Crónica dos maus malandros

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e ainda estão lembrados, nos meus artigos de 11 e 23 de Novembro, falei sobre uma notícia publicada por um site de Hong Kong, através da qual ficámos a saber que o Vice-Presidente da Universidade de Lingnan, o Sr. Singh, tinha apresentado uma dissertação de doutoramento plagiada. Singh doutorou-se em 2013, pela Universidade de Tarlac State. Esta universidade está associada à instituição de ensino de Hong Kong, “Lifelong College”. Singh acabou por apresentar a demissão da Universidade de Lingnan.
No entanto, as suspeitas de “plágio” e “creditações suspeitas” não acabaram com a demissão de Singh. Como seria de esperar, várias universidades de Hong Kong procederam a uma averiguação dos curriculos dos seus docentes, e verificaram que diversos deles se tinham formado, quer na Universidade Tarlac, quer na Bulacan, ambas sediadas nas Filipinas. Os websites “apple.nextmedia.com” e “hk.on.cc”, divulgaram a 13 e 17 de Novembro respectivamente, o número de docentes de universidades de Hong Kong graduados pela Bulacan University.
Além de professores universitários, alguns funcionários altamente colocados e também alguns políticos de Hong Kong, receberam educação superior na Universidade de Bulacan. O website “apple.nextmedia.com” anunciava a 12 de Novembro, que um dos membros do Conselho Distrital de Hong Kong tinha frequentado aquela universidade.
Na sequência desta revelação, as partes interessadas empenharam-se em esclarecer a situação, após o que, por algumas semanas, o assunto ficou aparentemente encerrado.
Mas pouco tempo depois o tema voltou à ribalta, e de forma acalorada. O website ‘apple.nextmedia.com’ divulgava, na passada quarta-feira 20, que 17 agentes da polícia tinham sido diplomados pela Universidade Tarlac State. Os agentes frequentaram o ‘Bacharelato em Ciências Criminais’, ao abrigo de um Programa Académico, no qual se inscreveram em Março de 2013.
Segundo o artigo do site ‘hk.apple.nextmedia.com’, em 2012, a comunicação social filipina tinha alertado para a possibilidade de doutoramentos ilícitos na Tarlac State, no âmbito do referido Programa, pelo que a Universidade encerrou as admissões no Programa. Na medida em que as admissões foram congeladas, é de admitir que os referidos agentes tenham forjado a admissão para uma data anterior, para validar a inscrição no Programa.
O website adiantava ainda que um dos agentes, o Sr. Lee, que se tinha inscrito em dois cursos, ‘Relações entre a Polícia e a Comunidade’ e ‘Gestão do Reforço Policial” pode vir a receber um prémio em dinheiro, atribuído pelas Forças Policiais de Hong Kong. O montante do prémio varia entre 100 e 1.050 dólares de Hong Kong.
E porque é que estes agentes que se inscreveram no referido Programa? O website ‘apple.nextmedia.com’ na passada terça-feira, avançava que a resposta se poderá encontrar no envolvimento de um segundo Sr. Lee, um homem de meia idade. Este Sr. Lee foi superintendente da polícia de Hong Kong. Actualmente está reformado, mas tem um negócio próprio. Em primeiro lugar, é consultor do tal Programa. Em segundo lugar, o Sr. Lee é professor sénior de algumas disciplinas em Lipace, a Universidade Aberta de Hong Kong. Em terceiro lugar, o Sr. Lee transferiu para o Programa alguns estudantes, que não se puderam graduar em Lipace. Descobriu-se ainda que, na sequência destes acontecimentos, o Lifelong College pagou comissões a uma empresa privada, a ‘Pacific Gain Consultants Limited’, da qual o Sr. Lee é proprietário.
Após a divulgação destas notícias, o Lipace declarou que irá investigar o caso de imediato. Como seria de esperar, as réplicas das partes interessadas fizeram-se ouvir prontamente.
E porque é que a polícia de Hong Kong forjou créditos académicos? Será que a polícia não sabe que a posse de créditos forjados é crime? Se sim, como é de admitir, porque é que o fazem? A resposta é simples. A força policial faz parte do funcionalismo público. Se um agente júnior quer ser promovido, tem de apresentar um melhor desempenho. Se dois agentes se candidatarem ao mesmo lugar, e partindo do princípio que as competências são semelhantes, aquele que tiver formação académica superior, estará em melhor posição para obter o lugar.
Se um polícia estiver na posse de um certificado académico falso, será que é castigado mais severamente do que um cidadão vulgar? A resposta é ‘sim’. Embora em Hong Kong não exista propriamente uma lei que o estipule, o juiz terá esse factor em consideração. Se o réu for polícia tem mais obrigação do que qualquer outro cidadão de saber que está a infringir a lei, e este aspecto pesa obviamente na decisão do juiz, no sentido de ser aplicada uma pena maior.
Será que podemos prevenir o uso de certificados académicos falsos? Infelizmente a resposta parece ser negativa. Também existe uma lei que considera o homicídio crime. Mas todos os dias pessoas são assassinadas. Uma das funções da lei é definir os comportamentos criminosos, e tentar manter as pessoas afastadas dessas acções. Mas a lei nunca impede o crime. Para parar o crime a educação é essencial.
Como todos sabemos, o funcionalismo público em Macau é um sistema pouco exigente. É possível que no futuro seja indispensável formação académica superior para avançar nas carreiras públicas e, nesse caso, esperemos que a experiência de Hong Kong venha a ser útil.

* Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau

25 Jan 2016

Pessoas e Ideias

Pessoas

demonio_2010_g[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]isse-me um professor na faculdade que no projecto de Arquitectura era fundamental identificarmos primeiramente as necessidades inerentes à utilização do espaço por projectar para que, assim, as motivações de desenho surgissem progressivamente, ao ponto de o projecto vir a ganhar vida própria, ditando por si o rumo a seguir.

Isto a propósito de um artigo de opinião do jurista António Marques da Silva publicado no passado dia 14 de Janeiro no diário JTM. Incomodou-me a forma como interpretou o meu último Sorrindo Sempre (*), pelo que desde logo me pareceu necessário um esclarecimento.

Todavia, o que inicialmente se previa ocupar não mais que dois parágrafos, acabou por se transformar no texto que se segue. Porque, progressivamente, as motivações de desenho foram surgindo.

Escreveu o senhor Silva, que teve o cuidado de me tratar por senhor Ritchie, que “Em política, como dizia Salazar, o que parece é.”

Não podia estar mais de acordo com essa afirmação pois, o que pareceu ser uma coincidência – a entrevista de Miguel Senna Fernandes (MSF) com o tal conteúdo e o meu Sorrindo Sempre, respectivamente publicados neste jornal nos dias 4 e 8 de Janeiro – foi, de facto, uma coincidência.

É um facto que MSF e eu conspiramos muito juntos. Fruto da sua criatividade e do meu humor perverso e pútrido – que nem todos apreciam ou compreendem – materializamos ideias diabólicas e absurdas. No entanto, as nossas conspirações limitam-se às intervenções do Dóci Papiaçám di Macau – e pouco mais.

Portanto, quando confrontado com essa simples coincidência se pretende fazer crer que existe algo mais por detrás, porventura imaginando uma espécie de teatro de sombras chinesas com intenções obscuras, estamos aqui perante um caso óbvio de conspiracy thinking em excesso. China falã lam ko long. (**).

Porque o episódio do elevador não foi por mim inventado. E, estando aqui, esclareça-se que quando faz referência na sua peça à “(…) linguagem deselegante e algo desbragada consubstanciada na brejeirice do termo “enfiar o pau entre as pernas”, obviamente com o intuito de achincalhar a depravada “portuguesa”(…)”, entendo essa crítica como dirigida à tal senhora e não a mim, já que foi genuinamente da boca dela que aquela frase saiu.

E nesse aspecto até partilhamos da mesma opinião, pois trata-se de facto de uma expressão grosseira que não devia sequer ter lugar neste jornal e que, pela mesma razão, muito hesitei antes de decidir pela sua inclusão no meu artigo.

Fi-lo não com o intuito de achincalhar a dita cuja: pretendia, quando muito, chamar à atenção o facto de tudo aquilo se ter passado na presença de um miúdo de cinco anos. Até porque se o intuito fosse mesmo aquele, então teria ido um pouco mais longe.

Mas deixemos isso.

O que não posso deixar é de expressar o meu profundo desagrado quando o meu texto é interpretado como um “(…) vão para a vossa terra seus reinois que esta terra não é vossa! (…)”.

Fiquei verdadeiramente chocado com essas palavras – que, sublinho, não são minhas – e francamente sou incapaz de tolerar uma interpretação tão maléfica mesmo vinda de quem assumidamente não me conhece e que, aliás, admite que com a minha pessoa “(…) nunca cheguei à fala, pelo que não me dou nem bem nem mal com ele. (…)” mas que, sabe-se lá por quê ou para quê, entendeu também acrescentar gratuitamente que “Pura e simplesmente só o conheço por via do herdado apelido.” – whatever that means.

Felizmente para a minha defesa estão os que me conhecem e sabem garantidamente que atitudes xenófobas do género nada têm a ver com a minha natureza. Costumo ser low-profile nessas coisas – mas aqui vejo-me obrigado a fazer esse registo pois está em causa a minha imagem no seio da comunidade portuguesa de Macau da qual, com muito orgulho, faço parte.

Tudo isso vale o que vale. Também prefiro discutir ideias, não pessoas. E não posso deixar de pensar que, em circunstâncias que não fossem as mesmas, sem equívocos, o senhor Silva e eu poderíamos até vir a ter discussões construtivas.

Dito isto, quero agora abordar uma motivação de desenho que identifiquei no seu artigo.

Ideias

É sempre desagradável quando se usa de propósito uma língua diferente para que alguém não entenda a nossa conversa. Pior ainda quando descobrimos que afinal esse alguém domina a nossa língua.

Nós Macaenses, que tanto nos gabamos de dominarmos as línguas todas de Macau, se calhar até somos os campeões dessa prática politicamente incorrecta.

Não escondo que também o faço por vezes, ainda que de forma moderada – se é que isso poderá fazer algum sentido. Mas sou incapaz, por exemplo, de mudar de língua quando pressinto a aproximação de alguém. Aliás, diz a boa educação que nessas situações devemo-nos expressar sempre na língua comum que existe entre os interlocutores.

Por outro lado, já vi cenas suficientes para rapidamente concluir que, aqui em Macau, quando menos se espera, apanha-se alguém a falar fluentemente uma determinada língua. De resto, no mundo da globalização em geral e no nosso multicultural Macau em particular, é indubitavelmente essa a tendência.

Portanto, todo o cuidado é pouco – pelo que nessa altura do campeonato situações como a do elevador são de facto difíceis de compreender.

Mas não foi por isso que esse episódio me incomodou. E aqui vou entrar num campo muito sensível da identidade Macaense.

Escrevi aqui um dia que “(…) nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida.” (***)
Desde pequeno, foram muitos os Verões que passei em Portugal. Um Portugal diferente do actual, em que os orientais eram uma raridade e que, por essa razão, quando saía à rua as pessoas olhavam para mim com curiosidade, comentavam, apontavam-me o dedo, lançavam umas piadas de kung fu, Bruce Lee e tal, e chamavam-me de “chinês”, até mesmo gritando do outro lado da rua se fosse preciso.

Não escondo que fiquei algo perturbado com essa experiência que sempre me incomodou profundamente – uma espécie de fantasma que me perseguiu durante anos e anos a fio.

Ficava ofendido – e muito – quando isso acontecia. E mais ainda quando me diziam que não era para se levar a sério, não era para me sentir ofendido, e me ofereciam uma palmada nas costas e um sorriso para fechar o assunto. Essas atitudes deixavam-me revoltado e frustrado.

Frustrado porque essencialmente ninguém era capaz de ver as coisas do meu lado e compreender a tempestade de conflitos emocionais que essa simples graçola, para eles inofensiva, provocava dentro de mim.

Com a idade aprendi a lidar com essas situações de uma forma mais tranquila, procurando sobretudo tolerância e paz interior. As minhas reacções são hoje muito mais contidas em comparação com as do passado.

Mas a verdade é que, directa ou indirectamente, sempre que sinto que a minha identidade portuguesa é desafiada e posta em causa ou observações inadequadas são feitas acerca do meu domínio da língua, atinge-se dentro de mim um nervo muito sensível do organismo.

Porque sou português e sou incapaz de compreender a minha existência como não sendo português. E não o sou por adopção ou por conveniência, e também não apenas pelo sangue que corre nas minhas veias. Sou português porque cresci num meio que me fez português, herdei da minha família parâmetros sociais, culturais e uma educação que fizeram de mim português.

Tive o privilégio de poder manter uma relação muito íntima com Portugal, país que conheci com quatro anos de idade e que foi desde sempre a minha Pátria. Tudo isso num período em que vivia num Macau que se entendeu designar por “Território Chinês sob Administração Portuguesa” com todas as suas contrariedades e contradições a nível político e social.

Toda a minha formação foi então concebida e direccionada para enfrentar, com firmeza, o dia em que à meia-noite, diante de mim, vi baixar na minha terra a bandeira do meu país, para que logo a seguir se hasteasse uma outra que não era a minha.

Com tudo isso e muito mais que não quero aqui elaborar, tanto por falta de espaço como para não mergulhar em águas mais profundas, com o tempo construí dentro de mim um sentido de identidade muito forte.

Contudo, essa tal graçola do “chinês”, constantemente a colocar em causa as minhas convicções, tanto me perseguiu ao longo dos anos que cheguei a ter as minhas dúvidas. Vacilei e tive os meus momentos de crise que cinematograficamente se exprimem colocando uma pessoa parada, diante de um espelho, ao som de Nuages de Ryuichi Sakamoto.

Vacilei por sentir que o amor não era correspondido.

Caríssimo leitor, não me interprete mal. Não é uma queixa nem se pretende aqui uma reacção de terceiros que poderão prontamente ripostar com as suas (más) experiências aqui em Macau.

Bem no fundo, objectivamente, posso afirmar que nunca em Portugal fui maltratado – quando muito, fui incompreendido.
O que acabou de ler é então o sentimento genuíno de um Macaense afectado que decidiu hoje abordar um dos efeitos secundários da miscigenação.

Atrevo-me a dizer que não sou o único.

O episódio do elevador incomodou-me por isso.

Sorrindo Sempre
Hoje não me apetece.

(*) Parte final do “Natal (não) Macaense”, Sorrindo Sempre de 8 de Janeiro de 2016.
(**) 諗過龍 : expressão em cantonense para quem pensa em excesso sobre determinado assunto e chega a conclusões distantes da realidade factual.
(***) “Uma Macaense Uyghur”, Sorrindo Sempre de 26 de Junho de 2015.

22 Jan 2016

Uma palavra aos jogos complicados

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]precio o meu amigo Albano Martins pela sua forma invulgar de estar na vida, em particular no que se refere a papas na língua. Não as tem e anda bem. É prova cabal de que o meu amigo está a raiar de saúde, o que me deixa feliz. Todavia, se tem razão na língua, essa é questão completamente diferente.
Sem embargo, tenho que lhe agradecer, em abono da verdade, pelas palavras de apoio à nova direcção da APIM que muito lucrará com os sábios e sempre bem intencionados conselhos seus. Especialmente, no que se refere ao Canídromo.
E por falar disso, há que reconhecer quão magistral é a ligação que o meu camarada faz, entre eu, a APIM e o Canídromo. Sim, uma coisa de génio, o qual de facto nem lembra o Diabo, e como tal, nem é de fácil alcance para um “puto da primária” como eu. Decidi que só podia ser coisa boa. Assim, da minha parte vai também como gesto de gratidão uma palavra de carinho, pois quem seria este jovem para o aconselhar? Aí vai : passeie, faça ioga ou crossfit, mas sobretudo tenha cuidado com essa nova gripe que paira por aí – a “canídrome” – que tem por sintoma mais típico, uma obsessão raivosa que ofusca o tino. gran_torino28
Mas indo ao cerne do artigo, permita-me dizer desde já uma coisa. E começarei por tratar o meu amigo por “tu”.
Caro Albano, lamento que escolheste esta forma de expressar a tua opinião. Respeito, pois trata-se de um direito que te assiste e não precisas de justificar perante ninguém. Mas sinceramente, conhecemo-nos há muitos anos, sempre nos demos bem. Tivemos momentos de bom relacionamento profissional. Não sou um estranho para ti, como para ninguém em Macau. Ora, se te soou tão ultrajante a entrevista que dei, estavas perfeitamente à vontade para me ligar, para tirar nabos da púcara. Preferiste lançar-te logo na “surra” moral em público. Tudo bem, respeito, mas lamento.
Não queria tocar mais neste assunto. Mas tal como tu o farias se estivesses no meu lugar, também não me calarei por aquilo que disseste de mim. O público melhor julgará.
Pois bem, achas que eu usei “um caso particular para extrapolar para um universo bem mais vasto” e como tal teria “violado as regras do pensamento científico”. Ora vamos a ver se isso foi assim e que “carradas de razão” são essas.
Para começar, tratava-se de uma questão meramente incidental, que não fazia parte do corpo principal da entrevista. Esta não era sobre portugueses.
Mas quando uma pergunta começa por “Há portugueses que … “, ela significa duas coisas. É sobre portugueses e mais ninguém e só uma parte deles. Podia ter falado dos macaenses e dos chineses, mas a questão se cingia a uma categoria de pessoas, mais concretamente a uma parte dela. Ora, a minha resposta só podia ser interpretada neste contexto. E foi neste sentido dada. Com pesar, não foi esta leitura que escolheste. E tal como o Marques da Silva partiste da visão de que eu teria generalizado os casos. Daí a extrapolação.

