Sondar desejos

[dropcap style=’circle]N[/dropcap]o passado sábado, dia 2, o website de Hong Kong “Yahoo” publicou uma sondagem efectuada pelo APM (Sondagem 2016). O objectivo era determinar as expectativas dos habitantes de Hong Kong para 2016.
O APM é um centro comercial, muito conhecido em Hong Kong. A sondagem realizou-se a partir de 520 entrevistas. Metade dos entrevistados tinha menos de 27 anos. As principais conclusões foram as seguintes:

Afirmações
5% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será melhor do que em 2015.
59% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será semelhante ao de 2015.
31% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será pior do que em 2015.

O Apm comparou os dados da Sondagen 2016 com a homóloga de 2015, e revelou:

Percentagem de entrevistados Afirmações
43% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será melhor do que em 2014.
35% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será semelhante ao de 2014.
21% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será pior do que em 2014.

A recente sondagem revelou que o primeiro desejo dos habitantes de Hong Kong é a prosperidade económica, o segundo a paz social, sendo o terceiro o pleno emprego.
Até certo ponto, a Sondagem 2016 indica a forma de pensar de algumas pessoas de Hong Kong. Após a luta política, para o cargo de Chefe do Executivo em 2014, as opiniões ficaram mais polarizadas. Ninguém estava interessado em escutar as opiniões do adversário. A contenda deu origem a uma desconfiança mútua. Sem essa confiança e sem relações de alguma proximidade, não é de estranhar que as pessoas se preocupem com a paz social. O resultado das eleições para o Conselho Distrital, realizadas há já alguns meses, foram também inesperados. Muitos dos membros mais experientes do Conselho Distrital e alguns conselheiros, que também eram membros do Conselho Legislativo, não foram eleitos. O resultado indicou claramente que os jovens querem ter uma “voz” que os represente. E essa mensagem foi passada de forma muito clara.
Outra questão social muito sensível é a da habitação. Através dos números publicados recentemente pelo Governo da RAEHK, percebe-se perfeitamente que os terrenos disponíveis são limitados e que, portanto. será impossível solucionar o problema da habitação a curto prazo. Considerando este cenário, os resultados da Sondagem 2016 parecem ser compreensíveis.

Em Junho do ano transacto, dia 23, foi publicado o “Relatório de 2014 Sobre Níveis de Bem-Estar Nacionais”. O relatório usou o método “Gallup-Healthways Global Well-Being Index”, aplicado para medir os níveis de felicidade dos habitantes de 145 países.
O relatório indicava que o Panamá aparecia em 1º lugar”. Hong Kong ocupava a posição 120 e Macau não era mencionado.
O Global Well-Being Index é um barómetro global das percepções individuais sobre o próprio bem-estar e representa o estudo mais recente do género. Os dados foram recolhidos em 145 países e, em 2014, foram entrevistas mais de 146.000 pessoas.
Na altura, comentámos que o fraco posicionamento de Hong Kong no Relatório, demonstrava as muitas insatisfações dos seus habitantes. Podemos identificar os seguintes problemas em Hong Kong:
1. Preços de aluguer de casas elevado, um cidadão comum não consegue comprar a sua habitação,
2. Sistemas de pensões de reforma insatisfatório,
3. A questão do comércio paralelo afecta o relacionamento entre os habitantes de Shenzhen e de Hong,
4. Horários de trabalho muito sobrecarregados, que dificultam muito o lazer,
5. Espaço limitado e altos índices populacionais dão origem a poluição elevada, com consequências negativas para a saúde dos habitantes.
Se compararmos a sondagem 2016 do Apm com o Relatório que temos vindo a comentar, compreendemos que as questões relacionadas com as finanças e o emprego continuam a ser as principais preocupações dos residentes de Hong Kong.
Independentemente dos resultados de sondagens e relatórios, é preciso que o Governo e a população unam esforços para resolver os problemas. Não é uma tarefa fácil. Mas se prometermos a nós próprios, no primeiro dia de 2016, que vamos conseguir, então todos conseguirão.
Resta-nos desejar a todos um excelente 2016.

* Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau
Blog: https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

4 Jan 2016

Domingo em cheio

[dropcap style=’circle]P[/dropcap]ara celebrar o 16º aniversário da transferência de soberania de Macau, que teve lugar a 20 de Dezembro, o governo da RAEM organizou as comemorações habituais e ainda, durante a tarde, um concerto no Estádio de Macau. No entanto, nem o ambiente festivo nem a música conseguiram abafar os gritos de protesto dos manifestantes. Seis grupos locais desceram à rua para demonstrar a sua insatisfação com a actuação do governo. Além disso, as pessoas que tinham comprado antecipadamente os apartamentos do edifício “Pearl Horizon”, que se encontra ainda em fase de construção, também se manifestaram, já que a empresa responsável não foi capaz de cumprir a construção dentro dos prazos legais e o governo, de acordo com a lei, fez questão em reclamar os terrenos destinados ao edifício. Os movimentos sociais, liderados pelos diferentes grupos e lutando por diferentes causas, chamaram a atenção quer do governo da RAEM quer do governo Central. Algumas pessoas chegaram a designar este aniversário como um “Domingo em Cheio” para manifestações.
O grupo de manifestantes com maior impacto foi, sem dúvida, o dos compradores dos apartamentos do “Pearl Horizon”. Mais de 1000 pessoas bloquearam a rua e confrontaram-se com os agentes policiais, que fizeram o que estava ao seu alcance para controlar a situação, tomando apenas as medidas necessárias para fazer face aos ataques às forças da autoridade. O trânsito foi seriamente perturbado e algumas pessoas cometeram actos menos próprios contra os media. Finalmente os manifestantes dispersaram de forma pacífica.
O caso do edifício “Pearl Horizon” deu origem a preocupações e debates ao longo das últimas semanas. Acredito que a maior parte das pessoas tem uma opinião sobre este assunto. Os compradores dos apartamentos acusam o construtor por não ter cumprido os prazos. O governo, pelo seu lado, reclamou os terrenos ao abrigo da Lei de Terras, para impedir que venham a acontecer mais casos semelhantes. A questão do edifício “Pearl Horizon” poderia abrir um precedente. Se o princípio orientador da Lei de Terras não for respeitado, os valiosos terrenos da RAEM podem ficar indefinidamente desaproveitados por construtores que aleguem o pretexto da “reserva de terrenos”.
Macau é uma sociedade que pretende ser um estado de direito. Como os construtores já deram início ao processo legal, o assunto será resolvido nesse âmbito. Quanto aos compradores dos apartamentos do “Pearl Horizon”, terão de ser pacientes e esperar por uma decisão.
No dia do aniversário, ocorreram confrontos na zona que circunda a Rua da Pérola Oriental. O Jardim do Mercado Municipal de Iao Hon foi também palco para protestos de outros grupos. Destes últimos, destacam-se, a Associação de Novo Macau (organizador de longa data das manifestações que têm vindo a assinalar o Dia da Transferência de Soberania) e, a recém-formada, Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau. Muitas pessoas, inclusive oriundas da China continental, querem saber se estas duas organizações são antagónicas ou se se complementam e contrabalançam o movimento!
Pelo meu lado não estou preocupado com a possibilidade de conflito já que, quer o presidente, quer o vice-presidente, da Assembleia Geral da Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau, são candidatos à Assembleia Legislativa pela Associação de Novo Macau. Os membros destas duas associações conhecem-se uns aos outros. Mesmo que possam ter pontos de vista diferentes, não deixam de partilhar os mesmos princípios democráticos e defender a sua implementação em Macau. Podem até aperfeiçoar-se mutuamente. De facto, no encerramento da manifestação, o presidente da Associação de Novo Macau, Chiang Meng Hin, foi convidado para proferir um discurso pela Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau, ao passo que o deputado Ng Kuok Cheong falou durante o encontro da Associação de Novo Macau, a convite de Chiang. Por fim, as duas associações derem início aos protestos, lado a lado e de forma pacífica.
Só me senti desapontado por estas duas associações não terem sido capazes de combater a fraca participação popular nas manifestações. A ausência de participação massiva pode, eventualmente, ser explicada pelo mau tempo que se fez sentir nesse dia, ou pelo facto de os cidadãos terem perdido o interesse em se manifestarem contra o governo. Seja qual for o motivo, o “Domingo em Cheio” foi um símbolo do muito que há a fazer para melhor a actuação do governo. “A procura de mudanças através de reformas políticas e a concretização de um verdadeiro sufrágio universal” terão de ser objectivos para o aperfeiçoamento da administração governamental.

4 Jan 2016

Tempo e memória

[dropcap style=’circle]A[/dropcap]A passagem do Tempo incorpora em nós passado e memórias.
E no segundo que medeia entre o velho e o novo, acorre-me um outro tempo, neste mesmo lugar. Macau, a Calçada do Tronco Velho e um vetusto edifício que se foi nos vendavais gerados por gente que hoje nem memória são. À esquerda de quem sobe, o passante que olhasse para as primeiras janelas do rés-do-chão veria homens debruçados, manipulando pedaços de chumbo, e sentiria um forte cheiro a tinta. Aquele casarão era misterioso.
Bocas maledicentes segredavam rumores de que ali mandava um perigoso comunista, o republicano “Monteiro das barbas”, que para aqui se degredara para estar próximo dos camaradas do outro lado das Portas do Cerco.
Ali dentro trabalhava-se até muito tarde. Funcionava aí o “Notícias de Macau” que Hermman Machado Monteiro havia fundado em 1947, sucedendo ao “A Voz de Macau”, do Capitão Domingos Gregório da Rosa Duque.
Os tipógrafos viam-se da rua, compondo, letra a letra e com rapidez, colunas que se iriam encaixar umas nas outras de um modo tão anacrónico quanto, aos olhos de hoje, é a máquina de imprimir. 2 edificio do noticias de Macau à direita
Junto às janelas dos tipógrafos, comandados pelo senhor Jacob, que naquele tempo era assim que se tratavam os mais velhos, situava-se a porta de entrada. Esta dava para um largo átrio, em tijoleira vermelha, de luz coada, sábia medida para manter a frescura dos dias ardentes. Uma escada em L, que chiava, dava acesso ao andar superior onde havia dois caminhos a tomar. À direita, a zona da administração onde trabalhavam duas simpáticas senhoras. Um pouco mais à frente vislumbrava-se uma papaieira que anunciava o grande jardim, que confinava com a igreja de Sto. Agostinho. À esquerda, percorrendo uns escassos metros e abrindo uma porta de vaivém, chegava-se à sala da redacção com inúmeras mesas frente a frente, munidas de máquinas de escrever. Numa dessas mesas, Patrício Guterres matraqueava impiedosamente a sua Remington que um dia descobri já não ter letras nas teclas.
No gabinete que dava para a redacção, trabalhava Luis Gonzaga Gomes, vizinho de casa e a quem todos chamavam de “Inho” Gomes. De poucas falas e que, para minha surpresa, conseguia andar sem barulho, deslizando pelo sobrado antigo. Tão metido consigo, era quase uma sombra. Só mais tarde vim a ler os seus livros, com dedicatória aos meus pais, que publicou nas oficinas do jornal.
Chegavam aos poucos os senhores Anízio, Raul da Rosa Duque, José dos Santos Ferreira, meu tio Adelino da Conceição, Mário de Abreu e o Major Cabreira Henriques, que se detinha em longas conversas com meu Pai.
A sala da redacção ia ganhando vida à medida que as horas passavam e o senhor Jacob entregava linguados para serem corrigidos, que aquilo era obra para muitas horas.
O meu fascínio ia sobretudo para Hermman Machado Monteiro e o seu charuto. Falava pouco, como que pairava por lá, alentando com a sua presença toda aquela plêiade de gente.
Recordo que no Fim de Ano, naquela casa de sobrado que rangia, havia sempre uma ceia aberta a todos e brindes com Vinho do Porto.
Sabia que Hermman Machado Monteiro vivia no Hotel Riviera. Visitei uma vez, com meu pai, o seu quarto, enorme, com varanda para a Praia Grande.
Tinha dois poisos preferidos, onde gostava de reunir os seus colaboradores.
O restaurante do próprio Hotel Riviera, onde se reuniam em ampla e culta cavaqueira aqueles que seriam a Tertúlia do Notícias de Macau.
No Fat Siu Lao, onde ia com tanta frequência que ficou na ementa o “Bife à Monteiro”, fazia questão de reunir todo o pessoal que trabalhava no jornal, desde redactores, revisores, director e tipógrafos.
Nunca me perguntei se o jornal era viável. Acredito que não. Como não o era o Círculo de Cultura Musical que Luís Gonzaga Gomes dirigia. Mas outros elevados valores se levantavam.
O Dr. Pedro José Lobo, verdadeiro Mecenas no panorama cultural de então e figura a requerer estudo biográfico, era também assíduo nestas tertúlias. Era um amante da música e, além de compositor, podia dar-se ao luxo de ter uma rádio, a Rádio Vila-Verde, em chinês, na sua mansão, e a Rádio Vila-Verde em Português, na rua Francisco Xavier Pereira.
Meu pai, António Maria da Conceição, foi o último director do “Notícias de Macau”. Viu, ironicamente, fecharem-se as portas com a liberdade de Abril. Uma estranha comissão ad hoc desferiu o golpe final a um jornal que tinha por tradição juntar todos sem distinção. Meu pai escreveu o último editorial, à guisa de saudação final, que intitulou “Morituri te salutant”. Malhas que o Império tece…
Antes, a marcar o Tempo, penduravam-se calendários nas paredes. Hoje, perdura a Memória, essa intangibilidade desconhecida por tantos. Os anos sucedem-se e, no bolor do tempo, pouco permanece.
Que tenham um Bom Ano.

4 Jan 2016

Factos que marcaram 2015

[dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. XI E O COMBATE ANTI-CORRUPÇÃO
O ano de 2015 assinala o reforço da luta anti-corrupção, cruzando os escalões cimeiros do Partido Comunista Chinês, a estrutura da administração pública e os CEO das empresas globais chinesas. Os observadores questionam-se se esta é uma estratégia de eliminação faseada de inimigos internos. Ou se é uma repetição das campanhas de rectificação da década de 1950 para ‘limpar’ o partido e o Estado dos colectores de subornos, do promotores de empresas familiares e dos agentes de transferência de fortunas e capitais para paraísos fiscais e países europeus. En passant, Xi viu crescer o número de inimigos internos, por ora recolhidos e que escolherão o tempo apropriado para o ajuste de contas. A corrupção é crónica na China. Foi grande no regime imperial; é gigantesca no Estado socialista. Enquanto o sistema judicial não for verdadeiramente independente ela crescerá na exponencial. As campanhas políticas são tigres de papel.

2. CHARLIE HEBDO E A CIDADE DAS LUZES

Paris tornou-se simbolicamente o alvo preferido dos terroristas islamistas. Num ano tiveram lugar dois atentados, de enorme violência, visando colher o maior número de vítimas, e estremecer as democracias europeias. Nova Iorque foi em 2001 o símbolo da senha niilista contra a civilização ocidental e a cultura de tolerância, inclusão, economia de mercado e consumo que a distinguem. Paris é, catorze anos depois, um novo alvo. Pelo que representa em termos de património do Renascimento e do Iluminismo, do laicismo, da arte, da música e da cultura em geral. As vítimas são danos colaterais. Os kamikazes, tochas humanas que se imolam à glória de um Deus sanguinário e uma vida para além da morte prenha de prazeres profanos. As razões religiosas (um mundo islamizado) um pretexto para uma operação calculada de cerco e ocupação militar. A Europa está em guerra.

3. UNIVERSIDADE DE SÃO JOSÉ

Depois de ter sido lançado, nos anos finais do período de transição, como um desígnio estratégico educativo de Portugal, o Instituto Inter-Universitário de Macau transformou-se, em 2009, na Universidade de São José. Ruben Cabral redefiniu-o como um projecto de âmbito regional. A instituição perdeu velocidade, em razão de polémicas constantes que levaram à demissão do reitor. O novo reitor, Padre Peter Stilwell, inverteu a estratégia de expansão do projecto. Eliminou cursos, dispensou docentes, suprimiu unidades de investigação e elegeu um só objectivo: a edificação de um grande campus. Sem alunos do continente, dada a inexistência de relações oficial entre Pequim e a Santa Sé, a USJ tornou-se uma pequena universidade da RAEM , sem amplitude e com reduzido número de alunos oriundos da Região Ásia-Pacífico. Suprimida a cooperação com a Universidade Católica Portuguesa, reforçou-se a dependência da diocese e dos seus interesses. A USJ é um projecto universitário a termo certo.

