na escrita os traços da pessoa com quem se esteve, de tentar encaixar e reconhecer o homem na sua obra e nas próprias palavras.

Sublinho nestas linhas a Rota das Escolas, parte do programa que passou pela Universidade de Macau, pelo Instituto Politécnico de Macau, pelo Instituto de Formação Turística, pela Universidade de S. José, pela Escola Portuguesa e por outras escolas chinesas e internacionais, pela importância que tem na atracção de gente jovem para a leitura e a escrita. Outros marcos foram o relevo dado à divulgação de literaturas menos conhecidas da região onde Macau se insere e a renovação da aposta na divulgação de autores dos países lusófonos, aliás em linha com o que vinha de trás. A pujança de que a língua portuguesa nesses países dá mostras nos diversos géneros em que se manifesta é garantia da sua continuidade e perenidade nas suas múltiplas expressões, cada vez mais avessas — é a minha convicção pelo que tenho visto e ouvido — a qualquer espartilho ortográfico que force a sua unificação e se sobreponha à liberdade de criação por razões comerciais.

Tenho pena, porque não estava de férias, de não ter estado em todos os lugares em que gostaria. Culpo-me por ter falhado apresentações de livros onde gostaria de ter estado e de não ter ouvido mais autores, consolando-me apenas com o facto de os seus livros por cá ficarem. Entretanto, seria muito importante que a equipa se mantivesse, que a Rota das Letras pudesse continuar a contar com o dinamismo, a experiência e o amor às letras do Ricardo Pinto, do Hélder Beja, do Yao Feng e de toda aquela gente jovem e interessada, entre tradutores e voluntários, que se esforça para que tudo corra bem. E que o festival visse o seu público crescer, penetrando mais fundo na comunidade, se possível em espaços mais amplos e bairros mais recuados, tornando-se num pilar da existência, infelizmente cada vez mais erodida, em especial em matéria linguística, de um segundo sistema na RAEM.

A Rota podia ter durado mais uma semana, talvez mesmo mais duas ou mais três. Mas não. Acabou porque tinha de ser assim. Não houve prolongamento e tornou-se inútil o desempate por grandes penalidades porque já se sabia que seria a equipa dos livros e da leitura a vencedora. O público aplaudiu e anseia por mais. A 5.ª edição da Rota das Letras acabou porque tudo tem o seu tempo e entre duas edições é preciso recomeçar tudo outra vez, fazer de novo para voltar a ser diferente em 2017. Venha então a 6.ª edição, se possível depressa.

23 Mar 2016

Confidencialidade ou segurança

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]semana passada o website “Yahoo” publicou um artigo sobre a companhia aérea alemã “Germanwings(GmbH), do qual extraímos o texto que se segue:
“A GmbH, sediada em Colónia e subsidiária da Lufthansa, é uma companhia aérea alemã low-cost.
“A 24 de Março de 2015, o Airbus A320-211, com a chapa D-AIPX, no decurso do Voo 9525, de Barcelona para Dusseldorf, despenhou-se no sul de França, perto de Digne-les-Bains, tendo morrido todos os ocupantes do aparelho. O voo transportava 144 passageiros, dois pilotos e quatro assistentes de bordo. O procurador francês, as autoridades aéreas, francesa e alemã, e o porta-voz da GmbH foram unânimes em afirmar que o desastre tinha sido intencionalmente causado pelo co-piloto, Andreas Lubitz de 27 anos de idade.
A 29 de Março de 2015, Phil Giles, investigador aposentado da Agência Britânica de Investigação de Acidentes Aéreos, em declarações ao Independent, afirmou que a GmbH (logo a Lufthansa) teria de dar satisfações sobre o estado de saúde mental do co-piloto. Lubitz esteve de baixa durante vários meses enquanto fazia a sua formação de voo e a Escola de Formação de Pilotos teve conhecimento que, em 2009, o co-piloto sofreu uma depressão grave. Antes de ter ingressado nesta Escola, Lubitz recebeu tratamento por ter evidenciado tendências suicidas.
A seguir ao acidente, a Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) passou a recomendar que deveriam estar presentes no cockpit, sempre, dois funcionários autorizados. As diversas companhias aéreas do grupo Lufthansa, em consonância com as autoridades para a aviação, outras companhias e a Associação para a Indústria da Aviação, daquele País, adoptaram um protocolo no sentido de ser obrigatória a presença no cockpit de dois funcionários autorizados, em todas as circunstâncias.”
O website Yahoo sugeria ainda que, para prevenir a ocorrência de outros casos semelhantes, todos os pilotos deveriam ser submetidos a exames clínicos mais sérios e que os relatórios médicos não deveriam ser confidenciais. Caso se detecte que um piloto sofre de qualquer perturbação psicológica a companhia aérea deverá ser informada.
Embora esta medida se proponha assegurar, na medida do possível, a integridade dos passageiros, levanta-se a questão da privacidade dos pilotos. Até que ponto é que as companhias aéreas deverão ter acesso à informação clínica dos seus pilotos? Não é uma questão fácil. À partida poderemos pensar que qualquer perturbação física ou psicológica, que afecte a capacidade de dirigir um avião, deverá ser comunicada. Por outras palavras, a companhia aérea deve ter acesso à informação clínica relevante, não a toda a informação. Neste caso, a informação relevante, como o seu nome indica, é apenas aquela que se prende com a capacidade de o piloto exercer em pleno as suas funções. Caso não esteja capaz, a companhia terá obrigação de o substituir.
E que tipo de médico deverá seguir um piloto? Um médico de família? O médico da companhia aérea? Um clínico privado? Só se a companhia aérea for responsável pelo seguimento clínico dos pilotos se poderá ter a certeza que vai estar a par da informação relevante.
Do ponto de vista ontológico, estará o médico autorizado a quebrar o sigilo profissional? Não nos podemos esquecer que as questões relacionadas com a saúde são de âmbito privado. À partida, sem a autorização expressa do doente, o médico não tem autorização para revelar a sua ficha a terceiros. Para que esta sugestão seja implementada é provável que a companhia aérea venha a ter de inserir uma clausula no contrato de trabalho, que salvaguarde ser necessário prova de que os pilotos gozam de boa saúde física e mental, quando assumem os comandos de um avião. Nesse caso a companhia deverá ter médicos que certifiquem a saúde dos pilotos. Estes deverão sujeitar-se a exames médicos, digamos, uma vez por ano.
Este acordo deverá ser feito entre a companhia aérea, o médico e o piloto. Não é necessário acrescentar qualquer emenda à Lei. O dever de sigilo profissional dos médicos não será no geral afectado por esta medida, porque à partida os pilotos concordam que os problemas de saúde, susceptíveis de influenciar o voo, deverão ser comunicados à companhia.
Agora, fazemos outra pergunta. Que outros ramos de actividade poderão adoptar o mesmo procedimento? Todos aqueles que possam directamente pôr em risco a vida das pessoas. As companhias rodoviárias poderão pertencer a esta categoria. Lembramos que em Setembro de 2010, em Junho e em Novembro de 2012, ocorreram em Hong Kong acidentes graves com autocarros, causados por problemas de saúde dos motoristas.
A seguir aos acidentes a maior parte dos membros do Conselho Legislativo recomendou que se fizessem exames clínicos mais sérios aos condutores. A recomendação nunca foi implementada.
Se a esta sugestão seguir em frente, será bom considerar estendê-la a todas as profissões que envolvam risco à integridade das pessoas. Não se trata de cuidar da saúde do individuo B ou C, trata-se de uma questão de segurança pública.

