Fernando Eloy VozesSem ideias [dropcap style=’circle’]À[/dropcap]s vezes acontece. Especialmente quando não se faz o trabalho de casa, e foi isso que disse ao editor do Hoje Macau antes de começar este texto. Não a parte da preguiça, claro, mas a da falta de ideias. Mas, em boa verdade, basta abrir os jornais para surgirem umas quantas. Algumas, todavia, não dão muitas linhas como é o caso da próxima: lia a semana passada neste mesmo jornal que um director de uma ahmm… respeitável empresa de junket disse à imprensa que o combate à corrupção na China lhes estava a prejudicar o negócio e por isso consideravam fechar portas. Irreal não é? Certamente, para nós que já aqui andamos há uns tempos sabemos que para cá de Bagdad se passam coisas inenarráveis, mas esta… caramba! O lado positivo é o cair oficialmente a máscara, o resto é surreal apesar de existirem efeitos conexos positivos deste levantar de ferros dos junkets como se notou ontem no discurso do Chefe do Executivo ao apelar no fórum Mundial de Turismo para a junção deste com a cultura. Naturalmente, esta união de facto, numa primeira análise, aponta para a produção de cultura comercial para entreter as massas mas contra o qual nada me impele. Resta-nos aguardar que a política cultural venha a ser desenhada não só para entreter as massas mas também para apoiar a produção cultural de base pois sem ela não será possível chegar a lado nenhum. Os sinais, todavia, parecem positivos notando-se que a palavra está a chegar aos actos e o fenómeno das indústrias criativas a começar a ser entendido. A TDM também parece estar a aquecer os motores o que só pode ser saudado. Continuamos a folhear os jornais e algures lê-se que os americanos acham que Macau deve avançar rapidamente para as directas. A notícia não deixa, por um lado, de gerar um certo desconforto e, por outro, gerar mesmo alguma irritação ao despoletar aquela sensação de que os americanos metem mesmo o bedelho em todo lado achando que o mundo vive, ou deve viver, à imagem deles. Ainda bem que assim não é, claro! Com o nível dos candidatos políticos que têm em casa, com eleições de resultados duvidosos (como o célebre caso da Florida), com tiroteios em universidades dia sim dia não, com uma infra-estrutura em cacos e uma dívida publica superior a 100% do GDP mais valia que estivessem calados e arrumassem a casa primeiro. Depois olhamos para Portugal e pensamos em escrever uma comédia. Daquelas rocambolescas, à Vasco Santana, plena de mal entendidos e confusões, o que não seria mau se olhássemos exclusivamente por essa perspectiva e nos olvidássemos da quantidade de vidas em jogo. Senão vejamos os ingredientes da trama: um líder socialista ansioso por poder mas aos papéis e a piscar os olhos em todas as direcções menos na dos que o querem ver dali para fora depois de ter interrompido uma série de vitórias do PS. O pessoal do PC e do Bloco a esfregarem as mãos enquanto exclamam para os seus botões, “É desta! É desta!” ainda que para isso tenham de abençoar a Europa e o euro, a menos que o PS dê uma improvável volta de 180 graus; o próprio PS serve de alavanca da comicidade fazendo jus à expressão partido, com uns a renegarem acordos com a direita e outros a dizerem exactamente o mesmo se for com a esquerda. Depois como personagem equivoca da história, surge um presidente desejoso de abençoar os afilhados enquanto estes vão roendo as unhas por começarem a perceber que não vão conseguir vender mais propriedade pública depois de todas as promessas que foram fazendo aos amigos e a outros, leia-se futuros amigos estrangeiros. Na plateia, senta-se o Zé a olhar para a batalha campal com discussões de pouco conteúdo, ignorante que o mundo em geral, apesar do que lhe vão dizendo, está-se nas tintas se Portugal implode ou não. O único problema para o resto do mundo seria mesmo o Cristiano Ronaldo ir no embrulho, mas esse também pode ser nacionalizado espanhol e o assunto morria aí; porque, em boa verdade, a diplomacia económica do tal de Portas serve apenas para vender chouriços, produtos baratos e pouco mais. Basta olhar para o nosso caso aqui, insertos no maior mercado do mundo e onde AEICEP tem apenas dois executivos: um aqui e outro em Xangai. É assim… Viramos a