4. PS E ANTÓNIO COSTA

Depois de uma derrota significativa nas urnas, mas tirando partido da ausência de maioria absoluta, António Costa manobrou com tactismo. Negociou com comunistas e a esquerda radical um acordo de incidência parlamentar. A solução foi ratificada por Cavaco Silva, na ausência de alternativas. Atarantado com negociações constantes com os seus parceiros, Costa tem recorrido ao expediente de fazer aprovar no Parlamento as propostas mais radicais dos seus aliados marxistas. Apressou-se a empurrar para o fim do ano (2016) as medidas impostas pelo Tratado Orçamental. O ano de 2016 será farto em medidas populistas dirigidas ao crescimento dos salários e a estimular o consumo público e privado. Navegando à vista, Costa espreita o apoio tácito do novo Presidente para este conventículo oportunista. Os adversários não serão o PSD e o PP. Serão a Procuradora-Geral e o Presidente do Tribunal de Contas. Nos bastidores a nebulosa das empresas do PS e dos amigos espreitam o bolo dos contratos públicos.

5. TAM VAI MAN

Uma querela particular sobre o acesso a campas, num cemitério público, tornou-se o processo judicial dos dois últimos anos. Arrastando no caudal o presidente e outros três responsáveis de uma unidade orgânica virada para acorrer às necessidades mais imediatas da população. Interpelada, nos tribunais, a imparcialidade e competência dos quadros visados, a magistratura judicial sufragaria, em primeira e segunda instância, a inocência dos mesmos e a insustentabilidade da acusação do Ministério Público. A Justiça fez-se. Evitou-se o sacrifício artificial de um dos melhores quadros bilingues que tive oportunidade de ter como aluno nos Programas de Estudo em Portugal, na década de 1990. Destaco aqui, como amigo, a sua coragem, determinação e amor à verdade ao longo do processo. Apenas lamento a exploração política que interesses bem identificados na Assembleia Legislativa (e fora dela) fizeram deste assunto. Quinze anos depois da transferência de administração de Macau há quem ainda não compreenda que nada se ganha com o denegrir da administração.

6. BARACK OBAMA

Obama iniciou o seu mandato gerando enormes expectativas quanto à correcção dos erros da administração Bush, ao fim de intervenções militares no Iraque e no Afeganistão, ao encerramento de Guantanamo Bay e ao restabelecimento da credibilidade externa dos EUA. No plano interno, prometeu a recuperação económica, a criação de milhares de novos empregos, políticas sociais dirigidas aos mais pobres. Prestes a concluir o segundo mandato, o balanço é dividido. Se no plano interno, Obama conseguiu inverter a trajectória de declínio da economia, no plano externo o balanço é negativo. Quanto ao Iraque, coloca-se agora a necessidade de reforçar o contingente americano, no terreno. Guantanamo Bay continua por encerrar. Foi assinado um acordo com o Irão que não garante a anulação do programa de enriquecimento de urânio mas apenas o seu adiamento. Já noutro palco, permitiu a subida da competição militar chinesa no Pacífico Ocidental e o retorno da Rússia ao estatuto de grande potência, perdido em 1989. Ficará na história como o Presidente da retórica, da comunicabilidade mas de diminuta eficácia.

7. RAIMUNDO DO ROSÁRIO

Aposta pessoal de Chui Sai On para uma pasta essencial do executivo de Macau, Raimundo do Rosário tem deixado notas positivas quando ao estilo, às prioridades e à forma de agarrar os problemas. No primeiro, uma forma muito directa de identificar dificuldades, possíveis soluções e mostrar as condicionantes. Nas segundas, um enfoque nas questões da habitabilidade, na carência de novos espaços urbanos que levam tempo a conquistar, de acordo com um planeamento lógico. Na terceira, a ideia clara que os problemas de Macau nas áreas de habitação, do trânsito, dos equipamentos sociais são técnicos. Devem ser geridos de acordo com critérios técnicos. É desejável a consulta à população. São louváveis os milhares de opiniões recolhidas nestas. Mas no domínio das políticas públicas não há soluções milagreiras. Há soluções executáveis. Macau tem um problema dramático, de fragilidade da sua estrutura económica. A curva de declínio das receitas do jogo acentua a incerteza do seu futuro. Têm de se dar passos certos; não mergulhar em aventureirismos irresponsáveis.

3 Jan 2016

Urbanidades

[dropcap style=circle’]A[/dropcap]noiteceu cedo, como é habitual nesta altura do ano, embora aqui o calor retire ao bafo da vaca do presépio o conjunto de clichés que nos foram impondo. Estava fora, e isso também fazia alguma diferença nos hábitos.
A entrada do hotel patenteava uma árvore natalícia gigante. Um piano ecoava pelo enorme átrio onde se cruzava uma multidão díspar que, tal como eu, aproveitava a época para sair do repetitivo quotidiano.
Lá fora, onde de dia se nadava, acendiam-se velas que bruxuleavam no escuro, expressando os festivos desejos habituais.
Senti-me algo perdido naquela multidão enquanto esperava que nos agrupássemos para o jantar. Mas uma como que frequência chegou-me aos ouvidos na forma de um sinal quase insonoro, que se afirmava pelas vibrações que sobre mim exercia, como que uma membrana de uma coluna de som a vibrar. O fenómeno transbordou, percorreu-me a mente, os membros, o corpo. Subitamente, observei o que me rodeava de um outro modo, como se não fizesse parte daquele cenário.
Vislumbrei então, vindo na minha direcção, um homem estranho, que se movia deslizando, sem se lhe ver os pés. Tinha uma tez de cera, vestia uma sobrecasaca preta, gola de veludo, um colete escuro. O mais insólito era o cabelo frisado, já ralo, e uma barba longa, encimada por um bigode farto e branco, todo ele saído da era Vitoriana. Olhava-me fixamente à medida que se aproximava, atravessando as pessoas sem que elas dessem conta dessa extraordinária visão.
Não falámos. O extraordinário é que comunicou de uma forma que eu ouvia sem que houvesse som. “I bid you good evening, my dear fellow” disse-me, e cada palavra como que vibrava dentro da minha cabeça. “Good evening” respondi-lhe estupefacto, porque apenas pensara as palavras. Comunicávamos pelo pensamento, algo, para mim, deveras surpreendente.
“I have been around for quite a while but these days I find all this a little too odd for my liking” retorquiu. “Anyway, my dear sir, my name is Charles. You may call me Charles given these uninformal days you live in”. O ar era sisudo, as pálpebras descaíam sobre um olhar pesado, talvez mesmo cansado.
Aquele rosto era-me familiar, mas não com tanta idade. Arrisquei: “I presume, if my memory does not betray me, that you are Mr. Dickens, Mr. Charles Dickens”. O meu interlocutor fitou-me com um semblante algo triste. “In fact I created Ebenezer Scrooge, and since then all they know about me is the Christmas Carol. Well, I guess one cannot escape one’s destiny”. Tossiu, pigarreou, olhou para mim e disse: “Não sei porque estou a falar inglês quando posso falar qualquer língua”.
“Mas venha”. Agarrando o meu antebraço, começámos a elevar-nos por sobre as pessoas no átrio, dirigimo-nos para a enorme parede de vidro que atravessámos sem custo, olhei a piscina iluminada de velinhas flutuantes. Não senti medo. Acostumara-me à vibração que me percorria, como uma corrente de energia cuja origem era insondável. Ascendíamos sem parar, lentamente, numa trajectória oblíqua. Estávamos sobre o mar. Olhei para cima, mas fui interrompido: “Neste plano, ascender ou descender não tem significado. Não existe o acima nem o abaixo, o atrás ou o a frente, a esquerda ou a direita. Quando habitamos o humano, a nossa compreensão tem limites impostos pelo mundo em que crescemos e vivemos. A matéria ilude-nos e formata-nos. Escrevi sobre Ebenezer Scrooge e a sua avareza, que era material, e o seu arrependimento”. Olhei-o, enquanto continuávamos a subir. “Então quer dizer que neste momento estou materialmente tão… emaciado quanto o senhor?”. Sorriu-me, cofiou a barba e disse-me: “A morte material é uma realidade humana incontornável, mas tão natural como o nascimento. É a passagem pelo mundo plano e primário da matéria.
Apontou-me para o gigantesco globo que tínhamos à nossa frente, a lua, que nunca tinha visto assim, enorme.
Daí já podia contemplar um pouco mais do Universo. Não muito mais. Lendo o meu pensamento, pegou-me no pulso e deslocámo-nos a uma velocidade inimaginável. Abrandámos e, de súbito, estacámos no vácuo. Um panorama deslumbrante abria-se perante os meus olhos de mortal. Enormes galáxias em forma de nuvem, estrelas poderosas emitindo explosões de si próprias, planetas gigantes, outros menores, chuvas de meteoritos passavam perante o meu extasiado olhar.
“Veja, estamos num ponto do Universo em expansão. Aqui não existe nem bem nem mal, nem aqui nem em lado nenhum. Não há agendas nem desejos. A matéria é uma consequência, não um fim. Apenas os espíritos muito primários alimentam guerras e usufruem delas, falam de paz e lucram com ela, arrancam confissões, combatem por deuses diferentes ou por matérias que destroem o seu próprio habitat. Oprimem e orgulham-se disso. Agarram-se ao poder com ambas as mãos. Matam, matando-se. Criam o inferno, o verdadeiro inferno”
Olhou-me com o seu olhar entristecido, de pálpebras descaídas. “A matéria é energia acumulada. E isso é o que ilude no plano terrestre. Há outros planos de consciência, mas geralmente só se ascende a eles quando o espírito se liberta da matéria”.
“Aqui onde estamos, percorre uma energia extraordinária que se chama Amor. Mas esta não é perceptível à maioria dos que dele falam. É demasiado poderosa para ser compreendida por seres incipientes”.
E, sem mais, em um tempo que não é tempo, estávamos de volta ao átrio do hotel. Talvez não tivesse passado um segundo. Mas o que é o tempo? Fui cear com muitas interrogações e um olhar desconfiado para tudo o que o Natal representa de consumismo. Mas não deixei de, bem comportadamente, manifestar os meus votos de paz e amor.

29 Dez 2015

Sexy 2016

– Nunca gostei das festas.
– Festas?
– Sim, as festas natalícias. O tempo em que se festeja a possibilidade de procriação assexuada. Uma mitose espontânea, que nem a biologia sabe explicar muito bem.
– Pois. O Antisexo.
– Somos obrigados a ver a família e a fazer revisões anuais.
– Claro… e as recordações de 2015?
– Sexo a mais e sexo a menos, dependendo do mês. Cinema e umas leituras. Ainda tive umas viagens por aí. Momentos de genialidade alcóolica, mas raros, porque a regularidade levar-me-ia ao alcoolismo. O teu?
– O meu ano foi aborrecido. Pessoas aborrecidas, trabalhos aborrecidos, encontros aborrecidos. Não sei que te diga para além de que 2015 foi uma merda.
– De que signo és? Posso ver o que te reserva para o próximo ano. A astrologia não foi afectada pelo meu cepticismo.
– Eu só quero saber de sexo. Não quero saber de amor, quero saber de sexo. Não sei se é uma opção.
– Queres um 2016 exclusivamente sexual?
– Nem sei o que isso quer dizer, mas talvez.
– Queres foder todos os dias? Com pessoas diferentes? Ter a excitação de corpos novos contanstantemente ou ter o conforto de um a quem já lhe conheces os cantos.
– Talvez. Quero que 2016 traga a revolução no sexo ou… a re-significação do sexo. Justifico-me com a minha constante depressão, mas quero daquelas epifanias sexuais que tornam a metafísica do mundo reduzida ao glorioso acto de foder.
– Não sei se isso te faz um tarado ou intelectualmente interessante.
– Gosto de acreditar que faz de mim um e outro, em simultâneo.
– E vais chegar à restruturação do significado do sexo como, exactamente?
– Espero que com muito sexo e muita introspecção.
– Não percebo como é que chegaste a esta necessidade de filosofar sexualmente. Não que o sexo e a filosofia se oponham, mas tão pouco são compatíveis, talvez complementares. Parece que te obrigas ao dualismo razão/emoção com a desculpa que queres foder bastante.
– Se calhar deverias pensar o que queres que 2016 te traga, sexualmente. Talvez assim me compreendas melhor.
– Nem é preciso pensar muito: um menáge à trois. Sou muito mais prática a operacionalizar os meus desejos sexuais. Um menáge à trois ainda não está na lista de experiências sexuais vividas.
– Pois, ok. Tens algum amante regular agora? Quem seriam os participantes?
– Não, não tenho. Estou a pensar ser o elemento extra de um qualquer casal.
– E pronto?
– Pois.
– Vais o quê? Pôr um anúncio? ‘Disponibilidade para noite louca de sexo com casal que procure expandir a sua lista de experiências’.
– Epá… não faço ideia. Tu é que me pediste a resolução sexual para o próximo ano, ainda não ruminei a ideia. Não sei como se faz, ou como se começa, só sei que gostaria.
– Bem, se entretanto arranjar uma amante e ela estiver para isso, informar-te-ei com todo o gosto desta possibilidade.
– Achas que pode contribuir de alguma forma para a transcendência sexual que procuras para o próximo ano?
– Tenho a absoluta certeza de que sim.
– Depois como seria? Eu, tu e esta hipotética outra.
– Não sei. Imagino que jantariamos os três juntos, alguma conversa e intimidade não magoaria e depois… minha casa.
– Mas marcávamos um dia? Ou sairíamos várias vezes os três a ver no que dava? Se haveria química.
– Boa pergunta.
– Para além do mais, precisariamos de um encontro de discussão de logística. Definir o que é ou não permitido.
– Estás a destruir toda a minha fantasia pornográfica.
– Não percebo porque é que o meu pragmatismo o magoaria. Mas preciso de saber as regras, nós três precisamos de perceber as regras. Há risco de cairmos em constrangimento. Tipo, sexo vaginal depois de anal é expressamente proibido. Ainda pior inter-participantes.
– Tu… Já estiveste com uma mulher? Sabes como se faz?
– Como se faz o quê?
– Enfim, estar com uma mulher.
– Fazer-lhe um minete?
– Sim…
– Essa é mesmo uma preocupação real?
– Não, só curiosidade.
– Sabes tu?
– Acho que sim. Nunca se queixaram.
– Se de facto estás a propor-te como um participante para a minha experiência de 2016, porque não um homem?
– Hein?
– Eu, tu e um hipotético outro.
– Estás a destruir a minha fantasia pornográfica de novo.
– E dupla penetração? Não estou a ver o que seja mais pornográfico que isso.
– Pois, está bem. Mas não sei se conseguiria estar na presença de um pênis erecto, para além do meu.
– Ok. Entendi. E nós?
– Nós?
– Claro. Sei lá eu se o nosso tesão vale a pena.
– Isso é um convite para experimentar?
– Talvez.

29 Dez 2015

Cansados disto tudo!

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos cansados disto tudo. As recentes eleições em Espanha, em que o Podemos quase roubou o segundo lugar ao PSOE na primeira vez que foi a votos a nível nacional; em França, em que a votação expressiva na Frente Nacional fez os partidos políticos tradicionais unirem forças para travar o domínio absoluto do partido de Marine Le Pen em várias regiões do país; ou em Portugal, onde se assistiu ao reforço dos grupos parlamentares dos partidos da extrema-esquerda; são alguns dos sinais dados pelo eleitorado de que as pessoas estão cansadas da forma como têm sido governadas pelos partidos ao centro. Querem alternativas e estão disponíveis a dar o seu voto a forças lideradas por pessoas que têm uma aflitiva falta de experiência política ou que são marcadamente populistas. E toda a gente o sabe.
O centro-esquerda e centro-direita têm-se revezado no poder nas últimas décadas por toda a Europa. Esses partidos têm controlado as decisões no centro nevrálgico da política comunitária em Bruxelas. São eles, o chamado “centrão”, quem tem definido as grandes políticas que gerem a vida dos cidadãos no interior União, incluindo as questões mais ínfimas das actividades comerciais, da nossa existência económica, das nossas vidas. O resultado final tem sido uma normalização não apenas dos produtos que podem ser comercializados no interior da União Europeia mas de todos os aspectos da nossa vida colectiva: o que comemos, o que vestimos, o que gostamos.
Com a erosão da soberania económica, monetária e política, a normalização atinge elementos cruciais da gestão da coisa pública: aquilo que pode o Estado deter e como; o quanto pode o Estado endividar-se; que impostos pode cobrar. A criação do euro – uma divisa forte que morde os calcanhares ao dólar norte-americano enquanto reserva cambial – assim determinou. Mas, convém lembrar, não poderia ser de outra maneira. Sem estas limitações, o euro (agora a moeda comum de 19 Estados-membros) não funcionaria. Simplesmente. O problema aqui terá sido o da incapacidade de a União ter avançado para uma total harmonização fiscal. Porém as reservas expressadas, quer por muitos dos governos dos 28 quer pelas diversas opiniões públicas nacionais, não o permitiram.
O “centrão” tem contribuído para o desenvolvimento e estabelecimento de uma narrativa do “não podemos”: não podemos ter um défice orçamental superior a 3 por cento do Produto Interno Bruto, não podemos ter uma dívida pública superior a 60 por cento da mesma riqueza nacional. Todas essas regras, muitas delas pouco explicadas às diversas populações, foram contribuindo para o actual estado das coisas. De saturação.
É evidente que este cansaço não teria acontecido se a Europa hoje, no final de 2015, fosse ainda a Europa de meados de 2008, quando a crise financeira internacional não tinha ainda eclodido e o crédito internacional era ainda barato. Por outras palavras, se vivêssemos ainda hoje os tempos das vacas gordas. Apesar de alguns sinais de revitalização económica, o esforço a que foram sujeitas as diversas economias “intervencionadas” pela Troika não parece ainda ter chegado ao fim. De que a tormenta ainda não passou. E de que os efeitos da crise social vão prolongar-se no tempo. Pelo menos, no tempo útil da vida profissional de quem tem agora 45 anos, se encontra desempregado e não tem perspectivas de ver as condições da sua vida melhorarem no curto-prazo. Foi aliás por terem chegado a essa mesma conclusão, de que a esperança num futuro melhor é nula, que milhares de candidatos a refugiados e imigrantes se têm metido a caminho da Europa, fugindo a uma vida de miséria em África, no Médio Oriente ou no Afeganistão. Também grande parte das centenas de milhares de portugueses que saíram do país desde que a crise financeira rebentou, o fez com o objectivo de encontrar um porto de abrigo mais seguro. Não é, pois, no fundo, muito diferente.