* Consultor Legal da Associação de Promoção do Jazz em Macau

21 Mar 2016

O Sotaque

Era eu estudante do Liceu e tinha umas amigas de origem africana que, quando juntas, falavam português com um sotaque próprio da terra delas. Faziam-no a brincar, mas não eram propriamente low-profile quando o faziam e até era visível um certo orgulho da parte delas.
Um dia, para provocar, perguntei-lhes porque apenas falavam assim quando entre si: ou seja, para onde ia aquele sotaque quando falavam comigo e com outros, porque revertiam logo para um português de pronúncia neutra?
A resposta que obtive foi categórica: “e porque não falas tu com sotaque macaense quando estás connosco?”

* * *

No meu ano de caloiro no Porto fui um dia jantar com uma conterrânea minha, Macaense, estudante universitária que já lá estava desde o ano lectivo anterior.
À boa maneira maquista, a nossa conversa à mesa foi feita num misto de português e chinês. Contudo, quando chegou o empregado de mesa e começámos a fazer o pedido, algo de totalmente inesperado deixou-me boquiaberto: da minha amiga, Macaense de gema com apenas um ano de vivência na Invicta, saiu um português com fortíssima pronúncia do Porto.
Frase que me ficou na memória: “E para mim é um cuópu de beinho bráunco”.

* * *

Uma das coisas que me fascina em Singapura é o Singlish, uma vez que representa bem o melting pot que é aquela Cidade-Estado.
Além disso, não posso deixar de achar piada ao sotaque dessa particular forma de inglês e, sendo eu falante de chinês, consigo compreender na perfeição algumas expressões típicas do Singlish.
Uma das minhas favoritas é o “like this also can” (leia-se “lái this also caaaaaan”), equivalente ao kam tou tak (*) em chinês.
Costumava ir com alguma frequência a Singapura. Em tempos fui convidado para o casamento de uns amigos meus e, na igreja, tive de fazer uma leitura em inglês. No final da cerimónia uma senhora veio dar-me os parabéns pela minha excelente pronúncia.
Fiquei surpreendido pois sempre considerei o meu inglês uma mistela, um broken english fruto do que aprendi no Liceu – onde tive bons professores – complementado com o que fui apanhando pelo caminho com os meus amigos filipinos e anglo-saxónicos de origem diversa.
“Really?”, respondi sem esconder a minha surpresa. “Mine’s not really British or the Queen’s English, is it?”, acrescentei.
“Well.. For one thing, it sounded like proper English, not Singlish…”, respondeu.

* * *

Caríssimo leitor, este é um assunto sensível para nós, Macaenses: o nosso sotaque quando falamos português e, numa abordagem mais alargada da questão, o nosso domínio da língua portuguesa.
E ainda outros complexos.
Não sendo linguista ou intelectual, homem da cultura, orador de conferência ou profundo conhecedor da História de Macau – muito menos do tipo que só é capaz de falar do antigamente, do presente tem pouca opinião e do futuro nem um pouco de visão – atrevo-me ainda assim a debruçar-me sobre este tema.
O sotaque Macaense é como o Minchi: cada casa tem o seu, não existe propriamente um standard. Mas, tal como o Minchi, tem as suas características principais que todos reconhecem.
O sotaque em si não é um problema e não tem mal nenhum: é o que é e até podia ser motivo de orgulho ou a nossa imagem de marca, tal como o Singlish em Singapura.
O problema é quando o sotaque é misturado e/ou confundido com o português gramaticalmente mal falado, que por sua vez é associado àquele que não é instruído.
Conversa de elitista? Não.
A conversa do “tem curso, não tem curso” é um complexo que de certa forma herdámos de Portugal, onde ainda se mantém a formalidade de se colocar o título à frente do nome das pessoas – é o senhor doutor, o senhor arquitecto ou o senhor engenheiro – e até se inventou o título Comendador para quem não tem canudo.
(Não fique ofendido quem tem esse título, não é minha intenção desrespeitar quem não teve a oportunidade de tirar um curso superior e que subiu a pulso com base nos conhecimentos da “escola da vida”, e que por essa razão até merece a minha maior consideração).
O caríssimo leitor poderá não concordar com esse ponto de vista, mas entenda como a opinião de quem o sentiu com alguma intensidade ao longo da sua infância no seio da comunidade Macaense.
Não sendo propriamente do tempo em que se anunciava no jornal que fulano de tal, filho de tal, tinha partido para Portugal para prosseguir com os seus estudos superiores – sim, porque ir estudar para Portugal era motivo suficientemente importante para notícia no jornal – é um facto que esses tempos existiram aqui em Macau, pelo que regressar da Metrópole com canudo na mão conferia por si só um certo estatuto na nossa comunidade ao recém-licenciado.
O sotaque prende-se então com isso tudo, com esses complexos todos, e naturalmente com a insegurança de muitos.
Aliando-se isso tudo às crises de identidade e todas as tempestades emocionais que nós, Macaenses, de vez em quando, por razões diversas, enfrentamos dada a nossa natureza mestiça, isso tudo leva a que por vezes tenhamos comportamos inexplicáveis no que concerne ao uso da língua portuguesa.
Não é por acaso que temos a expressão “torâ português” em Patuá, a qual se refere àquele que, de uma forma forçada e pouco natural, procura falar português com pronúncia de Portugal.
Há umas décadas atrás chegámos até a ter no hemiciclo um ilustre Macaense que o torrava de forma particularmente anedótica, transformando todos os “r” em “rr”. Aliás, o senhor era de tal forma diligente que até aplicava essa fórmula ao seu próprio nome.
Por outro lado, há também aqueles que, por insegurança, têm vergonha de falar português à frente de determinadas pessoas, refugiando-se no inglês ou no chinês.
Em que ficamos, então?
Não tenho nenhuma conclusão e nem sequer me atrevo a tecê-las. Mas apetece-me referir que, felizmente, muitos são os que não têm complexos nenhuns e falam à sua maneira, com o sotaque maquista e mesmo cometendo calinadas gramaticais.
E ainda bem que assim é.
Afinal o Patuá, de que tanto nos orgulhamos e do qual se deriva a nossa maneira particular de falar português, é também fruto de uma interpretação local da língua portuguesa, com inúmeras frases e expressões feitas com base numa construção gramatical chinesa e, de certa forma, um português mal falado, não?
Além disso,
Não estamos nós já habituados de ver na televisão, mesmo da boca dos ilustres políticos portugueses dirigentes do nosso país, erros de português? Os habituais “há-des” em vez do “hás-de”; o “interviu” em vez do “interveio”; o “evolóiem” em vez do “evoluem”; o “fostes” em vez do “foste”…
Portanto, se o senhor doutor de Portugal pódi, porque temos nós tantos complexos, porque nós tamém num pódi?

Sorrindo Sempre

Karma hits you back, costuma-se dizer.
No entanto, este ditado muito em voga nas redes sociais é aplicável nas situações em que fazemos mal a alguém, certo?
Ora, porquê decidiu o karma hit me back numa situação em que tratei bem alguém é algo que não consigo compreender.
Pois que há tempos escrevi um artigo a defender a polícia de Hong Kong na sequência daquela (absurda) revolta do yu tan. E, numa interpretação mais abrangente do artigo, defendi também
os representantes do Governo que são vulgarmente maltratados pela população. (**)
Contudo, dias a seguir, acabei eu por ser vítima de maltrato de um polícia de trânsito.
Estava o senhor a passar-me a multa quando me aproximei do carro. Sem eu ter dito uma única palavra que fosse, o agente da autoridade decide desancar-me de cima a baixo, com um tom de voz agressivo em que faltaram apenas os palavrões para completar a coisa.
Não me contive e respondi que achava inadmissível ele falar assim comigo. Houve uma pequena troca de palavras, embora nada do outro mundo porque, ainda assim, mantive a calma – ao contrário do outro.
Moral da história? Nada de especial. Mas não havia necessidade.