página, porque em Portugal o resto é apenas futebol, ou lá o que lhe chamam por lá, pois joga-se mais em debates televisivos do que no relvado, mas ao virar a página percebemos que a comédia não é um exclusivo português ao vermos a entrevista de Cameron ao Channel 4 britânico onde literalmente se engasga e não responde porque é que o país que dirige votou a favor de colocar a Arábia Saudita na presidência do conselho de Direitos Humanos da ONU. Isto quando todos sabemos que direitos humanos é coisa que não existe por aquelas bandas, quando todos nos começamos a aperceber que a raiz do mal é mesmo a Arábia Saudita, quando todos se começam a entender que grande parte da instabilidade no Médio Oriente é provocada pela família Saudi, quando cada vez se tornam mais evidentes as ligações entre o terrorismo internacional e o dinheiro dos monarcas absolutistas do petróleo. Depois estes que dão palmadas nas costas do Saudi (ajoelham-se?) têm a lata de falar da China, um verdadeiro Jardim da Celeste comparado com aquele tenebroso país que transformou Meca num centro comercial, onde se culpam os peregrinos por se terem atropelado uns aos outros mas não as condições impróprias do local, e onde falar de direitos das mulheres é igual a ofensas ao profeta. Voltamos a Macau onde a notícia que a manutenção do canídromo foi sujeita a uma mini sondagem promovida pelos Kai Fong nos chama a atenção por concluir que metade dos inquiridos quer ver aquela coisa dali para fora. Mas a alegria desvanece-se quando percebemos que dos que apoiam a saída do canídromo do Fai Chi Kei ninguém o faz pelas condições tenebrosas dos caninos mas por questões mais prosaicas como o barulho, a parca contribuição para a zona, ou a necessidade de habitação social. Enfim, todas razões legitimas, mas… Para não terminar numa nota menos positiva folheei mais um pouco os jornais e descobri duas notícias agradáveis: a primeira vem da Tanzânia e diz-nos que apanharam uma matrona chinesa, de seu nome Yang Feng Glan, considerada a maior traficante de marfim operando impunemente naquele país há cerca de 14 anos e sendo responsável pelo abate de cerca de 800 elefantes. Lindo! Depois de pagar a brutal multa que lhe aplicaram deviam mandá-la para a Arábia Saudita. A outra refere que os cientistas descobriram um cogumelo que cresce nas torrentes de lava do Hawaii; uma variante ainda sem nome da espécie Dictyophora que provoca o orgasmo imediato, atenção, imediato, na maioria das mulheres que o cheiram. Uma torrente de lava, ao alcance do nariz, portanto. Se quiserem saber mais, o estudo está a ser conduzido por John C Holliday e Noah Soule. Até para a semana, caros leitores. MÚSICA DA SEMANA Música para se sentir feliz. Ao ouvir, duvido que não se lhe assome um sorriso aos lábios ou que o pé não bata pelo menos um bocadinho. Se o movimento chegar às ancas… missão cumprida! Lykke Li – “I’m Good, I’m Gone (Fred Falke Remix)” “Yeah, I’m workin’ a sweat But it’s all good I’m breakin’ my back But it’s all good ‘cause I know I’ll get it back Yeah, I know your hands will clap”
Tânia dos Santos Sexanálise VozesAmor e Dedinhos de Pés [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]romance de Senna Fernandes muito pouco tem que ver com o tópico que tenciono desenvolver. O título, curiosamente, tem bastante. Em continuação do artigo anterior sobre parafilias e a sua potencial normalidade, gostaria de desenvolver um pouco mais a ideia de fetiches. Fetiches, que se incluem na categoria de comportamento sexual desviante, definem-se por uma especial atracção sexual por objectos inanimados, ou partes do corpo. A sua epidemologia é desconhecida, mas a melhor explicação talvez seja baseada no cãozinho de Pavlov: condicionamento clássico. Ou seja, uma excitação sexual que tenha ocorrido mais do que uma vez em concomitância com outro objecto ou situação, passadas suficientes experiências começa-se a atribuir a reacção fisiológica ao objecto que outrora nada tinha que ver com sexo ou a sexualidade do indivíduo. Fetiches, existem muitos, de todos os tipos, sobre todas as coisas. As evidências, contudo, mostram que o fetiche de pés é o mais comum. Por isso a minha mente mal-informada achava que Amor e Dedinhos de pés fossem sobre isso