As pessoas estão, pois, saturadas. Da forma como são tratadas. Da forma como foram construindo as suas sociedades. Da falta de perspectivas. Este caldo negativo poderia levar ao aparecimento de líderes motivadores, que arrastam multidões e que promovem a mudança. Mas perscruta-se o panorama político internacional e os rostos que nos surgem são pouco ou nada motivadores. Faltam modelos. Que inspirem. Que liderem.
Angela Merkel, personalidade do ano segundo a revista norte-americana Time, pelo seu papel na defesa dos refugiados, não pode ser aqui considerada. (Há quem nos lembre que a Alemanha, o motor da economia europeia, a campeã das exportações, enfrenta uma grave crise demográfica e a chegada de milhares trabalhadores qualificados sob a forma de refugiados ajudaria a colmatar). Nem pode tão pouco Barack Obama, o líder do alegado mundo livre, primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que é, afinal, o campeão dos ataques com drones – essa forma de se fazer a guerra sem a decretar.

Sobram outras figuras, de outros “mundos”. O revolucionário Papa Francisco, com uma agenda reformista, que promete combater a opulência do Vaticano e pôr a Igreja Católica ao serviço daqueles de quem dela mais precisam – agenda e linguagem que explicam aliás a sua tremenda popularidade. E sobra, talvez, Malala Yousafzai, vítima dos talibãs no Paquistão, que esteve à beira da morte, por ter ousado fazer-lhes frente, defendendo o acesso das raparigas à educação, contra a vontade de uma certa ideologia do passado. Malala tem 18 anos. Com o montante do Prémio Nobel da Paz (e outros) criou a Fundação Malala. Tem como objectivo promover a educação para todas as crianças no mundo. Na edição especial sobre 2016 da revista The Economist, Malala escreveu:
“A UNESCO estima que custará 39 mil milhões de dólares todos os anos até 2030 para pagar os estudos a todas as crianças [que estão fora do sistema de ensino], desde o ensino primário ao secundário, por 12 anos, grátis. Parece muito, mas o dinheiro está aí. É uma questão de prioridades.
Esses 39 mil milhões poderiam ser alcançados facilmente se todos os países da OCDE atribuíssem 0.7 por cento do seu PIB à ajuda ao desenvolvimento e alocassem apenas 10 por cento desse montante à educação. Outro modo seria escolher livros, não balas. Cortar oito dias de despesas militares globais seria equivalente a um ano de educação para todos.”
Um pouco de idealismo é tolerado em época de celebrações. Acredite-se, pois, que um mundo melhor é possível.

28 Dez 2015

Caso Injusto

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o dia 25 deste mês, o jornal chinês “Nan Fang Du Shi Bao” publicou um artigo, onde se revelava que a “criminosa”, Qian ren su, tinha sido absolvida. Foi considerada inocente.
O caso relaciona-se com um homicídio ocorrido em Yun Nan Qiao Jia, China. Qian foi acusada de ter morto uma criança num infantário. Na altura foi considerada culpada e condenada a 13 anos de prisão. Durante esse período, apelou e apresentou queixas a diversos departamentos governamentais. Finalmente, o Supremo Tribunal da província de Yun Nan ilibou Qian. Deixou de ser considerada criminosa. Mas continua sem se saber quem é o verdadeiro culpado.
Após a absolvição Qian estava muito feliz. O artigo não indicava claramente se Qian poderá vir a ser indemnizada pelo governo, ou não. Mas nós sabemos que, mesmo se Qian vier a receber um milhão de dólares de indemnização, vai continuar a sentir os efeitos desta situação. Não interessa o valor que Qian possa receber, o dinheiro nunca será compensação suficiente. Em poucas palavras: estaria disposto a trocar 13 anos da sua vida por dinheiro?
E porque é que Qian foi finalmente ilibada? Foi sobretudo devido à acção de um advogado inteligente e diligente. O advogado descobriu que existiam muitas assinaturas diferentes de Qian em diversos documentos legais. Após certificação, percebeu-se que o documento onde Qian admitia a sua culpabilidade, não tinha sido assinado por ela. Tinha sido assinado por alguém que não foi identificado. Na altura da condenação, este documento foi considerado a principal prova para determinar da culpabilidade de Qian.
O artigo apenas revelou que o “desconhecido” era parte envolvida no caso. Não ficou determinado se seria um polícia ou um juiz.
No entanto o artigo ventilava informações vitais, dignas de discussão. Trata-se de uma nova norma legal respeitante aos agentes da polícia e aos funcionários dos Tribunais. A esta norma pretende legislar sobre “Erros de Julgamento Sistemáticos”, e foi emitida pelo Supremo Tribunal da Província de Yun Nan, em 2013, recebendo uma emenda em 2015.
O seu objectivo é determinar a responsabilidade dos funcionários do aparelho legal. O Artigo 3 define a noção de “caso injusto”, como sendo aquele em que funcionários do aparelho judicial agem deliberadamente contra a lei. Nesta circunstância, a “responsabilidade legal” dos funcionários fica determinada para sempre. Por exemplo se, numa determinada altura, um juiz destruir intencionalmente provas, o resultado é identificado como um “caso injusto” e, talvez, deixemos de poder apurar a verdade dos factos. Mas, se dez anos depois, alguém descobrir o que se passou, o juiz passará a ser marcado pela sua falta de “responsabilidade legal”.
A norma considera ainda a “responsabilidade legal” de todos os funcionários. Se a “responsabilidade legal” de um polícia, ou de um funcionário judicial, for posta em causa, pode ser demitido ou transferido para outra posição ou departamento. Se o funcionário já estiver reformado, quando se apurar a sua culpabilidade, a sua pensão pode ser reduzida. No caso de se encontrarem indícios criminosos num “caso injusto”, o funcionário envolvido pode ser sujeito a acusação criminal.
Deveria o polícia ou o juiz do caso de Qian ser responsabilizado ao abrigo desta Norma? Não fazemos ideia. Mas será que se este polícia, ou juiz, for condenado, Qian ficaria feliz? Mais uma vez não temos resposta. No decurso de uma entrevista, Qian afirmou: “Só me detesto por ser inculta.”
Num processo de investigação criminal, o papel desempenhado pela polícia é muito importante. É preciso assegurar que todas as provas encontradas são verdadeiras e precisas. A polícia não pode falsificar provas a bem da Acusação. Em Hong Kong, independentemente de as provas encontradas virem ou não a ser utilizadas pela Acusação, a polícia tem obrigação de informar o réu sobre o que foi encontrado. O réu é livre de decidir se quer utilizar algumas dessas provas em sua defesa.
O juiz também tem um papel muito importante num Tribunal. O juiz tem de usar os seus conhecimentos, para aplicar a lei, entender a disputa em causa, e finalmente determinar a “responsabilidade legal”. No processo de decisão, o juiz tem de exercitar a sua consciência. Justiça e justeza são elementos indispensáveis em cada Tribunal. Caso contrário, as nossas vidas serão dominadas pelo “mal”. Por isso é indispensável que o juiz seja uma pessoa extremamente integra.
Além disso, o juiz goza de “imunidade legal”; ou seja, não responde por um mau julgamento. Se o sistema legal previsse que os juízes teriam de responder por decisões erradas, quem é que quereria ser juiz? Se não existissem juízes como é que iriamos revolver as nossas contendas? A resposta a estas perguntas é óbvia.
É dever da polícia e dos Tribunais manter a ordem, a justiça e a justeza, no seio da sociedade. Se eles quebrarem a lei, então o “vencedor” será o “vencido” e o “vencido” será o “vencedor”. A sociedade deixará de conhecer a ordem, a justiça e a justeza.

28 Dez 2015

Regresso à soberania chinesa

[dropcap style=’circle’]“F[/dropcap]im ao Conluio entre Empresários e Governo. Queremos o Sufrágio Universal”. Este é o slogan que traduz o propósito da manifestação promovida pela Associação de Novo Macau, a realizar no próximo dia 20. A escolha deste tema deve-se à necessidade da realização de eleições directas, através do sufrágio universal, sem as quais não haverá possibilidade de ultrapassar a estagnação política que se vive actualmente em Macau. Encorajada pela eleição de jovens para os Concelhos Distritais de Hong, Kong, a Associação de Novo Macau pretende incentivar a participação de um maior número jovens, e de cidadãos em geral, nas próximas eleições. O seu objectivo é incentivar a população a utilizar o seu voto e a participar na construção do futuro de Macau, em vez de deixar essa decisão nas mãos de um pequeno circulo que tem controlado os destinos da cidade. Uma outra Associação, recentemente formada, deverá também organizar uma manifestação, igualmente agendada para o dia 20. Prevê-se, pois, que nesse dia, o número de manifestantes aumente significativamente. Para além disso, o caso do Grupo Dore e a questão da “Declaração de Caducidade do lote P para o Edifício “Pearl Horizon” irão, de alguma forma, fazer com que mais pessoas se juntem aos protestos. É ainda de considerar que depois do “Desfile por Macau, Cidade Latina”, que teve lugar no passado dia 6, seja muito provável que a participação nas demonstrações seja ainda maior.
Quem olhar para a situação que se vive actualmente em Macau, compreenderá que vai ser necessário travar uma luta difícil para conquistar o direito ao sufrágio universal. No entanto, o Governo Central poderia, em função do Artigo 23º da Lei Básica (relativo à defesa da segurança do Estado) permitir o sufrágio universal em Macau e dar um exemplo a Hong Kong, mas Macau ainda está muito longe do que deveria ser um verdadeiro regresso à soberania chinesa.
A democracia não se efectiva apenas através de eleições directas, uma pessoa, um voto. O sufrágio universal é só um dos elementos que constroem uma democracia. Tomemos a Assembleia Legislativa de Macau como exemplo. Registaram-se casos de suborno durante as eleições. Embora o governo da RAEM pretenda rever a “Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa”, e esteja a fazer esforços para acabar com casos de corrupção, se a população não tiver uma maior consciência cívica e não se acabar com a velha prática de troca de favores entre associações, os méritos do sufrágio universal não se vão fazer sentir em pleno. Em resumo, para além de lutar pelo direito ao sufrágio universal, é necessário lutar para que haja um aumento de consciência cívica, sem o qual, o sufrágio universal corre o risco de se tornar uma manipulação e um jogo de interesses.

Por outro lado, para realizar o projecto “Macau governado pelas suas gentes com ampla autonomia”, os macaenses têm de desenvolver a sua identidade local, sem perder de vista a sua identidade nacional. A identidade local consiste no reconhecimento das características únicas de Macau, da sua história e das suas especificidades culturais.
Quanto ao futuro dos aspectos regionais, é importante que se pense devidamente o relacionamento entre Macau e a China continental, de forma a evitar mal-entendidos desnecessários. Macau não possui recursos naturais e tem sido desde sempre uma cidade de imigrantes. Antes da reintegração, muitas pessoas, vindas da China continental, imigraram para Macau durante o período das reformas.
Se pensarmos no número de imigrantes que chegam regularmente da China, já depois da reintegração, e na quantidade de profissionais contratados, também oriundos da China, facilmente veremos que uma grande parte da população de Macau nasceu na China continental. Macau está, em muitos aspectos, a tornar-se mais “chinês” e as suas características mais autênticas vão desaparecendo aos poucos.
Se esta situação se mantiver, Macau acabará por ser apenas mais um, dos muitos, municípios da China, em detrimento do seu progresso como centro urbano e democrático. Este cenário será desfavorável, quer para a China quer para Macau. E como a “regionalização” pode criar um estigma, o desenvolvimento democrático de Macau será prejudicado se a cidade não souber comunicar devidamente com a China e ajudar a eliminar desconfianças mútuas. Se isto não for feito, o acto eleitoral pode tornar-se um gesto rotineiro sem qualquer significado.
Macau tem de concretizar o projecto “Macau governado pelas suas gentes com ampla autonomia”, se não quiser ser um fardo para o Governo Central. Mas, para que este projecto se torne realidade, vai ser necessário conjugar os esforços da sociedade em geral e, acima de tudo, realizar o sufrágio universal, um dos passos essenciais para o verdadeiro regresso de Macau à soberania chinesa.

18 Dez 2015

Uma terra para ninguém

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á não sei se foi em 2003 ou em 2004, mas lembro-me perfeitamente do cenário: uma espécie de estação de serviço na China, algures na província de Guangdong, um daqueles sítios em que se fazem paragens para esticar as pernas e fumar uns cigarros. Na altura ainda se fumavam cigarros alegremente e Edmund Ho era um Chefe do Executivo que gostava de conversar com os jornalistas sem os formalismos que hoje conhecemos. As estações de serviço e as pausas para os cigarros serviam para umas conversas que, sem cigarros, não fariam qualquer sentido.
Foi aí que ouvi falar, pela primeira vez, da necessidade de melhorar a qualidade de vida da população. Fazia parte dos objectivos do Governo de então mas, por esses dias, não conseguia perceber exactamente o alcance do desejo: Macau era aquele sossego em que havia gente que, não vivendo bem, também não vivia propriamente mal. Macau era aquele sossego em que tudo ficava a cinco minutos de distância, em que tudo era acessível. Macau era outra coisa que não isto que hoje é.
Os anos passaram e acabaram-se as paragens em estações de serviço na China para fumar cigarros e esticar as pernas. O Chefe que se seguiu não partilha da curiosidade do anterior, mas manteve o discurso da necessidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas que estão em Macau (ou de parte delas). O discurso faz-me rir. Por razões agora completamente diferentes, não percebo o que se quer quando se fala em qualidade de vida. Não entendo o conceito que vai na cabeça de quem manda. Acredito que não serei a única.
A qualidade de vida, para a maior parte das pessoas – as que aqui vivem e as dos outros sítios também – passa pelas pequenas coisas. O que nos irrita e o que nos satisfaz não são as grandes questões políticas, as decisões de vulto, os anúncios espampanantes, as grandes negociatas, as tramóias de quem passa a vida em jogos de poder. O que nos irrita mesmo são as dificuldades do dia-a-dia, a dificuldade em estacionar o carro, a impossibilidade de apanhar um autocarro, a hora a mais que se demorou a chegar a casa – aquela hora que tanta falta faz porque, quando passa, já tudo é diferente.
Irritam-nos também os preços do supermercado, que não obedecem à inflação da China, os preços das casas, que não obedecem a qualquer regra de mercado. Irritam-nos ainda os serviços concessionados, lucrativos monopólios que chegam ao fim do ano com os bolsos cheios do que cobraram a clientes que andam ao engano, sempre ao engano, mas sem possibilidade de mudarem para qualquer coisa melhor.
O trânsito. Já se percebeu que não há grande volta a dar. Há anos que percebemos isso. O metro é obra que será motivo para uma expedição a Macau, que muito provavelmente não estarei por cá para a inauguração. Os autocarros são o que se sabe: sardinhas em lata às várias horas de ponta da cidade, a falta de civismo de muitos (mulheres com crianças ao colo, idosos e grávidas podem ter a sorte de um lugar sentado, ou não), ex-condutores de betoneiras que subiram na vida e agora são motoristas, aceleram nas rectas como se o povo fosse cimento, vai para a direita, vai para cima, vai para a esquerda e vem para baixo. Quem quiser que se agarre ao que houver para agarrar.
O estacionamento. Previsivelmente, esta semana os preços do parque privado onde guardo o carro todos os dias, para me dar a esse luxo imenso que consiste em ir trabalhar, subiram mais de 50 por cento, que esta malta precisa de dinheiro e não quis, de modo algum, ficar atrás da iniciativa governamental que tem como nobre objectivo libertar lugares de estacionamento. Uma semana de testes e a ideia não funcionou: sucede que há gente, boa gente, que precisa mesmo de se deslocar e não tem outra hipótese. As filas à porta do meu parque de estacionamento continuam a ser as mesmas. O tempo de espera também. Só a conta ao final do dia é que é bastante diferente. Para mim e para muita gente, em muitos outros parques de estacionamento.
As cabeças quadradas. A falta de ideias para resolver as pequenas coisas que nos irritam. Por altura da promessa de qualidade de vida de Edmund Ho, eu morava no NAPE e não tinha carro, porque não precisava dele – ainda havia táxis e autocarros. O NAPE era, há uma dúzia de anos, um sítio pacífico com meia dúzia de restaurantes, outros tantos bares, dois cafés muito simpáticos e um supermercado. Havia um ou outro karaoke de miúdos que, de vez em quando, se metiam em maus lençóis. Mas a zona era pacífica. Quem tinha carro estacionava na rua e os autocarros ainda se davam ao trabalho de apanhar passageiros nas paragens, porque tinham espaço para eles.
O NAPE mudou e vieram os casinos, as lojas de penhores, os karaokes com portas duvidosas em todas as esquinas. Como Macau é aquela cidade de permanentes contradições, no meio de toda esta confusão instalaram-se (ou já estavam instaladas) várias escolas, creches, uma universidade. E escritórios, negócios às claras e negócios por debaixo do tapete, lojas de vinhos caros e lojas de electrodomésticos, lojas de colchões, lojas de roupa manhosa.
Durante os anos de atribulada expansão demográfico-empresarial desta zona, que um dia se pretendeu nobre, não houve uma única alma nos Serviços para os Assuntos de Tráfego que se tivesse lembrado de encetar conversações com uma alma homóloga da Polícia de Segurança Pública para facilitar a vida aos pais que, diariamente, vão deixar e vão buscar os filhos à escola. Como não há lugar para estacionar nos parques públicos, nos parques privados e nos lugares com parquímetro, quem vai ao NAPE diariamente fazer o exercício de tirar a criança do carro e deixá-la na escola não tem outro remédio que não seja parar nas linhas amarelas das várias paralelas e transversais à avenida principal.
As soluções para este tipo de zonas foram há muito inventadas: abrem-se excepções para quem pára, à hora de entrada e de saída das escolas, em locais onde não é possível estacionar; destacam-se polícias que, em vez de terem como missão multar pais, ajudam na gestão do trânsito, na garantia de que as passadeiras são respeitadas. Facilita-se a vida a quem só está a tentar viver.
Mas por aqui é tudo diferente: a polícia gosta de passar multas a mulheres grávidas com filhos ao colo, no momento em que estão a preparar-se para entrarem nos carros estacionados em linhas amarelas e seguir viagem. Já se fosse à noite, o problema não se colocava: o lobby dos restaurantes e karaokes conseguiu abrir excepções nas linhas amarelas. A malta que bebe uns copos pode parar o carro; aos miúdos de dois anos é melhor dar um MacauPass e eles que se façam à vida, para aprenderem que não é fácil.
O que acontece hoje em dia no NAPE é apenas um exemplo do que se passa noutras zonas da cidade. Já que o conceito de qualidade de vida é algo que o Governo não consegue definir, para depois pôr em prática, que tenha em mente aquilo a que está obrigado: dar possibilidades às pessoas. A impossibilidade da normalidade mina qualquer ideia de vida.
Talvez um dia perceba onde queria chegar Edmund Ho.