(*) 咁都得 : em tradução directa para português, o equivalente a “assim também pode”
(**) “Rebeldes do Yu Tan”, edição de 19 de Fevereiro de 2016 do jornal Hoje Macau

18 Mar 2016

A pirâmide invertida

Fui observando reacções durante os dias que se seguiram à detenção do ex-procurador do Ministério Público da RAEM, Ho Chio Meng, dando primazia ao que dizia a imprensa em Portugal. Em Hong Kong diz-se mais ou menos o mesmo que deste lado, e claro que aqui e ali era possível identificar a opinião mais ao jeito de provocação, coisas próprias da rivalidade regional entre os dois pólos do Rio das Pérolas. Tive mais curiosidade em observar o que se dizia em Portugal, não tanto na imprensa, que praticamente decalcou a informação que recebeu de Macau e das agências, mas da “vox populi”, que se expressa nas caixas de comentários, redes sociais e afins – afinal um juiz é um juiz quer em Portugal, quer na China, e certamente não faltariam as habituais opiniões mais inflamadas, que dão conta “do fim disto tudo”. Portanto compre já freguesa, que se está a acabar.
Como não podia deixar de ser, as opiniões repartiam-se entre a indignação, por se tratar de um magistrado e ser colocada em causa a credibilidade da Justiça, ou ainda a estupefacção, e aqui teciam-se considerações sobre valores abstractos como a “honestidade” e a “ganância”. Pelo menos foi o que deu para perceber entre tantos erros ortográficos, obscenidades e impropérios vários de teor étnico-cultural – é preciso não esquecer que para muitos portugueses a China e os chineses ainda são uma realidade longínqua e oblíqua. Como se não bastasse, ainda estava bem fresca na memória a notícia do casal chinês que foi jogar no Casino Lisboa e deixou a filha de cinco anos sozinha em casa, vindo a pequena cair da varanda do apartamento onde habitava com os pais, num empreendimento de luxo perto da capital, precipitando-se para uma morte trágica e lamentável. Estes pais são um dos contemplados com os famigerados “golden visas”, uma ideia do anterior Governo de direita para atrair investimento chinês para Portugal, mas que se deparou recentemente com um hiato devido a “lusitanismos”, aqueles problemas tão nossos, tão castiços. Depois do ex-procurador ainda tivemos mais uma notícia nada abonatória para a imagem ainda mal formada que os portugueses têm do país do meio, desta vez dando conta de um casal do continente que vendeu a filha de apenas 18 dias de vida por 3200 euros, dinheiro que investiram num exemplar do novo modelo de uma marca de telemóveis de topo da gama líder do mercado, e um motociclo. Se procurarem esta notícia na “net”, vão encontrar outra muito semelhante reportando-se a Outubro de 2013.
Tenho sempre enormes dificuldades em falar da China ou dos chineses com os amigos e os conhecidos em Portugal, e mesmo os portugueses recém-chegados à RAEM demoram ou nunca chegam sequer a assimilar alguns conceitos paradoxais à sua cultura, e mais importante, à sua moral. Se vêm mais ou menos preparados para o “choque” da primeira, o da segunda pode apanhá-los de surpresa. Para entender o que pode levar uns pais a negligenciar a segurança de uma filha menor para passar a noite toda no casino, ou quiçá uma volta ou duas completas aos ponteiros do relógio, ou ainda outro casal a vender um recém-nascido, com a aquisição de bens de luxo em mente, é preciso entender o valor que se dá à vida humana numa e na outra cultura. Não é exagero se disser que uma derrocada numa das muitas minas que operam em condições de segurança precárias na China que cause mais de cem mortes é “uma mera estatística”. Por outro lado, em Portugal no ano de 2001 caiu uma ponte em Entre-os-Rios, causando a morte a perto de 60 pessoas, um acontecimento que mereceu vasta e demorada cobertura mediática, sendo referido pontualmente durante os meses que se seguiram, e com os familiares a amigos das vítimas a assinalar cada aniversário da tragédia “in loco”, com pompa e circunstância. Na China vão-se dando mais derrocadas, os mineiros morrem às centenas, e para os que vão sobrevivendo, a vida continua. Até ver.
Isto pode parecer uma análise um tanto ou quanto crua do país e do seu povo, mas se não for dirimente de me mandarem a tal sítio, pelo menos servirá para pensarem duas vezes se tiverem em conta que estamos a falar de uma população mais de cem vezes superior à nossa, com 400 milhões de trabalhadores migrantes – 40 vezes mais que a população total de Portugal. E empregos para esta gente toda, como é? Quanto a esse particular, uma das grandes dificuldades com que me deparo quando troco impressões sobre este complexo e delicado tema que é o choque cultural entre o Ocidente e o Oriente é explicar a forma como é encarado o fenómeno da prostituição. E para este argumento fiquemos pela prostituição comum, o sexo remunerado seguindo os trâmites mais básicos das trocas comerciais, ou “toma lá, dá cá”, em termos mais leigos. É impossível relativizar o tema da prostituição numa conversa com um ocidental, especialmente se for do género feminino, sem dar a entender que estamos a menosprezar a componente do degredo e da humilhação que implica para uma mulher precisar de vender o corpo, mas esta é daquelas coisas que temos que deixar a meio da viagem de avião para este lado, senão pensem nisto: o que iam fazer todas essas mulheres na China, em números quem sabe na ordem dos milhões, para sobreviver? Roubar, e eventualmente matar, se for necessário chegar a tal?
A própria pena de morte tem que se lhe diga, especialmente a forma bastante despreocupada com que o regime executa os condenados por crimes puníveis com o castigo máximo previsto na lei, descurando em muitos casos os mais elementares preceitos da jurisprudência dos padrões ocidentais. Eu não arriscaria a dizer que abolir a pena capital na China surtisse resultados práticos. Pelo que entendo do que eles entendem uns dos outros, esta figura serve como que um garante de que pelo menos se pensa duas vezes antes de se apostar, negociar ou arriscar a vida. Na China a pirâmide que o psicólogo norte-americano Abraham Maslow idealizou, e que representa a hierarquia das necessidades, adquire uma configuração menos convencional. Enquanto para nós a ambição é ascendente, e das necessidades mais básicas almejamos à realização pessoal, e no geral uma sociedade mais livre, mais justa e mais tolerante, na China eles tiveram séculos a fio para racionalizar os factos e dar asas ao seu espírito criativo, e hoje tentam a todo o custo manter-se algures entre os dois estratos mais baixos da pirâmide, tentando no mínimo sobreviver. Por enquanto. Depois logo se vê.