Meu caro, não sei como é o teu processo interpretativo, mas chegaste a notar que eu sempre me pautei pelo respeito pelos outros? Sempre me eduquei sendo português de Macau, com as nuances muito próprias de o ser. Diplomacia está no meu sangue, pois esta é a linguagem que deve presidir, numa terra com a história como teve Macau. Talvez pela minha condição de mestiço – aqui no mais neutro sentido da palavra – que me permite discernir as susceptibilidades de vários mundos existentes em Macau.
Sempre fui amigo dos portugueses oriundos de toda a parte do mundo, nomeadamente de Portugal. Durante anos vivi e convivi com eles, entre os quais se encontram alguns dos melhores amigos que tenho na vida. Sem me esquecer das minhas outras costelas, defendi o seu bom nome, sempre que me foi possível, com total espírito de lealdade e de solidariedade. Não tenho que produzir a prova de que nutro profundo respeito e carinho pela comunidade portuguesa residente em Macau, fui e sou um dos acérrimos defensores da sua língua e cultura. Julgo ter contribuído com algo significativo para o prestígio dessa comunidade em Macau, pelo menos fiz a parte que me cabia. Não o faço por correcção política ou por mero favor. Faço-o pelo português que orgulhosamente também sou.
Tens razão quando falas do respeito pela diferença, da tolerância pela diversidade cultural. Já reparaste que é o que ando a fazer nestes anos?
Foi pena não teres sequer considerado isto quando embarcaste na tua reprimenda.
E sabes que mais? Tenho legitimidade de sobra, quer para enaltecer como inúmeras vezes faço, quer para criticar qualquer português que seja, esteja onde eu estiver neste mundo. Não como forasteiro da comunidade, mas como um que faz parte dela.
Ora, no caso vertente à pergunta que me foi feita, nos termos que já expliquei, apontei o dedo para certos casos que não abonam o bom nome da comunidade portuguesa. Apressaste-te logo em tirar conclusões. “Há coisas” dizes “que não se devem nem pensar alto e muito menos sair da boca para fora, por respeito para com a diferença, na igualdade”. Pois, quando tu presencias uma situação em que um patrício teu se porta mal em relação aos outros, nem sequer pensas alto e muito menos sai algo da tua boca para fora quanto a isto, por respeito para com a diferença, na igualdade?! Francamente, Albano, não te reconheceria assim! Tal como eu, podes não despoletar uma reprimenda por iniciativa própria, e guardar para ti durante anos a fio. Mas se te fizerem a pergunta sobre a existência de tais comportamentos, não te estou a ver calado! E “doa a quem doer” como bem nos habituaste!
E sabes porque não ficarias calado? Por aquilo que escarrapachaste no teu arrazoado: “o respeito pela diferença e a assunção de que as culturas se aceitam e não se discutem, nem se comparam” que o patrício não sabe ter.
Não fiz mais nada que fazer o que qualquer um provavelmente faria. Ao contrário do que erroneamente supuseste, não fiz deste tema o mote da entrevista que continha outras coisas bem mais relevantes. No fundo não são portugueses “tout cours” que estão em causa mas as atitudes que alguns ainda tomam.
Se a pergunta fosse também para os macaenses, podes ter a certeza de que também responderei positivamente. Também há entre nós casos de conduta incompatível com o respeito pela diferença. Faço todos os anos com os espectáculos de patuá, não sei ainda te recordas da vez que foste assistir. Mas não era o caso.
Se tu me dissesses que nunca foste mal tratado só fico feliz por ti. Mas isto nada diz quanto aos casos que mencionei.
Meu caro Albano, gosto de ti e respeito-te. Agradeço-te pelas dicas da vida que me dás, pois eu com os meus 55 anos ainda tenho muito que aprender. Mas por favor, poupa-me da paternalista lição de moral e de entendimento entre povos. É que – desculpa que eu te diga -, “irrita bués”, fazendo uso do vernáculo agora mais em voga, sobretudo quando repetes o que há anos e anos ando a fazer.
Não é meu feitio falar assim em público, mas não esperem que fique calado quando sinto o peso dos outros nos meus calos.
E, para o teu sossego “canidrómico”, nem eu, nem a APIM somos sócios do Canídromo. A tua impressão sobre os interesses que imaginariamente eu possa aí ter, faz da tua declaração tão irresponsável (ou pior), quanto a que dizes dos outros.
Bom fim de semana, meu querido. Aquele abraço apesar de tudo.

De Miguel de Senna Fernandes

22 Jan 2016

Macaios, uni-vos! Um manifesto

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u sou macaio. Senão pergunto-me: alguém no seu perfeito juízo, estando ou sendo da terra, se pretender dar-se ao respeito poderá ser outra coisa que não macaio? Macaio tem muito mais “tchan” do que macaense, macaísta ou macaês. É bem melhor que português ou mesmo chinês. Não se compara com norueguês e muito menos com tailandês. Macaio rima com malaio e só alguém de mente “canhês” pensará em meter-se com um malaio. Não se brinca com um malaio, como não se brinca com um macaio! O macaio dá-se ao respeito. O macaio não é parvo. Catraio talvez, mas não é parvo. O macaio olha de soslaio com um riso “mambaio”. Como macaio eu atraio, falo com o aio e com o catraio e depois saio. Como macaio eu vaio de Maio até Maio até que me dê o badagaio. Macaio rima com paraguaio. Para quê? Para guaio! Como macaio não sou lacaio mas também não desmaio. Macaio rima com paio e viver sem paio não é viver, c’um raio! Só como macaio rimo com paio.
Como macaio eu ensaio e reensaio, e depois sobressaio.
Por isso, somos todos macaios. Que me interessa a mim de onde vens ou para onde vais se aqui vives e aqui respiras, aqui te agasalhas e aqui procrias, se aqui comes e aqui amas, se aqui esmoreces e aqui rejuvenesces, se aqui estás, é tudo o que me interessa. É preciso ser macaio para sentir Macau. Quem não sente… “c’um raio!” Não é filho de bom macaio. O macaio é da terra, adoptou a terra, é daqui, está aqui. Calcorreia da San Ma Lo à Areia Preta, de Hac Sa ao Venetian. Os macaios são tugas, são filipinos ou portugueses, chineses, indonésios, cabo-verdianos, moçambicanos, angolanos e outros africanos; são os italianos, os franceses, os japoneses, os tailandeses, gajos de Hong Kong, gajos de Fukien, os vietnamitas, gajos com mais disto, gajas com mais daquilo. São Han, são isto, são aquilo e qualquer outra coisa de impensável. Até são macaenses. Os macaios são daqui. Os macaios vivem aqui. Os macaios somos nós. Eu sou macaio! “Guetos”, dizem uns, quiçá momentaneamente esquecidos das lições da sociologia ou temporariamente arrebatados por uma crise epidérmica. A prática também mostra, se quisermos ver, como os grupos não se juntam por nacionalidades mas por afinidades. Eu, por exemplo, recuso a dar-me com microcéfalos, campestres, esgalgados e outros parvos chapados. Por isso não me misturo nesse gueto, como os desse gueto não se misturam no meu por o acharem ainda pior do que eu acho o deles. Guetos?… só os forçados me incomodam.
Como macaio eu ensaio e reensaio, e depois sobressaio.
Posso ser garraio mas prefiro ser macaio. Borrifo-me nos “enses” e nos “eses” e em todos os outros que não rimarem macaio. Sou fundamentalista. Racista, quiçá. Ou se é macaio ou se é estrangeiro, mas os macaios dão-se bem com os estrangeiros porque todos os macaios são estrangeiros.
E estamos zangados. Macaios e outros aios, estamos zangados. A terra mudou, mudou como um raio. Foram-se as rimas e os espaços, os sagrados e os profanos, foram-se as tradições da comarca, como também foram as da Dinamarca. Eles lá se queixarão…. Mas talvez na Dinamarca não se tenham encantado com jorros de ouro, nem alguém tivesse trocado forma de vida por vida de forma. Mas que sei eu da Dinamarca? Sei que as tradições mudam e que a coisa também não vai bem. Também sei, ou desconfio que sei: quando o ar fica espesso, quando o espaço não chega, macaio ou paraguaio, tailandês ou finlandês, a todos nos dá para bater no freguês. Alguns batem na mulher. Outros levam da mulher. Mas normalmente batemos, figurada ou literalmente, nos que nos estão mais perto. Talvez na esperança do perdão por afinidade. Do amor, quiçá… Afinal de contas a culpa não é nossa. É da cena. É de tudo, nós somos apenas umas vítimas das circunstâncias… mas entretanto já arriámos o malho! Já dissemos o que não queríamos. Podíamos até partir a cara àquela outra figura desconhecida, àquele cara de “chupa-ôvo”, mas não – porque esse não nos ia perdoar. À partida. Mais vale bater a quem nos está próximo, talvez porque o perdão sabe tão bem. Como mel para urso. Grave ou menos grave, os agressores precisam sempre de ajuda e os que reagem também. Como o bebé chora para pedir colo, pedir mama. A pedir compreensão ou apenas um carinho. Pois. Isn’t that a bitch?
Como macaio eu ensaio e reensaio, e depois sobressaio.
O macaio desde há muito, muito tempo habituou-se a viver o mundo, pelo que só lhe resta vivê-lo. Esta disciplina? Aquela? Aprendemos isto ou aquilo? O macaio aprende tudo e depois vai para o gandaio.
“Boeuf”.. diria o francês, por ente odores de Beaujoulais, olhado de soslaio pelo macaio mas com um sorriso catraio, como um brasiliguaio, a pensar no desmaio.
Ser macaio é ser tudo. Poderemos nós ser menos do que tudo? Qual seria o gozo de semelhante cambaio?
Macaios uni-vos!

MÚSICA DA SEMANA

David Bowie – “Scary Monsters (And Super Creeps)”

(…) She could’ve been a killer 
if she didn’t walk the way she do, 
and she do
She opened strange doors
that we’d never close again

She began to wail jealousies scream
Waiting at the light know what I mean

[CHORUS (twice)]
Scary monsters, super creeps
Keep me running, running scared (…)

21 Jan 2016

Como a gente (é) muda…

I

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]uito daquilo que NÃO se faz em Macau se deve a uma espécie de “tilt” administrativo, algo que não vemos, não sentimos, é inodoro e não-tóxico, mas que está lá, isso está. Cada vez que se apregoam chavões do tipo “capacidade de decisão”, “liderança” ou “meritocracia” (deixa-me rir), é sinal de que realmente há ou havia algo de que estávamos à espera desde que a RAEM viu a luz da noite de 19 para 20 do doze dos noventa e nove. O novo hospital público, eis um exemplo tão perfeito que nos grita aos ouvidos. Eu não acredito por um segundo que as calendas que se vêem gregas para as quais atiraram essa infra-estrutura que tanta falta nos faz, tão doentinhos que somos, pobrezinhos, se devem (ou deviam) a falta de terreno para montar a barraca hospitalar. Mesmo aquele argumento da falta de pessoal médico, ou de técnicos que operem o material hospitalar XPTO de que dizem dispor deixa-me com muitas dúvidas – não que seja mentira, atenção, mas com toda a certeza há dinheiro de sobra para tapar o problema que não é problema nenhum. O que faz falta é quem decida, quem assuma, quem dê um murro na mesa, em suma, quem afirme alto e bom som: “Sim! Fui eu quem mandou fazer esta treta, e depois? Acordaste hoje com vontade de levar nas ventas? Uh?” (Passo mais uma vez o exagero). O que temos são serviçais, e para que não se pense que estou a cometer alguma inconfidência, ou mandar larachas à socapa, acrescento que esses serviçais somos todos nós, sem excepção. É verdade que aqui a coisa pública funciona muitas vezes mal, ou não funciona, e isto pode-se talvez explicar pela falta de “fé na Santa” logo à partida, com pouca ou nenhuma confiança por parte da administração anterior (pré-transição, entenda-se), que sempre que tinha oportunidade sussurrava-nos entre dentes: “pisguem-se mas é daqui para fora”. Digamos que logo aí fica posta de parte a vertente romântica do “gostar por amor”. Eu pessoalmente julgo que muitos de nós – senão mesmo a maioria – ficaram na base do “…até me chatearem”. O que ficou, bem, é o que há, e aqui entre o ulular angustiante dos queixumes do costume temos como ruído de fundo os murmúrios que a nada de estranho nos soam: “…elevado grau de autonomia”, “Macau governado pelas suas gentes” – e este último já nem da cassete oficial consta, de tão ilusório e torto que nasceu, coitadito. E no fim com tudo descascado, lavado e temperado, temos o prato principal: ninguém decide, com medo de morrer decida (subtil, tão subtil). E quem decide? “É a China” – resposta padrão, como quem diz “cala-te e come a sopa”. E é isso mesmo que “China” aqui representa, uma palavra que nos poupa a considerações, conjecturações, teorizações das conspirações, todos esses “ões” que até ajudam a engolir mais depressa o comprimido – “ Ah pois…a China. Como é que me fui esquecer de uma coisa tão grande”. E pronto, quando quiserem a reforma administrativa, a “meritocracia” (outra vez e em internetês: LOL) e todas essas patranhas que queríamos ver por aí à solta descascadinhas e de cabelos ao vento, mas sempre soubemos que eram só gases, perguntem antes, ahem, “à China”. (Piscar de olhos).

II

Vamos ter eleições presidenciais em Portugal, e parece que é já este Domingo. Ou no próximo. Sei lá? Juro pelo que quiserem que estava convencido que eram só para o ano que vem, imaginem só. E de facto a figura do Presidente da República de Portugal parece ter entrado no vasto leque de “coisas que não dão dinheiro, só chatices”. Para apicantar as coisas (ou torná-las insuportavelmente insonsas), tivemos lá nos últimos dez anos um figurão que fazia lembrar a Morte, ceifeira das almas. O Exmo. E Revendíssimo Cavalheiro a que me refiro (afinal, haja um bocadinho de respeito, bois. Perdão, “pois”) andou uma década aparentando estar a passar por um tormento, daqueles destinados aos danados do Inferno, deixados às mãos do próprio Demo, e que através do seu olhar fechado e impenetrável nos parecia querer mostrar que não há esperança. Ser presidente de Portugal é uma coisa que ninguém quer, mas “tem que ser”. E aquele santo que agora nos deixa, e vai tarde desde a primeira hora, resolveu sacrificar-se por nós, pecadores, e mesmo não sendo da Galileia, é de Boliqueime, que é mais ou menos o mesmo. Têm ambas as letras “a”, “i” e “e”, como podem ver. Ah, já agora, este ano temos 10 (dez) candidatos! Uau, e se antes era tudo resolvido entre candidatos indigitados pelos crónicos e alternantes funileiros do tachismo lusitano, estes agora marimbam-se para essa “seca” e temos dez patetas alegres, tão maus, que qualquer um que ganhe me deixa com vontade de me tornar apátrida. Desde que me lembro de assistir às Presidenciais (leia-se 1985, rei Marocas I), havia pelo menos um candidato que eu me importava menos se ganhasse. Hoje penso que aquela gente que tem vindo para a televisão dizer aqueles disparates e entrar em peixeiradas mil devia era ser toda presa. É como se vê, como a gente (é) muda.

21 Jan 2016

DESLUMBRAr ACONTECIMENTO

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ascinante reflexão do Estar.
Há cerca de uma semana ocorreu o lançamento da revista Órfão, homenagem à Cidade de um Artista, Poeta e Escritor, para além de Jornalista, que resultou num Momento Cultural em Macau de plena Arte.
O local? Livraria Portuguesa, mas para escapar ao enterrar sobre o peso dos livros que às nossas cabeças se sobrepõem, somos fugidiamente levados para dentro da cave. O anúncio está à descida, por escadas, ao Outro Mundo e provado no veneno, entra-se de golada.
A negridão da sala, avivada branco luz negra, recebe com um obrigado por ter vindo e como boas-vindas à entrada, para entrar, oferece um copo de acolhimento. Há a escolha entre o álcool, dois de destilação cerealífera e um de fermentação de fruta. Bebido num golo, então está-se entrado.
Aos olhos, o Momento esperou para, depois de o todo, comprimido na multidão do compartimento, expandir e abrir-se à representação. As figuras difusas ali se aglomeravam a preencher o Espaço.
Esperava-se algo!
Viajante volatizo para os fins de um canto encontrado, tal o número de pessoas que tiveram o privilégio de ao vivo assistir a este Acontecimento.
Acontecimento já a acontecer na sala cheia, não de sombras, mas pela difusa luz negra que soleirava na sombra os espectadores, muitos sentados e os que de pé ficaram, sobre um ambiente que retirava a comunicação às pessoas e por isso, não se falava e entre si cochichavam.
Na sala já não se repara e do negro Aparece. Sentado, capa e máscara negras, atrás da mesa. Medita para chamar o que está para trás e com alma (ling) vai qual mar Pessoalizando-as em etapas com focos no seu bordado do Céu.
Assinalando o despir das personagens, des-cobrindo-as ao retirar as roupagens de cada figurino representante de si mesmo, chega à camisa branca englobado no Surrealismo sem Política e por isso, Sobre-Real.
Chama dos fundos os viajantes e, um pelo órfão do Orfeu, escutando os murmúrios do reconhecer o acolher de quem recebe, distribui novos copos de ligação.
Ressuscitar 1
As palmas emocionadas bateram-se e abertas as brancas luzes com mais entusiasmo ecoaram, hora chegada das perguntas.
Apareceu o Brilho das respostas num estádio elástico de espaço de conhecimento, primorosamente abarcado pela criança que, sem o intelectual, traz o instinto do ser Arte, no acto artístico de Estar.
Arte essa que pela definição da Natureza espartilha-a em significados cuja imagem mental reflecte pela sabedoria do Todo, pois já não se distancia para se olhar/observar/ver a observar-se.
Sim, Está. órphão
E foi o Escritor, o Actor, o Editor e Produtor, Homem dos sete ofícios e artes, que se desenovelou como só quem é criança tem em si.
Fora do si próprio (do subconsciente), envolve um ambiente de uma viagem a um todo que é o estar em criação e representando-se atinge o seu melhor nas respostas às perguntas.
E das suas? Envolveu-se no ser Órfão, onde perdidas as referências qual morte no Ovo, está sem pais, não os biológicos, mas como artista na dispersão de o ficar sem nada, não há narrativa e repesca-se no Autor.
Argonauta Órfão Macao, o cenário para recriar ainda no quotidiano, o Paraíso de um reavivar Universo que já acabou e apenas pelos que reconhecem… um palco de Excelência no acto da Criação. Uma Obra. Arte!
Ficou de fora quem não esteve e esse momento de comunhão nas catacumbas de uma livraria serrou estares, sem erros da perspectiva com que se projectou e esmiuçando se perspectivou num fundo de personagens. Colocou-se fora do ponto feito apenas pelos nossos olhos, escutado e lido atrás das palavras, pois pelo resto dos sentidos, ele deu-nos o Vivo.
Confundiu a imagem mental no que os nossos olhos não vêem e foi construindo-a para isso.
Foi num Sábado a ocorrência do Acontecimento, tão (im)pressionante momento realizado por CARLOS MORAIS JOSÉ onde vincada esteve a Arte mágica do Estar.
Verdadeiro, tão que se despediu representado já no relógio daquela peça num Domingo, extensão que levamos para casa como Órfão.
Por esse momento que se expandiu até hoje, deixo aqui o proibido Olhar para trás, sabendo reviver apenas em memória as que se seguirão para de novo trazer um momento à Cidade, como Este, que acontece há uma semana.
Momento que nos revê e faz, sentido de quem tem a direcção em dois sentidos.
Um Bem Haja!
Obrigado Carlos.

NOTA: Por razões éticas profissionais prolonguei esta reflexão do acontecimento que presenciei e esperançado de o ver registado em Outros jornais, já que pela aceitação da descriminação positiva para contrapor à negativa, hoje se vê pelo que É. Demonstrada em competição num mundo de reinóis, ou de multinacionais redes que não alinham no Universo sem o viva Al e El do dinheiro. Macaus, onde a dialéctica do positivo para contrariar o negativo, não deixa de ser de uma comercial herança, mas crendo porque a Arte não traz competição, faltaram mais projecções e os jornais ficaram em silêncio.
Falta de Ética era não deixar registado o Acontecimento que presenciei na Livraria Portuguesa no sábado, 9 de Janeiro de 2016.