18 Dez 2015

Ainda faltava a cereja no topo do bolo

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] final do mandato do Prof. Cavaco Silva coincide, grosso modo, com a passagem do 16.º aniversário da transferência de administração de Macau para a R. P. da China, que se celebrará em 20 de Dezembro. Entendeu o Presidente da República (PR) aproveitar a ocasião para oito anos depois da saída de Jorge Sampaio, em jeito de despedida e ajuste de contas com o antecessor, atribuir ao último governador de Macau a mais elevada condecoração nacional. Contra o que o bom senso recomendaria.
O PR, como os portugueses estarão recordados, tem condecorado, na esteira dos que o precederam, toda a gente e mais alguma. Muitos por méritos mais do que duvidosos, mas que têm em comum serem da sua cor política, terem trabalhado ou colaborado com ele, porventura terem-se com ele cruzado à entrada de uma estação de metro num dia de nevoeiro ou num café de Boliqueime. Não admira por isso que quisesse também condecorar Rocha Vieira, militar que para o bem e para o mal ficará eternamente ligado ao que de pior Portugal fez em Macau em matéria de nepotismo, favorecimento e alimentação de clientelas. Para banalização da Torre e Espada, ordem honorífica cuja atribuição deveria ser consensual e compreendida por toda a Nação, é o ideal.
Quem desconhecer o passado e apenas conheça a propaganda da máquina que Rocha Vieira colocou ao serviço da sua promoção poderá pesquisar alguns livros que se publicaram, ver quem os pagou, e os milhares de páginas da imprensa local, incluindo do então Boletim Oficial, para perceber o que o senhor andou a fazer pelo Oriente rodeado pela sua gente, entre a qual se contavam alguns tipos pouco recomendáveis à luz de qualquer padrão de decência, dos que se orgulhavam de ter “andado a matar pretos em África” aos que assinavam contratos “por conveniência de serviço” em nome do Governo com as empresas de que eles próprios eram administradores. O próprio Fernando Lima, assessor do PR famoso no célebre caso das escutas do Público, foi um dos que por Macau se passeou, aproveitando para pernoitar em hotéis de cinco estrelas enquanto compilava, escrevia e publicava uns livros à custa dos patrocínios que directa ou indirectamente saíram dos cofres de Macau. Creio que o Conselheiro Macedo de Almeida, que foi Secretário-Adjunto para a Justiça de Rocha Vieira e é hoje assessor do PR, não contou nada disto ao Prof. Cavaco Silva para evitar que este se arrependesse a tempo.
Depois de um final penoso mas bem encenado e melhor coreografado, onde o descontrolo da segurança se misturava com os milhões, os caixotes e os salamaleques a Stanley Ho e aos poderosos das suas relações, enquanto se condecoravam os amigos e se sugeriam medalhas a Lisboa, criavam-se as instituições onde seriam colocados os seus – não a Portugal – leais servidores, muitos deles ainda hoje vivendo à grande do que então se retirou dos fundos locais. Em matéria de favores nada ficou por pagar fosse em medalhas, contratos, prebendas várias ou viagens e passeatas. E do trabalho que por Macau deixou aos mais diversos níveis, seria bom que os portugueses soubessem que década e meia volvida não há quem não se queixe do que se fez da justiça e dos tribunais, a começar pelo presidente da Associação dos Advogados, e até o português já perdeu, na prática, o estatuto de língua oficial, havendo tribunais a notificarem em língua chinesa destinatários falantes do português e recusando-se a fornecer traduções de despachos e sentenças a esses destinatários, em clara violação da Declaração Conjunta e do estatuto de igualdade das línguas, como que numa antecipação do final do período de transição de 50 anos. Tivesse sido o trabalho bem feito e nada disto estaria agora a acontecer.
O Presidente Jorge Sampaio, através de um gesto que teve tanto de ingénuo como de temerário, já tinha condecorado Rocha Vieira, embora nunca o devesse ter feito. A prova disso é que Rocha Vieira acedeu para logo depois fazer de conta que não tinha dado o seu aval à condecoração. O jornalista João Paulo Menezesrecordou-o recentemente:
“Depois de ter aceitado a condecoração proposta por Jorge Sampaio (primeiro verbalmente, depois ao estar presente na cerimónia), Rocha Vieira protagonizou um dos episódios mais insólitos da história recente das condecorações em Portugal.
Como é regra, depois da cerimónia pública é enviado para casa dos distinguidos um documento designado “compromisso de honra de observância da Constituição e da lei e de respeito pela disciplina das ordens”.
Só depois dessa assinatura e da devolução do documento é que a condecoração passa a ser oficial. Mas Rocha Vieira não só não assinou como não devolveu o “compromisso de honra”.
Resultado: o Anuário das Ordens Honoríficas – online, no site da Presidência da República – omite essa condecoração e no seu próprio currículo Rocha Vieira também não refere que recebeu em 2001 o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique”.
O general Rocha Vieira apresenta uma justificação no livro que o seu fiel e abnegado colaborador e editor publicou, dizendo que tal condecoração é “como se não existisse”, mas para dizer isto mais valia que tivesse logo recusado a oferta de Sampaio e esperasse que a história, ou quem àquele sucedesse, um dia reparasse a “injustiça”. Homens de valor e com feitos excepcionais não fazem o que ele fez a um Presidente da República por muito que não gostasse dele.
Sobre os méritos do futuro titular da Ordem Militar da Torre e Espada, nada mais há a acrescentar, sabendo-se que a sua acção em Macau – e a dos portugueses, por tabela – valeu o gozo dos cartoonistas da imprensa internacional, da americana ao South China, pela forma como foi constituída a Fundação Jorge Álvares, onde estão acantonados os seus homens. E dos quadros dos ex-governadores retirados pela calada, como ainda há dias foi recordado por um ex-assessor de Sampaio, nem vale a pena falar.
O que se estranha é ver o general Ramalho Eanes, um modelo de militar e cidadão, a quem os portugueses muito devem pela consolidação da sua democracia, associado a esta farsa que a Presidência montou para homenagear Rocha Vieira. Só vejo o general Eanes na cerimónia por ser um homem educado e bem formado.
É que é difícil encontrar um paralelo, para além da farda, entre a acção de Ramalho Eanes e a de Rocha Vieira. Não consta que o general Eanes no exercício das suas funções públicas ou na sua vida de militar fosse cínico, falso, prepotente, que usasse o posto e a função para oferecer o que do seu bolso não pudesse pagar, distribuindo benesses, encaixando os amigalhaços, fazendo museus, fundações e institutos para sua glória, editando livros ilustrados com as suas próprias fotografias, dando o seu aval a indecorosas campanhas de promoção pessoal, esperando sempre ser devidamente bajulado em todas as esquinas. Ainda recentemente o general Eanes foi às Filipinas receber um prestigiado prémio internacional, fazendo-o com a maior discrição, como se a distinção que lhe foi concedida não fosse motivo de orgulho para todos os portugueses. A diferença entre os dois homenageados não está apenas no facto do general Ramalho Eanes ter dado o seu nome a um largo de Macau e sobre o outro haver hoje quem em Macau não saiba quem foi, tal a irrelevância do seu papel.
A atribuição da Ordem da Liberdade ao general Ramalho Eanes, militar e homem de Estado a quem em matéria de ética e intenções não haverá um acto que suscite dúvida, é inteiramente merecida e não devia acontecer desta forma, à socapa, em final de mandato, sem brilho.
Quanto à do outro cavalheiro a quem o PR resolveu agraciar com a Torre e Espada, a única coisa que se pode dizer é que não será pelo general Ramalho Eanes lá estar que deixará de ser um ultraje. Porque o homenageado será muito seu amigo, simpático e educado, mas faltará tudo o que a Torre e Espada pretende significar. Faltam os “feitos excepcionalmente distintos” à frente de órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha, faltam os “feitos excepcionais de heroísmo militar oucívico” e faltam os “actos ou serviços excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade”.

18 Dez 2015

Pura ficção. E uma mensagem para a comunidade macaense

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]Este texto é um plágio. Este texto também é uma ficção pelo que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência… Com a devida vénia a Ésopo, aqui vai:
Era uma vez uma pequena cidade antiga à beira mar onde pouco ou nada se passava. Tinha vivido tempos difíceis mas, um certo dia, os locais tinham descoberto uma forma de se sustentar. Alguém vindo de fora montou uma gaiola dourada onde criava galinhas. Galinhas essas, mágicas com certeza que, segundo reza a lenda, punham ovos de ouro. Não eram muitos mas o suficiente para os habitantes da cidade terem uma vida digna. E assim se passaram anos, uns mais tranquilos do que outros naturalmente, mas o pão não faltava e os tempos das fomes e das necessidades há muito tinham passado. Não era uma vida perfeita, mas a cidade gozava de bons ares, tinha até o maior índice de esperança de vida do mundo e as pessoas tinham uma vida livre, de alguma forma satisfeita, sendo vulgar reunirem-se em grupos animados em jantaradas ao ar livre pela noite dentro. Viva-se aquilo que os de fora chamavam um vida descansada, laid back. Porque, para além das galinhas que proporcionavam o rendimento aos autóctones, a própria cidade e a sua forma tranquila de vida era uma atracção para os de fora. Aos seus portos chegavam viajantes de variadas origens não só à procura do ouro das galinhas, como também para descobrirem essa cidade lendária que as histórias homenageavam, à procura da poesia que só esta cidade antiga conseguia oferecer. E alguns gostavam tanto que até decidiam ficar, porque não eram apenas as galinhas que eram mágicas, toda a cidade construída ao longo de séculos sob a influência de povos de diversas origens, respirava odores de lenda, era um lugar sem igual no mundo.

Mas chegou um dia em que tudo mudou.

Descontentes por acharem que a gaiola dourada não tinha capacidade para mais galinhas, alguns habitantes poderosos decidiram chamar gente de fora para construir mais gaiolas e criar mais galinhas até porque nas regiões vizinhas a criação daquelas galinhas era considerada tabu e só nesta cidade era possível criar tais criaturas mágicas. E assim foi: de um dia para o outro construíram-se novas gaiolas e criaram-se milhares de galinhas mágicas. O resultado foi espectacular! A produção de ovos de ouro chegou a níveis impensáveis e a cidade encheu-se de curiosos que vinham ver o milagre e, quiçá, levar um ovo com eles. O sucesso foi tal que até os vizinhos se arregalaram com tanta fartura, e deitaram abaixo velhos tabus e começaram também eles a construir gaiolas.

Mas os habitantes da nossa velha cidade estavam demasiados ocupados com as suas fábricas de ovos de ouro para perceberem o que se estava a passar ao lado e continuaram a deitar abaixo prédios antigos, bairros inteiros para criarem ainda mais galinhas. Os preços na velha cidade subiram tanto e os espaços foram tão reduzidos que muitos demandaram a outras paragens e a velha cidade depressa se transformou num galinheiro. Mas o pior estava para vir: um certo dia, a produção de ovos caiu e milhares de mirones começaram a debandar para outras bandas porque, afinal, o fenómeno dos ovos dourados não era um exclusivo da nossa velha cidade. Na realidade, a partir do momento em que se torna vulgar, para ver galinheiros tanto se pode ir aqui como ali. Os outros, os que vinham à procura da cidade das lendas também há muito tinham deixado de a visitar, porque ela não mais pode ser encontrada, atafulhada de galinheiros e lojas de pechisbeque. Espantados, os habitantes da cidade coçam agora o cocuruto olhando para a cidade antiga que os seus aviários destruíram, interrogando-se sobre o próximo passo a dar.

(continua numa rua perto de si)

À COMUNIDADE MACAENSE

Muito se tem falado nestes últimos dias sobre o ser macaense, ouvindo-se muita coisa. Fala-se de idiomas, de etnias, do que é ser, do que é sentir, se é macaense ou macaísta, macaio ou lacaio, português ou marroquino, chinês ou mongol, mediador ou criador, nativo ou amante, mais ou menos mestiço, houve até quem falasse em fazer mais filhos… Todavia, há algo que se sobrepõe a todos esses conceitos, ideias ou hipóteses: chama-se Macau. Sem Macau não havia macaenses. Por isso, se pretendemos de facto discutir a comunidade, não podemos passar ao lado da terra. Uma terra onde, qualquer dia, as memórias vão limitar-se aos cemitérios e, caros amigos, sem memória, sem espaços comuns, sem reminiscências do passado, sem uma traça que distinga um lugar, não há cultura que resista. Por isso, a minha modesta contribuição para essa discussão é que se debata a cidade, o seu planeamento, a sua forma de viver. Ser macaense, tem muito de amor à terra, isso parece ser uma nota comum. Mas são apenas 28 km2… Não é a cultura que está em vias de extinção, é a cidade que lhe deu origem e a discussão tem de ser recentrada na cidade, e com carácter de urgência! Porque sem Macau não há cultura macaense. Macau, mais do que nunca, precisa dos que a amam, precisa de ser defendida dos usurários que a pretendem destruir. Essa é a missão dos macaenses se pretendem que a sua cultura chegue ao próximo século, às próximas décadas… Essa tem de ser a cultura do momento, esse tem de ser o debate, mais, essa tem de ser a acção – acção construtiva, inteligente, moderna, forte e com sentido de missão. O resto é pura retórica que o tempo se encarregará de engolir – e os tempos andam depressa por estes lados. Depois podemos sentar-nos à sombra de uma Figueira de São João e discutir a cultura com um lai chá fresquinho e umas trincas numa batatada.

MÚSICA DA SEMANA
La Pandilla – “La Casa”

“Era una casa muy chiquitina.
Sin desvancito y sin cocina.
No se podía pasar adentro
por que no había ni pavimento.
No se podía ir a la cama.
No había techo ni las ventanas.
No se podía hacer pipí
por que no había un orinalín.
Pero era hermosa con mis canciones
en el país de las ilusiones.
Pero era hermosa con mis canciones
en el país de las ilusiones.”