mesmo. Estava enganada. O que é que este fetiche de pés implica: normalmente são mais expressados por homens (pouco registo de mulheres) que veneram e se excitam sexualmente pelo simples vislumbre de um pé, ou dos dois. A interacção sexual pode não passar por mais do que isso mesmo, a de uma mulher com uns pés bonitos e um homem que só está interessado neles. Por isso não há sexo, penetração vaginal, necessariamente. Uma sessão de pés, para os profissionais e mais experienciados, pode ser um fim em si só. Para casais mais arrojados poderá fazer parte de um interessante momento de preliminares. O que envolve esta sessão, como poderão imaginar, é muita veneração de pés, muitos beijos, muitas lambidelas e trincadelas. Poderá incluir uma caminhada sobre o venerador que de muito bom grado servirá de tapete. [quote_box_left]Há algo de lírico, talvez, se pensarmos que o fascínio pelos pés também é o fascínio pela combinação de ossos e carne que nos liga à Terra, ou que nos mantém ligado a ela[/quote_box_left] Quem são estes adoradores de pés, é uma boa pergunta. Visto que se trata do fetiche mais comum, os seus praticantes têm estado por todo lado, há séculos. Há quem desconfie que Goethe, Dostoyevsky, Joyce e até Elvis Presley tenham sido adoradores de pés. Quando e onde é que a moda começou, não se sabe muito bem. Sinólogos dizem que já no tempo da Dinastia Sung, quando o ‘foot binding’ começou a ser uma prática comum, a erotização do pé de lótus (como era chamado) estava bem estabelecida. Os homens que tinham mais queda para estes pés deformados, incluíam nos seus preliminares as práticas que exigiam um protagonismo especial destes membros que nos sustêm. Muitas vezes estes pés eram tingidos de vermelho, para aumentar a sua atractividade. Pés deformados e para além disso, pintados de vermelho. Que bonito. Estes pés eram de tal forma tabu que nos primórdios da pornografia chinesa eram a única zona do corpo que não ficava descoberta, para manter o mistério. Porque já sabemos que sexo faz-se de mistério, mesmo através de práticas atrozes em nome destes ideais de beleza e erotismo femininos que mudam com a mesma frequência que uma pessoa muda de cuecas. O fetiche de pés de hoje em dia já não passa por isso. Querem-se pés bonitos e bem tratadinhos. Isto é, sem calos, com uma pedicure bem feita, macios. Mas como podem calcular, há gostos para tudo. Talvez seja mais fácil se se deleitarem com uma ilustração do que pés bonitos realmente são. Sugiro, por isso, que consultem o mais contemporâneo, arrojado e assumido praticante de amor aos pés: Quentin Tarantino. Nas suas obras cinematográficas há um gostinho especial em enaltecer os pés das actrizes com que trabalha, erotizando, assim, esta extremidade humana que se julgava ser útil só para nos pormos de pé e usar umas sandálias giras. Amantes de pés, há muitos, de facto. E se homens gostam de um pezinho de mulher, outros homens preferem pezinhos de homem. Há algo de lírico, talvez, se pensarmos que o fascínio pelos pés também é o fascínio pela combinação de ossos e carne que nos liga à Terra, ou que nos mantém ligado a ela. Qual quê, ultrapassaremos o lugar comum de erotização de umas mamas, um rabo ou umas ancas. Os pés é o que mais sofrem, no dia-a-dia frenético que nos obriga a movimento constante, que sejam mimados como cada qual assim o permitir.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA abstracção geopolítica “Whatever happens, at some point in the next few decades, the size of the Chinese economy is likely to surpass that of the US economy, which has been the world’s largest since the 1870s. The average Chinese will continue to be poorer than the average American for generations. But a world economy in which America is number two will require a radical rethinking of American economic engagement with the rest of the world.” Land of Promise: An Economic History of the United States Michael Lind [dropcap style=’cricle’]A[/dropcap]China tornou-se num excepcional actor global nos campos político, económico e comercial. É uma certeza e não mais uma questão de opiniões, pelo que nenhum país do mundo pode ignorar esta realidade. A China e toda a Ásia são peças centrais da geoestratégia local e mundial, com independência