21 Jan 2016

Até mais

Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter;
repugna-la-íamos se a tivéssemos.
O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito.
Fernando Pesso
a

[dropcap style=’circle’]G[/dropcap]uardo para o mês de Janeiro o encerrar de um ciclo. O de anotador do quotidiano nas páginas do ‘Hoje Macau’. Um quotidiano por vezes frustrante, penoso, castrador de sonhos e utopias, mas também anunciador do dia novo e da esperança.
Foram sete anos de escrita, muitas vezes intermitente, ao sabor da actualidade, a internacional que se me agiganta por mister académico e a nacional, do país distante, que deixei pela segunda vez já vão treze anos. Escrevi para mim, esperando que com as palavras que deixei espalhadas pela folha de Microsoft Word tocasse o dia-a-dia dos que tiveram a paciência de as ler, neste pequeno território do Mar do Sul da China.
A escrita só faz sentido se convidar à reflexão, à opinião, à tomada de partido. A escrita que é conformista nada acrescenta, pactua, ajoelha, é redundante. O mister do intelectual – categoria em que porventura me visiono – é de incomodar e alertar. Não com o sentido de fazer processos de intenção ou de disparar recriminações, mas pôr os pontos nos iis. Por isso o intelectual convive mal com o poder. Seja ele qual for. Das duas uma ou ele é um escriba do poder, um porta-voz, um altifalante ou é uma voz crítica.
Ser crítico não significa dizer mal, por sistema, apelando aos instintos maledicentes de quem nos lê ou ouve. Significa ver a floresta e não apenas as árvores, não tergiversar em questões de princípio ou de valores cardinais. Ter opinião, fundamentá-la, mas evitar ser um Cavalo de Tróia das oposições ou dos interesses corporativos organizados e instalados. Porque eles têm um objectivo interesseiro: serem um dia poder ou pelo menos condicionarem o poder instalado.
Ao longo deste trajecto, perguntei-me por vezes se faz sentido ser cronista numa língua que apesar de oficial é estatisticamente minoritária. Li por aí que apenas 2.4% da população de Macau lê ou fala o português. É manifestamente pouco, o que me suscita a questão de qual é exactamente o auditório dos jornais e órgãos de comunicação social, em língua portuguesa. Confesso que não sei responder. Tive sempre a ideia, porventura romântica, que quando temos essa predisposição para a escrita faz sempre sentido porque acrescentamos algo à vida das pessoas, ao seu conhecimento, à percepção da realidade.
É como a profissão de professor. Passam-nos pelas mãos dezenas de jovens com expectativas diferentes do que fazer da vida, com um conhecimento reduzido do que se passa no mundo e por vezes na comunidade que os circunda. Não é que seja falta de curiosidade mas uma maneira diferente de estruturarem o seu pensamento, de definirem as suas prioridades e projectos de vida. As novas gerações são muito diferentes, têm um imediatismo de objectivos, um sentido de competitividade que outras anteriores não tiveram, ou priorizaram. Costumo dizer que na nossa geração (nascida na década de 1950) sonhámos, imaginámos poder construir um mundo melhor e mais perfeito. Criámos uma contra-cultura na música, na escrita, na arte, no vestir, no sistema de crenças. Fomos, à nossa maneira, revolucionários e ateus quanto às verdades absolutas ouque nos quiseram transmitir.
As novas gerações são diferentes. Têm de se fazer a um mundo onde rareiam as oportunidades, onde a competição nas universidades e nas empresas é feroz, onde já não existem empregos para toda a vida, onde a mobilidade é a regra. Hoje está-se aqui; amanhã acolá. Nada, ou pouco, prende ao cais de partida ou de arribação. Talvez apenas a saudade dos bons momentos passados com os amigos. Há que se fazer à vida sem olhar para trás.
Pergunto-me também o que será Macau, dentro de décadas, à medida que nos afastamos da data da transição para a China. É difícil deixar de sentir alguma nostalgia por essa última década florescente do século que findou. Porque se imaginaram cenários de modernização e autonomia que não se concretizaram. Um pouco pelas circunstâncias, outro tanto porque a comunidade que é maioritária e que dirige Macau nunca o sentiu como fundamental. A ligação à Mãe-China foi sempre preponderante, definidora de uma maneira de estar e de uma convergência de destinos de que não imagino variação. E essa ancoragem é sempre lembrada, quando surgem dificuldades e hesitações.
Confesso-me, a esse propósito, expectante e receoso. Expectante de que Macau consiga, por alguma forma, prolongar a situação de excepção que tem usufruído. Não falo na economia apenas. Falo na maneira de viver, nas condições de efectiva e valorizada liberdade. No pensamento, na escrita e na imprensa, na participação e organização cívica, na escolha de projectos de vida, na defesa do trabalho e de condições dignas de vida, na crítica aberta e não censurada. Seria lamentável que isso fosse perdido por mero cálculo e tacticismo imaginando-se que com o silenciamento das opiniões próprias se poderá servir “melhor” um qualquer senhor distante ou partido iluminado. O que é mais difícil é fazer cumprir o espaço de liberdade que se imaginou e que se alcançou com grande esforço e empenho. Existe sempre a sedução do poder querer domar a liberdade para não ser posto em causa por ela. Os homens são, nesse particular, seres imperfeitos, limitados. A magnanimidade não existe na sua esfera. Pelo menos nunca a encontrei.
Guardo para o fim um agradecimento ao Carlos Morais José, proprietário do “Hoje Macau”, pelo convite que me dirigiu, há sete anos, para ser cronista no seu jornal e aos directores, editores e jornalistas com quem tive o prazer de conviver e trabalhar. Ser jornalista é das profissões mais honrosas que conheço e uma das mais difíceis. Está-se normalmente do outro lado dos interesses instalados. E isso gera desconfiança, senão animosidade.
É tempo de interregno, de parar. São praticamente duas décadas de crónicas em jornais de Lisboa e de Macau, olhares que deixei pontuados aqui e acolá.
Fecho com Fernando Pessoa. “Para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha. Porque alta vive”. Até mais.

20 Jan 2016

A China e a geopolítica global

“The world is entering a demographic transformation of historic and unprecedented dimensions. The coming transformation is both certain and lasting; there is almost no chance that it will not happen-or that it will be reversed in our lifetime. The transformation will affect different groups of countries at different times. The regions of the world will become more unalike before they become more alike. In the countries of the developed world, the transformation will have sweeping strategic, economic, social, and political consequences that could hamper the ability of the United States and its allies to maintain security. Throughout the world, the 2020s will likely emerge as a decade of maximum geopolitical danger.”
The Graying of the Great Powers: Demography and Geopolitics in the 21st Century
Richard Jackson and Neil Howe

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]mundo estranha a época não tão longínqua em que apenas uma super potência como os Estados Unidos, determinava o rumo da economia global, e entretinha-se a prevenir e a conjurar as crises financeiras. Os problemas, por vezes, eram enormes e os Estados Unidos recorriam à Europa e ao Japão, e entre si fixavam um roteiro. Os tempos que vivemos não permitem que tal aconteça. Os Estados Unidos estão muito concentrados em reactivar a sua economia de modo sólido, depois da crise, a verdadeira Grande Depressão de 2008, não a de 1930 e a firmado pelo presidente americano no seu sétimo e último discurso sobre o Estado da Nação. A Europa luta por salvar o Euro e toda a arquitectura da Eurozona.
O Japão não consegue superar os seus problemas e a política de “Quantitative Easing (QE) – Flexibilização Quantitativa”, que trata de injectar recursos líquidos no mercado, mensalmente, comprando obrigações e títulos, que não estão a funcionar e o estancamento permanece. Pode ser a China a grande esperança? Tudo indica que não, pois o seu crescimento desacelera, houve desvalorização, queda bolsista e menor procura de produtos mundiais. Mas, e sobretudo não tem o menor interesse em enfrentar os problemas que virão, convertendo-se em líder mundial no campo económico e financeiro.
O mundo não conhece uma relação tão importante como têm os Estados Unidos e a China, repleta de tensões, como compete a uma superpotência que até há pouco tempo foi hegemónica, e outra que ameaça disputar-lhe essa posição, num futuro não tão distante. O mais evidente é a luta pelo controlo do Oceano Pacífico?
O novo cenário onde os americanos reconstituíram o “Acordo de Parceria Aliança Transpacífico”, celebrado a 5 de Outubro de 2015, e que terá como membros a Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Estados Unidos, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietname, representando cerca de 40 por cento da economia mundial, tem por objectivo conter o seu rival e testar o seu poderio bélico nas águas circundantes à costa chinesa.
A concorrência estende-se de forma global no plano comercial. A luta contra os piratas informáticos chineses que endoidecem as empresas e as instituições governamentais dos Estados Unidos, foi um tema importante durante a recente visita do presidente da China à América, sem esquecer a enorme presença chinesa na África e na América do Sul, anteriormente reserva de caça americana.
A luta que se trava tem como fim definir a potência hegemónica em todas as áreas. Durante setenta anos, desde o final da II Guerra Mundial, os Estados Unidos têm-se apresentado, e em grande parte têm sido os donos do mundo. O seu poder militar trazia segurança ao mundo, o seu poder económico movimentava os mercados do mundo ocidental, e a força da sua cultura e do seu nível de vida, foram o modelo que mais de metade da população do planeta procurava imitar e que se vai desvanecendo.
O poderio americano enquanto durou a Guerra Fria, teve na União Soviética um oponente que o desafiava, ameaçava e controlava. A queda do Muro de Berlim, em 1989, simbolizou a desintegração do mundo comunista, e parecia que finalmente, os Estados Unidos eram de novo líderes únicos, com as bandeiras bem erguidas da democracia, livre mercado e liberdade de expressão, sem que nenhuma outra potência lhe disputasse a liderança do mundo. Desde que terminou a Guerra Fria, o esmagador poder militar dos Estados Unidos foi o núcleo central na política global.
Os Estados Unidos continuam a deter um poder militar incrível, com bases navais e aéreas espalhadas por todo o mundo para sossegar os seus aliados e intimidar os rivais. Os Estados Unidos suportam 75 por cento dos custos da NATO, que garante o território dos seus membros, gastando quatro vezes mais em defesa que a China. A marinha americana controla os mares e o exército e tem tropas em todos os continentes. As forças armadas americanas tornaram-se dominantes desde o início do século XX. A sua decadência será muito lenta. A China questiona os Estados Unidos acerca do seu direito de navegar nas águas do Mar da China, como se fosse seu.
A marinha americana, no sudeste asiático está habituada a tratar o Oceano Pacífico como se tratasse de um lago americano, garantindo a liberdade de navegação e oferecendo segurança aos seus aliados. A Rússia que necessita de recuperar a sua auto-estima ignora a advertência dos Estados Unidos para não escalar a tensão existente com as operações na Síria.
A intervenção da Rússia na guerra civil da Síria mostra que os Estados Unidos já não controlam o Médio Oriente, e têm-se mostrado receosos em intervir, enviando de novo infantaria. A Rússia encontrou uma brecha para se introduzir e poder intervir. A Europa viveu, em 2014, a primeira anexação forçada de território desde a II Guerra Mundial, (Crimeia e a cidade de Sevastopol) mantendo vivo o conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
Os países bálticos ficaram temerosos e a NATO está alerta e reforçou a sua presença militar na região, tendo os Estados Unidos e a União Europeia imposto sanções económicas à Rússia. A construção na Ásia de ilhas artificiais chinesas pela acumulação de areia transportada desde o continente, no Mar Meridional da China, transformou a reclamação teórica da China sobre as suas águas territoriais, a quilómetros da sua costa, numa realidade.
Os Estados Unidos ainda que não se possam intrometer nas disputas entre países vizinhos, asseguram que protegerão a navegação no Pacífico, mostrando que não vivemos num mundo sem fronteiras. As fronteiras existem e os países estão dispostos a lutar para as defender, o que significa que a ordem mundial depende da ordem territorial. Se nada se souber sobre quem detém a soberania de um território, nada se pode saber sobre a ordem internacional.
A nova China é um país poderoso, com uma economia forte e forças armadas muito bem equipadas. O seu orçamento da defesa tem apresentado um aumento de dois dígitos nos últimos vinte e cinco anos. As suas forças armadas estão equipadas com aviões de guerra, helicópteros de ataque e mísseis intercontinentais.
A China, poucos dias antes da visita do presidente chinês aos Estados Unidos, realizou um desfile de doze mil militares na Praça de Tiananmen para celebrar o septuagésimo aniversário da rendição do Japão aos aliados na II Guerra Mundial, tendo convidado todos os líderes mundiais. O presidente dos Estados Unidos, aproveitando o facto de o seu país estar a meio de uma campanha presidencial, em que os candidatos criticavam a China, escusou-se a assistir.
Os que se interrogavam sobre a direcção da liderança chinesa, encontraram resposta durante a recente visita do presidente chinês aos Estados Unidos, dada num jantar, em que ensaiou alguns argumentos entre eles, o de que a China está comprometida com um crescimento em, e pela paz. A China aprendeu a lição da II Guerra Mundial e reconhece que a hegemonia militar não é uma opção, estando comprometida com a ordem multilateral e a Carta da ONU.
O presidente chinês referindo-se à ideia de que o crescimento do poderio da China provocaria temor aos Estados Unidos e conduziria a uma eventual futura guerra, insistiu na ideia de criar um novo tipo de grandes relações de poder, que evitem a concorrência militar na procura de métodos mais criativos de cooperação que permitam a todos lucrar.
Que tipo de pessoa é o presidente chinês? Quando iniciou o seu mandato foi considerado como débil, medianeiro de consensos e conservador da velha guarda, e ninguém previa que se pudessem dar grandes mudanças durante os primeiros tempos, porque tinha de consolidar o poder, tendo no entanto, surpreendido o mundo, sendo descrito como o líder mais forte que a China teve nos últimos anos, tendo implementado alterações profundas e desmantelado a tradição do governo colectivo e politicamente é considerado como conservador, e em termos económicos como liberal.

19 Jan 2016

Corn Flakes e Masturbação

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]arece que o senhor Kellogg era uma activista pela cruzada anti-masturbação e foi isso que o motivou a criar os favoritos cereais de pequeno-almoço. Corn flakes são uma tentativa de criar uma alimentação nutritiva, mas isenta de luxúria. Porque a luxúria nos alimentos, ou seja, comida saborosa, aumentaria a energia sexual dos jovens, levando-os a tentar o prazer sexual, se não com os outros, com eles próprios. A guerra contra a masturbação sempre foi feroz. Com os mitos que gerações mais antigas tiveram que levar: masturbação faz crescer pêlos nas mãos (assim saberemos quem anda a gozar-se nos seus tempos livres) ou pode cegar.
Se o acto sexual continua envolto em tabu, a masturbação parece que está em piores condições. A masturbação masculina parece que é um lugar mais comum, uma conversa mais frequente, e a feminina menos disseminada. Sim, sim, as mulheres masturbam-se. Aliás, a ideia de que os genitais trazem prazer pode ser entendida em muito tenra idade, e é muito normal. Contudo, mesmo que já não haja uma força tão grande a reforçar mitos sem sentido sobre a masturbação, ainda há um sentimento de condenação. Uma força de tradição judaico-cristã que não aceita a individual legitimidade para o prazer – o prazer sexual ainda menos.
Mas a masturbação é importante. Os programas de educação sexual ou qualquer discussão sexual ainda não conseguem incluir a masturbação e as suas vantagens de uma forma mais integrativa ou abrangente. Os depoimentos e registos de terapeutas conjugais no mundo ocidental apontam para a relação entre as dificuldades sexuais do casal e a forma como a masturbação é vivida. Porque encontrar o parceiro das nossas vidas não garante o sexo das nossas vidas – se não soubermos comunicar sexualmente de uma forma eficaz. Praticar masturbação é perceber o mapa sexual e orgásmico do nosso corpo e assim, saber o que é preciso para ter prazer com o outro. Comunicar com o outro. E quando eu digo comunicar, não quero tirar todo o tesão da coisa ao sentar o casal em frente de uma mesa de centro a beber um chá enquanto verbal e mecanicamente se discute os caminhos para o orgasmo (pode resultar para alguns). Mas fica a sugestão de masturbarem-se à frente um do outro. À vez. Não?
A anatomia masculina tem a vantagem de que está ali pendurada, à boa vista e de muito fácil exploração. A feminina está menos acessível, só uma mulher com uma flexibilidade extraordinária é que poderia olhar a sua vulva ‘nos olhos’, mas ao tocar-se, ao olhar-se ao espelho perceberá qual o seu aspecto – e ajudará a perceber as suas anomalias, em caso de doença. As vantagens da masturbação vão ainda para além de uma sexualidade saudável, está provado que ajuda relaxar, cura dores de cabeça, pode ajudar a descongestionar uma sinusite e ajudar mulheres a terem menos dores menstruais. Ademais, o uso de vibradores e das bolas Ben Wa ajudam no exercício das paredes da vagina que previnem problemáticas como incontinência. Masturbação é tudo de bom.
O momento de descoberta sexual começa com a estimulação dos genitais, que continua com o exercício imaginativo daquilo que nos excita, agrada e entusiasma. Muitas vezes este processo é acompanhado por materiais mais visuais do que a simples imaginação (mas já escrevi que baste sobre a pornografia). Não há perigos reais de uma masturbação excessiva (para além de pele irritada, talvez). Mas se usados (constantemente) os mesmos padrões de fantasias para a excitação, podem levar a uma dependência psicológica que, quando se está finalmente com outra pessoa, podem ver as suas fantasias não correspondidas. O problema nunca será pela masturbação em si, mas pelas formas de excitação associadas. Mas se alguém se masturba sempre a pensar em pés, quando se apresenta para sexar e o parceiro não acha graça nenhuma que lhe toquem nessa zona do corpo, pode sentir-se alguma incompatibilidade/insatisfação de ambas as partes.
A masturbação é vista como um acto individual, mas que na sua privacidade permite uma abertura bastante frutífera para a sexualidade no geral. A analogia que me foi descrita é de um atleta a praticar para uma competição desportiva. A masturbação é uma forma de prática para o derradeiro momento, portanto deverá ser ajustada entre a sexualidade individual e a sexualidade com o outro. A masturbação permite um tempo valioso de descoberta pessoal, mas também de descoberta do que gostamos no(s) outro(s), aquele admirável mundo novo do sexo que ainda por aí. Há quem ainda sugira momentos de masturbação ‘mindful’ onde deverá ser criado um momento de total intimidade connosco próprios. Se for preciso pôr velinhas, que se ponham velinhas e incenso e música romântica!
A relação dos corn flakes com a masturbação é nula, com a excepção de que há por aí muitos comedores de corn flakes que provavelmente se masturbam. O senhor Kellogg que nunca o descubra.