17 Dez 2015

Droga, porcaria e chupa-ovo

I

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ntre a correria dos afazeres profissionais, quase nem dei pela entrada da quadra natalícia, o que vem comprovar que esta época outrora dada a balanços de fim-de-ano e menos “stress” já não é que era – e para o Sporting este Natal parece que também não. Fico aliviado, uma vez que esta vontade excepcional de fazer render o que falta para acabar o ano civil, e que no universo das anedotas de alentejanos seria considerado “uma epidemia”, contraria a tendência do PIB, esse em curva descendente. Pesando tudo isto na balança, o resultado é positivo, uma vez que as previsões mais pessimistas apontavam para o desinvestimento, coisa até considerada “normal” numa indústria tão volátil como a dos Jogos de Fortuna e Azar, e tudo o que isso representa, e de que Macau e a sua população se encontram invariavelmente reféns.
E é no seguimento deste recheio social sortido que nos sai na rifa de todos os vícios que encontramos a droga – isto salvo seja, obviamente. Fico a saber que o Executivo se prepara para rever a moldura penal para os crimes de tráfico e consumo de estupefacientes, e sim, era previsível: as penas vão ser mais pesadas. Tão pesadas que fossem estas “penas” a de uma ave, teria que ser de um avião. Eu já me sinto indiferente – para que estragar a pele com manifestações perante esta táctica de “mais vale quebrar que torcer”? Aumentaram os números do consumo e o tráfico? Penas mais pesadas! Aumentaram outra vez, é? Então toma mais dois ou três ao fresco! E agora, atrevem-se? Claro que se atrevem, mas qualquer que fosse na mesma direcção da maioria das restantes jurisdições civilizadas e progressistas, para quem o consumidor é também uma vítima, seria entendido como um sinal de permissividade, de fraqueza.
Assim mais vale o simpático Hin Wai ir todos os anos anunciar novos patamares de insucesso na missão de que o incumbiram mais ao departamento que dirige, o que pode ser entendido também como uma demonstração de confiança quiçá única no mundo (nem José Mourinho aguentava no Chelsea com resultados destes), que o problema no fundo é “político”.
Este ano estive em Bali, na Indonésia, país onde este ano as autoridadas executaram 14 detidos pelo crime de tráfico de droga, alguns deles estrangeiros, e por sua vez entre estes, uns que foram detidos exactamente quando da sua chegada àquela estância turística. Por aquilo que vi e me foi dado a entender, o problema destas malogradas almas inconscientes foi não ter licença de importação, ou “cartão de membro do clube”. Droga era coisa que havia por lá ao pontapé, posso garantir.

II

Estive de fora de Macau durante uns dias, de visita ao Cambodja, e imaginem que durante a minha ausência foi anunciada a decisão da Universidade de Macau agora situada na Ilha da Montanha, em acabar com o ensino da Língua Portuguesa como opcional, o que provocou entre a nossa intelligenzia as já previsíveis e costumeiras ondas de choque. Este “corte” não se deverá ao facto da mudança do “campus” para o lado de lá, do primeiro sistema, e muito menos estariam à espera que eu virasse as costas, porque para mim – e preparem-se, ó “junkies” da indignação e do sobressalto, que pedem sempre em tamanho “supersize” – é igual ao litro. Estou-me nas tintas. Já deviam ter tomado esta decisão mais cedo, até porque vindo de quem vem, deixa-me apreensivo, desconfiado até, que se mantenha o ensino de uma língua que representa (preencha com a alarvidade patrioteira que melhor achar), ainda por cima fazendo-o contrariados, e eu não gosto de ver gente contrariada, com birra do sono, e possivelmente chichi.
É apenas sintomático que se venha agora por na porta mais este cadeado numa Universidade, que nessa função de formar os quadros superiores só pode classificada de “sinistra”, tais eram os sinais de rigidez que vinha demonstrando nos últimos tempos, atingindo o clímax no ano passado, com actos de pura censura e saneamento de académicos por motivos obscuros. No papel pode parecer mau que a instituição de ensino superior que ostenta o nome do território trate com esta menoridade um elemento indissociável da matriz histórica e cultural desse mesmo território. No papel, insisto.
Mas agora peço-vos que parem de emborcar esses hamburgueres de desaforo, empurrados não por coca-colas mas por “ora bolas que já nos tramaram”, chegando a ler neste acto algum tipo de prenúncio do apocalipse linguístico, e deixem-me que vos proponha uma dieta muito fácil, que nem requerer que tirem o rabiosque da cadeira. Basta reflectir durante um minuto e fazerem a vocês próprio esta simples pergunta: isto fica mal a quem, exactamente? Quem quiser aprender Português tem outras opções (e até no continente, e com mais qualidade, dizem), e não noto nenhum tipo de animosidade contra a segunda língua oficial, tirando dos suspeitos do costume, e a esses só nos resta deixar a pastar lá na montanha, onde se fala o montanhês. Béééé…

III

Também durante o curto período em que troquei Macau pela pátria dos Khmeres, falou-se de identidade macaense. Olha khmerda, já viram o que andei a perder, enquanto se tentava responder ao velho enigma que apoquenta menos que 0,0000000005% da humanidade que se propõe a discutir o problema: quem veio primeiro, a galinha chau-chau parido ou o chupa-ôvo? Eu adoro o Miguel, o André, a Paula e todos eles, no sentido não sexual nem gastronómico do termo, mas eles próprios sabem que esta discussão é tão produtiva como organizar um campeonato mundial do Jogo do Galo. Contudo, permitam que partilhe aquela que considera a melhor definição quanto ao género e sexualidade dos querubins:
“(…) Os movimentos migratórios convergentes para o território de Macau, tendo como principais territórios de origem Portugal e China, e os movimentos migratórios que daquele território divergiram para o mundo, constituindo-se como diáspora, devem ser incluídos na caracterização da comunidade macaense, privilegiando-se o seu principal núcleo de organização social, isto é, a família macaense.”
Aí está: a “família macaense” como o elo de ligação a Macau e, por inerência, ao sentimento de pertença, à noção de uma “identidade” própria. Mas não interpretem isto como uma tentativa de conciliar seja o que for, ok? Eu quero é que a malta “vá juntá” para “falá falá falá” e “comê comê comê”, e que não faltem para isso pretextos, por mais inconclusivos que possa ser a discussão.

17 Dez 2015

Fazer filmes

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz a sabedoria popular: se estás a fazer um filme estás a fazer um drama. Fazer filmes na vida real (como profissionais) estende-se para além de um género cinematográfico e expressa-se pela panóplia de emoções humanas que gostamos de exercitar. Se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, parece-me uma discussão desnecessária porque procurar a unidireccionalidade dos factos não me faz muito sentido. Um sistema bidireccional é-me mais simpático. Mas talvez seja porque vejo demasiados filmes, e é uma tão confortável forma de passar tempo, que é inevitável não nos sentirmos num. Até agora não conheci ninguém que não tivesse uma fantasia romântica baseada num filme (ou livro, para os mais tradicionais), ou não tivesse um ideal de homem ou de mulher que já não tivesse sido retratada por uma personagem cinematográfica, carregada fisicamente por um actor ou actriz lindos de morrer.
Para as idiossincrasias dos relacionamentos amorosos e do sexo, não há ninguém como o Woody Allen. Ele diverte-nos com um neuroticismo que roça o adorável e o irritante. Com tantos filmes realizados, é claro que ele cai em fórmulas repetidas, mas que têm entretido gerações de homens e mulheres pelo mundo fora. Sobre sexo, amor, paixão, relacionamentos e tesão. Pessoalmente, tenho constantes momentos de clarividência com o Woody, não sei como é que é com o resto do mundo: eu sinto-me compreendida nas suas particularidades e generalizações. Nos últimos filmes a estereotopia tem-me chateado um pouco, à excepção do Blue Jasmine que se demarca pela depressão genialmente representada e de uma forte presença feminina, que se caracteriza pela profundidade psicológica da personagem, algo raramente visto nos seus filmes. Poucas são as personagens do Woody que se tornam memoráveis, exceptuando talvez a Annie Hall e o Alvy Singer. O Woody é sobre os encontros, desencontros, compreensão, desentendimentos e homens e mulheres à luz da psicanálise. Retratos amorosos nova-iorquinos e de uma ou outra capital europeia. A beleza da sua cinematografia vem dos momentos dialógicos.
Reflectindo no trabalho realizado pela Cate Blanchett a dar vida a Jasmine encontrei-me a divagar sobre as mulheres no cinema. Essa forma artística que tenta imitar a vida com o twist das especiarias cinematográficas, tenho que cair no meu discurso bélico pela igualdade de géneros! E para isso apoia-me o teste que mede o machismo cinematográfico. Uma cartoonista decidiu por graça criar uma cena entre duas mulheres que discutem os filmes que querem ver, uma afirma: ‘Só vejo filmes onde haja mulheres a ter uma conversa entre elas que não seja sobre homens’. O teste estabeleceu-se e popularizou-se como o teste Bechdel-Wallace. Claro que não foi redigido por uma equipa de investigadores e não detém validade científica no verdadeiro sentido do termo. Mas a verdade é que são poucos os filmes que encaixam neste critério, e por isso extrapolaremos que o retrato generalizado é de mulheres que só falam de homens e não são capazes de ter uma conversa sobre assuntos mais socialmente relevantes.
Jean-Luc Godard, por exemplo, de quem gosto mas com laivos de irritação, é um realizador que fez parte do desenvolvimento da nouvelle vague francesa, movimento artístico caracterizado pela reintepretação das convencionais técnicas cinematográficas para a altura. Um ultraje pela caracterização feminina! Digo eu, que vi alguns filmes onde as mulheres eram lindas, sonsas, ingénuas e com tiradas literárias de quem fez doutoramento em estudos clássicos. Pelo menos não falam muito de homens, mas raramente as vemos a interagir com o sexo que não seja o masculino (chumba no teste Bechdel-Wallace!). Ou seja, sinto-me na posição de me queixar da objectificação feminina Godardiana e de outras, porque apesar de fantasticamente misteriosas e literárias, não conseguem transpor a realidade feminina.
Estes são alguns (muito poucos) apontamentos de algum descontentamento da minha parte na visualização de filmes. É que esta tendência cinematográfica tem como resultado a surpresa sempre que uma caracterização feminina é de significância, porque infelizmente trata-se de uma raridade. A sério, não estou a fazer filmes quando digo que, nos episódios IV, V e VI da Guerra das Estrelas, as intervenções femininas não duram muito mais do que um minuto (exceptuando as da Princesa Leia). E mais: em toda a saga, não há uma única conversa entre duas mulheres (outro que chumba no teste Bechdel-Wallace!). Esperemos que o The Force Awakens venha mudar isso. E já agora, que a indústria cinematográfica também.

15 Dez 2015

Meritíssimo Juiz

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 26, o website “yahoo” de Hong Kong, divulgou uma notícia onde ficámos a saber que um juiz chinês, de seu nome Huang Tao, em serviço na província de Jiang Su, escreveu uma carta à sua amante, Liu Ying. Na carta afirmava que a amava e garantia-lhe que se iria divorciar depois de 1 de Maio deste ano. Wang acrescentava na carta,
“As tuas palavras são ordens para mim.”
No final selou a carta com o timbre do Tribunal.
Wang foi considerado o melhor presidente do Tribunal dos últimos 40 anos da província de Jiang Su. A sua reputação era excelente.
Este caso veio a lume porque Liu teve recentemente problemas financeiros. A sigla IOU (em inglês I owe you, ou seja, devo-te dinheiro) indicava que Wang devia a Liu cerca de 200.000 RMB. Actualmente Liu sofre de cancro e a relação com Wang terminou.
Em resposta, Wang afirmou que a garantia tinha sido produzida por ele, que nunca tinha sido selada com o timbre do Tribunal, que o IOU era falso e que nunca tinha havido tal transacção.
Mencionemos agora um segundo juiz, a Srª. Ng Wai, do Tribunal de Magistrados de Hong Kong. No dia 2 deste mês, a Srª Ng presidia a um julgamento, o réu, o Sr. Hung Kwok Chu, tinha sido acusado de induzir a polícia em erro no decurso de uma investigação.
Em meados de Outubro, Hung contratou os serviços de uma prostituta. Quando estava a tomar banho, a prostituta fugiu com o Rolex de ouro de Hung. Quando Hung descobriu o roubo
tentou alcançar a prostituta, mas não conseguiu. Mais tarde disse à mulher e à filha que tinha sido assaltado.

Durante a investigação a polícia descobriu a verdade e processou Hung.
No julgamento, Ng perguntou a Hung:
“O que é que andou a fazer? Não percebe que agiu contra a sua mulher? Não se sente envergonhado?”
Nessa altura Ng reparou que a filha do casal estava sentada entre Hung e a mulher e disse:
“A sua mulher é a companheira da sua vida. Está triste.”
Ng ordenou ao réu que pedisse desculpa à mulher em voz alta. A mulher aceitou o pedido. Comoveram-se os dois e choraram.
Ng elogiou a mulher do réu, dizendo que tinha sido corajosa ao perdoá-lo. A juíza salientou que os dois deveriam esquecer este assunto e seguir com as suas vidas. Acrescentou que nunca mais deveriam mencionar este caso, mesmo que viessem a ter uma zanga. Para terminar, Ng recomendou a Hung que tomasse conta da esposa, já que esta sofre de uma doença grave.
Hung foi multado em 2.000 dólares de Hong Kong.
Hoje vamos ainda falar de um terceiro juiz, o Sr. Henry Denis Litton. Foi juiz efectivo no Tribunal de Apelação de Hong Kong. Actualmente está reformado.
No passado dia 3, durante um almoço de convívio, Litton fez um discurso, onde afirmava que se estão a viver tempos críticos em Hong Kong.
“Este ano celebramos o 32º aniversário da promulgação da declaração Sino-Britânica. Será também daqui a 32 anos que a Lei Básica de Hong Kong deixará de existir.”

“Hong Kong não possui quaisquer recursos naturais. Actualmente é um centro financeiro a nível mundial, porque a lei em vigor o permite. A Lei protege a economia, o comércio e a terra. Mas não sabemos o que irá acontecer a seguir. É bom que se comece a preparar o mais rapidamente possível as linhas mestras para 2047. Caso contrário, os organismos internacionais não irão depositar confiança em Hong Kong. As grandes empresas podem abandonar Hong Kong.”
Litton também criticou algumas pessoas que tentam processar o governo ao abrigo da Revisão Administrativa.
“A Revisão Administrativa é um procedimento legal que se destina apenas a averiguar se as políticas que o governo pretende implementar preenchem, ou não, os requisitos legais. Não é um instrumento para pôr em causa as políticas governamentais. A sala do Tribunal não é um espaço para debater políticas governamentais. Se toda a gente puder processar o governo, deixa de haver necessidade de terroristas para impedir o governo de funcionar”
Que condições são necessárias reunir para que tenhamos um bom juiz? É possível que cada um de nós tenha uma resposta diferente. No entanto alguns factores são essenciais, como a competência em matérias legais, uma moral irrepreensível, maturidade, etc. Temos normalmente grandes expectativas em relação à figura de um juiz, não porque esperemos que seja um ser perfeito, mas porque é alguém com a responsabilidade de distinguir o certo do errado, não só em termos legais, mas também por vezes, em termos morais. Se um juiz for suficientemente maduro, terá experiência de vida. Essa experiência ajuda-o a identificar, num litigio, quem está certo e quem está errado.

O juiz deve ver-se a si próprio como representante da Lei. É o responsável pela aplicação da Justiça e da justeza. A figura feminina que representa a Justiça é a deusa grega Témis. Ela empunha a espada e a balança como símbolos. Os juízes da actualidade empunham o martelo e o selo do Tribunal. Se a nossa lei for justa, se os nossos juízes deliberarem adequadamente, se todos tiverem igual acesso à Justiça, então viveremos num Estado de Direito.
E como é que identificamos o Estado de Direito? A resposta é simples. Nos nossos corações. Se respeitarmos a lei viveremos num estado de Direito.
Dos três juízes que mencionámos, Huang, Ng ou Litton, qual será o melhor? Por favor, sintam-se à vontade para fazer a vossa escolha.

14 Dez 2015

Virgínia de Oiro

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onheci Virgínia Or há alguns anos e sempre encontrei um genuíno e caloroso sorriso. Estranhamente, ou talvez não, Macau parece ser grande, porque raramente nos encontrávamos, mas a empatia pode juntar as pessoas.
Virgínia sempre me suscitou curiosidade. Sou curioso acerca de pessoas que me tocam. Virgínia é natural de Macau, mas muitos dos seus amigos não são. Observei, com atenção, a naturalidade da sua abertura ao outro. Soube que se havia licenciado em filosofia pela Universidade de Seattle e regressado a Macau há 15 anos. Trabalhou no Instituto Cultural. Depois, saiu mais uma vez e escolheu Lisboa para viver, na típica Alfama, onde trabalha como freelancer em eventos e performances. A minha curiosidade sobre pessoas leva-me a inquirir o que as leva a fazer algumas escolhas, o que é que as atrai.