17 Mar 2016

O Erro

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Errar é humano. É sempre o que surge quando se pensa em erro. Porque a realidade é que não gostamos de errar. Porque somos fixes, porque errar faz mal e sabe mal. Porque errar faz-nos mais pequeninos, quiçá desprezíveis. Ou, pelo menos, isso poderemos sentir se não formos feitos de calhaus. Errar é humano mas existem muito mais coisas acabadas em “ar” que também são humanas. Como amar. Errar não é só humano, é animalesco também. Em todos os sentidos. Porque os animais também erram e porque errar empurra-nos contra a parede porque, se não formos animalescos, temos de pedir desculpa. Errar comprime porque faz-nos perder a credibilidade. Mas há erros e erros. Podemos errar no caminho e, na pior das hipóteses, ficamos perdidos, isso pertence, portanto, à categoria “não vem mal ao mundo”. Depois existem os erros que implicam com a vida dos outros, portanto da categoria “pode vir mal ao mundo”. A seguir vêm as graduações: de “irrelevante” a “devias ser preso” ou “preso e processado”. A responsabilidade civil e moral. Uma classificação que pode ser atenuada se o autor do erro for irrelevante para os sujeitos passivos, as vítimas do erro, ou considerado inimputável porque, coitado, é tolo. Ainda assim, mesmo que o tolo seja inimputável, o erro pode ser suficientemente grave para estragar a vida a uma série de gente. Não é, portanto, coisa de somenos, coisa de humanos, esta coisa de errar. E eu errei. Muitas vezes. De várias formas. Portei-me que nem um anormal quando não devia, disse as piores coisas a quem não deveria, enfim… A semana passada também errei, por escrito, que é ainda pior pois nem sequer dá para dizer que não se disse. É esse o poder (e o contrapoder) da escrita. Por isso há tantos jornalistas e escritores perseguidos. A escrita pode matar o emissor mas também os alvos. É a natureza da coisa. Errei, talvez na categoria “não assim tão irrelevante” sem grande atenuação porque gerou algum descrédito aos sujeitos passivos, mas um pequeno bónus por ter sido emitido em coluna de opinião por autor pouco importante. Errei porque escrevi que a organização do Festival Literário de Macau tinha banido o português da cerimónia de abertura. Pois que assim não foi. Ouvi dizer (o que é sempre um mau princípio), liguei para a assessoria de imprensa do festival e foi-me confirmado (e até explicada a razão) e assumi por verdadeiro. Erro. Talvez a assessoria tenha confundido com a sessão de abertura com o Pacheco e a Lolita que, essa sim, foi maioritariamente em inglês, à qual assisti. Até se percebeu porquê (o equipamento de tradução não estava a funcionar pelo melhor no início) e não veio mal ao mundo.

O outro lado do erro surge quando ele prejudica alguém ou cria realidades alternativas que afectam outrem para além de nós: a sua reparação tem de ser efectuada. Corrigido, se possível, reconhecido se nada mais houver para fazer. Chama-se pedir desculpa. Pedir desculpa, às vezes, pouco resolve, pois o mal está feito. Pedir desculpa nem sequer nos garante que os ofendidos passem a gostar mais dos ofensores, se bem que muitos pensem que uma desculpa resolve o seu problema interior, o seu sentimento de culpa, a perda de um amigo, ou da credibilidade. Afinal de contas, pedir desculpa custa, e até os jornais, quando têm de o fazer, fazem-no vulgarmente num discreto rodapé. Está lá mas pode ser que ninguém veja, penso ser a estratégia. Enfim, seja o que for, aqui ficam as minhas desculpas à direcção do Rota das Letras e a todos nela envolvidos. Que continuem por muitos anos.

As “verdades”

Começa a ser impossível ler os jornais desportivos, ou assistir aos debates da bola em Portugal. Não há uma reportagem realmente interessante, uma verdade que amanhã não seja mentira, um dia que passe sem que sicrano não acuse fulano, que acusa sicrano, que mata fulano, fulano que é mas depois deixa de ser, um vendaval de acusações, vulgaridades e dedos apontados, um tédio que nos leva à profunda irritação e depois à indiferença. Custa continuar a ver o poder político passar ao lado da batalha campal em curso sem pedir responsabilidades, virando a cara e tapando o nariz para não cheirar o fel. Custa ver um jovem Presidente da Liga manietado num caldo de poderes anacrónicos sem capacidade, ou coragem, para mostrar uns amarelos, mesmo uns vermelhos, aos cretinos de várias cores que mandam no futebol português. O descrédito é total e qualquer dia nem os jogos apetece ver.

A macaína protecção dos feudos

Lia esta semana, neste jornal, a notícia que indiciava estar o governo preocupado com os senhorios e, consequentemente, disposto a simplificar os processos de despejo para os incumpridores do pagamento de renda. Ninguém tem dúvidas que os proprietários têm todo o direito a receberem o que lhes é devido. Todavia, neste ambiente dominado por meia dúzia de gatos gordos, onde se sabe como os locatários têm sofrido com a sua especulação, numa terra onde, apesar dos sistemas, se está incluso num país que se proclama socialista, custa perceber como o governo continua sempre mais inclinado a defender os poderes feudais do que os direitos dos mais desprotegidos, onde o direito a habitação deveria ser um valor fundamental. Porque, quando a coisa toca a tectos nos aumentos, aí o governo diz ao povo para se armar em David e arranjar uma boa fisga para negociar com os gatos gordos, esses Golias, sempre de faca e queijo na mão.

Ainda neste âmbito, o dos feudos, apetece-me deixar uma nota para a presença de empresas ligadas à produção de vídeo na HK Filmart, que termina amanhã, surgindo pela primeira vez numa iniciativa apoiada pelo Governo. O propósito é de louvar, apesar de ser algo inexplicável surgir o Turismo a apadrinhar a iniciativa e continuarmos a ver a Direcção dos Serviços de Economia arredada do processo; como se filmes não fossem negócio, como se a diversificação da economia local não passasse pelas indústrias (pese o termo) culturais. Mas isso levaria a uma coluna inteira. O espantoso, neste caso, é a presença da Salon Films (Macau, claro) presente debaixo deste chapéu-de-chuva tão necessário para empresas mínimas, como são as de que se falam. Especialmente, quando todos sabem que a empresa, apesar de registada em Macau, é apenas um ramal do grande potentado de Hong Kong (também presente na feira com um stand enorme) e que, por algum bambúrrio do acaso, tem ganho imensos concursos do Turismo de Macau desde há uns 30 anos. Não vou entrar pela questão legal, pragmática, se aquela é, ou não, empresa de Macau. Deixo apenas um exemplo: a Coca-Cola (Macau) deixa de ser uma empresa americana apenas por ter uma delegação no território? Será que a Coca-Cola (Macau) pode representar-nos numa feira internacional como bebida local? Fica a interrogação.

16 Mar 2016

Alguns factos (no feminino)

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stes não são os segredos do sexo no feminino, esses deixo ao critério de cada um descobri-los a seu tempo. E quando eu digo descobrir, refiro-me à contínua exploração que, na individualidade e em conjunto, deve ser exercitada e promovida. Há, contudo, informações sobre bem-estar sexual que merecem alguma atenção. Aqui vai uma pequena nomeação de factos no feminino, para a mulher emancipada e para o homem que a acompanha.