de preconceitos e ideologias. Existe uma diversidade de opiniões sendo os Estados Unidos o primeiro a reconhecer e que concentra na região os seus esforços diplomáticos e militares, mesmo não sendo a superpotência única e hegemónica. O acontecimento mais revelador é de que os Estados Unidos não têm capacidade para moldar o cenário geopolítico do século, como o fizeram outrora. Eis que terminou o século da superpotência, que começou em 1914 e terminou em 2014, como afirmou no seu livro “Land of Promise: An Economic History of the United States ”, o escritor americano, Michael Lind, apesar do cientista político americano, Joseph Nie, defender a ideia de que irá passar muito tempo até que os Estados Unidos ceda a sua posição de nação mais poderosa do planeta, se é que alguma vez tal desastre irá acontecer. O recente desencontro entre os Estados Unidos e o Reino Unido deve ser entendido, nesse contexto primeiramente, e de seguida pela maioria dos seus aliados ocidentais, pois apesar do expresso pedido dos americanos, todos ingressaram como membros do novo Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas (BAII), com um capital de cem mil milhões de dólares, liderado pela China e concorrente do Banco Mundial. A Europa está paralisada e enfrenta um sério e grave problema de crescimento e de adaptação a mudanças vertiginosas que trazem tecnologia e altera os modos de produção. O Japão passa por situação semelhante, o que não significa que muitos países renunciem a acordos e oportunidades comerciais que têm com os três grandes actores do cenário internacional, não deixando de se concentrarem na China, sendo a Rússia um outro cantar, pois vive uma difícil situação económica agravada por sanções europeias e pela crise da Ucrânia, acrescentada com os futuros gastos da intervenção na Síria, e baixas receitas pela venda de petróleo e gás, sua fonte principal de rendimentos, tendo ainda, problemas graves para solucionar, como revelam os acordos a longo prazo de venda de energia à China e à Índia. O poder move-se em direcção ao Oceano Pacifico e os países ocidentais devem encontrar uma forma imaginativa de reforçar a sua presença na região. A ideia de que o capitalismo só poderia desenvolver-se num sistema democrático está por demais ultrapassada. A China e Singapura são exemplos demonstrativos que mostram o triunfo do capitalismo autocrático, um sistema que cria crescimento económico, enquanto as democracias ocidentais, nem crescem, nem oferecem bem-estar. O mundo ocidental passou do triunfalismo da década dos anos de 1990 a uma profunda ansiedade sobre o futuro da democracia. Os países, com diferente capacidade e poder, temem que se está a aproximar o fim de uma era, onde os conceitos de multilateral e multipolar vão sendo de uso frequente e semelhante sentido, mas com distinto significado. O multilateralismo está associado ao sistema da ONU, concebido no pós-guerra, enquanto, o multipolarismo é reflexo de um novo mundo que está a surgir, onde aparecem novos pontos de aglomeração, que mostram um cenário com novas vozes e sem uma potência hegemónica dominante. É um novo cenário que avança na consolidação de blocos, em que uma das prioridades deve passar por revigorar as integrações regionais, porque pretender navegar só é uma vã empreitada. O multilateralismo e a integração regional podem ser vistos como políticas contraditórias, mas são totalmente complementares. Os países deverão continuar a apostar no multilateralismo e multipolarismo devendo actuar simultaneamente, no sentido de reforçar as integrações regionais. O mundo multipolar oferece opções de parceria aos países, que no passado eram impensáveis, permitindo mais elevados graus de liberdade e autonomia nas suas decisões. Os acordos assinados por alguns países da América do Sul com a China e a Rússia, por exemplo, permitem ter financiamentos para a construção de grandes infra-estruturas, acesso a transferências de tecnologia, aumento do comércio para destinos que eram muito difíceis de serem feitos há uma década, e fortalecimento das suas relações bilaterais que a cada dia revestem ter maior importância. Os países da América do Sul devem continuar a actuar e negociar para melhorar a sua balança comercial e exportação