ACJ: Virginia, tendo nascido em Macau, o que a levou a um lugar tão distante como Seattle, e porquê filosofia? Macau não preenchia as suas aspirações?
V.O.: Depois de terminar a escola secundária em Macau, e à semelhança dos meus colegas, procurámos continuar a nossa educação universitária noutro lugar. As universidades de Hong Kong, à época, eram de difícil acesso. Tentámos em vários lugares e, no meu caso, um colégio da comunidade em Seattle aceitou o meu pedido. E assim, após dois trimestres de estudos na melhoria do inglês, fui admitida na Universidade de Seattle. O sistema de ensino era bastante livre nos Estados Unidos e nós temos de mudar de curso várias vezes. Influenciada por alguns professores recém-graduados nessa altura, que verdadeiramente gostavam e eram entusiastas do ensino da filosofia, continuei a ir a mais e mais aulas e no final concluí o curso de filosofia. Nesse tempo e idade, vinda de uma pequena sociedade um tanto fechada como Macau, antes da popularidade da internet, nós tentávamos compreender muitas coisas pelo pensamento e pela ida física aos lugares: o ambiente, as questões sociais, as relações raciais, o nosso tempo, como nós pensávamos sobre as coisas… Nesse sentido, talvez sim, Macau não tinha o espaço psicológico para nos oferecer a oportunidade de ampliar os nossos horizontes de pensamento, antes propício a cristalizar as nossas aspirações.

ACJ: Reparei que muitas das suas relações em Macau envolviam amigos não-chineses e agora, suponho, em Portugal, também. O que a levou a atravessar a ponte para uma cultura e ambiente diferentes?
V.O.: A ponte é “atravessada” ou “está a ser atravessada” a partir do momento que saímos fora do nosso ambiente de casa e da nossa zona de conforto e entramos no espaço de tentar compreender os outros. Ao conhecer pessoas de diferentes lugares, elas como que trazem o mundo até nós, para mais perto de nós. Ainda há muito a aprender.

ACJ: A curiosidade é minha. Existe alguma diferença entre jovens chineses e não chineses entre os seus amigos?
V.O.: Acho que a diferença não é tanto a cultura ou raça, mas a educação social e a consciência cultural. Encontro o mesmo tipo de jovens em todas as sociedades e culturas que conheci, que não são muito abertos a pessoas de diferentes ambientes e culturas, e que estão mais interessados ​​no mainstream, como a sua própria segurança, status social e bons empregos, o que é uma escolha… mas também encontro outros que estão abertas à diversidade e às mudanças, para si e também para os outros. Por isso, acho que as pessoas, jovens e velhos, sem viajar e conhecer culturas, outras que não a sua própria, têm mais dificuldade em estarem abertos à diferença.

ACJ: Na sua perspectiva, o que é que diferencia os filósofos chineses dos seus colegas ocidentais e quais as principais diferenças culturais?
V.O.: A minha universidade só oferecia estudos de filosofia ocidental, a única genealogia do pensamento que aprendi. Mas porque, por educação cultural e etnia, sou chinesa, descobri intuitivamente que algumas premissas na forma de análise, pontos de partida para iniciar os trabalhos, não se aplicavam à nossa mente oriental, ou talvez para formas de pensar que se aproximam e inclinam no sentido do pensamento oriental. Nesse sentido, é mais difícil de fundir os dois.

ACJ: O que a fez escolher Lisboa, entre tantas cidades na Europa? E depois Alfama… estou verdadeiramente curioso.
V.O.:Porque nasci em Macau antes da transferência de soberania, então, naturalmente, sou Portuguesa de nascimento. Lisboa faz-me sentir em casa. A forma como a cidade velha se estende para fora, alguns edifícios, as ruas em calçada, a suave inclusão, o calor e sentido de humor das pessoas, bem como, hoje em dia, a diversidade, são acrescentos ao sabor do lugar. A nostalgia atraiu muitos, eu incluída, para os bairros antigos de Lisboa, como Alfama, Mouraria ou Graça, entre outros. Sinto-me, simplesmente, mais segura entre as coisas antigas do que entre as mais novas.

14 Dez 2015

O Colóquio

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o fim-de-semana passado tive o prazer de participar no III Colóquio Sobre a Identidade Macaense organizado pela Associação dos Macaenses (ADM). Ao contrário do que muitos poderão pensar – sobretudo os ilustres que reagem logo com um “Epá, que seca! Outra vez essa treta da identidade macaense?..” – o evento foi bastante estimulante e foram colocadas questões pertinentes.

Uma conterrânea nossa que esteve presente perguntou-me se ia falar do colóquio aqui na minha coluna. Respondi-lhe prontamente que “apenas se o colóquio correr mal, para poder má-linguã!” pois, caso contrário, para quê elogiar a iniciativa de quem trabalha em regime de voluntariado e sacrifica o seu tempo livre para preparar eventos que dão bastante trabalho organizar?

(Caríssimo leitor, estou a ser irónico).

Miguel de Senna Fernandes, na qualidade de moderador, fez lembrar por diversas vezes à assistência de que estávamos num debate para partir pedra e confrontar ideias sem cerimónias. Ora, numa interpretação mais directa da minha parte, estávamos ali “prá porrada”. Mas no fim não houve muita, pois da assistência, que interveio bastante, foram mais as questões lançadas do que as respostas dadas.

Faço aqui um pequeno registo do que me pareceu mais interessante, aproveitando também para apresentar as minhas próprias observações.

O inquérito

Muitos foram os elogios dirigidos ao José Basto da Silva que apresentou os resultados do inquérito, da sua iniciativa, que foi lançado on-line. Foram mais de 500 os inquiridos e temos aqui uma ferramenta de trabalho muito útil.

Trata-se de bom material para analisar a textura da comunidade macaense à luz de diversos critérios, permitindo aos interessados lançar estudos com base em dados estatísticos concretos. Portanto, podemos abandonar o “acho que”, “penso que”, “sinto que” e citar concretamente “de acordo com as respostas obtidas no inquérito do Bosco-chai”.

E, já que estamos nisso, do inquérito conclui-se que os macaenses da faixa etária mais avançada falam mais português que chinês e são pessimistas em relação ao futuro da comunidade.

E agora acrescento: porque cristalizam definições, são incapazes de aceitar uma realidade em constante mutação, estamos em 2015 e ainda não aceitaram a transferência de soberania e são campeões na invocação do artigo 9º da Lei Básica.

(Este último a propósito da pequena tempestade no Facebook resultante de um chonto di gente que se sentiu incomodada porque o inquérito foi inicialmente lançado em inglês, em detrimento da língua de Camões. Haja paciência.)

A próxima geração

José Luís Pedruco Achiem, um dos oradores, sublinhou a necessidade de manter uma taxa de fertilidade acima dos 2.1% como condição absoluta para que a comunidade sobreviva.

Muito bem, mas fazer filhos apenas não basta, certo? A verdadeira questão, obviamente, será como educar os nossos filhos garantindo que a chama da comunidade maquista se mantenha viva. Falou-se em tradições e gastronomia, mas para mim a chave da questão está no domínio das línguas.

A língua não é apenas uma ferramenta de comunicação, é um universo cultural. E numa altura em que se assiste ao declínio do uso do português no seio da comunidade, é urgente que os pais macaenses programem a educação dos filhos para que sejam bilingues em pleno.

Esqueça-se o inglês, língua que se aprende facilmente em dois tempos, e concentre-se no chinês e no português.

E não se venha dizer que esta ou aquela língua foi descartada por causa do sistema de ensino que se decidiu seguir: caríssimo leitor, pode matricular o seu filho no Pui Cheng e falar português com ele em casa, uma coisa não impede a outra. E aqui falo com autoridade porque a minha taxa de fertilidade é de 2.0, aos 3 anos o meu filho já era trilingue e da minha menina de 2 meses não espero outra coisa.

Sobre línguas não vou desenvolver mais pois este tema foi por mim abordado em detalhe no artigo “Noite de Natal no Karaoke”. (*)

Rethinking the boundary

Foi este o tema desenvolvido por Elisabela Larrea, a primeira oradora do colóquio. A nossa amochai apresentou o seu trabalho em inglês – ai os antigonços e os seus intestinos que devem estar a mexer, e de que maneira – e conseguiu transmitir o que para mim faz todo o sentido e sempre defendi: a riqueza do ser maquista reside precisamente na sua diversidade cultural, portanto porquê criar fronteiras redutoras?

Tudo muda com o tempo: o mundo mudou, Macau também, portanto os parâmetros de definição da identidade Macaense têm, necessariamente, de mudar e evoluir.

A Elisabela não falou do nada: segundo a sua pesquisa, a peça de Patuá “Olá Pisidénte” (1993) continha 99% de palavras em Patuá e apenas 1% de Cantonense e Português, sendo que a audiência era maioritariamente macaense e portuguesa.

Já a recente peça “Qui Pandalhada” (2011) apresentou apenas 61% de palavras em Patuá; e 26%, 10% e 2% em Inglês, Chinês e Português, respectivamente. Quanto à audiência, para além dos macaenses e portugueses, verificou-se o que já sabemos: uma presença significativa de chineses.

Aceitar que ambas as peças são manifestação da cultura macaense é também aceitar, por conseguinte, que a definição do conceito de macaense é mutável.

Descartemos os complexos: a nossa multiculturalidade deve ser celebrada em pleno.

Aquela coisa do “no meu tempo”

Foram vários os intervenientes que recordaram o Macau antigo e lamentaram a ausência dos lugares de convívio onde outrora socializavam com a malta, apontando essa situação como uma das ameaças à sobrevivência da comunidade.

Houve até quem dissesse que para muitos é preferível não estar em Macau “a assistir a essa destruição, sendo se calhar mais fácil estar nos Estados Unidos, ou num outro país qualquer, onde se sentem melhores”.

Salvo o devido respeito, não posso concordar com essas afirmações. O discurso do “no meu tempo” arrepia-me. O nosso tempo é o nosso tempo, as coisas mudam de geração em geração.

Aos fins-de-semana o meu filho de cinco anos diverte-se nos parques limpos, bem tratados e bem equipados do IACM, ou então nos indoor playgrounds dos novos empreendimentos. E divertimo-nos à brava. Quem sou eu para lhe dizer que no meu tempo as coisas eram melhores?

Aliás, escrevo estas linhas depois de um agradável jantar com amigos do meu tempo, estivemos num restaurante formoso de um dos novos casinos, fomos servidos por um chef português nosso amigo. Boa comida, bom ambiente, bom convívio.

“No meu tempo” não era necessariamente melhor ou pior, era diferente – e não temos forçosamente que ser pessimistas em relação ao futuro. O passado é bom, mas é morto.

Considerações finais

Não quero deixar de destacar a positiva participação de intervenientes em língua chinesa. Deu um colorido à coisa e sei que essa era uma das intenções da ADM – por essa razão todo o evento teve tradução simultânea. Aliás, qual o sentido de um colóquio para debater a identidade macaense se for apenas entre nós, entre a malta? Se for para isso, mais vale combinarmos uma jantarada entre nós…

Os meus parabéns à ADM pela iniciativa. Para o ano há mais, certo?

Sorrindo Sempre

Há 10 anos atrás, quando trabalhava no Governo, conheci um caso em que um funcionário avançou, sem a devida autorização superior, com a execução de uma obra que implicou despesas do erário público.

Quando, já intempestivamente, o funcionário submeteu a papelada para processar a coisa, superiormente foi exarado o seguinte despacho: “Aprovo com efeitos retroactivos e sanciono o técnico responsável pelo sucedido, sendo que o mesmo será tido em consideração aquando da renovação do seu contrato”.

Tradução: “a m**** já está feita e vou aprovar a contar da data em que foi feita, mas estou lixado contigo e sou capaz de te pôr na rua.”

Volvidos 10 anos, sou confrontado com o seguinte caso: alegando falta de espaço no pavilhão onde costuma organizar as suas Festas de Natal, o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes (DJCN) decidiu este ano alugar um espaço no exterior: o auditório do IPM.

Alugar um espaço no exterior custa dinheiro. E das duas, três: ou (1) o DJCN não sabia, ou (2) sabia e fez mal as contas, ou então (3) sabia, fez bem as contas e apercebeu-se que precisava ainda do carcanhol dos encarregados de educação, mas por mera má gestão ou por motivos que sou incapaz de compreender, decidiu que estes deveriam ser informados apenas no último momento.

Pois que com a Festa a realizar-se no dia 12 de Dezembro, o DJCN decide apenas enviar aos encarregados de educação, no dia 8 de Dezembro, um e-mail onde se lê: “(…) todas as despesas inerentes a esta deslocação representam um montante elevado que irá ser suportado pela escola. Ainda assim, torna-se indispensável que os Pais e Encarregados de Educação adquiram os respectivos bilhetes no valor de 75 MOP cada. (…)”

Caríssimo leitor, não vou passar fome por ter de arrotar as 75 pataquitas. Mas incomoda-me saber que a DJCN toma decisões dessas sem consultar primeiramente os encarregados de educação, para depois enviar um e-mail assim, em cima do joelho, já com tudo decidido e o facto consumado, obrigando-nos a arrotar as tais 75 pataquitas. E, que eu saiba, em Macau nenhum jardim de infância pede aos pais que paguem para ver a actuação dos seus próprios filhos no Natal.

O (a) responsável por essa borrada toda merece, indubitavelmente, um puxão de orelhas semelhante ao daquele despacho escrito.

Sorrindo sempre? Não.

(*) “Noite de Natal no Karaoke”, edição de 24.07.2015 do jornal Hoje Macau.

11 Dez 2015

Fong & friends

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda o que aconteceu na sexta-feira passada. Faz hoje oito dias, ficámos todos a perceber com clareza – se dúvidas ainda tivéssemos – de que massa é composta muita da gente que, directa ou indirectamente eleita, com a bênção do Chefe do Executivo ou sem ela, ocupa um lugar na Assembleia Legislativa. Na realidade, o tema vinha de véspera e foi Tsui Wai Kwan, um dos escolhidos de Chui Sai On, que deu o tiro de partida para um dos mais tristes espectáculos a que assisti em mais de dez anos de plenários.
Resumindo, para depois concluir: há deputados que estão preocupados com o investimento que o Governo, através da tutela de Alexis Tam, está a fazer na saúde pública, no Centro Hospitalar Conde de São Januário e nos centros de saúde do território. Consideram que a intenção é boa, mas já chega, não é preciso ir mais longe. A razão para este travão político? A concorrência às clínicas privadas e ao Hospital Kiang Wu, essa instituição que dispensa apresentações e que todos nós sabemos como é financiada.
Como é hábito naquele edifício ao qual se deu o nome de Assembleia Legislativa, há um deputado particularmente despudorado, conhecido pelos frequentes dislates, de seu nome Fong Chi Keong, que assumiu a defesa da causa: se o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura continuar nesta senda de tentar melhorar o serviço público de saúde, vai acontecer uma catástrofe. (Quem não conhecer o estilo da retórica fonguiana poderá porventura achar que me enganei na redacção da última frase. Não, não me enganei.) Vai daí, o douto tribuno deixou um conselho ao secretário, que “ainda é novo”: há que parar enquanto é tempo, que o Kiang Wu é para ser tratado com amor e carinho.
Os deputados defensores do Kiang Wu – Fong Chi Keong é bom a fazer contas e somou oito, ali todos sentadinhos – explicaram, ao longo de várias e entediantes horas, como é que o Governo, ao estar a melhorar um hospital que é de todos, prejudica o hospital de quem tem dinheiro para pagar contas: há médicos que estão a trocar o Kiang Wu pelo São Januário. Que indecência, que despautério, que grande tolice. E, claro está, se o hospital público um dia destes recupera a confiança da população, as contas mensais do Kiang Wu provavelmente vão ressentir-se. Que vã preocupação.
O que tu queres sei eu, disse Alexis Tam a Fong Chi Keong, e disse muito bem, que todos sabemos o que ele quer: esta situação de concorrência desleal gerada pelo único governante que, até à data, veio defender que o São Januário não deve cair de podre, nem deve ser o hospital dos pobres e desvalidos, só pode ser resolvida com mais uns servicinhos encomendados ao Kiang Wu. Como se já não bastasse o dinheiro todo que, anualmente, entra por várias portas no hospital privado. Como se não bastasse.
Para Alexis Tam, obviamente basta. Não será à toa que, apesar dos cortes orçamentais deste ano, o secretário continua a ter dinheiro para investir, para contratar, para fazer. Apesar da oposição, continua, portanto, a ter apoio político para levar o seu projecto avante. Mesmo havendo um Kiang Wu na cidade. Mas a contestação à melhoria do que é público serve de explicação – queiram os deuses e restantes santos que não seja, de novo, premonitória – das dificuldades que se colocam a quem, de uma forma ou de outra, se atreve a tocar em vacas sagradas, mesmo que com jeitinho.
Falta de vergonha dos deputados à parte, importa reflectir, para memória futura, na postura de Alexis Tam, que fez questão de encerrar os dois dias de debate com uma mensagem clara e inédita na política local: ele está no Governo para servir a população, não uma minoria da população. E espera que os deputados entendam que assim é e assim vai continuar a ser enquanto lá estiver.
Este tipo de mensagem leva-me a pensar que, com o secretário, passa-se uma de duas coisas: sabe bem o que está a fazer, que terreno pisa, e por isso diz o que diz, porque segue um certo alinhamento nacional que não tem, nos dias que correm, o empresariado ganancioso e despudorado em grande conta; ou é simplesmente alguém que quer fazer, que quer cumprir o que promete, que quer ir mais além na vida política e poder continuar a defender o interesse público. Às tantas, são as duas coisas em simultâneo. Fong e amigos, parece que o mundo está a mudar, apesar do lento ritmo local da mudança.
Alexis Tam é uma carta claramente fora do baralho governativo, mas não está só. Noutro registo, com um estilo completamente diferente, o secretário para os Transportes e Obras Públicas protagonizou esta semana mais um momento político nunca visto. Depois da ladainha de comentários e perguntas de uma dezena de deputados, Raimundo do Rosário, com a sua forma de responder sem rodeios, pouco ou nada virada para os novelos retóricos em que os deputados se emaranham, explicou que não pode responder a tudo, nem pode fazer tudo. Ficou sem 300 milhões e o que lhe falta em pessoal, em terrenos e em recursos, tem a mais em problemas, limitações e nós para desfazer que, à medida que os anos foram passando, se foram tornando cada vez mais apertados.
É refrescante ouvir um governante desta terra não prometer estudos para resolver problemas há muito diagnosticados, mesmo que nos diga aquilo que não queremos ouvir. É refrescante ouvir um governante desta terra dizer que está aqui para me defender, a mim e aos outros todos que fazem parte da maioria que não sabe fazer contas com a quantidade de zeros da máquina de calcular de Fong Chi Keong.
Talvez daqui a uns tempos chegue à conclusão de que estas formas de estar não me deram um melhor hospital ou um trânsito menos caótico. Por ora, sabe-me bem ouvir um discurso político de maior elevação.