19 Jan 2016

Depois do Esplendor

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 4 de Janeiro, a bolsa chinesa registou uma quebra de tal forma acentuada que nos pode fazer temer um eventual colapso económico. Ao mesmo tempo em Macau, as receitas do jogo têm vindo a cair consecutivamente ao longo dos últimos 19 meses. Embora ainda gerem quantias suficientes para cobrir as despesas do Governo, existem indícios que demonstram que a Idade de Ouro da indústria do jogo em Macau está a chegar ao fim. Esta situação não tem qualquer relação com os incidentes provocados em Hong Kong pelo movimento “Occupy Central”, foi sim desencadeada pela situação económica que se vive actualmente na China
O excesso da capacidade produtiva da China deu origem a um aumento do preço do trabalho, ao mesmo tempo que o encerramento de muitos projectos de construção provocou enormes desperdícios de investimento. O crescimento “anormal” da economia chinesa, aliado à natureza especulativa do mercado imobiliário e às políticas monetárias, colocou em perigo uma “bolha” de mercado há muito existente. Os especialistas em economia terão de encontram formas de impedir que a “bolha” rebente e que a economia chinesa entre em recessão, à semelhança do que aconteceu no Japão há 20 anos atrás. E como as bolhas acabam por rebentar, mais cedo ou mais tarde, a melhor solução é impedir que se criem.
Já que Macau não foi capaz de transformar a sua estrutura económica em 2000, as taxas aplicadas à indústria do jogo tornaram-se a principal fonte de receita do Governo. Na sequência do fim do monopólio da indústria do jogo, e do grande florescimento financeiro, os turistas da China continental têm vindo a alimentar das mais diversas formas a economia de Macau. Para lidar com a inflação o Governo da RAEM implementou o Plano de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico, que ainda agravou a situação. À medida que as “bolhas” económicas de Macau aumentavam, e em face das medidas restritivas implementadas pelas políticas anti-corrupção na China, a quantidade de turistas continentais diminuiu drasticamente. Assim, a economia macaense decai dia após dia e as “bolhas” económicas acabarão por rebentar.
Em face desta situação preocupante, o Chefe do Executivo, Chui Sai On, afirmou explicitamente, durante a sua visita a Pequim, que o Governo da RAEM está a começar a estudar formas de diversificação moderada e de intensificação da economia de Macau e irá apresentar essas propostas por escrito ao Governo Central. Esta iniciativa não foi sugerida pelo Governo Central, é de facto a primeira vez, desde a transferência de soberania, que o Governo da RAEM avança com propostas para a melhoria da situação da região. Vejamos se estas propostas podem conduzir Macau ao bom caminho após o fim da “bolha” económica. Embora esta “bolha” económica seja moldada por factores externos, também foi influenciada pelas políticas erradas do Governo da RAEM. Quando Macau regressou à soberania chinesa, há 16 anos, o Governo Central escolheu os seus representantes no seio das famílias locais mais abastadas, os quais trabalhavam de perto, na administração de Macau, com associações tradicionais e com grandes capitalistas. Estabeleceram como principal prioridade a manutenção da estabilidade, objectivo que foi alcançado. No entanto, o excesso de estabilidade abriu campo à monopolização do poder, que por seu lado resultou em corrupção. Após o disparar da economia de Macau, a corrupção instalou-se inevitavelmente. Estas “bolhas” políticas não podem encobrir a instabilidade social nem as diversas crises geradas dentro destes micro-sistemas. Os dois relatórios. publicados recentemente, sobre a análise do sistema eleitoral, não conseguiram apontar caminhos para melhorar as políticas cada vez mais fechadas e corruptas que se praticam em Macau.
Para que uma sociedade desfrute de estabilidade a sua economia deve registar um crescimento saudável e a sua política administrativa terá de ser transparente e livre de corrupção. Só com a implementação de medidas eficazes, se pode impedir o abuso de poder e o desrespeito da Lei por parte dos políticos, tornar possível o aparecimento de competição e de mecanismos de avaliação, cruciais para a afirmação de competências e do reforço da supervisão da actuação do Governo, de forma a impedir a corrupção. As “bolhas” políticas e económicas são igualmente destrutivas e devem ser ultrapassadas. É necessário tomar medidas e estar preparado para o que está para vir.

18 Jan 2016

Promessas Virginais

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 6 o website‘news.hsw.cn’ fez saber que numa escola de ensino superior, em Xi An, na China, existe um curso designado por “Qing Chu Wu Hui”. Para frequentar o referido curso, todos as raparigas são obrigadas a assinar numa “Carta de Compromisso”, que reza o seguinte:

Compromisso

Prometo solenemente a mim própria, aos meus familiares, amigos, futuro marido e filhos, que renuncio ao sexo antes do casamento, e renuncio a todas as formas de sexo extra-conjugal, depois do casamento.

Assinatura do Próprio Assinatura da Testemunha

Data Data

Os jornalistas entrevistaram várias estudantes para saberem a sua opinião sobre o assunto.

“A escola tem uma forma muito peculiar de nos controlar. Não têm o direito de assumir o papel de “zeladores da moralidade” e atentar contra a nossa dignidade.”

“Compreendemos que a intenção da nossa escola é boa, mas este ‘Compromisso’ é sem dúvida muito antiquado.”

“Este compromisso pretende resguardar as raparigas que estão em vias de começar a praticar sexo pré-conjugal. Temos sempre uma escolha, podemos assinar, ou não assinar. Mas se o assinarmos, devemos recordar a promessa que fizemos.”

“Muitas estudantes da nossa escola não estão autorizadas a manter esta promessa.”

“Somos chinesas. Devemos manter e respeitar a nossa tradição cultural. Devemo-nos opor ao sexo pré-marital. Daí que, a idade mínima para o casamento deverá baixar para os 14 anos.”

O jornalista também entrevistou um professor desta escola, que declarou o seguinte:

“A intenção da escola é zelar pelos estudantes, mas este ‘compromisso’ levantou uma polémica muito além das nossas expectativas.”

Noutra Universidade, em Xi An, foi criada uma norma designada por “regulamentação para a manutenção da ordem académica”. Esta norma encoraja a denúncia de contactos físicos entre estudantes, que se verifiquem em público. Além disso, também é pedido aos estudantes que tirem fotografias, caso se deparem com situações de intimidade entre colegas. As fotos deverão ser enviadas por mail aos pais dos estudantes “prevaricadores”, culpados dos tais “comportamentos imorais”.

É evidente que as escolas atrás mencionadas tentam lidar com casos de sexo pré-marital e de relações extra-conjugais.

Na sua grande maioria os estudantes universitários são adultos. Embora a maioridade possa variar de país para país, o que o conceito implica é basicamente igual em todo o lado. A partir do momento em que se é adulto, pode fazer-se tudo aquilo que é permitido por lei. Na China a maioridade atinge-se aos 18 anos. Já no que respeita à idade mínima para casar, o caso muda de figura; no caso dos rapazes só é permitido a partir dos 22 e das raparigas dos 20.

E aqui levanta-se uma questão importante:

“Será que existe alguma lei que confira às escolas o direito de impedir os seus alunos de terem sexo pré-marital ou relações extra-conjugais?”

Geralmente temos leis que proíbem aos homens o relacionamento sexual com raparigas abaixo de uma certa idade. O limite pode ser os 18 anos ou inferior, dependendo das disposições legais. Mas é muito improvável que exista uma lei que dê às escolas o poder de impor proibições sexuais aos seus alunos.

Presumindo que não exista tal lei, pode uma escola intitular-se o direito de impor este tipo de ‘normas regulamentares’ restritivas? A resposta é um tanto ao quanto difícil. Na generalidade, os regulamentos académicos pretendem estabelecer alguns padrões de comportamento na escola, mas este “Compromisso” pretende estabelecer padrões de ordem moral. Se os regulamentos escolares entrarem no campo da moralidade, poderá haver dois tipos de consequências. Por um lado, é suposto educar-se os jovens no sentido de serem moralmente exigentes. Por outro lado, os estudantes podem facilmente acusar a escola de ‘restrição à liberdade’, já que são praticamente todos adultos. É por isso normal que vários estudantes considerem que se está perante um atentado à sua dignidade e, consequentemente, tomem medidas para processar as escolas.

Em terceiro lugar, o “Compromisso” apenas faz incidir as suas restrições sobre as raparigas. E os rapazes? Também não deveria a escola preocupar-se com eles? Se uma regulamentação se destina apenas às raparigas, não estamos perante um caso de discriminação sexual?

Já sabemos que a escola quer restringir o sexo pré-marital e as relações extra-conjugais. É uma questão de ordem moral. Quem os praticar não está fora dos limites legais. No entanto estes relacionamentos não são bem vistos na China. A melhor forma de manter a moral é através da educação. Não será preferível explicar aos estudantes porque é que o sexo pré-marital e as relações extra-conjugais não são bem aceites na sociedade chinesa? Qual é a melhor forma de lidar com estes relacionamentos? Estas questões são matéria da pedagogia. A intenção da escola é boa, do ponto de vista da sociedade chinesa, mas a escola também deve ter em consideração a sensibilidade dos estudantes.

18 Jan 2016

Sugestão do Chefe: Renascimento

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão podia concordar mais com quem defende que o Governo devia pagar era “quebas” aos tipos e tipas que investiram nos activos de risco daquela empresa de “bons rapazes” casineiros e no fim ficaram “a arder”, alguns com as economias de uma vida inteira (Isto não é certo, mas fica assim por motivos de…dramatização? Isso.) Nada contra as pessoas, que desconheço na sua totalidade, mas que no fundo devem ser pessoas como nós, com os seus problemas, sonhos, com as suas ambições, e é neste último que pecam especialmente: demasiada ambição, e ainda mais cara-de-pau. Dos “petit-je-ne-sais-quois” que nos separam culturalmente, a avareza (passo a falta de p.c.) é aquela que os chineses praticam com mais “profissionalismo”: levam aquilo tão a sério que no fim não conseguem usufruir do património que passaram a vida a acumular – e no fundo não é essa mesmo a percepção que temos de “riqueza material”? De facto o mundo é mesmo imperfeito, pois caso contrário a “riqueza de espírito” pagava pelos menos as continhas (e quem sabe deixava também uns trocados para jolas e tremoços, pelo menos?).
Recordo-me de um episódio interessante que teve lugar num local público, aqui há uns anos, durante o auge da febre da especulação imobiliária. Estariam no local cerca de dez pessoas, e duas delas – ambas senhoras – conversavam a viva voz, aparentemente sobre qual seria o melhor fermento para fazer crescer ainda mais o bolo do capital que iam auferindo, e a certo ponto uma delas levanta a voz contra a outra, com um ar ultrajado, e de repente nem mais uma palavra se escutaria das duas, que pelo que deu a entender, “amuaram”. Que giro. Logo que foram embora, minutos depois, perguntei à única pessoa que não me era estranha naquele local, e que por sorte também era bilingue, qual a razão de súbita e insólita animosidade, que deixou mesmo toda a gente com cara de “isto só visto” nos momentos que se seguiram ao impacto. A prestável e cândida criatura contou-me então que as duas madames conversavam de facto sobre investimentos no sector do imobiliário, e uma delas não gostou que a outra lhe tivesse perguntado como havia obtido um empréstimo a juros apetecivelmente baixos – é lógico que se essa sabia, foi porque a “parte indignada” se vangloriou de ter obtido essa vantagem. Fiquei esclarecido, mesmo que desiludido pelo motivo tão fútil e mesquinho pelo qual se haviam desentendido aquelas duas alegres convivas. O dinheiro, o património, os negócios e mais o “raikusparta” nunca devia ser argumento de coisa nenhuma. Que chato. Que previsível. Que boçal. Pena de morte para estes gajos todos, já! (Desculpem, mas estou ainda meio traumatizado de tantos apelos à violência gratuita que andei a ler nas redes sociais).
E lá está, este é o piolho oriental que nos deixa a coçar as nossas ocidentais moleirinhas; os tipos querem fazer rios de nota, mesmo que em muitos casos através de meios “marginais” (no sentido “strictum sensum” da legalidade, entenda-se), e ai de quem ousar questioná-los seja do que for. Se ganharam, “ninguém tem nada a ver com isso”, e desconfiam mesmo de alguém que lhes dá os parabéns. Se perdem, “aqui d’el-rei” ao Governo para ver se faz JUSTIÇA (ah!), e “ai de mim, que sou tão parvinha e não sabia”. Em Portugal tivemos um caso semelhante com os activos tóxicos do BES, mas aparentemente esses foram mesmo ludibriados. Mesmo assim não consigo ter pena deles – e porque havia de ter? Se os activos lhes dessem uma pipa de massa, pagavam um copinho ao pessoal? Era o pagavas! E ainda levávamos com um “o que é que tu tens a ver com o que eu ganho”, que saímos de lá com um olho moral roxo. Patetas. Bem feito!
Em suma, pode-se dizer que temos aqui um grupo de gente que é o próprio reflexo da economia lúdico-dependente que popula: a casa ganha sempre, e quando não ganha, há sarilho. Veja-se o exemplo que foi a criação de um departamento governamental, coisa séria, com poderes XPTO, e tal, apenas para que ficasse assegurada a protecção dos “dados pessoais” de cada indivíduo. What’s the point? Ninguém quer saber o número do BIR do vizinho, ou mesmo o nome ou idade, e não dou conta de um número alarmante de raptos que justifique um secretismo tal que se chega ao ponto de se ficar sem saber muito bem o que se pode saber ou dizer de cada indivíduo. É uma mania, creio. Faz parte. É integrante da edição e não deve ser vendida separadamente. A expressão “quem não deve, não teme” não é para aqui chamada, portanto. Não se adapta. Sabem o que mais? Tenho uma teoria muito minha para explicar estas pequenas diferenças que todas juntas compõem certos abismos: o Renascimento. Sim, nós tivemos e eles não, mas já agora: e o que é que eles têm a ver com isso? Ah?!

14 Jan 2016

Bowie!

“Eu estava virtualmente a experimentar tudo… E acho que fiz praticamente tudo o que é possível fazer – excepto coisas realmente perigosas, como ser um explorador. Mas tudo o que a cultura ocidental tinha para oferecer – Eu quis passar por tudo.”
Telegraph, 1996

“Fazer o melhor de cada momento. Nós não estamos a evoluir. Nós não vamos a lado nenhum.” Esquire, 2004.

“Não sei para onde irei a partir daqui mas prometo que não será aborrecido.” 
Madison Square Garden, no seu 50º aniversário.

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]avid Bowie foi um dos meus primeiros heróis. Hoje, porque me é mais difícil sentir a atracção pelas estrelas que sentimos quando somos jovens, para perceber o que um adolescente sente ao admirar o seu ídolo do momento tenho de me reportar ao que eu sentia por David Bowie onde tudo o que fazia era um acontecimento para nós. E continuou a fazer. Anos após anos, após anos Bowie continuou a surpreender trazendo-nos sempre trabalho de primeira qualidade, sempre provocativo, sempre grande. Ensinou-nos a libertar, a experimentar, a ser, a usufruir e conceitos tão rebeldes como a própria definição de sexualidade que é muito mais fluidez do que propriamente rótulos estritos de género ou preferência.
A morte dele custou. Primeiro por assim se encerrar uma fonte ímpar de inspiração, de criatividade, de atitude, mas também por morrer um pouco de nós, daqueles que gostávamos da sua obra. Esse é o problema das mortes das pessoas que gostamos, ou nos identificamos: porque, no fundo, choramo-nos é a nós. Choramos a mágoa por não termos mais a pessoa, choramos a falta que ela nos faz, choramos por nós, por não mais a termos. Resta-nos a recordação que sabe sempre a pouco. Com a morte de pessoas que nos habituámos a “conviver” praticamente desde sempre, há uma sensação de eternidade que se esvai, um aproximar desconfortável à nossa própria mortalidade. Quando as estrelas rock da nossa infância se vão, há ainda algo de lúgubre que nos ataca, o sinal que também o nosso ciclo se aproxima do fim; e quando se tratam de foras de série como Bowie é impossível não nos ocorrer se, de facto, fizemos ou não alguma coisa de substancial com a nossa vida; um quinto que seja do que ele fez.
A morte de David fez-nos também perceber quão importante a música e as artes são para as nossas vidas. Nunca tinha visto o facebook assim. Não me parece que esteja a exagerar que no dia da sua morte cerca de 90% dos meus 800 e tal contactos publicavam algo sobre David Bowie. Muita música claro, mas também inúmeras reflexões das quais me permito citar algumas:
Duarte, psicólogo, dizia que “David Bowie, antes de morrer, já estava liberto da lei da morte. Movido por uma criatividade e curiosidade incessantes foi inventando, de obra-prima em obra-prima, o futuro da música e da cultura pop. Distinguia-se por ser alguém grande, de contribuir para uma forma de vida melhor – para usar o conceito de Wittgenstein: desprendia-se das fórmulas, dos sucessos, ou do espaço conquistado/inventado em trabalhos anteriores, para lançar-se vertiginosamente num novo projecto. Continuamente, encorajava ou colaborava com novos músicos e projectos musicais emergentes, que só depois se tornariam conhecidos – por exemplo os Kraftwerk – nunca temendo ficar na sua sombra. A música, a cultura, a forma de vida são bem mais importantes!”  Andreia, produtora de espectáculos, dizia que “compreendo melhor Black Star agora, um disco quase perfeito mas tão enigmático. Foi composto já durante a doença, sabendo provavelmente que não iria recompor-se. Ao choque que senti com a notícia sucedeu-se a serenidade de perceber que Bowie soube lidar com a morte. Ouçamos Black Star. E tudo o resto. Celebremo-lo.” Stu, produtor de cinema e de banda desenhada, desabafava desta forma “É impressionante como um artista pode ter tanta influência noutra alma”. José, artista plástico, confessava a sua mágoa assim: “Nunca a morte de uma celebridade me afectou desta forma. Quando soube da sua morte senti este vazio estranho dentro de mim como se me tivesse sido arrancado um bocado sem permissão.” De facto.
Marilyn Manson contava-nos o seguinte: “A primeira vez que me apercebi de David Bowie, foi a assistir a “Ashes to Ashes” na MTV. Fiquei confuso e cativado. Mas foi só na minha primeira real estadia em Los Angeles, por volta de 1997, que alguém me disse para perder um momento a ouvir algo para além de Ziggy Stardust, Aladdin Sane e Hunky Dory. Então fui dar uma volta alucinante de carro pelas colinas de Hollywood e ouvi “Diamond Dogs.” Toda a minha nostalgia de repente se transformou em admiração. Estava a ouvi-lo cantar sobre ficção como uma máscara para mostrar a sua alma nua. Isto mudou a minha vida para sempre.” Pois é. Era esse o poder de David Bowie. Mudava a vida das pessoas que se detivessem a escutá-lo. Uma influência global, da moda à representação, à forma de estar, ao seu activismo como, por exemplo, quando criticou a MTV por não passar música negra, ou quando rejeitou o grau de cavaleiro oferecido pela rainha de Inglaterra por não saber para que servia, ou a sua permanente capacidade de estar sempre um passo à frente no tempo como quando, em 1996, foi o primeiro artista de primeiro plano a disponibilizar um single para download, ‘Telling Lies’, um processo que, na altura, com as velocidades disponíveis, demorava cerca de 11 minutos.
Mas não posso terminar sem o tweet integral de Val Kilmer que nos dá uma outra perspectiva, menos de Bowie e mais de Jones, o homem por quem Íman se apaixonou como ela recentemente disse: “A última vez que vi David Bowie foi em Brooklyn, junto com algumas pessoas muito muito sortudas que foram assistir a Lou Reed tocar a sua glória negra, BERLIN, ao vivo. Ele estava sentado mesmo à minha frente com a mulher de Lou, Laurie Anderson, que tinha visitado o meu rancho no Novo México com o Lou. Quando nos cumprimentámos, ele virou-se e eu reconheci-o instantaneamente. E eu, em vez de dizer ‘olá’ apenas comecei a dar-lhe uns tapinhas nos ombros. Não consigo descrevê-lo de forma mais precisa. Ele era tão especial que foi a única forma que consegui exprimir a minha alegria. Não acariciei muitos homens dessa forma em toda a minha vida. Estou tão feliz por o ter podido fazer. E, mais importante do que isso: ele deixou-me fazê-lo. Apenas sorriu quando lhe pedi desculpa pelos afagos. Pareceu-me que não apenas entendeu como aceitou a minha estranha oferta de gratidão e reconhecimento. E de repente o encanto desfez-se quando ele se focou intensamente no palco percebendo que para além de qualquer um de nós estava aquele concerto histórico que se iniciava. BERLIN era um disco importante para ele, como o disse várias vezes, e ele valorizava muito a sua amizade com Lou, apesar deste ser um tipo muito difícil, desafiante mesmo. Mas todos nós gostávamos de ser tão “cool” como o David. Mesmo o Lou. David era sempre o tipo mais cool na sala. E era um mestre cantor e compositor. Deus abençoe David Bowie.’”
A morte de Bowie leva também consigo um dos expoentes máximos de uma geração de artistas para quem a fama era apenas boa, como ele disse, para arranjar um lugar num restaurante, tão ao avesso do comportamento tantas estrelas de brilho duvidoso dos dias de hoje que tudo fazem para aparecerem continuamente nem que seja para mostrar o novo par de sapatos.