de mercadorias com maior valor acrescentado, bem como continuar a efectuar investimentos que favoreçam o fortalecimento do seu aparelho produtivo, sendo essencial para atingir um melhor grau de coordenação no interior do Mercado Comum do Sul (Mercosul), União de Nações Sul-Americanas (UNASUL na sigla em língua espanhola) e Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC na sigla em língua espanhola), permitindo-lhes ter maior força negociadora quando tiverem de defender os seus interesses estratégicos como países e região. A América do Sul tem uma visão clara da importância da integração, no entanto, permanecem obstáculos que devem ser estudados e aprofundados, especialmente depois da última crise global. É mais fácil avançar na integração num ciclo económico em fase expansionista, mas pode ser um erro político e estratégico dar lugar a posições mais autonomista, porque tal como os problemas da democracia são solucionados com mais e melhor democracia, os problemas da integração solucionam-se com mais e melhor integração. Quanto ao Mercosul, a solução não está no intercâmbio comercial equilibrado, mas parece estar relacionado com a integração de cadeias produtivas e cadeias de valor. O G20 é um grupo de 19 países e da União Europeia que, após a crise financeira que eclodiu nos Estados Unidos na década passada, e constitui-se no âmbito mais importante de concertação de políticas globais. O grupo reúne aproximadamente quatro quintas partes do PIB e da população mundial, ainda que o número de membros seja apenas um quinto dos países que integram a ONU. Adentro do G20 surgiram três blocos, o G7 constituído pelos Estados Unidos, Japão, Canadá, Alemanha, França, Reino Unido e Itália, que são as economias mais desenvolvidas e as dominantes na década de 1990. No âmbito do G20, este grupo tende a agir como um bloco na maioria dos casos. O outro grupo é o dos BRICS, composto pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul; países que se transformaram em potências económicas na primeira década do século XXI e tendem a concordar em pontos importantes da agenda global, não apenas no campo económico, mas também no político, como também é o caso dos países do G7. Entre ambos os grupos e desde há alguns anos, começou a funcionar um terceiro grupo denominado de Aliança MITKA, composto pelo México, Indonésia, Turquia, Coreia do Sul e Austrália. Os países de médias dimensões à escala global procuram dar um espaço aos países de igual dimensão do G20. A Arábia Saudita iniciou negociações para se reunir à Aliança MITKA, e que resultará na adição de mais uma letra “A” à existente sigla. Assumir um papel de liderança neste grupo de países de médias dimensões, importantes e bem sucedidos, talvez venha a ser uma exteriorização acerca da direcção que outros países devem seguir na década que vivemos. A China celebrou o 66° Aniversário da Implantação da República, convertendo-se na principal potência comercial do mundo e prevê fazer importações no valor de dez mil milhões de dólares nos próximos cinco anos, entre eles, alimentos e grãos para alimentação animal, que é de importância estratégica, pois a sua população está a enfrentar uma colossal transição alimentar, (investimento massivo no consumo de proteínas de carne) que é a maior da história. A China prevê importar 20 por cento da sua procura de grãos nos próximos vinte anos e daí ter mudado a sua percepção acerca da segurança alimentar, que não é mais sinónimo de auto-suficiência, mas adquiriu uma dimensão global, que consiste em promover, através do investimento, a produção dos países com maior potencial. A soja e a farinha de soja são matérias-primas fundamentais da alimentação animal e 95 por cento da produção global é feita pela Argentina, Brasil e Estados Unidos, pelo que os primeiros dois países constituem a plataforma principal da produção de proteínas do século XXI, e que adquiriram uma posição estratégica em relação à China. A China converteu-se na maior fonte de capitais do mundo, dispondo de mais de 4 milhões de biliões de dólares de reservas, surgidas de um superavit da conta corrente de 2,6 por cento do PIB em 2014, ou seja, duzentos e oitenta mil milhões de dólares. A China prevê investir apenas na América