11 Dez 2015

Uma derrota, uma vitória

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] A derrota nas recentes eleições legislativas na Venezuela do governo chavista de Nicolàs Maduro e a conquista de uma maioria absoluta no Parlamento pelas forças de oposição ao regime, organizadas à volta do Movimento de Unidade Democrática(MUD) revela que não é inevitável uma alternância bipolar entre o esquerdismo guevarista e o conservadorismo musculado. Uma terceira via, liberal e moderna, faz o seu caminho com Júlio Borges e o MUD, Juan Manuel Santos na Colômbia, Maurício Macri na Argentina e Horácio Cortes no Paraguai.
A iniciativa de ‘impeachement’ da presidente Dilma Rousseff do Brasil, já aceite pela Câmara de Deputados, conduzirá à criação de uma Comissão que avaliará as acusações que impendem sobre Dilma. Profundamente desacreditada perante o seu povo pelo desgoverno dos últimos anos, a antiga vice-presidente de Lula da Silva poderá, com alguma probabilidade, ver reduzido o tempo do seu segundo mandato. As forças da oposição creditam ter sido obtido por manipulação eleitoral, golpismo e alargada corrupção federal e a nível dos estados. A ser assim, o Brasil poderá ser o quarto país sul-americano a sair do bloco dos regimes de esquerda que aliam má-governação económica, corrupção generalizada, delapidação de recursos naturais e punição da classe média.
O esquerdismo latino-americano agrupa para além da Venezuela e do Brasil o regime castrista de Cuba, o nativismo de Evo Morales na Bolívia, e os regimes autoritários de Rafael Correa no Equador e Daniel Ortega na Nicarágua.

2. Na Europa, a vitória de Marina Le Pen nas eleições regionais francesas do passado fim-de-semana marcou o fecho de um ciclo de exclusão da direita nacionalista francesa do círculo de poder. Denota a identificação do eleitorado com as propostas da líder da Frente Nacional, quando se aproximam eleições presidenciais. Eleições que Marina Le Pen é uma das favoritas com o presidente da UMP, Nicolas Sarkozy. Rapidamente envilecida pelos órgãos de informação de esquerda e pelas redes sociais, a líder da Frente Nacional expressa o sentir de uma maioria crescente de eleitores que estão profundamente descontentes com o incompetente governo de François Hollande, na gestão da economia, na participação na União Europeia, e na defesa da segurança colectiva perante a ameaça permanente do terrorismo islamita. Em menos de um ano, os franceses foram flagelados por vários atentados e deram-se conta que a ameaça (consumada) à sua segurança não é externa mas interna. Ela advém de células de jihadistas simpatizantes do chamado Estado Islâmico que têm estado dissimuladas nas comunidades muçulmanas de França.
Não se trata, ao invés de uma opinião mil vezes multiplicada, de comunidades marginalizadas e socialmente desfavorecidas mas de elementos da classe média inteiramente integrados nas suas comunidades, dispondo de informação abundante e circulando abertamente, pelos favores de um sistema tolerante, entre Paris e os oásis terroristas no Médio Oriente. Núcleos reforçados por kamikazes que aportaram a França, no meio dos movimentos migratórios que passam pela Grécia e pelos países do Mediterrâneo, aproveitando uma política imprudente de ‘fronteiras abertas’.
A vitória de Le Pen não é, contudo, um caso ‘clínico’ que agitou as boas consciências dos eleitores franceses mas que passará. É o regresso em força de um nacionalismo europeu, populista, que sabe ler muito bem as premências mais graves dos cidadãos e projectá-las no discurso político. Nacionalismo que ataca a erosão de identidade nacional e dos valores tradicionais que têm origem na língua, nos costumes, da ética social enraizada, na prática religiosa em favor de culturas alienígenas que optam pela não assimilação e resistem à lógica de integração e acomodação.
O que coloca o velho problema dos limites da tolerância. O Estado de direito democrático não pode, sob pena de pôr em causa a sua própria sobrevivência, contemporizar com ataques sistemáticos à coesão social dos grupos, comunidades étnicas e concepções de vida e sociedade, que formam as comunidades políticas, na modernidade.

3. Trata-se se puxarmos a discussão a um nível filosófico do debate do paradoxo da tolerância tratada pelo filósofo austríaco Karl Popper em ‘A Sociedade Aberta e os seus Inimigos’. A tolerância ilimitada conduz ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada aos que não são tolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante contra os assaltos daqueles que são intolerantes então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. Isso significa, sempre citando Popper, que não se deve impedir a expressão de filosofias intolerantes, desde que as possamos contrariar com argumentos racionais e tê-las sob vigilância da opinião pública, a sua supressão será pouco prudente. Mas devemos reivindicar, em nome da tolerância o direito de as suprimir se necessário com o uso da força. Pode bem suceder que não estejam abertas a argumentar connosco com base em argumentos racionais, mas denunciem todos os argumentos. Podem proibir os seus seguidores de ouvir o argumento racional, acusando-o de ser enganoso e ensiná-los a responder com os punhos e as armas. Devemos reivindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Devemos afirmar que qualquer movimento que pregue a intolerância coloca-se à margem da lei e considerar crime o incitamento à intolerância e a perseguição, da mesma maneira que o fazemos quanto ao homicídio, sequestro e a reabilitação do tráfico de escravos.
O endeusamento pela esquerda do valor cardinal da igualdade tem favorecido expressões de extremismo niilista em nome do princípio da diferença, ao procurar fazer que se tenha o terrorismo como um facto socialmente aceitável. Que não é, já que visa a destruição da sociedade que toma como alvo.
O terrorismo tem prosperado em França por uma lógica de tolerância invertida. É por essa razão que os franceses dão agora a confiança política a Marina Le Pen, já que perceberam que ela poderá forçar a adopção de politicas clarificadores que outros acham desajustadas em nome de uma inclusão sem nexo.

11 Dez 2015

Nem bom vento, nem bom alimento

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]ia ontem uma notícia na imprensa local que anunciava o desenvolvimento em curso em Da Nang, no Vietname. Dizia, entre outras coisas, que os junkets organizam 25 voos charter por semana (!) para China, falava de lucros já mirabolantes dos casinos existentes e ainda citava o responsável de turismo local que dizia estarem a posicionar a capital do centro vietnamita como um destino de lazer, praia e de reuniões e convenções. Fiquei mal disposto. Por Macau e por Da Nang. Por Macau porque tem ali um concorrente quase impossível de superar se as coisas continuarem como até agora por aqui. Por Da Nang porque a conheço bem demais, porque conheço bem demais os impactos do turismo massivo, e porque sei bem o que se está por lá a passar, e o futuro não vai ser bonito.
Soa familiar a declaração do responsável do turismo de Da Nang. Demasiado familiar, diria, mas com uma pequena (grande) diferença: praia. Naturalmente, não será pela praia que os turistas chineses (a grande maioria deles, naturalmente) lá irão mas é pela praia, também, que muitos outros, de outras partes do mundo para lá irão cada vez mais. Macau não tem praia, ou seja, Macau não tem uma praia que consiga sequer rivalizar com a China Beach. Mesmo que acontecesse o milagre da despoluição nunca as praias de Coloane conseguiriam fazer frente àquela costa magnífica. Isto para não falar do espaço disponível e de muitas outras coisas que aquela região vietnamita proporciona e que me vou escusar de referir porque nem seria justo, nem faria sentido. Que pode então Macau fazer? Que pode então Macau fazer quando já percebeu (finalmente!) que os turistas da China não bastam e que é preciso diversificar mercados? Macau, como os ingleses diriam, tem de limpar o seu acto, literal e figurativamente. Macau tem história mas tem vindo a perder os seus vestígios com a construção urbana desordenada. Macau tinha um bom ar mas agora, não bastas são as vezes em que é pior do que o ar respirado em Central (HK)! Não acredita? Aconselho então a baixar uma aplicação para telemóvel chamada “Global pm 2.5*” e verifique por si mesmo. À hora de escrita deste artigo, 20:30H, o centro de Macau registava um nível de 130 (considerado insalubre) e Central 85; até Foshan registava menos que Macau com 97 e, pasme-se, mesmo Cantão ostentava menos poluição atmosférica do que Macau (!) ao marcar o nível 104. Caem então pela base as teorias conspirativas que apontam o dedo ao continente para a poluição do território, porque não foi a China que mudou dramaticamente, fomos nós com obras incessantes e mal protegidas, autocarros a perder de vista, transportes públicos do tempo da Maria Cachucha, quando em Shenzhen se fabricam autocarros amigos do ambiente, torres de habitação e casinos que fecham as tomadas de ar da cidade, trânsito caótico. Porque é que o governo permite, e adopta, autocarros movidos a diesel é um mistério sem segredo: porque existem lobbies que viriam os seus rendimentos gasolineiros coarctados. Porque é que se permite a construção desenfreada e praticamente sem regras? Porque existem lobbies que disso dependem e que não estão nada interessados em construir melhor, nem sequer em parar de nos entaipar.
Chegamos aos mercados e é a desgraça. Fala-se nestes dias em Hong Kong que estão preocupados com mais um potencial escândalo alimentar por não saberem se a carne que está a ser vendida ao público está, ou não, carregada de antibióticos. Estes são utilizados por criadores menos escrupulosos para fazerem as aves e os bovinos crescerem mais rápido. Isto surge quando existe uma campanha mundial de alerta para o uso excessivo de antibióticos que está a causar resistências e a torná-los ineficientes. E se eles estão na carne que consumimos, mesmo que não nos encharquemos de antibióticos quanto temos um resfriado, acabamos por levar com a dose no prato. Em Macau nem sequer a rotulagem é uma preocupação. Rótulos exclusivamente em chinês, carnes que congelam e descongelam, armazenamentos da idade da pedra… Assim nunca seremos um destino de nível mundial, nem regional quanto mais mundial.
Macau precisa de visão e de coragem se não quiser transformar-se na quimera de destino mundial de lazer num destino irrelevante para turistas manhosos que tanto se lhes dá assim como assado. Macau precisa de saber honrar a sua história, de proteger e dar vida ao seu património, ocidental e chinês, e deixar apenas de pintar fachadas. É absolutamente necessário dar conteúdo às fachadas, não podemos ter Lilaus fantasmas anos a fio porque o património vive-se não se admira. Temos de saber honrar a distinção da UNESCO e acabar com a salganhada que é hoje em dia o centro histórico da cidade onde cada um monta o reclamo como lhe apetece e que, como alguém me dizia no outro dia e muito bem, parece-se mais com o free-shop de um aeroporto do que com o centro de uma cidade secular. Macau precisa de esplanadas, precisa de tirar carros e autocarros da rua, mesmo de fechar ruas ao trânsito, precisa de apoiar o comércio tradicional, precisa de se ligar mais às artes, ao ensino de qualidade, ao verdadeiro lazer que não passa apenas por piscinas de ondas e salas de cinema XPTO, mas pelo prazer de caminhar, de descobrir uma cidade secular e viva onde apetece descobrir ruas e becos e não mais uma loja de ourives de Hong Kong – como eles por lá se devem divertir agora; vieram para aqui fazer o seu à custa dos parolos enquanto vão recuperando a sua cidade para, eles sim, a transformarem no tal destino turístico mundial que Macau sonha mas não tem unhas para arranhar. Não podemos mais ser provincianos e temos de saber aproveitar os ganhos da época de ouro para transformar esta cidade num local onde as pessoas queiram vir e, acima de tudo, estar. Uma cidade ecológica, moderna mas tradicional, onde a vida seja um prazer de facto e não um prazer de catálogo e filmes institucionais. Uma cidade que honre a sua história e a sua forma de vida e não um gueto de proibições, centro comercial foleiro e descoordenado, purgatório luminoso sem eira nem beira.
Para isto Macau precisa de coragem política, como a que teve Alexis Tam ao defrontar os lobbies da saúde privada na assembleia, mas não pode ser só ele, nem pode ser apenas o governo – nós também temos de a ter para exigir, para propor, para deixar os carros em casa e acabar com a desculpa dos filhinhos, coitadinhos, que não podem ir a pé para a escola. Daqui a uns anos eles vão agradecer-nos a boleia quando tiverem uma cidade (ainda mais) irrespirável…
Macau precisa de coragem para tomar decisões que pensem mais no bem comum e menos no bem de alguns. Macau precisa de um plano de transformação urgente. Ou melhor, de um plano de recuperação urgente porque o que está a acontecer agora não nos pode levar a nenhum lugar aprazível porque mais Da Nangs virão.

___________
*material particulado (sigla em inglês, PM, de particulate matter), são partículas muito finas de sólidos ou líquidos suspensos no ar. Para ser considerado PM, suas dimensões (diâmetro) variam desde 20 micra até menos de 0,05 mícron[1]
As maiores fontes antropogênicas de particulados são a queima de combustíveis fósseis em motores de combustão interna de veículos, termoeléctricas e indústrias e as poeiras de construção e de áreas onde a vegetação natural foi removida.

MÚSICA DA SEMANA
Tema da Banda sonora do filme “Good Morning Vietnam”
“Nowhere To Run” – Martha And The Vandellas
Nowhere to run, baby nowhere to hide
I got nowhere to run, baby nowhere to hide
It’s not love, I’m running from
It’s the heartaches, I know will come
’Cause I know, you’re no good for me
But you’ve become a part of me
Everywhere I go, your face I see
Every step I take, you take with me, yeah
Nowhere to run, baby, nowhere to hide




10 Dez 2015

A Deus

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onheço miríades de gente em todo o lado que dá “Graças a Deus” por tudo e por nada. Para quem é um bom cristão, fica sempre bem ser agradecido ao divino pelas boas graças, mas é estranho que o contrário não seja também verdade. Por exemplo há quem diga qualquer coisa como: “Parou de chover, graças a Deus”. Estas pessoas certamente não gostam de chuva, mas porque é que foi “graças a Deus” que parou de chover? E quem mandou a chuva? Deus só tem a capacidade de fechar a torneira? Foi um anjinho maroto que a abriu? Mistérios do divino que não encontram explicação. Quando alguém esteve doente e depois melhora, diz que foi “graças a Deus”. Será portanto parte do plano divino Dele que esta pessoa tenha ficado primeiro doente, para só depois recuperar. Deus não teve nada a ver com a gripe ou com a perna partida, mas foi parte indispensável da recuperação. A sério, isto deixa-me seriamente preocupado. Quem é que nos anda a tramar e a dar tanto trabalho a Deus?
Muita gente gosta de falar com Deus, ora através da oração silenciosa ora conversando mesmo em voz alta sozinho (ou com Deus, depende da perspectiva). Não se espera é que Deus responda, pois nesse caso seria “mau sinal” – quando se calhar até seria “bom sinal”, não se percebe muito bem. Voltando aos jogadores de futebol, acho o caso do internacional brasileiro Kaká fascinante. Quando o branquelo marca um golo, levanta as mãos ao céu e agradece. Quando falha um golo, não vejo desiludido ou a pedir explicações ao criador: se não marcou golo, foi porque “Deus não quis”. Deus é imprevisível, e a Sua vontade aleatória. E para onde Lhe dá. Quando se reza por alguém, é normalmente um caso perdido. Quando alguém morre mesmo depois de muitas rezas, correntes e até promessas, baixa-se a cabeça e resigna-se à “vontade de Deus”. Na eventualidade (muito rara) da pessoa sobreviver ou até recuperar totalmente, nunca foi devido à medicina ou à ciência. Foi, adivinharam, graças a Deus. Daí os tais pagadores de promessas, que por vezes se sujeitam a andar à volta de santuários gigantescos de joelhos como agradecimento à alegada influência divina. Este “sacrifício” parece dar a Deus “extra bonus points”.
Deus é visto como uma autoridade real, e não imaginária, que nos está constantemente “a ver” (sim, até no chuveiro). Diz-se daquelas pessoas que são uns cabrõezinhos da pior espécie mas por culpa da sociedade (ou do Diabo?) são ricos e famosos, que “têm contas a ajustar com Deus”, que Deus “não dorme”. Duvido que quem mate, roube ou cometa fraude e enriqueça esteja muito preocupado com isso. Deus é usado como moeda de troca. Quem pede “pelo amor de Deus” está mesmo a apelar. Se resultasse mesmo não existia desemprego, bastava pedir um emprego “por amor de Deus”, e ficava o problema resolvido. Quem pede esmola “por amor de Deus” é a maior parte das vezes recusado com um “tenha paciência”. Este “tenha paciência” é a “safe-zone”: Deus não fica chateado se atirarmos com esta frase mágica, que nos livra da obrigação caritária da esmola. Acho piada aos mentirosos que juram “por Deus” estar a dizer a verdade. Quem usa Deus como desculpa só pode estar mesmo a brincar.
“Deus” é mesmo uma palavra banalizada. Já ouvimos milhões de vezes expressões como “Deus queira”, “Deus é que sabe”, ou a sua variante niilista “Só Deus sabe”, “Deus me livre”, e muitas outras. A minha preferida é “Até amanhã, se Deus quiser”. Isto demonstra uma dose de pessimismo especial. Nunca me passou pela cabeça não estar vivo amanhã, ou depois de amanhã, ou para a semana que vem dependendo exclusivamente da vontade de um ser divino. Assim não marcava consultas, não comprava bilhetes para concertos, não cumpria qualquer compromisso, não fazia nada. Ficava deitado à espera que Deus finalmente me resolvesse levar para junto Dele, o tal “destino final” que todos aguardam. E porque não havia Deus de querer que haja um amanhã para todos? Vá lá, pronto, fico por aqui. Vão com Deus, mas não abusem.