Da minha parte só espero conseguir pelo menos cumprir um percurso semelhante ao que ele preconizou quando celebrou 50 anos, idade que em breve farei, pois não há nada pior que o aborrecimento. Nada.

MÚSICA DA SEMANA

David Bowie – “Black Star”
I can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a marvel star)
I’m the great I am (I’m a blackstar)

14 Jan 2016

O Paradoxo da Intimidade

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] intimidade é daqueles pilares relacionais que não pode ser dispensado. É a parede mestre dos relacionamentos românticos. Intimidade, eufemisticamente, refere-se a sexo, ao mesmo tempo que se refere a proximidade, familiaridade e muito à vontade com o outro. A isto se deve à nudez, às caras de sexo, aos orgasmos, a histórias de infância, a traumas, a choros, a sorrisos e às confissões nunca antes partilhadas. Esta é a porta que permite a entrada do outro aos recantos mais sombrios do nosso ser. O Sr. e Sra Perfeitos deixam de fazer sentido à medida que a intimidade cresce. Porque estas zonas mais negras, mais sujas e vergonhosas, são normalmente partilhadas e expostas no desenvolver da relação. As nossas imperfeições e dificuldades tornar-se-ão (idealmente) objectos de amor. Todos nós queremos ser reconhecidos e adorados exactamente como somos, podres incluídos.
E o que somos nós? Somos aquele equilíbrio de que nos orgulhamos e nos envergonhamos (se de uma forma saudável, em quantias que se nivelam). O que muitos se questionam é que se deveria existir uma barreira intransponível? Um limite para a abertura íntima, ou seja, o que é que é demais ou de menos? Devemos mostrar tudo? Ou um pouco menos que tudo? Não há fórmulas, claro. Apesar da cultura popular gostar bastante de as impor, às vezes, com alguma graça.
Tomemos o exemplo do cocó. A merda. Dizem uns e outros que há um protocolo para o número dois. Quem viu o Sexo e a Cidade saberá que as quatro amigas regulamentaram que não se caga na casa do namorado. Ponto. É das primeiras preocupações que se tem quando passamos pela primeira vez mais de 24 horas com a pessoa amada ou com a pessoa com quem se anda a ter uma amizade colorida. É muito pouco sexy quando pensamos que sai algo de nós tão nojento e malcheiroso. Por isso tenta-se esconder o facto que as nossas funções biológicas existem, aliás, nunca existiram. O quê? Fazer cocó? Dar um peido? Só na escuridão de uma casa-de-banho, quando ninguém está a ver ou a cheirar. Escusado será dizer que há quem se sinta mais confortável em partilhar os seus movimentos intestinais do que outros. Dependendo da forma como vemos o acto de evacuar. Li algures por uma bloggeira, que se debruça por várias questões matrimoniais, que acredita que muitos casais podem considerar o à vontade em partilhar movimentos intestinais, um desleixo. Que provavelmente reflectirá as expectativas que o mundo cria das relações amorosas. Porque há quem as tome de uma forma cinematográfica tão literalmente (e.g. cabelos ao vento, risos soltos, jantares românticos, olhares profundos) que provavelmente terão dificuldade em lidar com o ‘desleixo’. Muito menos com um peido. Que, diga-se, até pode ser um daqueles momentos de intimidade de graça adolescente.
Quem fala de puns, pode falar de outra coisa qualquer, que por alguma razão recai bastante em expectativas femininas. Mulheres que se ‘desleixam’ com a maquilhagem, com a roupa interior sexy, com os pêlos que teimam (que surpresa!) em nascer de novo. E o que é que é suposto fazer em relação a isso? Conheço quem viva sob esta doutrina da perfeição, ao ponto de dormir com maquilhagem para conseguir acordar e apresentar uma cara fresca, e não com uma terrível cara de sono (nunca percebi como é que esta técnica funciona, não me sai da cabeça a imagem do Joker todo esborratado – combinação de maquilhagem com uma almofada). Também já a vi quem se preocupe obcessivamente em tirar todos os pêlos do corpo, para que o seu mais que tudo nunca perceba que eles de facto existem.
Cada um faz o que quer, e é aconselhado a fazer aquilo que o deixa mais confortável e lhe dê mais prazer. Óbvio. Mas tem me feito espécie que o tão temido ‘desleixo’ seja carregado pelas mulheres, como se houvesse a obrigação de sermos as únicas a manter uma intimidade interessante, sexy e bem apresentada. Que não é o caso. Acautelem-se homens: vêm aí as doutrinas anti-barrigas de cerveja e as queixas de falta de gestos românticos.
O que eu percebo como o paradoxo da intimidade é o seguinte: tenta-se incutir a ideia de que a intimidade é necessária para o desenvolvimento do casal, mas carrega a possibilidade de ser encarada como um desleixo. Porque se a ideia é sermos nós mesmos com o outro, e permitir que a atracção circule e seja entendida nos moldes que nos definem, podemos cair nas temidas coisas mundanas que por si só não são muito atraentes e em casos mais graves, poderão pôr relacionamentos em causa. Por isso, seguindo o conselho de tantos terapeutas matrimoniais por esse mundo fora: comunicação. Se vos agrada ou se vos incomoda, comuniquem um com o outro (de forma diplomática, acusações têm pouco de produtividade). Porque os gestos de intimidade e de desleixo, o romantismo exacerbado, as actividades rotineiras e um ou outro pum, são o que fazem uma relação.

13 Jan 2016

BRICS: Análise comparativa da sua performance

* Por Rui Paiva

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]menção ao BRICS remete para uma pluralidade de realidades bem diversas, atentando ao que cada país membro representa sob o ponto de vista económico, financeiro ou enquanto actor global que, não obstante, consubstanciam um lobby de expressão mundial que representa 40% da população (três mil milhões de pessoas), e pouco mais de 20% do produto global.
A China destaca-se pela sua pujança económica e financeira, com elevadas taxas de crescimento, (se bem que a decair para perto dos 6%), e uma realidade global mais sólida do que os restantes países. Este crescimento é considerado como uma importante forma de legitimação do Governo e do Partido Comunista Chinês.
A diferença de dimensões realça-se no PIB da China, quatro vezes o do Brasil (e grosso modo também da Rússia e Índia), e vinte vezes maior que o da África do Sul. “A nova normalidade” é o conceito usado pelo governo chinês para definir o actual estádio, que significa a mudança de um crescimento forte para um crescimento menor, mas sustentável. Concretamente, em 15 de Março de 2015, aquando da 3ª sessão da 12ª Assembleia Popular da China (APN), o primeiro-ministro Li Keqiang refere numa conferência de imprensa que “a economia chinesa entrou na fase da nova normalidade”. Xi Jinping, num discurso muito importante apresentado em 28 de Março de 2015 no Boao Forum for Asia Annual Conference 2015 (a replica asiática do World Economic Forum, realizado de 21 a 24 de Janeiro em Davos), caracteriza da seguinte forma este estádio:
“Now, the Chinese economy has entered a state of new normal. It is shifting gear from high speed to medium-to-high speed growth, from an extensive model that emphasized scale and speed to a more intensive one emphasizing quality and efficiency, and from being driven by investment in production factors to being driven by innovation. China’s economy grew by 7.4% in 2014, with 7% increase in labor productivity and 4.8% decrease in energy intensity. The share of domestic consumption in GDProse, the services sector expanded at a faster pace, and the economy’s efficiency
and quality continued to improve”1.
E mais adiante quantifica o envolvimento chinês, afirmando“This new normal of the Chinese economy will continue to bring more opportunities of trade, growth, investment and cooperation for other countries in Asia and beyond. In the coming five years, China will import more than US$10 trillion of goods, Chinese investment abroad will exceed US$500 billion, and more than 500 million outbound visits will be made by Chinese tourists”.

Análise dos indicadores

De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano, um indicador para aferir o grau de desenvolvimento humano e social, a Rússia é a melhor posicionada em 55º, seguida do Brasil em 85º, figurando entre os piores a África do Sul em 121º e a Índia em 136º. A China coloca-se a meio da tabela (101º). Na realidade, o PIB (em PPP), o maior produto decurso de alguns anos), leva a que se verifique a necessidade de recurso às suas diversas divisas, ou ao dólar norte-americano, a referência para os mercados financeiros, como ocorre nos pagamentos de negócios de petróleo (fala-se de petrodólares).
No plano político, desde logo sobressai a natureza dos regimes políticos, sendo três democracias e duas repúblicas de regime autoritário; e se a China é um actor global com uma projecção crescente, já a Rússia se tem destacado pela sua presente beligerância, mas há a ponderar outro aspecto que os caracteriza: a ‘vantagem’ de serem ambos membros do Conselho de Segurança da ONU, dando-lhes outra capacidade negocial.
Ora, por outro lado, devemos ter em conta que as posições expressas nesse mesmo conselho pelos vários BRICS não são idênticas, como aconteceu a propósito da resolução relativa à Síria: a Índia e a África do Sul a favor, e a China e a Rússia a vetarem a resolução. Analisando sob a perspectiva da Governance, não sendo nenhum dos países abertamente revisionista, é apontado outro indicativo de falta de unidade de acção: o caso da eleição para o FMI (de Christine Lagarde), não conseguindo entender-se para um candidato comum.
Passando à ordem social e demográfica, veja-se que a população (força de trabalho activa) tem e terá a médio e longo prazo um impacto diferente: a Rússia e a China com graus de envelhecimento que a Índia não acompanhará. Este factor tem um abalo muito significativo a nível de competição internacional, ou da criação de diásporas no mundo, na divisão internacional de trabalho (a China na manufactura e a Índia campeã dos serviços, por exemplo via call centres de multinacionais).

Pontos de convergência entre o BRICS
Abordando agora os aspectos que podem aproximar estes países e auxiliar a implementação de uma acção de colectivo, com impacto regional ou global, podemos destacar o facto de até agora não serem abertamente revisionistas (nenhum propondo a alteração da ordem internacional), afirmando-se pela manutenção do statu quo (dependendo todos os outros, de uma ou outra forma, da China). Afirmam-se mais como actores de um forum de reflexão e decisão sobre a ordem política internacional e sobre o sistema financeiro, numa união de esforços, mas acima de tudo uma forma de projectarem a sua posição, de se fazerem ouvir, dado que ganhando maior peso e capacidade de pressão poderão imprimir a sua vontade, instigando um espírito de união (relativa), que a crise financeira terá ajudado a fortalecer.
Na política interna serão eventualmente mais susceptíveis de enveredar por formas nacionalistas de comportamento, associadas a um proteccionismo comercial ou financeiro. Uma característica comum é a adopção de política sistemática de acumulação de reservas, atitude defensiva e de precaução desde a crise asiática4 de 1997, uma prática que ganhou maior expressão entre os países deste continente. Esta é uma medida com impacto nas suas balanças de pagamentos e na sua autonomia financeira em relação ao exterior, com efeitos muito positivos na capacidade de afirmação económica e financeira e autêntico ‘guarda-chuva’ ajudando a solucionar eventuais crises futuras (veja-se o caso presente da Rússia).
Também a China está a implementar reservas externas num modelo global, mas justificada parcialmente, em torno da insuficiência mundial de infraestruturas. A Índia poderá eventualmente ser a excepção, ao querer assumir-se como uma alternativa regional à China e tendo em conta a recente e aparente (com a Índia é preciso esperar para ver) assunção de uma parceria estratégica mais realista e profunda com os EUA; este factor poderá passar a reflectir um ponto de divergência futuro.
Importante também é o “factor liberdade”, em que as três democracias (do IBAS) se destacam pela positiva com uma pontuação de 2, quando a China e Rússia têm valores muito elevados: 6,5 e 6. A medida da desigualdade (distribuição de rendimento) é-nos facultada pelo índice de Gini2, muito elevado na África do Sul, com 0,65, melhor o da Índia nos 0,34, Rússia com 0,39, e Brasil e China ainda com muito espaço para percorrerem, com 0,52 e 0,47 respectivamente. Finalmente as Reservas Externas cujo caudal foi alimentado pela China até Junho de 2014 (um pico de 3,99 mil milhões de dólares), estacionando actualmente nos 3,887 mil milhões. Representam seis vezes as da Rússia, e cerca de dez vezes as do Brasil e da Índia. Este é um indicador de liquidez e de capacidade de financiamento de orçamentos expansionistas. Reservas que a China orienta para operações de M&A (aquisições e fusões) pelo mundo fora, contrabalançando a perda de dinamismo do seu modelo de desenvolvimento e rentabilizando assim esses recursos acumulados, ao mesmo tempo que vai gradualmente descolando da sua dependência do dólar norte-americano e perfilhando um outro importante desiderato, ainda longínquo: a projecção do yuan enquanto moeda de referência mundial.
O FMI tornou públicas projecções de crescimento do BRICS (2015/2016), que vêm fundamentar os receios de queda do crescimento da China (6,8/6,3%), comprovam a pujança da Índia (7,5/7,5%), o crescimento fraco da África do Sul (2/2,1%), o crescimento inócuo do Brasil (-1%/1%) (com fragilidades infraestruturais, corrupção do caso Petrobras e contestação social massiva) e finalmente uma Rússia fortemente abalada pelas sanções (crise ucraniana e tomada da Crimeia, a par da forte quebra dos preços do petróleo), com crescimento negativo (-3,8/1,1%).
Em síntese, assiste-se,
a) Brasil, com problemas políticos e sociais (dossiê corrupção), infraestruturas deficitárias, perdas de receitas de petróleo;
b) Rússia, com dificuldades advindas da quebra de preços de petróleo e devido às sanções aplicadas (ocupação da Crimeia), aliando-se tacticamente à China (v. g. nas áreas energéticas), demografia envelhecida a suscitar receios futuros;
c) Índia, com crescimento mais sustentado e expressivo, mas com uma vasta população rural e pobreza endémica, com muitas e importantes reformas por fazer, (dossiê fiscal por exemplo);
d) China, em mudança de modelo (de baseado nas exportações para um assente no consumo), e anterior crescimento rápido assente na voragem do imobiliário e das bolsas de valores, com problemas de equilíbrio entre a liberalização de sistemas (financeiro), e a centralização do poder;
e) África do Sul, relevante no seu continente, mas com xenophobia nas relações laborais, (mineiros imigrantes), fragilidades infraestruturais, necessidade de reformas estruturantes.
Será fácil o entendimento entre estes países tão diferentes?

Pontos de divergência entre o BRICS

Na ordem económica e financeira sobressai uma grande disparidade com tudo o que implica a sua projecção no mundo, capacidade de influenciar decisões de investimento ou de outra natureza económica e financeira, facilmente perceptível quando a China é quatro vezes superior ao Brasil, Índia e Rússia e vinte vezes à África do Sul. Acresce um manifesto diferente grau de desenvolvimento, de vontade ou de tendência reformista, assim como de modernização do sistema financeiro.
Nos recursos naturais e energéticos, refira-se a diferença de realidades para os diversos países: existência de recursos e sua exportação, característica da África do Sul, do Brasil e da Rússia. A Rússia, como um dos principais produtores energéticos, tem o seu orçamento muito dependente da venda do petróleo e gás, sendo muito afectada por variações, no sentido da baixa, do preço do petróleo, estando no outro lado da balança a China e a Índia (importadores de recursos naturais e energia). A China aproveitou a actual pressão sobre os preços energéticos para repor as suas reservas estratégicas.
No plano financeiro e monetário, a inexistência de uma moeda de referência de um dos seus membros, (estando a China a tentar internacionalizar o yuan3, o que só se verificará em pleno no decurso de alguns anos), leva a que se verifique a necessidade de recurso às suas diversas divisas, ou ao dólar norte-americano, a referência para os mercados financeiros, como ocorre nos pagamentos de negócios de petróleo (fala-se de petrodólares).
No plano político, desde logo sobressai a natureza dos regimes políticos, sendo três democracias e duas repúblicas de regime autoritário; e se a China é um actor global com uma projecção crescente, já a Rússia se tem destacado pela sua presente beligerância, mas há a ponderar outro aspecto que os caracteriza: a ‘vantagem’ de serem ambos membros do Conselho de Segurança da ONU, dando-lhes outra capacidade negocial. Ora, por outro lado, devemos ter em conta que as posições expressas nesse mesmo conselho pelos vários BRICS não são idênticas, como aconteceu a propósito da resolução relativa à Síria: a Índia e a África do Sul a favor, e a China e a Rússia a vetarem a resolução.
Analisando sob a perspectiva da Governance, não sendo nenhum dos países abertamente revisionista, é apontado outro indicativo de falta de unidade de acção: o caso da eleição para o FMI (de Christine Lagarde), não conseguindo entender-se para um candidato comum.
Passando à ordem social e demográfica, veja-se que a população (força de trabalho activa) tem e terá a médio e longo prazo um impacto diferente: a Rússia e a China com graus de envelhecimento que a Índia não acompanhará. Este factor tem um abalo muito significativo a nível de competição internacional, ou da criação de diásporas no mundo, na divisão internacional de trabalho (a China na manufactura e a Índia campeã dos serviços, por exemplo via call centres de multinacionais).