Menstruação

Dizem os estudos, e até a cultura popular, que os homens não têm grande interesse em envolver-se no acto sexual quando o ‘Benfica joga em casa’. Não há grande mistério nisso. O que os estudos também mostram é que as mulheres estão muito mais propensas a atingir o orgasmo em dias mais sangrentos. Para além de que, para curar dores menstruais incomodativas, não há eficácia que iguale os orgasmos, uma forma não-medicamentosa para ajudar ao bem-estar. Ademais, e tentando não ser muito gráfica, este é um período especialmente lubrificado. Mas, é claro, percebe-se a aversão. O cenário pós-sexo em menstruação mais facilmente se assemelhará a um cenário de chacina. Recomenda-se o evitamento de lençóis brancos e talvez vislumbrar a possibilidade de gozar o tempo em conjunto na banheira, com superfícies muito mais fáceis de serem limpas. Compreendo que pondo assim as coisas, o sentimento gore e sangrento continue a ser impossibilitador. Contudo, a menstruação é normalíssima. Vivam com isso, os dois.

Vibradores

Os vibradores foram criados como terapêutica para a histeria. Para quem não sabe, a histeria caracterizava-se como uma popular condição psicológica exclusivamente feminina durante o séc. XIX, de sintomas somáticos fortes. A razão seria uma má resolução sexual e por isso teria que ser compensada com artefactos. Actualmente, vibrador é o brinquedo sexual por excelência e o bestseller de qualquer sex shop pelo mundo. Os inquéritos sugerem que as mulheres começam a considerá-lo como um objecto doméstico essencial, para as solteiras e as casadas. O aspecto ‘sketchy’ das sex shops é que ainda impedem uma frequência mais normalizada. Espera-se que sempre que mulheres (ou casais) comecem a exigir um serviço de vibradores especializado e de qualidade, o estigma associado a usuários de lojas de sexo decairá. Quanto mais comum, mais normal se tornará. Porque as possibilidades para um vibrador na vida amorosa do casal são quantas as que queremos ter. Duas palavras em interrogação: Penetração dupla?

A careca lá em baixo

Os pêlos púbicos são agora, mais do que nunca, alvo de grande desdém. O que começou por uma prática feminina espalhou-se para uma prática masculina também. Em certos círculos sociais, quanto menos peludos na zona genital, melhor. A preferência começa a ser cada vez melhor disseminada graças à pornografia e à disponibilidade de casas de depilação que prometem um serviço pêlos free. Há quem se sinta mais limpa(o) ou higiénica(o) com os seus genitais descobertos do arbusto que a puberdade fez crescer. Mas qualquer que seja a preferência é sempre bom insistir que os incomodativos pêlos existem como uma barreira protectora de infecções e inflamações, e que por isso a sua ausência expõe alguma vulnerabilidade. Agora que os cavalheiros ficam contentes com uma careca quando o trabalho é oral, isso, sem dúvida. Diz-se muito mais confortável.

Clitóris

Essa discreta pontinha alimentada por sensivelmente 8000 nervos é causadora de muito prazer e não pára de crescer. Sim, quando se chega aos 80 anos o nosso tão especial orgão sexual estará 2.5 vezes maior do que na purbedade. Diferenças pouco visíveis mas que poderão justificar o sexo fantástico das senhoras octogenárias. Não esquecer que é o único órgão no corpo da mulher dedicado exclusivamente ao prazer e ao orgasmo (o ponto G é um candidato ao mito urbano) e por isso há que tratá-lo bem, e o parceiro que se encarregue dos cuidados também.
Para a semana há mais.

15 Mar 2016

O Décimo Terceiro Plano Quinquenal da China

“China’s plan to lift all of its poor people out of poverty by 2020 concerns whether the country can fulfill its goal building a moderately prosperous society in all respects throughout the next five years. The Chinese Government has prioritized its poverty alleviation plan across the nation, and has already set in motion the process to improve the living standards of an estimated 70 million people living under the country’s poverty line.”
Beijing Review, Vol 59, No 9, March 3, 2016