10 Dez 2015

Abstinência

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz o dicionário que abstinência é a nossa deliberada decisão de não nos envolvermos numa actividade ao mesmo tempo que temos um desejo tremendo de praticá-la, tipo comer uma fatia de bolo de 2000 calorias. Abstinência sexual não é diferente, apesar de ser muitas vezes confundida com virgindade. Há um episódio genial do Seinfeld (essa grande série sobre o nada) que explora as potencialidades de duas personagens por não se envolverem na actividade sexual durante um longo período de tempo. De uma forma caricaturizada e brincando com os estereótipos de género, o homem torna-se num génio intelectual, porque finalmente se viu livre da distracção que o sexo trazia para a sua vida, e a mulher estupidificou por completo, porque usava o sexo como clareador da mente. Um exagero de descrição que traz a curiosidade de perceber qual é o mal e/ou bem da abstinência sexual.
Abstinência sexual faz-me lembrar o uso de cuecas de ferro trancadas por uma fechadura. Mas de uma forma mais simples, pratica-se abstinência com um simples ‘não quero’ envolver-me com os órgãos sexuais de outrem. Pode ser uma abstinência deliberada ou uma abstinência imposta (como eu gosto de chamar). Porque a ausência sexual nem sempre é uma decisão, mas um acumular de circunstâncias que torna o não-envolvimento sexual inevitável, em certos momentos das nossas vidas.
Até que ponto o sexo é uma obrigatoriedade humana é uma pergunta difícil de responder. Bem, para quem quer ter filhos, convém. Quando se está numa relação amorosa/sexual onde normalmente sexo faz parte do ‘pacote’ relacional, também convém. Freud diria de peito aberto que quem não tem orgasmos vai desenvolver sérios problemas psicológicos, e por isso todo o imaginário psicoanalítico, que já é tão parte da cultura popular, vem trazer a ideia de repressão e violência quando não vemos as nossas necessidades sexuais satisfeitas. Há mesmo uma preocupação genuína, principalmente entre os homens, que o não uso do seu órgão sexual irá atrofiar os testículos, os fazedores de esperma. Por isso, no espectro das decisões sexuais no mundo ocidental temos de tudo, desde os que se recusam aos que acreditam ser absolutamente necessário.
Não nos envolvermos em sexo não é condenável, nem uma ideia ridícula. Se pensarmos no admirável mundo do sexo como um todo, com os seus preconceitos e doenças/infecções sexualmente transmissíveis, cedo se percebe que não praticá-lo com quem não se conhece muito bem não é uma ideia absurda. Mas a abstinência sexual é o que afinal? Será que se refere somente a sexo vaginal? Ou aos outros sexos incluídos? E a masturbação? É de longa ou curta duração? Em casos de celibato religioso encontramos obviamente uma doutrina para o seu significado. Em contextos contraceptivos fala-se em abstinência relacionada com a penetração vaginal, principalmente entre as camadas mais jovens, porque há uma preocupação acrescida de gravidez na adolescência.
Mas tentar explicar estas malhas da abstinência sexual é expor a vida social que o sexo desenvolve na esfera pública, quase como se tivesse vida própria de pressupostos já definidos. A abstinência que não seja praticada porque se considera a melhor forma de prevenir o que quer que seja, porque há formas alternativas diversas. Ou por outra, que seja utilizada pelo pessoal que está informado sobre tudo o que é possível de ser utilizado no mercado vigente. É totalmente OK, foder se tivermos toda a informação necessária e é totalmente OK não querer foder, quando se tem toda a informação necessária.
Pior são aqueles que são levados a uma abstinência motivada pela falta de parceiro. O sexo, por isso, não possui as características de um direito biológico como comer ou beber porque depende da outra pessoa querer também e é óbvio que não se pode obrigar ninguém. A actividade sexual exige um louco exercício social em tempos que se prega individualismo puro. Os eremitas não são grandes candidatos para o sexo, por exemplo. Por isso a abstinência talvez faça mais sentido a quem tenha desdém pelo sentido social da humanidade. Para todos os outros, que o sexo seja compreendido como é: de uma difícil percepção social mas de um livre arbítrio inerente. Desenvolve-se a experiência individual com ou sem sexo, como se queira.

10 Dez 2015

A cidade culta

Planeando criatividade, cultura e cidades, muitas vezes leva a visões limitadas e sensacionalistas, em que os criativos culturais são vistos principalmente de um ponto de vista económico. Isto é uma pena, diz Charles Landry, para a cultura é muito mais do que o valor económico ou o aumento das indústrias criativas. Landry apela para que uma cidade a use a criatividade de muitos “para se tornar a melhor e mais imaginativa cidade para o mundo – e não a cidade mais criativa do mundo”.
Roy van Dalm

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]cultura não é uma transcendência, muito menos uma utopia. A cultura é a estrutura que define o ser, que lhe dá maior abertura, maior capacidade de visão, educação e, com isso, abrem-se as portas às imensas possibilidades e opções que se deparam através do acto de pensar.
Charles Landry, britânico, autor de “A Cidade Criativa”, publicada no ano 2000, constitui um manual para planificadores urbanos. Landry vê a necessidade de um pensamento novo e culto e o subsequente recurso à criatividade de muitos para resolver questões importantes da cidade. Não é uma história económica, portanto, mas antes uma chamada para uma visão cultural mais ampla.
Sucede que uma das verdades menos consideradas é que ignorância é não se saber que não se sabe, tanto quanto o grosseiro não sabe que é mal-educado. Sendo verdades de La Pallisse não constituem evidências suficientemente assertivas para se constituirem em metáforas do que há a combater.
Charles Landry, como tantos outros, passará por Macau, para um painel integrado no “This is my City” , a ter lugar no Centro de Design de Macau.
Diria que é um dos palcos possíveis, mas gostaria, enquanto cidadão de Macau, que Charles Landry e todo o painel, também falassem para toda a cidade, via televisão. Gostava que houvesse em Macau um Centro do Pensamento Contemporâneo, que precede e alimenta a criatividade, rasgando-lhe horizontes em permanente diálogo.
A cidadania não é um B.I.R. nem uma burocracia que define o permanente e o temporário. A cidadania é, também, a chamada dos mais habilitados, independentemente da proveniência, raça ou credo, para integrarem a cidade desejada, ainda por acontecer.
Carles Landry passará por Macau. Quanto do seu saber será aproveitado?
Já por mais de uma vez tive oportunidade de escrever que uma cidade é um organismo vivo, orgânico, um lugar consequentemente holístico, onde uma acção se repercute em todo o tecido urbano e humano.
Macau tem todas as possibilidades, ainda, de se converter numa cidade criativa, se houver visão e vontade política.
Não existe, infelizmente, na desumanização da cidade, uma teia de afectos que até Confúcio prescrevia. Existe apenas o egoísmo da sobrevivência, o todo excessivo, seja na construção, seja no trânsito, ou nas ruas tornadas metáforas do caos.
O contexto singular de Macau, característica antiga que situa ainda hoje a cidade ao nível da excepção e não da regra, radica fundamentalmente o seu estatuto numa relação de conveniência pragmática, compromisso que permitiu a consolidação da sua essência conjugadora entre dois mundos.
A nova realidade de Macau é um processo ainda por concretizar na definição política que lhe foi conferida, de centro mundial de turismo e lazer. Só o poderá ser verdadeiramente se a amálgama de todos os problemas urbanos forem resolvidos, se existir uma matriz estruturada para acolher este desígnio.
Perante esta indesmentível constatação, importa extrapolar um conceito que há mais de duas décadas venho defendendo, tendo em conta que uma parte da população de Macau é transitória:
o da consolidação de um polo referenciador e aglutinador das diversas comunidades em presença e que tenha como referência a percepção da Cidade, a relação supra-linguística, a recíproca interpretação cultural, num processo de plena abertura para com o Outro, tanto naquilo que o assemelha como naquilo que o distingue.
É na teia de relações e afectos ainda improváveis, que a Cidadania – enquanto também identidade – se pode consolidar na sua plenitude, permitindo então a aplicação plena da abordagem cultural na Cidade Criativa.
A questão da cidadania sempre me foi particularmente cara pelo que comporta de implícito compromisso, e também porque Macau, integrado no segundo sistema, tão inteligentemente concebido por Deng Xiao Ping, constitui parte integrante. Vislumbro aqui a formulação do segundo sistema como um acto de política eminentemente criativa, inicialmente destinado, como se sabe, a operar a progressiva transformação do interior da China pelo efeito de capilaridade de que a criação de zonas económicas especiais e de regiões administrativas especiais, todas situadas na orla marítima, são instrumentos fundamentais.
Porém, cidades como Shenzhen, nascidas do nada, já desempenham importantes papéis no que toca à estruturação urbana, cívica e de experimentação que urge observar e reflectir.
Se o figurino urbano de Macau mudou radicalmente desde a sua criação, a sua essência de cidade-estado mantém-se subjacente e inalterada, independentemente do seu estatuto político. E é neste figurino que se joga o êxito ou insucesso não apenas da organização da cidade, mas da interpretação e cumprimento do desígnio que Pequim outorgou à R.A.E.M. Ou seja, ou a cidade se torna globalmente culta ou os desígnios não se concretizam, porque a cultura é o pressuposto fundamental.

8 Dez 2015

Radicalizados em casa

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]terrorismo torna-se global. Depois do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL) ter atacado em França a 13 de Novembro, um casal provocou a morte a 14 pessoas na Califórnia, na semana passada. Em Londres, um outro cidadão foi detido numa estação de metropolitano por ter apunhalado passageiros em trânsito. Enquanto perpetrava o ataque ia gritando “isto é pela Síria”. Já o governo da Tailândia, no dia do aniversário do monarca, anunciou que 10 alegados activistas da organização que controla parte do território do Iraque e da Síria teriam entrado no país, com a intenção presumida de proceder a atentados. Os alegados alvos, fez-nos saber a inteligência tailandesa, seriam os milhares de turistas russos que, pelo período do Natal e do ano novo, desembocam nas praias do país, fugindo ao Inverno.
Ainda que os contornos do que se passou em San Bernardino, na costa oeste dos Estados Unidos da América (EUA), sejam tudo menos claros – com analistas a expressarem dúvidas sobre a narrativa que está a ser construída –, o que é facto é que 14 pessoas foram mortas em plena festa de Natal e que, acto contínuo, um casal foi perseguido pela polícia e abatido dentro da sua viatura. Segundo o que nos é dito por quem controla a investigação, o casal professava a religião muçulmana (foi a primeira mensagem que se escutou) e havia prometido apoio ao ISIL no Facebook. Pelo menos terá sido isso o que fez a mulher há poucas semanas – Tashfeen Malik, uma paquistanesa que viveu vários anos na Arábia Saudita.
A validação desta visão do acontecimento foi feita pelo próprio Presidente Obama, que, no seu discurso semanal à nação, pela rádio, no sábado, fez saber que era “inteiramente possível” que o casal se tivesse radicalizado. O FBI estava a tratar o evento como um caso de terrorismo. Tanto mais que o ISIL logo revelou pelos seus meios habituais, online, que se tratava de um casal de apoiantes da causa.
Independentemente das narrativas que estão a ser construídas, quer nos Estados Unidos, contra os muçulmanos – basta para tal ouvir a campanha dos candidatos republicanos à Casa Branca –, quer na Europa contra os candidatos a refugiados e imigrantes, o número de atentados terroristas está a aumentar. Desde os ataques da Al Qaeda, em 11 de Setembro de 2001, o terrorismo aumentou exponencialmente. Segundo a Global Terrorism Database da Universidade de Maryland, houve 1882 atentados em 2001 contra os 16.818 registados no ano passado.
As intervenções internacionais no Iraque, mas também na Líbia e na Síria, terão contribuído para este fenómeno. São já os próprios norte-americanos quem o reconhece. Michael Flynn, antigo chefe da Agência de Inteligência Militar dos EUA, veio dizer recentemente ao jornal alemão Der Spiegel que a guerra no Iraque e a eliminação de Saddam Hussein foram erros históricos, um “falhanço estratégico”, que contribuíram para a criação do ISIL. O mesmo se aplica a Muammar Khadafi e à Líbia, que “é agora um Estado falhado”.
O número de atentados perpetrados por pessoas que se auto-radicalizaram está igualmente em crescendo. Os lobos solitários que, a partir de casa, através da internet, foram descobrindo o mundo do extremismo, deixaram-se “fascinar” pelas ideias redentoras do ataque suicida e transformaram-se em máquinas de guerra da chamada jihad.
Segundo um estudo recente da Universidade de Georgetown (EUA), o número de ataques, no chamado mundo ocidental, perpetrados por indivíduos não directamente afiliados com organizações terroristas, mas que passaram por um processo de radicalização, cresceu de 30, na década de 1970, para 73, na primeira década do Século XXI. europa
Embora não identifiquem um modus operandi único na forma como um potencial candidato se deixa seduzir pela ideia de radicalização, estudiosos do terrorismo afirmam que, por trás deste processo de auto-radicalização há sempre uma crise pessoal na sua génese, como a perda de um familiar, de um amor, um despedimento. O filme francês “La Désintégration” (2012), de Phillipe Faucon, que o Programa Académico da União Europeia para Macau vai mostrar hoje, pelas 18h30, na Universidade de Macau, explica bem esse processo pessoal. A par disso, há uma máquina de propaganda disponível online que inclui recrutadores à distância, disponíveis a contribuir para a metamorfose.
A falência do modelo multicultural explica como é fácil fazer de um jovem adulto desenquadrado um potencial terrorista. Um pouco por toda a Europa é patente a incapacidade de integração nas sociedades da segunda e terceira gerações de imigrantes, nascidos já em território europeu. Embora sejam formalmente franceses ou belgas, por viverem em verdadeiros guetos sócio-culturais nos subúrbios das grandes cidades, sem qualquer esperança de subirem a escada social, não se identificam com os valores dominantes. São “presas” fáceis para o recrutador online em busca de seguidores. É evidente que uma imensa maioria que estabelece contacto com estes extremistas, acaba por se afastar da doutrina que professam, pois, para muitos, a excitação de ter passado por lá e de ter gritado alguns slogans contra o ocidente lhes chega. Mas outros não.
Como se tem visto, a estratégia que está a ser seguida para aniquilar o Estado Islâmico, focada no ataque à liderança da organização, demora a produzir efeitos. E a semente do terror está já plantada em muitos bairros, cidades e países onde o potencial de recrutamento é grande. Vai ser preciso tempo. Vamos ter de nos habituar a controlos de segurança mais apertados – a União Europeia, confirmou, por exemplo, esta semana, a entrada em vigor, já em Janeiro, da partilha das listas de passageiros no espaço europeu – e a uma fragilidade inequívoca, que é a de nenhum Estado poder afirmar com toda a certeza de que está imune ao terrorismo.

7 Dez 2015