A perfeição

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi um ano bom por esse mundo fora. Morreu gente que é imortal, elegeram-se pessoas tortas, fizeram-se guerras estúpidas, tão estúpidas como todas as outras guerras de que reza a história, a comprovar que nós, os comuns mortais, não aprendemos. Morreu gente sem nome a tentar chegar a uma terra nova, a fugir da miséria, a fugir de onde nunca quis sair, com as raízes ainda agarradas ao corpo. Houve gente morta por quem mata só porque sim, numa outra guerra estúpida que nos diz, todos os dias, que os homens não sabem nada uns dos outros.

Nós, por cá, tudo bem. Não há mal grave que dure por aqui. Os nossos dilemas, colocados em perspectiva, são coisas pequenas, leves, a roçar a insignificância. Os nossos males não têm armas nem sangue, não nos invadem a casa, não nos deixam com o coração nas mãos, com medo de fecharmos os olhos e de nunca mais os podermos abrir.

Mas com as dores dos outros podemos nós bem. Por mais que, num exercício quase religioso, façamos a relativização da nossa dor perante o sofrimento alheio, é-nos impossível fugir ao dramatismo das pequenezas do quotidiano. Porque é o nosso quotidiano e é nele que respiramos. E porque é dos homens quererem sempre mais. Ainda bem.

Sucede que, por estes lados do mundo, a medida da perfeição está ali ao virar da esquina, como se fosse facilmente atingível. A malta contenta-se com pouco na cidade onde tudo, ou quase tudo, podia ser infinitamente melhor. Resmunga-se, mas baixinho, não vá o vizinho ouvir e perceber exactamente o que acabou de ser resmungado. Critica-se, mas sempre com um elogio no princípio e no fim, como se de uma moldura se tratasse, para que as bordas do reparo não provoquem rasgos nas sensíveis almas criticadas.

Por estes lados do mundo, nunca sou eu que penso – são eles, a população, o povo. O povo é que não gosta, a população é que diz que é melhor ter cuidado, eles é que estão descontentes com o rumo da situação. Nunca sou eu que penso porque não tenho coragem de pensar. E também nunca somos nós, que a colectividade caiu em desuso.

Com as dores dos outros podemos nós bem e até com as dores daqueles que nos deviam ser próximos, mas não são. Por aqui, encobrimos histórias feias, não lavamos roupa nos jornais, os cafés às vezes servem de lavandaria mas rapidamente se esconde a roupa, mais o detergente, quando a palavra dita ousa ser perigosa para o estado feliz em que nos encontramos, nós, gente sem guerras nem sangue, nem ideias e muito menos opiniões.

Passou mais um ano que foi mau, mas nós por cá tudo bem. Enquanto o emprego for certo e houver bacalhau no Natal, nós por cá tudo bem. Engolimos tudo com um tinto e preparamo-nos para a contagem decrescente, conta-se baixinho e grita-se baixinho, dançar é que não que ainda pensam que sou louca, olhem que bem comportados que somos todos nós, tão assim, tão de bem com tudo. Com as dores dos outros podemos nós bem.

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