Notas
1 Xi Jinping – Towards a Community of Common Destiny and A New
Future for Asia (disponível em https://english.boaoforum.org/
hynew/19353.jhtml).
2 Quanto mais perto dos 0,5, menor desigualdade; quanto mais
aproximado do 1, maior grau de desigualdade.
3 O acordo de fornecimento de gás e petróleo que a Rússia
(Gazprom) e a China (China National Petroleum Corporation)
selaram em Maio de 2014, no montante de 400 mil milhões
de dólares, foi fechado em yuans e rublos, quando normalmente
estes contratos de energia são firmados em dólares, o que é
visto como uma parte da estratégia de descolagem da divisa
americana pois, quando assim acontece, obrigam-se os consumidores
de petróleo a pagarem nesta moeda, expandindo a sua
utilização.
4 A China por ter tomado uma atitude – política monetária – mais
radical, conseguiu evitar o efeitos das fortes pressões especulativas
que outros países asiáticos sofreram, caso da Tailândia
e Indonésia, por exemplo.

13 Jan 2016

Uma triste ficção

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m economista estaria em óptima posição para explicar ao leitor o que é a moeda. De uma nação, de um estado, de uma simples região. Não sendo economista, e escrevendo para todos, terei de me socorrer daquilo que aprendi ao longo da vida, procurando numa linguagem desprovida de tecnicismos e enfeites semânticos transmitir aos leitores o que quero levar à sua reflexão.
A moeda é para a generalidade das pessoas aquilo que tem um valor pecuniário, aquilo que numa economia serve para comprar bens e serviços. Unidade de conta, reserva de valor, meio de troca. Em regra, são estas as funções da moeda. Mas se estivermos a falar de Macau, de uma região administrativa especial de um Estado soberano, estaremos também a falar de algo mais. Estaremos a falar de um símbolo da sua identidade, de uma marca da diferença, de um valor seguro, fiável e com a capacidade de perdurar para além dos homens, constituindo valor, criando riqueza, sendo motivo de orgulho das suas gentes.
Quando em 1987 foi assinada a Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau, ficou a contar desse texto no seu ponto 2.8 que a Pataca – está grafado em maiúscula – continuaria a ter curso legal na RAEM. No Anexo I, relativamente ao esclarecimentos prestados pela RPC, ficou a constar que “[c]omo moeda com curso legal na Região Administrativa Especial de Macau, a Pataca de Macau continuará em circulação, mantendo-se a sua livre convertibilidade”. Quanto à segunda parte do que ficou acordado sabe-se que, segundo informa a AMCM, para a convertibilidade das notas de Macau emitidas em patacas pelo Banco da China e o BNU, “os dois bancos emissores devem entregar na AMCM um montante equivalente em dólares de Hong Kong, à taxa cambial de HKD1 = MOP1.03”. Quanto à primeira parte, agora que estamos a mais de 30 anos de 2049, é que tenho dúvidas que a pataca continue em circulação nas condições que os seus cidadãos podem esperar.
E manifesto as minhas dúvidas porque embora os que aqui trabalham recebam os seus proventos, em regra, na moeda local, sei que hoje em dia se contam pelos dedos de uma mão os poucos contratos, dos milhões que anualmente são celebrados em Macau nas mais diversas actividades, cujo valor é fixado na moeda local. Ou em que sendo fixados em dólares de Hong Kong apresentam a correspondência em patacas. É verdade que se continua a pagar as contas nos restaurantes em Patacas, aqui grafando-se em maiúscula o que consta dos textos legais e nos sai do bolso, bem como são notas nessa moeda que servem para pagar as compras nos mercados, cafés e lojas de sopas de fitas, havendo ainda alguns cartões de débito e de crédito emitidos nessa moeda. Mas o facto de esses valores ainda assim poderem ser pagos na moeda da terra é cada vez mais uma raridade. Se formos a ver bem as coisas, aquilo que os cidadãos de Macau pagam em patacas não é mais do que os preços em dólares de Hong Kong convertidos na moeda local. Pode parecer confuso mas basta olhar para o que se passa no mercado imobiliário, ver as montras das imobiliárias, para perceber do que falo.
Quando no espaço de dois ou três dias se verifica que o preço do leite, dos iogurtes, das batatas ou das azeitonas aumenta e alguém questiona a razão para a variação de preço, muitas vezes em valores bem superiores àquilo que são os dados oficiais da inflação, a explicação é sempre a de que os produtos são importados e pagos em dólares de Hong Kong a quem os vende, apesar de não raro quem os vende não estar em Hong Kong, nem na China, mas aqui em Macau. Quanto a isso parece existir uma espécie de clister conformista que a tradição local nos impele a acatar sem ondas, fazendo com que a explicação que sorridentemente nos enfiam deslize sem dor nem mais questões, numa espécie de bênção pela satisfação de necessidades básicas.
O problema é quando alguns desses clisteres assumem proporções “bíblicas”. Isto é, quando se compara o valor pago por esse serviço em dólares de Hong Kong com a crescente falta de patacas nos bolsos para perfazer o preço pedido.
Na verdade, a convertibilidade da pataca e a crescente insuficiência de moeda local nos bolsos dos cidadãos é um problema que não é sentido pela elite política, empresarial, administrativa e, já agora, criminal da RAEM, isto é, aquela andou a receber “investimentos” em salas VIP, como se de bancos autorizados se tratassem, e que mercê da sua argúcia, perspicácia e capacidade reprodutiva conseguiu alterar o sentido do texto da Declaração Conjunta a que acima aludia de maneira a que a moeda com curso legal em Macau se tenha tornado o dólar de Hong Kong.
É evidente que o problema não nasceu ontem, tendo contribuído sobremaneira para a actual situação uma decisão judicial proferida em plena Administração portuguesa, no tempo daquele senhor que passou por uma data de portos a encher contentores e a instituir fundações dos mais variados tipos sem se preocupar com o factor cambial. Nessa altura houve um tribunal superior que veio dizer que o dólar de Hong Kong era uma moeda com curso “quase-legal” em Macau e que perante a exigência do Código Civil então vigente de que os contratos de arrendamento cujo valor fosse superior a oitocentas patacas fossem reduzidos a escrito sob pena de nulidade, veio esclarecer que para esse efeito oitocentos dólares de Hong Kong eram exactamente o mesmo que oitocentas patacas. Graças a esse “douto” aresto, que como cidadão de Macau me envergonhou, aquilo que era nulo tornou-se válido, a cantina dos almoços continuou a funcionar, embora entretanto já encerrada, e os cidadãos pagam hoje o custo social e económico dessa equiparação forçada.
E isso é de tal forma escandaloso que quem queira nesta altura comprar um automóvel, arrendar uma fracção para habitação ou comércio ou um lugar de estacionamento terá de negociar os preços em dólares de Hong Kong e celebrar os contratos nesta moeda. E as patacas, além de se terem tornado um bem raro e escasso para pagar as contas, pura e simplesmente tornaram-se numa ficção. Uma ficção com custos elevados e indignos.
Neste momento, a pataca só serve para pagar o salário do Chefe do Executivo, o dos seus secretários e o do pessoal que exerça funções públicas e assalariadas na actividade privada. E impostos e custas judiciais. Quanto ao mais não existe. Qualquer empresa do sector automóvel ou empresa de mediação imobiliária anuncia alegremente os seus preços em dólares de Hong Kong como se fossem patacas, e até quando o vendedor ou senhorio é de Macau, recebe o seu salário em patacas e paga as contas do supermercado na moeda local, a renda da casa onde o seu inquilino vive ou a do lugar de estacionamento que arrenda ao vizinho é paga em dólares de Hong Kong. Nos casinos contam-se pelos dedos as máquinas que há em patacas, havendo mesmo algumas salas em que os residentes de Macau que queiram e possam jogar na sua terra, para o poderem fazer têm primeiro de trocar patacas por dólares de Hong Kong num balcão da concessionária ou subconcessionária, como se estivessem de férias em Las Vegas e essa fosse efectivamente a moeda de Macau, a única com curso legal. Uma vergonha.
Bem sei que estas são questões menores para quem tudo recebe, com excepção das ajudas de custo e do seu pocket money, em dólares de Hong Kong ou noutra moeda qualquer. Quem recebe as suas “comissões” em dólares de Hong Kong ou USD, contando para isso com a benevolência dos legisladores e a insensibilidade das autoridades, preocupa-se pouco com isto. Não lhe toca, passa-lhe ao lado. Mas para os outros, para os filipinos das limpezas, para o segurança do tribunal, para o lavador de carros que veio do outro lado das Portas do Cerco para ganhar a vida em Macau e para todos os que diariamente são obrigados a converter patacas em dólares de Hong Kong para pagar a renda do quarto ou do apartamento, o desprezo dos poderes públicos perante esta realidade cala fundo. E dói.
Para o cidadão de Macau que recebe o seu salário em patacas é incompreensível que tudo seja negociado em dólares de Hong Kong. Que esta seja a verdadeira moeda de Macau. O facto de existir uma taxa fixa e uma indexação permanente não retira a esta realidade o carácter aviltante de que este facto se reveste.
A actual situação da pataca, para além de facilitar a lavagem de dinheiro, o crime económico e a corrupção, só beneficia os especuladores. E os que sendo residentes noutras regiões recebem os seus pagamentos em dólares de Hong Kong, sendo poupados aos custos de conversão e transferência, podendo continuar a arrecadar sem custos para si e em prejuízo dos cidadãos locais e dos cofres da RAEM.
Se a pataca é hoje uma ficção, se se entende que sempre foi, se não é um símbolo da autonomia de Macau e da sua identidade, se não se quer que seja, se não serve os interesses da RAEM, então o Governo local deverá acabar com a actual fantochada e dizê-lo, sendo nisso secundado pela própria RPC. Porque a actual realidade é a todos os títulos inaceitável e o Governo da RAEM deveria ser o primeiro a encontrar uma solução que retirasse a Pataca do ghetto em que se encontra. Uma solução que lhe restituísse a dignidade e protegesse os cidadãos de Macau dos abusos dos que aqui especulam e traficam noutras moedas.
A pataca é um símbolo da cidadania de Macau e isso vê-se nos cheques com que anualmente se tem comprado a sua submissão, o seu silêncio, a sua passividade. E é por ser paga em patacas que a sua cidadania deve ser respeitada. A cidadania de Macau não é convertível, nem tem curso quase-legal em qualquer outra moeda. Por isso é que para qualquer cidadão que vive do seu trabalho dez ou vinte mil patacas não são o mesmo que dez ou vinte mil dólares de Hong Kong. Nunca o foram. Qualquer ladrão, até o mais pobre, sabe isso na hora de estender as mãos para as lavar.

12 Jan 2016

Fraude Académica

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]esta coluna, como devem estar lembrados, já tive ocasião de divulgar alguns casos de exames fraudulentos. Hoje, vou partilhar com o leitor mais algumas destas histórias.
No passado dia 27 de Outubro, o website “chinapress.com” fez saber que a empresa Goldman Sachs tinha despedido 20 empregados chineses por terem “copiado no exame de contabilidade”. A maior parte trabalhava nas sucursais sediadas em Nova Iorque e Londres.
O artigo adiantava ainda que outras 10 pessoas tinham sido afastadas da filial nova-iorquina da empresa JP Morgan Chase & Co. (JP Morgan) por alegada fraude no exame de matemática.
O porta-voz da JP Morgan declarou que este tipo de comportamento é inaceitável e que a empresa encara estas situações com grande seriedade.
É fácil depreender que estas pessoas não puderam pedir à empresa que lhes pagasse a viagem de regresso à China.
É óbvio que fazer “batota” nos exames não é novidade. Mas, de alguma forma, as declarações do porta-voz da JP Morgan não deixam de ser surpreendentes.
“A fraude nos exames de admissão à empresa é prática corrente. Mas torna-se notícia quando o examinando é tonto ao ponto de se deixar apanhar.”
Se fizermos uma busca rápida sobre esta matéria, podemos encontrar um artigo, datado de 8 de Julho e divulgado pelo website “lx.huanqiu.com”, que nos conta uma situação ocorrida na Índia. No seguimento da notícia, 40 pessoas morreram sem razão aparente. Uma das vítimas era jornalista. Na foto que ilustra o artigo, vemos imensas pessoas a treparem pelas varandas de um edifício. Eram pais dos alunos que estavam a ser examinados no interior. O propósito dos “alpinistas” era passar as respostas aos filhos através das janelas.
Mas voltemos à China. O website “edu.qq.com”, publicou uma notícia há cerca de duas semanas, onde relatava que, no dia 26 de Dezembro, alguns candidatos às provas de inglês do “Graduate Student Entrance Examination”, tinham informado o governo sobre uma fuga das respostas dos exames. O departamento da Educação investigou o assunto de imediato.
Mas antes de prosseguirmos, é preciso salientar que o Código Penal chinês recebeu uma emenda há cerca de dois meses. A nova versão entrou em vigor a 1 de Novembro de 2015 e estipula que a fraude nos exames é considerada crime. Quem vender as respostas dos exames é condenado a três anos de prisão. Mas se a situação for considerada muito grave, a pena pode ir até aos sete anos.
E é aqui que se levanta uma questão. Se a venda das soluções dos exames é considerada crime, porque é que ainda se mantém? Penso que o artigo publicado no website “chinesetoday.com”, no último dia de 2015, responde claramente a esta pergunta.
Pelo artigo ficamos a saber que, em 2012, tinha havido fuga nos exames de política, matemática, e medicina do “Graduate Student Entrance Examination”. O departamento de Educação investigou o caso e ficou apurado que os responsáveis eram funcionários governamentais. Para além disso, Qi Hang, funcionário do colégio particular “Qi Hang Jiao Yu Ji Tuan ChangSha Fen Xiao” foi também acusado.
No entanto, Qi Hang não parece ter sido muito afectado. Tornou-se até bastante popular entre os alunos. Em alguns materiais promocionais podíamos ler,
“Fugas de Qi Hang, podes crer.”
Continuando a nossa leitura, ficamos a saber que o colégio também não foi muito incomodado. Antes pelo contrário, passou a informar os estudantes que os seus exames eram dignos de confiança. Do ponto de vista do estudante, mais vale gastar algum dinheiro para comprar as respostas do que trabalhar arduamente. É uma forma simples e eficaz de ter boas notas.
Dado que o mercado funciona desta forma, a Lei não parece ser suficiente para travar a compra e venda de perguntas e respostas dos exames.
Para reduzir a fraude nos exames, a educação deve ter um papel central. Através da educação, as pessoas têm de perceber que estes comportamentos são desonestos. Se as mentalidades não forem alteradas, independentemente das consequências previstas na Lei, a sociedade não evolui.
É preciso ter presente, que parte das normas legais são medidas para avaliar o comportamento humano. Se o seu comportamento estiver aquém dos requisitos legais, você deverá ser considerado culpado. Mas não podemos concluir que a Lei exclui o crime. Por exemplo, o homicídio é crime. Mas, no entanto, continua a ser praticado. A Lei pode facultar o padrão de comportamento desejável, mas não pode impedir o delito. Para travar a infracção, é necessário sensibilizar as pessoas e chamá-las à razão. A Educação pode ensinar a distinguir o certo do errado, mas leva tempo.

* Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau

11 Jan 2016

Natal (não) Macaense

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]acau, 1 de Janeiro de 2016: em tempos passados hoje seria indubitavelmente um dia de cérebro embrumado resultante de uma violenta noite bem regada festejando a entrada no novo ano.
Mas para mim há muito que a passagem de ano deixou de ser assim, tendo-se transformado num acontecimento banal, um fenómeno de calendário e pouco mais, sendo por isso incapaz de olhar para a coisa como um evento propriamente dito, muito menos algo passível de ser festejado.
Acordamos no dia seguinte com a sensação de que está tudo diferente por se tratar de um ano novo?
Não.
Quanto ao Natal:
No passado cheguei a viver o Natal com alguma intensidade. Não apenas por ser miúdo, por causa das festas e das prendas, ou porque ainda acreditava no Pai Natal.
Nada disso e muito pelo contrário até.
O período de Natal era das poucas alturas do ano em que o meu irmão e eu tínhamos forçosamente de andar rigorosamente bem vestidos, no sentido formal e clássico do conceito.
Em casa as celebrações começavam com o jantar de Consoada no dia 24 de Dezembro. Regra geral em tantos anos nunca falhou a Sopa Lacassá, a Capela, o Tacho, o Peixe no Forno e o Camarão Abri-costa. Foram estes os pratos preferidos durante muitos anos.
Chegava-se ao fim do jantar com goma nos lábios – o Tacho genuíno deixa sempre goma nos lábios – e ainda uma mesa bem artilhada de iguarias macaenses: Genete, Farte, Alua, Ladu, Coscorão, Cake e mais, muito mais.
Habitualmente era já altura de nos prepararmos para a missa do Galo. Na igreja não havia as multidões que há hoje nem os curiosos que, chan yit lau (*), aparecem lá munidos de gorros de Pai Natal com luzes. A igreja ainda era uma igreja e podia-se entrar com calma, serenidade e paz.
No fim da missa ficava-se no adro, cumprimentando os presentes, desejando bom Natal e boas entradas. Regressávamos a casa onde nos aguardava uma canja de galinha. E logo a seguir era xarope, chichi, cama, pois acordava-se com um dia longo pela frente.
O nosso dia de Natal começava bem cedo porque logo de manhã saíamos de casa para visitar, um a um, os familiares mais seniores: avós, tios-avós e ainda “outros legítimos superiores” (**), uma tradição que entre nós, macaenses, se entendeu chamar por “via-sacra”. (***)
Eram muitas as visitas pois falamos aqui de uma família numerosa. O que vale é que era um Macau sem os problemas de trânsito actuais. Vivíamos na Penha e ainda antes de entrarmos no carro, logo à porta de casa, começávamos por visitar umas tias que moravam ali ao lado.
Continuava-se depois pela Barra, Chunambeiro, Rua Pedro Nolasco da Silva, Rua Nova à Guia, Rua D. Belchior Carneiro, não se excluindo pelo meio eventuais paragens em lares de idosos ou no hospital onde poderíamos ter de visitar também alguém.
A nossa via-sacra terminava habitualmente no Toi San. Portanto, atravessávamos a cidade de uma ponta à outra, num carro que saía de casa cheio de prendas e que, frequentemente, regressava ainda mais carregado.
Os nossos familiares tinham sempre as casas bem ornamentadas e preparadas para receber as visitas. Dava-se as boas festas e fazia-se sala, convivia-se amenamente. Brindava-se à saúde de todos com pequenos cálices de vinho do Porto e a seguir bebia-se um chá quente enquanto se petiscava.
O meu irmão e eu não corríamos de um lado para o outro como hoje se vê vulgarmente entre a criançada. Não que alguém nos tenha expressamente dito que não nos era permitido, simplesmente com todo aquele ambiente formal, ma non troppo, sabíamos que não era suposto. Recebíamos as prendas, que alguém nos vinha trazer da árvore de Natal, agradecíamos, mas não abríamos logo. E permanecíamos sentados a conversar com os adultos.
Não era frete nem nunca me lembro de ter comentado com alguém de que aquilo tudo era aborrecido. Era o que era e fazia parte do Natal. Convivia-se com cortesia, de forma polida, e foi também assim que cresci, aprendi a socializar e a ser adulto. E numa altura em que não existia nem internet nem Facebook, era também uma oportunidade para captar novidades dos nossos parentes na diáspora. Não era, por isso, inconsequente.
O Natal foi assim durante muitos anos, passou a ser uma rotina. Não sou muito de repetições, mas nessas coisas há algo de romântico quando se faz exactamente o mesmo de ano para ano. A familiaridade do cenário revisitado dá-nos conforto e ajuda a solidificar as recordações.
Com o passar do tempo e por diversas razões, deixámos de fazer via-sacra no Natal. Os encontros de Natal com os nossos familiares passaram a ser diferentes e, nesse novo contexto em que uns deixaram este mundo e outros cresceram e multiplicaram-se, para meu desagrado comecei a constatar que se deixou de conviver da mesma forma – não sei bem porquê.
Trata-se do reconhecimento de um facto e também de uma crítica aberta àqueles que, por algum motivo que desconheço, até parece que não foram educados pelos mesmos que no passado nos direccionaram a comportarmo-nos no Natal com urbanidade, sem histeria nem algazarra. Dói-me o coração quando, na qualidade de macaense, observo a conduta de alguns e verifico que, no espaço de uma geração, tanto se perdeu da nossa identidade.
Sei que os tempos são outros e não fará muito sentido exigir-se o formalismo de outrora nos dias actuais. Mas que haja algum equilíbrio e bom senso – afinal, somos macaenses e ainda há não muito tempo atrás chegámos a passar o Natal juntos num ambiente um pouco diferente, um pouco mais polido.
Não é elitismo, tradicionalismo, conservadorismo ou qualquer outro tipo de “ismo” barato. É ter consciência da riqueza da nossa identidade e não aceitar que, de repente, se passe a celebrar essa importante festividade de forma inadequada, a conviver aos berros, com empanturramentos e encharcamentos de comida e álcool despropositados.
Passei por isso a encarar o Natal com mixed feelings. Porque infelizmente hoje associo todo o período do Natal e passagem de ano a excessos: excesso de festas, excesso de prendas, excesso de lucky-draws, excesso de ambiente carnavalesco, excesso de comida, excesso de álcool, excesso de barulho, excesso de má-educação, excesso de mensagens superficiais e inconsequentes no Facebook, SMS, Whatsapp, WeChat, enfim, excesso de excessos. E todos esses excessos aborrecem-me.
Abomino o discurso “no meu tempo era melhor”, mas tenho sinceramente saudades do Natal do meu tempo, da via-sacra, dos brindes com vinho do Porto, de ser obrigado a andar bem vestido, de fazer sala, de todo aquele formalismo.
Porque as mudanças só fazem sentido quando se ganha alguma coisa no processo. E aqui, caríssimo leitor, posso assegurar que não se ganhou rigorosamente nada. Só se perdeu.
Em tempos um amigo meu afirmou que o Natal passou a ser de tal forma incompreensível que devia ser como o mundial de futebol: apenas de quatro em quatro anos. Respondi com um encolher de ombros. Mas confesso que quanto mais penso no assunto, mais me parece fazer sentido.
Só não deixo que essa ideia ganhe ímpeto porque felizmente sou ainda capaz de ver o que para mim passou a ser o lado positivo e a essência do Natal: um período de descanso que me permite estar com a família.
Por outro lado, sendo macaense e pai, tenho consciência de que cabe a mim fazer com que os meus filhos cresçam celebrando o Natal com a devida importância e de forma adequada à nossa herança cultural. E sem excessos.
Para que do Natal guardem apenas boas recordações.

Sorrindo Sempre

Um dia, no prédio onde moro, entrei no elevador com o meu filho que trazia com ele uma vassoura para pôr no lixo. No elevador estavam duas mulheres e um homem. E como o pau da vassoura era maior que o meu filho de 5 anos, a coisa cambaleou um pouco dentro do elevador.
“Vê lá! Não me espetes com o pau entre as pernas!”, ouviu-se em português, saído da boca de uma das mulheres. Eram os três portugueses, portanto.
Aturei muito disso em Portugal. Ter de aturar o mesmo em Macau custa ainda mais. Respirei fundo e disse ao meu filho, alto e bom som, mas num tom muito calmo e em português: “Diogo, tem cuidado com a vassoura.”
Ficaram os três com cara de chupâ ovo.
Sei que devem ter pensado que não temos cara de quem fala português. E sei também que quem pensa assim em pleno século XXI, na RAEM, 15 anos após a transferência, tem de ser necessariamente mentalmente estreito.
Sorrindo sempre.

(*) 趁熱鬧 : expressão típica em cantonense para aqueles que se juntam a multidões apenas com o intuito de não ficar a perder o que quer que seja, mas sem saber ao certo o que se está a passar.
(**) Do Quarto Mandamento da Lei de Deus.
(***) Leia-se “viassácra”, sem acento tónico na palavra “via”.

8 Jan 2016

Livr(o)e

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Aprendi a ler muito cedo, porque quis. Na altura não tinha noção de que saber ler era meio caminho andado para o combate ao tédio, porque desconhecia a palavra. Também não sabia o significado de solidão, filha não única mas sem outras crianças em casa. Com os anos, os livros passaram a ser companhia constante, vício, virtude também. Inundavam as tardes abafadas e intermináveis de Verão. Apagavam as noites de insónia.
Os livros. Só mais tarde, muito mais tarde, percebi a libertação que me trouxe o acto da aprendizagem da leitura. Ler liberta. Ler é poder ir a todos os lados, conhecer todas as pessoas, incluindo aquelas que nunca vimos, que falam línguas que não conhecemos. Ler é prepararmo-nos para o que o mundo tem de diferente. Ler é liberdade.
Às tantas é esta liberdade toda que faz com que goste que a minha filha goste de letras, apesar de ainda não ter idade para saber ler. Gosto que ela goste de livros, que me roube os livros das estantes e brinque com eles, que goste dos livros dela. Quero que possa ler tudo, que todos os livros do mundo estejam ao seu alcance. A minha mãe viveu o tempo em que havia leituras proibidas. A mim foram-me dadas toda as letras que consegui apanhar.
Não conheço o teor dos livros que se vendem que nem ginjas em Hong Kong, e em Macau também, e que são proibidos na China. Os livros que, ao que dizem, são os responsáveis pelo desaparecimento de cinco pessoas que viviam num espaço que julgávamos ser de liberdade. Não sei se os livros são bons ou maus, se contam histórias verdadeiras ou falsas. Só sei que são livros. E que tudo o que se escreve – nos livros e nos jornais – é um exercício de liberdade. Uma liberdade que, quando viola os outros direitos que também temos, deve ser avaliada em sede própria. É assim que acontece nos sistemas que, julgávamos, se regem pelos princípios do Estado de direito.
É estranha a história de Lee Bo. Como é estranho o desaparecimento dos quatro colegas, em Outubro passado, que não mereceu a atenção de ninguém: umas quantas linhas na imprensa local e uma silenciosa reacção da comunidade dita internacional e mais livre. É estranha toda a narrativa, tudo aquilo que nos têm dito. E os livros no meio de tudo isto. Ler. Ser livre.

2. Eles dizem que foi uma bomba a sério, os outros desconfiam. Vivemos – nós, aqui perto, e os outros, mais longe – com um problema sério que tem sido olimpicamente ignorado pela tal comunidade internacional defensora da liberdade, não da dos livros, mas de outra liberdade qualquer cujos contornos, frequentes vezes, não consigo perceber.
Desde que vim para Macau que me comecei a interessar pelas questões coreanas. Afinal, é aqui ao lado. No início era a curiosidade que me despertava um regime que parou no tempo; depois, com os livros que fui lendo, a vontade de criar uma imagem de um país que dificilmente conhecerei de outra forma.
A Coreia do Norte é a prova de que o mundo é uma coisa muito mal-amanhada e muito mal resolvida. É a prova também de que o xadrez da política internacional é um jogo sujo que não serve ninguém – nem os povos que alegadamente estão representados, nem os povos sem voz, aqueles que só merecem a preocupação de meia dúzia de organizações não-governamentais e de outros tantos observadores indignados.
Pyongyang tem sido um problema conveniente que a China tem no quintal. Ontem lia especialistas na matéria, todos eles chineses, dizerem que dificilmente Pequim terá uma atitude interventiva em relação ao regime que tem vindo a proteger porque não só tem perdido influência na liderança sem tino de Kim Jong-un, como também passaria a contar com dilemas adicionais resultantes de uma eventual queda do regime. Mas, explicam também esses especialistas, um quintal com competências nucleares não serve a Pequim. E não serve ao resto do mundo.
O mundo tem, aparentemente, mais um problema para resolver – um problema com que os norte-coreanos, esfomeados e perseguidos, vivem há 60 anos. Pois. Essa coisa da liberdade.

8 Jan 2016

Ei. Você aí! Não viu…

[dropcap style=’circle’].[/dropcap]..um livreiro aí? Resolvi acabar a frase no início do texto senão o título ia ficar “de rabo cortado”, como no último texto publicado (cala-te boca). Mas até vem mesmo a calhar, já que falamos de rabos que após contados se apercebe da ausência de cinco deles, aparentemente vis propagadores do mal para uns (sabemos bem quem), e paladinos das liberdades e da democracia para outros (ainda a anunciar): [voz tenebrosa] livreeeeeeiroooos!!! Espera aí, livreiros??? Aqueles velhinhos corcundas com olhos de lupa que na indústria cinematográfica porno estão na categoria de “weirdo”? Essa agora, já não bastava que alguém com a pinta de Jason Chao fosse considerado “inimigo público número um” para certas sensibilidades, e temos “Os doze indomáveis livreiros”, que neste caso são cinco, e terão pavor de borboletas.
“Talvez eu esteja agora aqui a brincar com coisas sérias” – pensarão alguns. “O vosso problema é mesmo esse: pensam, e deviam abster-se dessa inglória e frustrada ambição”, responderei eu, que nada aqui é a brincar, “leidizangentelmén”. Não há nada pior do que me abster de ler notícias, escrever qualquer coisa ou ler mensagens (fiquei dez dias sem abrir o Facebook, pasme-se) desde o Natal até aos reis, e a primeira notícia com que dou de frente com a tromba quando resurjo ao mundo, é esta, do tipo: “Olha, já foste, acabou-se o que era doce”. Deveras. Quem é que podia adivinhar uma coisa dessas, depois de ter andado tanto tempo a brincar com coisas sérias?
Não vou aqui fazer nenhuma leitura política ou qualquer outra deste facto, mas o desaparecimento dos tais livreiros por razões com que nos fingimos surpreendidos são mais do tipo “andas-te a pedi-las”. E acreditem, depois de ter andado o último quartel do ano passado a deparar com pessoas A DESEJAR que acontecessem tragédias para depois usá-las para incriminar um certo grupo de outras pessoas, fiquei mais ou menos imune aos anti-corpos da “indignação”, aquela panaceia para todos os terrores mas administrada na forma de “vai lá tu que eu fico aqui a torcer por ti” – nem sei como é que ainda não se processou judicialmente certos personagens, que iam ao ponto de difundir notícias falsas com o óbvio intento de causar o pânico. Adiante que se faz tarde.
Assim, mal soube da notícia, fui inquirir um colega meu, orgulhoso patriota que nem disfarça – antes ostenta – a sua simpatia e intimidade com o Partido (aquele, “o único”): “Olha lá, onde é que puseste os livreiros desaparecidos? Atão qué isto, uh?”. Ao que ele então retorquiu, identificando de imediato a minha intenção: “Claro… naturalmente!”, e sem mover um nervo em sobressalto, tal era a certeza de que “digam o que disserem, não têm nada contra nós desta vez”. Muito na linha oficial do Partido (o tal), que na forte possibilidade de se dizer do lado do bem e estar a afirmar a verdade, tem adoptado este estilo tão cândido de fada dos nenúfares. É até bem possível que alguém o tenha feito por eles, e sem que eles o encomendassem – ou aprovassem, até. Que sorte e azar ao mesmo tempo, vejam só.
Talvez esta seja a versão em chinês do “quem anda à chuva, molha-se”, que no Ocidente tem paralelo numa certa elite que repete vezes sem conta anedotas sem graça para provocar quem dizem ser “maléfico”, mas que no fundo não é mais do que alguém como nós, e quem já andaram a encher até aos cabelos com provocações parvas. Imaginem só se certos tipos desatassem a molestar-vos a toda a hora, porque “ouviram dizer” que vocês faziam assim e eles assado, e “eles é que estão certos, e vocês são uns bárbaros”. Quanto tempo iam aguentar até ir ao focinho do primeiro que estivesse à vossa frente? Pensamento profundo, mas no fim fico com pena realmente dos livreiros-pessoas, e não dos livreiros-utensílios de arremesso político. Sabe-se lá onde estão, e se estão bem, e se não precisam de tomar de alguma medicação, ou se dormem em ambientes salúbres. Isso é que me preocupa. Falando como pessoa, é claro, para o resto estou nem aí. Vamos ver agora quem “vai à frente”, que a gente fica aqui a “dar a nossa poia moral”.
Para reflectir em 2016, já que 2015 ficou marcado pela queda no ridículo daquilo a que chamam “luta pela liberdade”, com manifestações por tudo e por nada, e sempre com aqueles figurões já com mais que idade para ter juízo, ostentando fitas à volta da mona pedindo “fleedom”. Especialmente encantadora foi aquela greve de fome que se ficou pelo jantar do dia seguinte, aparentemente ao melhor estilo do antigos filmes “B” da antiga colónia britânica, com muito “Amelican style”. “You pay now”. Sayonara.

7 Jan 2016

Coisas que não compreendo

[dropcap style=’circle’]À[/dropcap]medida que vamos ficando crescidinhos, tenho a sensação que em vez de percebermos mais vamos percebendo cada vez menos. Não sei se sente o mesmo mas comigo é o que se passa. Não vislumbro se é fruto de alguma condição somática ainda não diagnosticada o que, claro, me preocupa, por isso resolvi desabafar esperando que talvez você que agora lê esta minha confissão me possa dizer se estou, ou não, a perder o juízo. Ficam aqui um resumo das (muitas) coisas que não compreendo. Neste mundo e nos outros.

Não compreendo porque o Chefe do Executivo da RAEM ainda vai pensar num plano para a diversificação económica de Macau quando isso já foi pedido por Wen Jiabao e por Hu Jintao.
Não compreendo como se pode incrementar a diversificação económica em Macau e cortar os orçamentos dos departamentos do governo que, como se sabe, é o principal motor da economia local.
Não compreendo o que o Governo de Macau entende por diversificação económica.
Não compreendo como o governo de Macau só depois do anúncio das milhas marítimas vai pensar num plano para as águas territoriais. Terá sido uma genuína surpresa de Natal?
Não compreendo a draconiana lei do fumo na cidade do lazer quando, ainda por cima, aparecem cada vez mais opções alternativas (e melhores) nos países vizinhos sem proibições cabotinas como esta.
Não compreendo como a mesma cidade do lazer em vez de fechar ruas ao trânsito e de criar alternativas de transporte não poluente prefere aumentar os impostos sobre veículos, cavando mais divisão social e mantendo um mau ambiente.
Não compreendo como Macau ainda não tem autocarros amigos do ambiente.
Não compreendo porque há tantos autocarros parados com o motor ligado apenas para manter o motorista fresco à custa dos cidadãos que têm de levar com mais diesel pelas narinas acima.
Não compreendo porque a cidade do lazer não tem equipas para investigar os veículos poluentes e os motoristas encalorados como tem para fiscalizar os bandidos dos fumadores.
Não compreendo porque a zona nobre de Macau é dedicada ao estacionamento de autocarros.
Não compreendo porque o plano pecuniário de Macau é atribuído de forma igualitária e não ponderada.
Não compreenderei se o governo não disser o que vai fazer em termos de desenvolvimento económico e social com os 223 milhões que sobraram do apoio pecuniário.
Não compreendo como Macau continua a fazer planos dia a dia e ainda não conseguiu imaginar uma cidade para o futuro.
Não compreendo como o Chefe do Executivo da RAEM pode nomear para a AL indivíduos como Fong Chi Keong e não responder politicamente pelas barbaridades do sujeito.
Não compreendo a plataforma Macaense para a China e os países de língua Portuguesa.
Não compreendo como foi possível o canídromo ver a licença renovada.
Não compreendo porque é a marijuana considerada medicamento nuns países e droga proibida noutros.
Não compreendo a guerra contra a droga.
Não compreendo a relação entre os escândalos bancários em Portugal e o número de arguidos.
Não compreendo o acordo ortográfico.
Não compreendo a presença de um futebolista num panteão.
Não compreendo para que serve um Panteão.
Não compreendo a quantidade de inglesismos utilizados no português de Portugal quando existem palavras no léxico luso para os substituir.
Não compreendo o enorme “tempo de antena” que os média portugueses dão à política quando, no limite, isso faz com que as pessoas se enjoem da política.
Não compreendo como Portugal tem telejornais a abrirem com notícias de futebol.
Não compreendo porque os políticos portugueses mandam tantos bitaites sobre a bola mas quando devem intervir, como no caso dos direitos televisivos, ficam calados que nem ratos.
Não compreendo para que servem as conferências de imprensa da bola se a conversa é sempre a mesma jogo após jogo, ano após ano.
Não compreendo como se gasta tempo num telejornal em Portugal com a conferência de imprensa do bipolar presidente do Real Madrid a falar de treinadores de futebol.
Não compreendo os benfiquistas. Mesmo.
Não compreendo o número avassalador de medalhas que Cavaco já entregou.
Não compreendo como ninguém se apercebe das incongruências do Marcelo Rebelo de Sousa e já todos lhe estendem a carpete para Belém.
Não compreendo a paixão insensata pelo turismo em Portugal.
Não compreendo como antes o nosso dinheiro tinha correspondência directa com ouro e agora não. Nem de longe.
Não compreendo como a NATO ainda não puxou as orelhas à Turquia. No mínimo.
Não compreendo como a Comunidade Europeia tolera no seu seio governos como o húngaro ou o polaco sem lhes puxar as orelhas. No mínimo.
Não compreendo a incapacidade logística e organizativa da Europa para lidar com a crise de refugiados.
Não compreendo como ninguém debate os mapas desenhados a régua e esquadro pelas potências coloniais quando é claro que grande parte dos problemas de África e do Médio Oriente residem neles.
Não compreendo como o mundo actual produz que chegue e tem condições técnicas e humanas para cuidar de todos e continuamos em guerra e com tantos milhões a passarem fome e sem condições dignas para existirem.
Não compreendo porque os detentores do capital tudo fazem para aumentar a desigualdade social quando, a montante, desigualdade crescente implica problemas de rentabilização do capital.
Não compreendo como existem dirigentes de países que se eternizam no poder e o mundo tolera. Para além do Alberto João.
Não compreendo como o Brasil continua a não ser capaz de conter a destruição da Amazónia e ainda não teve qualquer tipo de sanção, ou ameaça de perder a soberania do território a favor das Nações Unidas (esta figura legal se não existe, não compreendo a sua inexistência).
Não compreendo como ninguém leva a sério os líderes sul-americanos que clamam pela dívida europeia sobre as riquezas roubadas durante a colonização, no mínimo como garantia de perdão das dívidas soberanas.
Não compreendo porque a China pretende mais território.
Não compreendo porque os países asiáticos, de uma forma geral, não atribuem a nacionalidade a estrangeiros nem a nados no próprio país que não sejam da mesma etnia.
Não compreendo porque o mapa-mundi do Mercator continua a ser utilizado como “o mapa” se já toda a gente percebeu que está grosseiramente errado nas proporções.
Não compreendo como se permitem indústrias privadas de armamento sabendo que o fito de qualquer indústria é expandir negócio.
Não compreendo como a guerra pode ser privatizada.
Não compreendo como depois do que os judeus passaram os israelitas façam agora parecido aos palestinianos.
Não compreendo como ainda nos dividimos por religiões e dentro das próprias religiões.
Não compreendo como a Arábia Saudita preside à Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
Não compreendo as pessoas que concordam com o Donald Trump.
Não compreendo o que Donald Trump pretende dizer com “Make America Great Again”. Está a falar de que período? Da lei seca? Da Colonização? Da Guerra-civil? Do Apartheid? Do “Macartismo”? Do assassinato de Kennedy? Está a falar do quê, exactamente?
Não compreendo como um país tão grande como os EUA precisa de socorrer-se de herdeiros políticos (Bushes, Clintons, Flinstones…) na corrida à presidência.
Não compreendo como ninguém foi punido pelo escândalo das financeiro dos fundos imobiliários de Wall Street. Antes pelo contrário.
Não compreendo como o Federal Reserve Bank pode imprimir notas como se fossem panfletos de massagens em Macau.
Não compreendo os conservadores.
Não compreendo porque os americanos se referem a “afro-americans”, “native americans”, “italian-americans”, “irish-americans”, “asian-americans” e por aí fora. Fico sem saber quem são os americanos no meio de tudo isso.
Não compreendo os americanos de uma forma geral.
Não compreendo como alguém possa pensar que negócios como a Uber são o futuro se apenas promovem emprego precário e sem qualquer tipo de apoio social.
Não compreendo como os indianos ainda não perceberam que grande parte das violações provêm de uma sociedade sexualmente reprimida.
Não compreendo porque o sexo faz tanta confusão a tanta gente.
Não compreendo como se pode ilegalizar a prostituição.
Não compreendo porque os homens podem andar de tronco nú e as mulheres não.
Não compreendo porque o Paris-Dakar ainda se chama Paris-Dakar.
Não compreendo porque o governo Angolano pratica o nepotismo e tem medo de músicos.
Não compreendo porque existem carros que andam a muito mais de 120 km/h e praticamente em todo o mundo ultrapassar esse limite é ilegal.
Não compreendo porque não existem estradas onde se possa conduzir a mais de 120 km/h.
Não compreendo tanta coisa… Estarei doente? Será da idade?