do Sul quinhentos mil milhões de dólares nos próximos dez anos, e uma quinta parte desse fluxo de capitais será constituído por investimentos industriais. Os países de expressão latina com maior desenvolvimento industrial na América do Sul são a Argentina e Brasil e na América do Norte, o México, daí que se aprofunde a inserção internacional de toda a América do Sul com a China, devendo o eixo Sul-Sul, converter-se no mais importante do comércio global nos próximos dez anos. A política externa de um país é constituída pelos seus objectivos externos e sistema de aliança que estabeleça para os atingir. Assim, por definição, existe sempre mais que uma opção em termos de política externa, não existindo é uma opção de política externa fora de uma inserção internacional determinada. A política internacional é um mundo de realidades, não uma ideologia ou doutrina.
Rui Flores VozesTodo o Nobel é político! [dropcap style=’cricle’]A[/dropcap]atribuição na semana passada dos prémios Nobel da literatura à bielorussa Svetlana Alexievich e da Paz ao Quarteto Nacional Tunisino reforça a ideia, defendida por vários analistas, de que o Prémio Nobel é um galardão de cariz marcadamente político. Este ano, os valores subjacentes aos prémios atribuídos pela Academia Sueca e pelo Comité Nobel Norueguês, mais do que terem uma dimensão política, são demonstrativos de uma agenda programática que se pretende promover. Uma narrativa que prossegue os valores da democracia liberal e que ambiciona ser adoptada pelos mais diversos povos. Segundo a Academia Sueca, a jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Alexievich foi premiada devido à sua “escrita polifónica” – dará, pois, voz a muitas outras pessoas, que é “um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo”. E sobre o que tem escrito Alexievich, mais conhecida pelos seus trabalhos jornalísticos do que pelos seus livros? Os seus trabalhos mais notáveis são os que dizem respeito ao fim do império soviético. Ao fim de uma certa ordem política que morreu com a queda do Muro de Berlim. O livro “O fim do homem soviético: Um tempo de desencanto” é um documento que ajuda a compreender a desagregação da antiga União Soviética e é, aliás, a única obra da autora já publicada em português. No prelo está outra que tem como objecto sobreviventes da tragédia nuclear de Chernobil. O comité norueguês do Nobel da Paz, por seu lado, escolheu o Quarteto Nacional Tunisino pelo contributo dado pela organização, que reúne representantes de quatro estruturas representativas da sociedade civil da Tunísia, para a consolidação democrática no país. O organismo terá tido um papel decisivo na procura de consensos na sequência da Primavera Árabe na Tunísia, cuja revolução, em 2011, levou ao afastamento do Presidente Ben Ali. O quarteto tem uma composição singela, incluindo representantes de organizações tão díspares como um sindicato, a União Geral Tunisiana do Trabalho, uma organização patronal, a União Tunisiana da Indústria, do Comércio e do Artesanato, a Ordem Nacional dos Advogados, e a Liga dos Direitos Humanos. [quote_box_left]Sem um indicador universalmente aceite sobre o número de vidas que uma qualquer pessoa ou entidade conseguiu preservar, não será possível apontar-se critérios objectivos para identificar possíveis vencedores[/quote_box_left] O caso tunisino é o único em que a Primavera Árabe, alimentada pelo apoio de instituições ligadas ao governo norte-americano a bloggers e outros internautas, conseguiu eleger um governo estável. É o mesmo país em que, em Junho deste ano, um jovem se passeou calmamente por uma das praias de Sousse, numa das estâncias balneares mais frequentadas da Tunísia, armado com uma pistola automática, matando indiscriminadamente quem estava a descansar. Ao fim de alguns minutos, o terrorista, que seria mais tarde identificado pelas autoridades tunisinas como Seifeddine Rezgui, assassinou 39 pessoas. O papel das organizações da sociedade civil na procura de consensos e na tentativa de suplantar bloqueios que tendem a travar soluções duradouras não é de somenos. Em alguns dos países em que trabalhei pelas Nações Unidas foram organizações oriundas da chamada sociedade civil – organizações não-governamentais, representativas