Estoril, para que te quero?

* por Mário Duarte Duque

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]tempo de vida de um edifício é função da sua viabilidade física e da sua viabilidade económica.
A primeira extingue-se por colapso estrutural, a segunda extingue-se por já não gerar rendimento em moldes que justifique o seu uso e a sua manutenção. Por vezes também se extingue por inconformidade com standards técnicos mais actuais, como é o caso do emprego de materiais que se conheceram mais tarde serem tóxicos ou de não terem adequada resistência ao fogo.
Foi do conflito entre novas oportunidades e a responsabilidade institucional de manter um acervo arquitectónico e urbanístico significativo, que se desenvolveram fórmulas que permitiram prolongar a vida económica desses edifícios.
Para aquilo que foi primeiramente uma obrigação pública, a preocupação residia principalmente na integridade física dos edifícios. A fórmula convencional que assistia essa manutenção eram os fundos públicos e o pagamento de ingressos de visita, mas geralmente pouco significativos para não onerar outra obrigação pública, a função educativa. Outras fórmulas mais elaboradas foram já a conversão de alguns desses edifícios em equipamentos hoteleiros criteriosos, como é o caso das pousadas em Portugal e os paradores em Espanha. Admite-se que a pousada de S. Tiago tenha acontecido nessa continuidade.
Mas foi o reconhecimento da crescente gratificação que o uso desses edifícios gera tanto aos habitantes da cidade, generalizadamente mais instruídos, como aos seus visitantes, generalizadamente mais interessados, o que determinou fórmulas de alargada elaboração e extensão, nomeadamente estendendo-se a propriedades privadas onde também pendessem regras de salvaguarda.
Edifícios que até então eram vistos como empatados e que assim passaram a ser contemplados com um novo sentido de oportunidade.
Foi com essa alteração de circunstâncias que o que inicialmente era uma obrigação institucional, e um peso morto na maior parte dos casos, passou a revelar-se uma oportunidade.
O feliz advento foi também a condescendência dos governos ao liberalismo económico e o interesse desses agentes em administrar bens e atribuições públicas de rápida capitalização, como se anteviu ser a renovação urbana, e como é característica dos bens públicos que tendencialmente interessavam aos agentes do liberalismo económico administrar.
O preço a pagar foi a falta de comando público, e a contingência mais recorrente foi social.
Em verdade a maior parte das operações de renovação urbana não serviu aos usos e à população originária, mesmo quando isso era apanágio da operação, e muitos desses agregados populacionais extinguiram-se por via dessas operações.
A título de exemplo, a operação de renovação da ponte cais 16, em Macau, moveu-se suscitando e recebendo a confiança de que seria o motor de revitalização urbana de todo o Porto Interior. Na prática só retirou um fim de céu e de água à Av. Almeida Ribeiro.
Mas também uma alteração de modelo de gestão que determinou a necessidade de reformular conceitos. Tudo o que até à data cabia numa categoria única de “monumentos, edifícios, conjuntos e sítios classificados” onde não só estava vedado a sua demolição, como sequer os edifícios podiam “sofrer” outras operações que não fossem de restauro, subdividiu-se em outras categorias como a de “edifício de interesse arquitectónico” o qual já poderia “beneficiar” de operações de ampliação, consolidação, modificação, reconstrução e recuperação.
E tanto de que se tratou de uma significativa alteração de circunstâncias que a própria terminologia normativa também se alterou. As mesmas operações que eram contempladas como um sacrifício que os edifícios não podiam “sofrer”, passaram a ser contempladas por medidas que iria “beneficiar” esses edifícios. hotel estoril
E foi assim que em Macau, o edifício do Banco Nacional Ultramarino, que fora inscrito na lista de 1989 na categoria de “monumentos, edifícios, conjuntos e sítios classificados”, passou a figurar na legislação de 1992 na categoria de “edifício de interesse arquitectónico”, e assim pôde beneficiar de obras de ampliação.
Foi assim que intervenções, que antes não se admitiam noutras categorias que não fosse “restauro”, passaram a caracterizar-se em função da natureza da operação e dos trabalhos com designações do tipo “reabilitação”, “recuperação”, “reutilização”, “requalificação”, “revitalização”, “regeneração” ou “reestruturação”, todas pressupondo medidas de intervenção em preexistências urbanas e arquitectónicas de valor, com o intuito de lhes proporcionar uma nova viabilidade.
Em verdade, qualquer destas intervenções será sempre um sacrifício da substância arquitectónica originária, todavia o preço a pagar para que a mesma substância subsista e para que possamos melhor integrar essa substância nos usos contemporâneos da cidade.
Alguns sacrifícios são convencionalmente admissíveis porque dificilmente admitiríamos continuar a utilizar um edifício que não tivesse fornecimento de energia eléctrica ou que não estivesse equipado com instalações sanitárias.
Outros sacrifícios moderamos criteriosamente, admitindo prescindir de ar condicionado num edifício que originariamente foi dotado de volumes generosos de ar e de ventilação transversal, ou esforçamo-nos por configurar outras soluções melhor adaptadas a essas características que não passam pela redução dos volumes do espaço interior desses edifícios.
Mas também sacrifícios que são muito mais notórios quando passam pela mudança da finalidade dos edifícios, ou pela destruição da sua compartimentação original, para acomodar novas condições espaciais, como é caso recorrentemente.