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“Décimo Terceiro Plano Quinquenal” para o período de 2016 a 2020 foi aprovado na “Quinta Sessão Plenária do Décimo Oitavo Comité Central do Partido Comunista da China”, celebrada em Pequim, de 26 a 29 de Outubro de 2015, e constitui uma referência decisiva, num período capital do processo de reforma e abertura da China. Quer pelo seu contexto, como pelo seu conteúdo e expectativas, está condenado a ser um documento essencial na longa transição chinesa.
É de assinalar, que apesar do aumento sustentado do papel do mercado, como consequência do processo de reforma, o planeamento das políticas de desenvolvimento, iniciadas em 1953, constituem um sinal de identidade irrefutável do modelo económico e político chinês. O “Décimo Terceiro Plano Quinquenal” deve ter em conta, pelo menos, três elementos determinantes. O primeiro será o facto, de que na transição do próximo período de cinco anos, a China converter-se-á, qualquer que seja o método de medição utilizado, com toda a probabilidade, na primeira economia do mundo, sendo uma situação que terá um singular impacto na economia global, e um efeito maior, em todos os sentidos, nas questões relativas à governança.
A China é a segunda maior economia do mundo e o maior exportador. O yuan, em Dezembro de 2014 ultrapassou o Euro, para converter-se na segunda moeda mais utilizada no financiamento do comércio mundial, depois do dólar, e até 2020 a China será o maior investidor internacional do mundo. A internacionalização do renmimbi será um dos eixos determinantes dos próximos cinco anos. Os seus activos globais triplicaram, passando de quase seis e meio mil milhões de dólares a vinte mil milhões de dólares, o que contribuirá para fortalecer a sua posição económica global.
O segundo tem em consideração, a aceleração do processo de transformação estrutural que vive a economia chinesa, realçando o maior papel atribuído à economia privada na modernização, tal como o papel do mercado, por contraposição com a determinação de tornar menos pesada a burocracia e adequar o sector público. A reforma agrária, por outro lado, deve sofrer uma reestruturação de grande alcance, de forma a adquirir eficiência. A despesa em I+D, que em 2014, foi de 2,1 por cento do PIB, continuará a sua espiral ascendente, de forma a converter a China numa potência tecnológica.
Quanto à questão ambiental, os esforços futuros devem permitir uma notória visibilidade, dado o estado do país no concernente a essa matéria, devendo por outro lado, levar a cabo uma ambiciosa reforma do sector público, de forma a criar gigantes industriais capazes de fazer face aos grandes concorrentes privados mundiais, complemento do “Plano Feito na China 2015”, que deve contribuir para atingir um posicionamento global das suas marcas comerciais. Assim, deve empreender projectos ambiciosos de construção, como os de um “Cinturão” e uma “Rota”, e a interligação e interconexão da Ásia, por meio de uma linha de comboio de alta velocidade. Estas acções foram anunciados pelo presidente chinês, a 8 de Novembro de 2014, e enquadram-se no investimento de quarenta mil milhões de dólares para a criação do “Fundo da Rota da Seda”, que dará ajuda financeira a projectos de construção de infra-estruturas, exploração de recursos e cooperação de indústrias dos países localizados ao longo do “Cinturão” e da “Rota”.
O Fundo e outros bancos de desenvolvimento multilaterais mundiais e regionais cooperarão, e funcionarão segundo a ordem económica e financeira internacional vigente. O Fundo não oferecerá apenas ajudas económicas, mas também, tem por objectivo criar oportunidades de grande desenvolvimento a todos os países envolvidos, por meio da interligação e interconexão. O Fundo é aberto a investidores dentro e fora da Ásia. Os corredores económicos e projectos que contam com numerosos fundos afiliados devem criar novos mercados às empresas produtivas chinesas, em conformidade, com os novos instrumentos de empréstimo constituídos.
O terceiro deve contemplar a junção de todos os elos da reforma, para além do significado estritamente económico, considerando os aspectos que incidem na formação do objectivo de construção de una sociedade ajustada. A criação de um moderno sistema de assistência social, que atenda às características do país, deve contribuir de forma decisiva para vencer uma penosa desigualdade, que continua a ensombrar os efeitos das reformas e abertura económica de Deng Xiao Ping, na década de 1980, tudo sem prejuízo dos factores políticos, especialmente, os relacionados com o reforço da legalidade e do Estado de Direito, dando um novo impulso à feitura de leis. Este processo tem um desafio essencial, no juízo de uma nova cultura de relacionamento entre o poder e a sociedade.
O “Décimo Terceiro Plano Quinquenal”, que chegará até às vésperas do centenário do Partido Comunista da China (PCC), em 2021, determinará o curso do processo de modernização. A tradição dos planos quinquenais na China remonta aos primórdios do maoísmo, durante o período de influência soviética, com o PCC no poder desde 1949. O primeiro plano quinquenal, vigorou entre 1953 e 1957, por meio do lendário Chen Yun, mais tarde vítima da Revolução Cultural e reabilitado posteriormente por Deng Xiao Pin, após a morte de Mao Tsé-tung.
A combinação da influência do planeamento leninista com a cultura estratégica chinesa, que aponta para uma visão que tem sempre uma mão no presente e outra na história, permitiu em boa medida, que a China, em poucas décadas pudesse recuperar uma parte substancial da grandeza perdida, durante o período da decadência iniciado, essencialmente, no século XIX. A agenda actual da China, em coerência com esse legado, tem os olhos postos em duas datas imediatas que são 2021, o centenário do PCC e 2049, o centenário da República Popular da China. O “Décimo Terceiro Plano Quinquenal” é inseparável dessas duas datas. Os dois primeiros elementos devem ser tidos em conta, quanto à valoração do documento. O primeiro, considerando a transição para um novo modelo de desenvolvimento, pois no período da presidência de Hu Jintao, entre 2002 e 2012, tiveram consciência de que o modelo iniciado em 1979 estava esgotado. A combinação de mão-de-obra barata, investimento em grande escala e orientação da produção para exportação, permitiu um salto gigantesco na economia chinesa, mas os efeitos secundários não foram desprezáveis.
O “Décimo Oitavo Congresso do PCC”, em 2012, ratificou o novo rumo, incorporando especialmente, as dimensões ambientais e tecnológicas e propiciando mudanças estruturais de grande extensão, tendo em vista conseguir a mudança de carril, tendo como preço, reduzir a velocidade da locomotiva. O segundo, tem por consideração, a construção de uma sociedade próspera e foi reiterado até à saciedade, que o sucesso do processo chinês e a ausência de grandes conflitos sociais que desestabilizam, explica-se por um acordo não escrito, que oferece riqueza aos cidadãos em troca de lealdade, mas esta equação também se esgotou. A sociedade chinesa é mais rica no seu conjunto, mas tremendamente desigual.
As autoridades chinesas reconhecem um índice Gini de 0,469, sobre o limiar de alerta de 0,4, mas existe quem relativize estes números, e os eleve para 0,6. O culminar do processo de modernização do país e a sua entronização no topo da economia global, ultrapassando inclusive os Estados Unidos em termos absolutos, não será possível de atingir, enquanto existir uma sociedade fracturada e com índices de desigualdade insustentáveis, o que exige grandes investimentos na saúde, educação, melhoria das infra-estruturas rurais, urbanização, novas políticas demográficas e um aumento substancial dos salários para criar a classe média, que dê suporte à sociedade de consumo, e encoraje o desenvolvimento dos serviços, em detrimento dos sectores primário e secundário.
A China revelou a 5 de Março de 2016, o “Décimo Terceiro Plano Quinquenal”, onde constam um conjunto de objectivos económicos e sociais para o período de 2016 a 2020, para aprovação do Congresso Nacional Popular. A China face a uma conjuntura difícil fixou como meta, em 2016, um crescimento económico entre os 6,5 e os 7 por cento, e está disposta a deixar aumentar o deficit para intensificar a sua política de incentivos fiscais, sendo sabido que este ano as dificuldades serão mais numerosas e maiores, e os desafios mais temíveis, pelo que se tem de preparar para um duro combate.
A economia mundial tem demonstrado uma recuperação ligeira, enquanto na China se acentuam as pressões descendentes sobre a economia. O PIB chinês, cresceu 6,9 por cento, em 2015, o mais baixo dos últimos vinte e cinco anos. Os indicadores da segunda economia mundial, desde há meses, revelam um desequilíbrio, dada a medíocre procura interna, exportações em queda, contracção da actividade manufactureira, paralisação dos investimentos no sector imobiliário, sobrecapacidade na indústria, fuga de capitais e turbulência nas bolsas. As autoridades chinesas defendem a nova normalidade de um crescimento menor, mas mais sustentável e centrado nos serviços, no consumo interno e nas novas tecnologias. O sector terciário, neste período de transição, representa mais que 50 por cento do PIB chinês, e está a demorar a realçar os motores tradicionais do crescimento, como são o sector imobiliário, infra-estruturas e exportações.
A fim de favorecer a dita transição, o governo chinês quer suprimir as capacidades de produção excedentárias, por meio da reestruturação dos grandes grupos estatais, o que levará a eliminar postos de trabalho, e quer uma solução rápida para as empresas “zombie”, as empresas não rentáveis do sector mineiro e da siderurgia, que apenas sobrevivem devido ao endividamento e aos subsídios públicos. A China, adoptou para 2016, a meta de inflação de cerca de 3 por cento, muito acima do nível actual, e espera manter o desemprego abaixo dos 4,5 por cento. O estado da economia da China move as bolsas de todo o mundo, e as previsões e acções principais que o governo tomará para os próximos cinco anos e que constam do referido documento, são os de um crescimento médio, de pelo menos 6,5 por cento.
O PIB passará dos 67, 7 mil milhões de yuans do passado ano, a mais de 92,7 mil milhões de yuans em 2020, o que significa mais que o dobro do PIB de 2010. O sector de serviços deverá representar 56 por cento do PIB, em 2020, ou seja, 5,5 por cento superiores a 2015, que foi de 50,5 por cento. A China irá reduzir o consumo de energia para um nível abaixo dos cinco mil milhões de toneladas de carvão nos próximos cinco anos. O país consumiu o ano passado quatro mil e trezentos milhões de toneladas. Irá reduzir o consumo de energia e de emissões de dióxido de carbono por unidade de PIB até 2020, em 15 e 18 por cento, respectivamente e relativamente aos níveis de 2015.
A qualidade do ar nas cidades qualificado de bom irá aumentar para 80 por cento, face aos 76,7 por cento do ano passado. Irá aumentar a produção de energia nuclear para cinquenta e oito gigawatts até 2020, pela entrada em serviço de novas centrais com uma capacidade total de trinta gigawatts. A China dispõem de trinta reactores em actividade, com uma capacidade de 28,3 gigawatts, e vinte e quatro encontram-se em processo de construção. A rede rodoviária, irá aumentar para trinta mil quilómetros até 2020, face aos dezanove mil quilómetros do ano passado, e à construção de pelo menos cinquenta novos aeroportos civis.
A China irá aumentar o rendimento “per capita”, em pelo menos 6,5 por cento anualmente. O aumento foi de 7,4 por cento, em 2015. O país irá criar cinquenta milhões de postos de trabalho nas zonas rurais nos próximos cinco anos. A China irá controlar a população que vive nas cidades, equivalente a 60 por cento da população total, ou seja, de oitocentos e cinquenta e dois milhões de pessoas, numa população total de mil milhões e quatrocentos e vinte milhões de chineses prevista para 2020. A proporção era de 56,1 por cento, em 2015.