MÚSICA DA SEMANA

“Shameless” – Groove Armada featuring Bryan Ferry
(…) I can read your lips
I can read your mind,
It’s all I want to hear,
Why am I so blind?

And the way we were
Fatefully entwined
In a shameless world,
Rock ‘n roll desire
(…)

7 Jan 2016

Balanço

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Olha-se para um 2016 cheio de potencialidade sexual, mas merecemos rever o 2015 que trouxe uns quantos triunfos ao sexo e ao género pelo mundo. Triunfos que trazem ao entendimento de que sexo é muito mais do que aquilo que se faz na escuridão do quarto e que se abrange pelas malhas macro-sociais da vivência humana.
1. Casamento Homossexual – 2015 viu a possibilidade legislativa do casamento homossexual tornar-se uma realidade para alguns países do mundo (onde outros ainda se encontram a lutar pela despenalização da homossexualidade). O grande exemplo foi os EUA que, quer queiramos ou não, se rege na sua influência cultural, por vezes bastante hegemónica, de internacionalização. Não que queira dar uma super credibilidade aos meandros cuturais do país (e assim muito por geral refiro-me à figura que o Donald Trump anda a fazer), mas constitui um passo importante para a visibilidade e a normatividade que casais homossexuais merecem.
2. Adopção por casais Homossexuais – Para adicionar à generalização de novas formas de família, a adopção por casais homoparentais já é uma possibilidade em muitos países por esse mundo fora – e ainda bem. Agora seria bom que outros países olhassem para Portugal e Colômbia que em 2015 trouxeram esta felicidade aos casais que tentam ter filhos e que querem ser reconhecidos pelo estado.
3. Penalização da mutilação genital feminina – Uma prática atroz que começa a ser legalmente penalizada, e que tem lutado contra formas culturais e crenças enraizadas por grupos de pessoas que acredita que é um rito de passagem necessário, e que assim as mulheres podem adquirir um bom dote e não serão socialmente excluídas. O argumento que tem tentado dissiminar-se por várias instituições nacionais e internacionais: o dote, que, normalmente, é uma vaca, pode dar leite e alguma carne mas morre, mais rápido do que se imagina – uma rapariga/mulher que tem a possibilidade de estudar e trabalhar nesse sentido poderá trazer dinheiro para a família toda a vida. Isto para alertar que a penalização é um grande passo, mas o cuidado tem de existir nas crenças que ainda são comunicadas entre as pessoas. A Gâmbia foi um dos países que viu a MGF ser penalizada em 2015.
4. 50 Sombras de Grey – 2015 foi também o ano que viu adaptado para o cinema o romance que ganhou em popularidade pelo grafismo sexual e pela grande curiosidade e procura que incitou de produtos sexuais de tendências sado-maso. Diz a indústria que, este ano, algemas, chicotes, pinças para mamilos, fatos de latex pretos ou mordaças foram muito mais procurados. Pela experimentação sexual tivemos esta referência cinematográfico-literária. E que venham mais.
5. A criação de uma casa-de-banho na Casa Branca – Esta não é uma casa-de-banho qualquer, é uma casa de banho neutra. Sem género. Isto para que a Casa Branca seja mais inclusiva aos trabalhadores e visitantes transgénero. Pena que não tenha sido publicitado mais fortemente. Este mundo precisa de casas-de-banho sem género associado, porque o binarismo complica-se, cada vez mais. E não tem havido estruturas que o têm acompanhado.
6. Miley Cyrus e a fluidez de género – Este foi o ano que muitos artistas pop vincaram a fluidez de género como uma necessidade de afirmação individual. Os exemplos são Miley Cyrus, Angel Haze entre outros, que vêm como necessária à sua definição pessoal e artística. Apesar de muitos considerarem-no como uma ‘fase’ ou uma ‘moda’ adolescente, mais útil será considerá-lo num debate que urge em ser desenvolvido pelas várias camadas sociais. 2015 não trouxe a moda de fluidez de género, mas a necessidade do reconhecimento da fluidez de género.
No geral, o ano teve realizações sexuais bastante positivas. O ano de 2016 trará muitas mais, certamente. Com alguma esperança, na escuridão do quarto também, que é um pouco mais difícil de aceder através de estatísticas, questionários ou artigos de jornal. Que o ano de 2016 traga realizações sexuais individuais e colectivas. Que se experimente novas formas de sexo, diferentes posições e diferentes expectativas. Que se puxe pela sexualidade dentro do limite do confortável. A todos, um 2016 muito sexy.

6 Jan 2016

Charlie, um ano depois

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão vale sermos politicamente correctos. Enquanto jornalistas, sabemos que somos os muitos odeiam, os que muitos esquecem, os maus da fita quando convém. Coordenar um jornal não é tarefa fácil, especialmente quando o conteúdo dita um determinado movimento, uma ideia defendida com unhas e dentes, seja ela qual for. O ataque ao Charlie Hebdo levou mais do que vidas – dentro e fora do jornal. Levou a que a liberdade de expressão – exagerada, dirão alguns – fosse violada mais um bocadinho. Mas fez também o mundo perceber que, concordemos ou não com o destaque que foi dado aos ataques ao Charlie, concordemos ou não com a sua forma de trabalho, há por aí questões bem mais fortes que devem merecer ser o centro das atenções: o fanatismo, a forma errada de julgamento do que é ter fé. O facto de que, seja o que for que escolhamos mostrar enquanto jornalistas, também nós – como vós todos – somos constantes vítimas de algo bem maior do que um atentado terrorista. Charlie hebdo
Somos vítimas de uma imposição que não queremos, somos vítimas da intolerância. Mas somos também os perpetradores da violência psicológica que nos divide todos os dias, enquanto nos exprimimos livremente sobre quem e o que quisermos. O Charlie Hebdo – como os jornalistas de todo o mundo – fê-lo publicamente. Seguindo uma linha criticada por alguns (por outros valorizada, não fosse estar vivo desta forma há mais de 20 anos) o Charlie Hebdo fez menos do que nós – enquanto pessoas – fazemos todos os dias: mostrou-se livre de qualquer religião, partido, nação. Por isso, contra todas as críticas, sejam eles – o Charlie Hebdo e as suas vítimas – um símbolo do quotidiano de milhares de outros: dos que sofrem com a guerra, dos que estão à mercê de terroristas, dos que morrem mesmo sem culpa. Sejam eles uma lição para todos nós, que alimentamos egos e conflitos sem muitas vezes nos apercebermos. Para todos nós que perdemos tempo a julgar o que não compreendemos e o que não queremos compreender, só porque podemos – e podemos sem que haja, por isso, consequências.
Joana Freitas

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma caricatura de quem não deve ser desenhado. Foi assim que começou um dos mais negros anos de ataques terroristas do século XXI. O tiroteio numa redacção francesa culminou com o assassinato em massa em cinco locais de Paris. Ancara, Beirute, Charleston, Kuwait, Bamako, Sousse. Todas cidades agora manchadas com sangue de inocentes que nunca pediram homens-bomba nem espingardas apontadas. A autoria remete, na maioria dos casos, para o Estado Islâmico, mas o terrorismo não tem cara nem alma: tem ideais distorcidos de cor, de religião, de etnia. As diferenças caracterizam a humanidade, mas é a igualdade que define os humanitários.
Leonor Sá Machado
[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] que nos mata é a cegueira. A maior cegueira de todas, “a dos olhos abertos”. Não é aquele nem os outros. Não é o vermelho, o azul ou o branco. Não é o veneno, a pistola ou a faca. É a cegueira. É fechar os olhos aos outros, rejeitar a diferença, desligar a mente. O que nos mata somos nós. Tu a mim, eu a ele, ela aos outros. O que nos mata é um mundo fechado dentro de nós mesmos, são as verdades únicas e absolutas. Um ano depois, o que nos mata continuamos a ser nós, continuamos com sangue nas mãos e com a mente suja. Ouvem-se os tiros, tapam-se os gritos.
Filipa Araújo

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uma expressão em Chinês que diz “os bons conselhos são duros para o ouvido”. Criticar pode não ser uma maldade, é apenas o compreender de algo de forma diferente e dar uma opinião que é nossa. O jornal satírico Charlie Hebdo não deveria ter sido uma vítima do atentado terrorista de há um ano. Só mostrou aquilo com que não concordava. Sendo jornalistas, recebemos todos os dias críticas, positivas e negativas. Porque é que os jornalistas podem e devem escrever o que os outros dizem, mas os terroristas não conseguem aceitar opiniões críticas?
Flora Fong

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á um ano o mundo assistiu a um ataque bárbaro que devia envergonhar o mundo moderno e as suas instituições, e que lembra que a liberdade e a dignidade humana estão cada vez mais em risco. O desenho é uma arma, mas a morte e a violência não devem ser os meios usados para acabar com essa arma. Um ano depois, só podemos pedir ao Charlie Hebdo que continue com a mesma criatividade e coragem com as quais se mostraram ao mundo.
Andreia Sofia Silva

5 Jan 2016

…Rabo no chão

“[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]inheiro na mão, rabo no chão” – eis uma expressão chula que no seu sentido original faz referência ao pré-pagamento, ao “dinheiro à vista”, pelo que se pode imaginar que era mais utilizada em certos circuitos ditos “marginais”, e não propriamente na caixa de um supermercado ou num balcão de uma instituição financeira ou de crédito. No seu sentido mais lato, é mais uma das inúmeras referências que podemos encontrar no léxico popular à importância do vil metal – nada se faz sem dinheiro, porque vá-se lá imaginar porquê, ficou convencionado que sem ele é praticamente impossível adqurir bens ou serviços, ou traduzido para o idioma do “deixa-te lá de merdas”, serve para comprarmos as coisas de que gostamos e para, helas, “vivermos felizes” (Mas que raio de raciocínio este, e logo em plena quadra natalícia. Por outro lado, bah, que se lixe).
O dinheiro é também conhecido por pilim, bagalhoça, graveto, massa, carcanhol, bufunfa, guito, grana, e agora pensando bem, basta inserir qualquer palavra num contexto económico ou comercial para que esta adquira uma conotação com o capital: “Quando é que me devolves os paralelipípedos que te emprestei a semana passada”, é uma frase que qualquer pessoa interpreta como referência a uma dívida em numerário. Se ouvimos alguém conhecido a lamentar-se “andar com falta de chimpanzés frenéticos” porque está desempregado vai para uns bons seis meses, a mensagem subliminar que nos é transmitida leva-nos a evitar qualquer forma de diálogo com o indivíduo em questão. É esclarecedor o poder que ele tem, quando quase unanimente se afirma que “o dinheiro só dá problemas”, mas cria problemas ainda maiores na sua ausência. O dinheiro é de tal forma arrebatador que a expressão “estou teso” deixou de se aplicar à boa circulação sanguínea ao nível do tecido eréctil fálico, tendo caído “na bancarrota”, por assim dizer. Uma outra expressão, “não há dinheiro, não há palhaços”, remete-nos de uma certa forma para a inocência perdida, da sensação de que muito possivelmente alguém só nos tenta agradar ou é agradável connosco apenas pelo facto de não existir entre nós uma relação comercial, inter-dependência financeira, ou um interesse materialista. E fico-me por aqui nesta deambulação , ou não vá entrar pela floresta dos orgasmos simulados e afins, e… porra, fico por aqui. Edouard Manet, Déjeuner sur l'herbe
Isto tudo para dizer que neste ano que hoje termina estive em dois países que até há relativamente pouco tempo pensei que nunca chegaria a visitar, e que a única forma de poderem vir a ser um dia visitáveis seria com um “rebooting” completo, do género “aniquilação total de toda a população existente, e sua substituição por outra de modo algum semelhante com ela”. Falo do Myanmar, que no câmbio do “deixa-te lá de merdas” ainda é mais conhecido por Birmânia, e no Cambodja – dois lugares onde a simples presença física aumentaria exponencialmente a possibilidade de nos ser declarado óbito (não que essa declaração “à posteriori” nos fizesse lá grande diferença, entenda-se). Mas não há que o negar; para a geração das pessoas que têm hoje mais de 25 anos, a Birmânia e o Cambodja são tidos como locais nada recomendáveis para se fazer turismo. E aqui refiro-me à noção mais comum e “democrática” de turismo, aquele do tipo “estou de férias, quero fazer o que me apetecer sem que ninguém me chateie”. E de facto a Birmânia foi e vai sendo notícia devido à sua atribulada situação política, que balança ao som dos maiores sucessos do despotismo e da corrupção, enquanto o Cambodja, resumindo em poucas palavras, viu um terço da sua população dizimada em quatro anos de Governo de uns tais “Khmer Rouge”, nome dado ao grupo de babuínos facínoras, e graças aos quais o país tem como uma das suas atracções turísticas uns tais “campos da morte”. E não, o nome não tem origem numa qualquer lenda maluca envolvendo ninjas celestiais e imperadores voadores mais as suas concubinas. Eram terrenos de natureza rústica onde morriam pessoas como nós. Simples.
Mas tudo isso mudou e hoje posso dizer que andei de noite por becos e vielas nas entranhas de Rangum sem temer que me viessem impingir um Rolex da Candonga, e enquanto estive em Siem Reap não vi qualquer execução sumária em nenhuma das suas principais artérias, e em plena luz do dia. Vi gente feliz, simpática, afável, e tão prestável que fazia das tripas coração para se tentar fazer entender com os estrangeiros, um autêntico recital de orgasmos simulados (pronto, não consegui evitar, paciência), e tudo isto porquê? Lá está: “dinheiro na mão, rabo no chão”, e aqui existe o aliciante cambiante de que enquanto as nádegas estiverem suavemente pousadas na solidez desmilitarizada e desparasitada de vermes totalitaristas do asfalto, menos vontade estas pessoas têm de andar aos tiros, ou a rebentar com qualquer coisa “só para passar o tempo”. Descobriram que afinal era mais interessante vender qualquer coisa que se coma, vista ou use, satisfazer o consumidor, e ainda obter algum lucro no processo. E depois de acumulado essa lucro, compram uns dois ou três imóveis (estranhamente essa parece ser uma filosofia de vida regional). Posso mesmo afirmar que na Birmânia e no Cambodja se está a assistir ao contrário do que vamos vendo pelo Ocidente. Acho que chegaram ao ponto óptimo existencial, depois que atingiram o “nirvana” supremo que os fez pensar: “a política que se lixe; vou mas é trabalhar e fazer umas massas”.
A Birmânia deixou-me especialmente encantado. Num país onde ainda recentemente o líder do Governo dedicou um discurso de quase uma hora a um combate de boxe, e tudo porque apostou e perdeu, não vi um único motociclo nas ruas da capital do país, e em vez de ter esses machimbombos de duas rodas anarquicamente estacionados em toda a parte, os passeios de Rangum eram ocupados por vendilhões, de um lado e do outro. E como chegava a ser agradável deter-me e inquirir sobre cada espécie de comércio com que me deparava, quer do lado esquerdo, quer do outro, enquanto me pavoneava pelas ruas de um país onde tudo o que sabia da actualidade foi-me dado a conhecer pelo último filme da série “Rambo”. Uma boa surpresa, portanto.
E é com esta bonita imagem, com este sentimento de positividade que nos diz que de barriga e bolsos cheios dá menos vontade de fazer revoluções e tretas que tais. Para todos os leitores do Hoje Macau, um desejo de um ano que a expressão “estou teso” volte a ter o seu sentido original. Um feliz e próspero 2016, deste vosso servo.

5 Jan 2016