Mesmo no pressuposto que na concepção arquitectónica de um edifício reside valor, não há nada que se possa retirar ou isolar do desenho desse edifício que retenha esse valor autonomamente, e que não se torne num mero fragmento uma vez isolado ou retirado, ou que deixe de ser função da finalidade originária desse edifício.
No que se prende com a fixação do valor urbanístico e arquitectónico as contribuições podem ser diversas, e todas contribuem para o conhecimento e para a compreensão da substância arquitectónica em causa. Compreensão que é a condição primordial e anterior a qualquer intervenção para que uma intervenção seja ponderada e avisada.
Infelizmente a realidade está repleta do contrário. A memória longínqua da nossa matriz cultural lembra-se de um centro comercial desastroso que foi feito na estação do Rossio em Lisboa e a memória próxima da mesma matriz cultural lembra-se do aumento de volume de construção, igualmente desastroso, do pequeno edifício Art Deco da Tv. do Paiva, afecto aos serviços administrativos do Palácio da Praia Grande.
Ou seja, duas contingências nefastas. Por um lado a contingência de se sacrificar, por outro a contingência de o acervo de conhecimento e de aviso disponíveis poder ser reduzido.
Mas também componentes que se formam pelo regime da razão, a qual, independentemente de poder ser mais ou menos apta, é também resultado das circunstâncias do momento.
Por isso, da maturidade que hoje já é possível reunir sobre regimes de intervenção em substâncias arquitectónicas e urbanísticas sensíveis, a regra de ouro não é protelar decisões à espera de melhor aviso. A regra de ouro é antes dar prioridade à manutenção dos edifícios afectos à sua finalidade original e configurar intervenções que possam ser reversíveis à luz de melhor conhecimento ou melhor aviso.
Modelo que assegura, mesmo na dúvida, que os erros não sejam reversíveis, e se formem opções técnicas e de desenho que assistam essas intervenções.
Intervenções onde a intenção não é de rotura com a obra original, mas também não é de continuidade do que originariamente foi feito.
Intervenções onde linguagens mais abstractas e neutras, que a estética moderna admite, revelam-se mais aptas em contribuir para que a substância arquitectónica original seja mais evidente.
E, umas vez que se conhecem os caminhos, a crise em torno do edifício do Hotel Estoril do Tap Seac fulcra-se antes no princípio da questão, isto é, na fixação do valor arquitectónico.
Em verdade, a razão por que os edifícios se classificam não é apenas para que se fixe o reconhecimento do seu valor, mas também para que o seu valor, uma vez fixado, não seja mercê de circunstâncias em que esse interesse ou esse reconhecimento possam não estar mais presentes.
Em boa verdade, nem mesmo uma classificação oficial é disso garante. E tanto que assim é que o edifício da Escola Comercial Pedro Nolasco (presentemente a Escola Portuguesa) que se incluía na lista de edifícios classificados de 1989, também deixou de fazer parte dessa lista na sua reedição de 1992.
Mas também não é por acaso que edifícios modernos são os que menos dominam ou perduram nessas listas. Em verdade não é tão fácil sustentar publicamente o valor de objectos de arquitectura modernos ou contemporâneos com é com edifícios históricos.
O acervo reunido num edifício histórico forma-se de diversas contribuições sendo as mais óbvias o virtuosismo da sua realização material, do seu detalhe, da sua figuração, muito mais óbvio que a concepção arquitectónica que lhe é subjacente.
Um edifício moderno, ao invés, é nivelado no seu detalhe, abstracto na sua linguagem, pelo que tudo nele se resume à sua concepção e aos modelos que formaram ou influenciaram essa concepção. Ou seja, resume-se àquilo que pode parecer muito pouco à vista desarmada.
Mas também são esses os edifícios que são verdadeiramente revolucionários em todos os pressupostos funcionais e estéticos, e que são a origem do nosso modo de habitar o espaço urbano de hoje. Modo cada vez mais deturpado nas adaptações que disso fazemos às circunstâncias actuais.
Ao contrário dos edifícios históricos, os edifícios modernos são edifícios que são efectivamente do nosso tempo, só que na forma mais originária, eventualmente mais genuína, desse tempo. Por isso, conteúdos que deveria merecer o esforço de se elucidar e de se disseminar conhecimento.
São também aqueles edifícios em que presentemente se fixa a nostalgia da modernidade. O sentimento que ciclicamente é fonte de gratificação para os humanos e o tempo a que os habitantes da cidade e os seus visitantes aderem, sempre que entram em défice de moldes de vida mais simples.
Nomeadamente em défice dos chamados equipamentos “normais”. I.e. coisas que todas as cidades têm, ou deviam ter, como um hotel no seu centro cívico e histórico. Ou mesmo uma residência para intercâmbio de estudantes ou de programas de aperfeiçoamento. Ou mesmo um albergue de juventude, em continuidade com todos os equipamentos afins que possam existir na mesma zona da cidade.
A instalação de outras finalidades não devem determinar a adaptação de um antigo hotel se unidades de hospedagem são necessárias no mesmo local.
A partir do momento em que seja possível fixar valor no edifício desse antigo hotel Estoril, como regra de salvaguarda, é à manutenção da finalidade original do edifício que se deve dar prioridade.

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Isabel Burguete
Isabel Burguete
13 Jul 2015 21:17

comment image.. Não sei se este Link consegue ver mas temos um exemplo de boas coisas que se faz em Portugal recuperando edifícios em mau estado.
Lisboa está a ser todas as zonas assim e tem pinturas que são de profissionais.
Deveria acontecer com este. Recuperação tem tanta Gente boa querendo trabalhar..