14 Mar 2016

Privilégios em Coloane

Mário Duarte Duque

A regra que protege os terrenos na Ilha de Coloane localizados a acima da cota 80 medida ao nível médio do mar é uma regra insipiente e avulsa que remonta a 1992, a qual movida em âmbito histórico e cultural, mas sem participação de especialidade ambiental ou de pressão em dar resposta a isso.
Por isso, a regra serve de resguardo mas não serve para administrar esse território natural.
Volvidos mais de 20 anos, a manutenção da mesma regra só pressupõe que nada houve a acrescentar à definição daquele território ou ao conhecimento do que ali existe e que é diferenciador.
A paisagem natural resulta dos chamados “caprichos da natureza” e não se entende, nem se define, na mesma forma sistemática em que é possível definir a paisagem urbana.
Enquanto num edifício se admitem definições do tipo de até determinado andar a finalidade poder ser comércio, por exemplo, e acima desse andar poder ser habitação, por exemplo, na paisagem natural a diferenciação já não se processa na mesma maneira, porque está longe de poder ser homogénea altimetricamente.
A paisagem natural caracteriza-se por relevos e por vegetação diferenciada, pontos conspícuos, uns naturais, outros já construídos, e por atributos de enquadramento visual.
Na cultura da região, não é por acaso que as sugestões morfológicas do relevo natural são muitas vezes origem de santuários ou de mitos.
A prova de que essa regra altimétrica não serve a totalidade dos recursos ambientais e paisagísticos na ilha de Coloane reside também no facto de que dela se excluiu a cota 0.00, que numa ilha corresponde exactamente à frente de mar e a lugares que tanto são de notáveis atributos paisagísticos, como são de vulnerabilidade acrescida.
Por isso, a regra de resguardo, apenas acima dos 80 m de altitude, só pode ser entendida como medida cautelar enquanto melhor definição de especialidade esteja em preparação. Não serve para antecipar intervenções de grande impacto, nem serve de confiança para adiar melhor definição.
Por outro lado, se a vocação da ilha de Coloane não é de santuário natural, e se se admite que a fruição de uma paisagem natural seja por via da construção de infraestruturas, as mesmas devem ser criteriosas, e dificilmente serão em número suficiente para atender exclusivamente todos os promotores interessados.
Por isso, nesses lugares, o equilíbrio reside na possibilidade de essas infraestruturas serem de iniciativa pública, por se tratar de recursos demasiado limitados para serem alienados a particulares, em exclusividade ou em permanência.
E tanto que assim é que quando a ilha de Coloane foi recentemente palco de uma iniciativa habitação pública em grande escala, em Siac Pai Van, cujo impacto paisagístico está longe de ser pequeno, essa iniciativa não foi objecto da mesma polémica que hoje envolve o lote adjudicado ao empresário Sio Tak Hong, e a isso não é estranho o facto de a iniciativa e as contrapartidas em Siac Pai Van terem sido públicas.
Já a polémica em torno da construção em altura é outro mito recorrente. A construção faz-se em altura sempre que é necessário ser distinguida, avistada, atingir um ponto geográfico alto ou assegurar o máximo de utilização, com o mínimo de afectação de solo.
As obrigações que recaem na construção em altura resultam do facto de ser uma presença conspícua. Por isso, a posição de uma torre deve ser criteriosa, e não deve prescindir de atributos visuais e estéticos no seu desenho. Tanto que assim é que, quando viajamos, torres de igreja, de televisão e faróis, todas chamam a nossa atenção e merecem a nossa admiração.
Nessas construções paira também um sentido elitista, seja de recursos de engenho, seja de recursos financeiros, e também não é por acaso que as torres exprimem o prestígio de quem teve a iniciativa de as construir ou, no caso dos edifícios civis, o prestígio de quem lá mora.
Enquanto lugar, as torres são por vezes também expressão do lado miserável do egotismo da condição humana. Daí as expressões “torre de marfim” e “torre de babel”, ou a letra de “sittin’ on the top of the world” ou de “down in the depths of the 90th floor”.
A torre já significa perigo eminente, senão destruição, enquanto expressão de ambições desmesuradas, construídas sobre falsas premissas, tal como na carta XVI do Tarô.
Quando as torres deixam de ser elegantes e passam a ser gordas, ou todos os edifícios passam a ser torres, os atributos das torres extinguem-se e todos esses edifícios passam a parecer uma mole indistinta de edifícios altos.
Quando nessa mole de construções todas as torres são icónicas, as mesmas acabam por sucumbir na indiferença ao ruído urbano.

11 Mar 2016

Lugar decisivo

Quando todos esperavam que o Partido Cívico de Hong Kong perdesse as eleições nos Novos Territórios de Leste, Alvin Yeung Ngok-kiu, candidato por este partido, conquistou um lugar na Assembleia com mais 10.000 votos do que o seu opositor Chow Ho-ding Holden, candidato da Aliança Democrática para a Melhoria e Progresso de Hong Kong. Chow Ho-ding Holden era visto antecipadamente como vencedor devido a uma série de factores que se conjugavam a seu favor. Os habitantes de Hong Kong e de Macau, atentos a esta luta política, não depositavam muitas esperanças na vitória de Alvin Yeung. Embora se acreditasse que o Campo Pró-democrata liderava no Distrito dos Novos Território de Leste, Alvin Yeung estava rodeado por inimigos nestas eleições, tendo de se confrontar com o único candidato apoiado pelas várias forças do Campo Pró-governamental e, sem perder de vista outros candidatos da sua área política. Os incidentes de Mongkok, que tiveram lugar na noite do Ano Novo Chinês, tornaram ainda mais complicado este processo eleitoral. Na sequência destes incidentes, alguns ex-membros do Conselho Legislativo, que inicialmente apoiavam Alvin Yeung, viram-se obrigados a retirar-lhe o seu apoio. Estas alterações dependentes das circunstâncias fizeram com que as pessoas se apercebessem do valor da moral na política. Com Alvin Yeung rodeado por uma série de factores desfavoráveis, foi importante que os eleitores de Hong Kong mantivessem um espírito crítico. Apesar da mobilização do Campo Pró-governamental e das divisões no seio do Campo Pró-democrata, o Partido Cívico conseguiu conquistar um lugar decisivo, mantendo assim um terço do número de assentos no Conselho Legislativo. Desta forma o Campo Pró-democrata mantém uma posição relativamente confortável nesta Assembleia.
A Associação de Novo Macau perdeu um assento nas anteriores eleições para a Assembleia Legislativa de Macau. Algumas pessoas acharam que a perda de um lugar não faria grande diferença para a aprovação, ou rejeição, das leis. No entanto, passados dois anos, verificou-se que a Associação de Novo Macau sofreu cisões internas e os seus deputados não tiveram o desempenho esperado na Assembleia Legislativa. Numa votação recente, que se seguiu a um debate, não esteve presente nenhum deputado da Associação de Novo Macau. Os candidatos nomeados pelas associações que representam, são posteriormente eleitos para o cargo de deputados. Mas se essas associações deixarem de vigiar o desempenho dos seus candidatos eleitos, como é que os eleitores podem confiar que os seus interesses e opiniões continuam a ser eficazmente representados?
Como a política é um assunto que nos diz respeito a todos, os seus protagonistas deverão dar prioridade máxima ao bem-estar do povo e não aos seus interesses pessoais. Infelizmente, existem sempre muitos interesses envolvidos na política e se os seus representantes não tiverem a seriedade e a supervisão necessárias, é muito fácil deixarem-se levar gradualmente sem dar por isso. Ao mesmo tempo, quem defende interesses há muito instituídos fará de tudo para não os ver ameaçados, criando a divisão para reinar. Se não fosse a perspicácia dos eleitores, nestas eleições nos Novos Territórios de Leste, com a fraca popularidade de CY Leung Chun-ying, o lugar podia ter caído nas mãos do Campo Pró-governamental. Vendo que os legisladores do Campo Pró-democrata parecem não dar importância ao quadro geral aliando-se aos Pró-Regionalistas, com risco fazer Alvin Yeung perder votos, pergunto-me quem terá tido a brilhante ideia de uma estratégia tipo “acabarmos todos juntos e arruinados”.
A separação dos poderes faz com que haja controlo e equilíbrio e destina-se a impedir que nenhum dos três se sobreponha e possa cometer abusos impunemente. O poder executivo, quer em Hong Kong quer em Macau, assenta na estabilidade e numa liderança forte, ao passo que o poder legislativo não está à altura da sua função de árbitro das acções governativas, devido à sua composição e à sua estrutura. Portanto, quando os altos responsáveis da RAEM não são pessoas de grande integridade, podem facilmente deixa-se corromper. Desde que veio a lume o caso de Ao Man Long, ficou claro que se o Governo da RAEM, e a sociedade em geral, não se empenharem a fundo, casos semelhantes acontecerão futuramente.
Nas eleições nos Novos Territórios de Leste, o Campo Pró-democrata conseguiu conquistar um lugar, embora seja um mandato de curta duração. Em Setembro haverá eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong. Em face de muitas circunstâncias negativas, quer externas quer internas, os eleitores estão a tornar-se cada vez mais exigentes. A capacidade que o Campo Pró-democrata tiver para actuar de forma inovadora será a chave para obter o apoio da população. Porque em última análise são os eleitores que decidem. O lugar no Conselho Legislativo, em jogo nas eleições nos Novos Territórios de Leste, tem grande significado e se os pró-democratas o tivessem perdido teria tido graves consequências.

11 Mar 2016

ATV, encerrar ou não, eis a questão!

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s últimas notícias sobre a ATV deixaram de ser novidade já há algum tempo. No dia 1 de Abril de 2015, o Conselho Executivo de Hong Kong deu à ATV um prazo de um ano para cancelar a licença de emissão de Televisão Digital Terrestre, que até aí lhe tinha sido cedida gratuitamente. Mal esta data expire deixaremos de poder assistir às emissões da ATV.
Logo após o anúncio do Conselho Executivo, começaram a ser ventilados vários casos relacionados com a estação e que nada abonavam a seu favor. A ordem de liquidação provisória foi dada em Tribunal, no passado dia 4, e a notícia de despedimento dos 300 funcionários foi emitida pelo executor Deloitte. O despedimento foi geral.
Uma ordem provisória de liquidação determina o fim da actividade de uma empresa e antecede a sua extinção legal. O executor provisório é apontado pelo Tribunal para levar a cabo a liquidação. Quer a ordem quer o executor têm um carácter temporário. Só poderão ser confirmados após reunião dos credores da ATV na qual sejam decididos os termos da liquidação.
Sem perda de tempo, logo no dia 5 deste mês, a China Culture Media International Holdings Limited (o novo accionista) readmitiu 160 dos 300 funcionários despedidos, para manterem a estação a funcionar. Foi-lhes proposto trabalharem até ao próximo dia 1 de Abril, recebendo dois salários por um mês de trabalho.
Não parece uma má proposta receber um mês a dobrar. No entanto a ATV ainda devia a estes funcionários os salários de Janeiro e de Fevereiro, pelo que esta proposta apenas resolvia parte do seus problemas.
Acresce ainda que o novo accionista estipulou condições contra os direitos legais destes trabalhadores. Ficaram impedidos de reclamar o pagamento dos salários em atraso antes de dia 3 de Abril. Por outras palavras, os 160 trabalhadores não podem processar, nem a ATV nem a Deloitte, pelos salários em falta antes desta data. No entanto estão autorizados a apresentar queixa ao Fundo de Insolvência para Protecção de Salários, para tentarem recuperar o valor em falta.
O Fundo de Insolvência para Protecção de Salários foi criado pelo Governo da RAEHK. As empresas que operam em Hong Kong são obrigadas a pagar 250 HKD por ano pela sua licença comercial. Estes valores são depositados num Fundo que cobre o pagamento de salários quando as empresas ficam impossibilitadas de o fazer. Qualquer valor que os empregados recuperem posteriormente do seu empregador deverá ser restituído ao Fundo. O Fundo funciona como um intermediário entre patrões e empregados e é um garante para os trabalhadores. Em caso de falência, pelo menos parte dos salários em falta será devolvida.
Em Macau não foi criado um Fundo similar.
E agora pergunto eu, se o meu caro leitor estivesse na pele de um destes 160 funcionários, aceitaria ou não a proposta que lhes foi feita?
Bem, do ponto de vista financeiro não me parece que lhes reste outra alternativa senão aceitarem. Com um passivo de dois meses de salário em atraso e, evidentemente, com vidas para gerir, que mais podem fazer? Por um mês de trabalho recebem dois ordenados, estão à espera de quê?

Do ponto de vista legal, serão legítimas as condições estipuladas pelo novo accionista, ou seja, que os trabalhadores abdiquem dos seus direitos legais até dia 3 de Abril?
Em Hong Kong as leis que regem o emprego orientam-se por um princípio básico que defende que nunca deve haver qualquer limitação dos direitos dos trabalhadores. Mesmo que os trabalhadores concordem com essas limitações, continua a ser ilegal. E isto porque os acordos entre patrões e empregados não se sobrepõem aos requisitos estatutários. A Lei deverá ter sempre a última palavra.
No entanto este acordo não priva propriamente os trabalhadores dos seus direitos, apenas os adia. O facto de se absterem de qualquer acção até 3 de Abril, não reduz em nada os seus direitos, portanto aparentemente não se verifica uma transgressão da Lei do Trabalho de Hong Kong.
Mas o efeito de “adiar o exercício dos direitos legais” pode ser prejudicial. Está fora de questão pôr em causa o dever que o empregador tem de pagar os salários aos seus funcionários. Mas nesta situação esse dever é intencionalmente adiado, não lhe parece?
É evidente que o novo accionista terá as suas razões para agir desta forma. A transferência das quotas dos accionistas originais da ATV para os actuais leva tempo. A aprovação do Governo de Hong Kong é necessária. Sabemos pelos media que esta transferência ainda está em curso. Logo se a transferência ainda não está efectivada, de momento os novos investidores são estranhos à ATV, ainda não são accionistas de pleno direito. Não têm direito a pronunciar-se. Além disso como a licença da ATV não vai ser renovada, o seu futuro ainda é um grande ponto de interrogação. Ninguém sabe dizer se depois de 3 de Abril
a ATV vai continuar a emitir. Para já a estação precisa de investimento. No caso de haver um encerramento, todo o dinheiro que os novos investidores já injectaram será desperdiçado.
Podemos pensar que o acordo feito com os 160 funcionários é melhor que nada. A nova vida da ATV vai depender dos novos accionistas e da sua equipa.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

10 Mar 2016