de sectores profissionais, ou temáticas, com um enfoque considerável nos direitos humanos – que puseram termo a longos impasses (como na adopção de uma nova lei eleitoral na Republica Centro-Africana) ou obrigaram políticos a dominarem a sua verve racista (através da adopção de códigos de comportamento eleitoral, como durante as campanhas eleitorais na Guiné-Bissau e na Serra Leoa). Não se põe em causa a importância das organizações da sociedade civil, nem particularmente o papel do Quarteto na Tunísia. Elas são essenciais. Mas só são verdadeiramente operativas num quadro de tolerância democrática, numa democracia liberal. Numa semana em que subiu de tom a retórica da NATO face à Rússia, a propósito dos bombardeamentos levados a cabo por Moscovo na Síria, contra posições alegadamente detidas pelos militantes do Estado Islâmico, não deixa de ser uma coincidência que merece ser salientada, que a Academia Sueca promova quem use a sua escrita para salientar as contradições soviéticas e exponha os tiques autoritários de certos líderes políticos. Nem deixa de ser relevante recordar que ainda esta semana a norte-americana Foreign Affairs, uma das revistas de relações internacionais mais influentes no mundo ocidental, publicava um artigo lembrando o papel de Vladimir Putin no encerramento das mais variadas organizações da sociedade civil na Rússia. Caso se considerasse que a criação literária, como qualquer outra forma de expressão artística, não fosse subjectiva, talvez se pudesse eventualmente ter como critério orientador o número de obras publicadas pelo autor, o número de cópias vendidas ou mesmo o número de línguas em que o autor foi traduzido. Mas isto não faz qualquer sentido. A criação artística é, felizmente, subjectiva. E em muitos casos, os autores mais subjectivamente notáveis não são necessariamente os mais populares. No caso do Nobel da Paz, em que talvez o valor mais relevante que se pretende preservar é o da vida humana, sem um indicador universalmente aceite sobre o número de vidas que uma qualquer pessoa ou entidade conseguiu preservar, não será possível apontar critérios objectivos para identificar possíveis vencedores. Por isso, todos estes prémios são, na sua essência, subjectivos. Resultam de escolhas políticas que têm subjacente um quadro de referência que aponta num determinado sentido. Nestes dois casos, uma certa democracia liberal que se pretende universal.
Hoje Macau VozesDignidade na Saúde Mental Verónica Madruga (Psicóloga e Professora Universitária) [dropcap style=’cricle’]N[/dropcap]o passado dia 10 de Outubro celebrou-se o Dia Mundial da Saúde Mental. Este ano o tema eleito foi a “Dignidade na Saúde Mental” e teve como finalidade alertar a comunidade para as constantes ameaças à dignidade no atendimento prestado à população. As pesquisas realizadas neste âmbito identificam três áreas como potenciais ameaças à dignidade, tais como estigma e discriminação, nos cuidados em regime de internamento e nas violações aos direitos humanos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) o respeito pela dignidade das pessoas na prestação de serviços de saúde é uma componente essencial para proteger cada individuo de possíveis práticas abusivas, infracções corporais e danos mentais. A nossa saúde mental, ou seja, o nosso bem-estar físico, mental e social, é um bem precioso e como tal deve ser respeitado e protegido. Os psicólogos e outros profissionais na área tem a responsabilidade de alertar, informar, educar e cuidar com estima o bem-estar colectivo. Colocar a tónica na dignidade é fundamental porque sem o respeito e acompanhamento inclusivo, o tratamento e recuperação tornam-se ainda mais difíceis. É urgente a presença de profissionais que não só possuam o “know-how” (conhecimento) mas também possuam os “soft skills” (competências sociais) necessárias no atendimento na saúde mental, bem como na promoção da mesma. Todos nós reconhecemos que actualmente é um desafio cada vez maior tentar lidar com todas as exigências presentes no nosso dia-a-dia. Isso torna-nos mais vulneráveis, afectando a nossa capacidade de uma boa gestão emocional e consequentemente prejudicando o nosso bem-estar psíquico. Assim, sublinho que não devemos considerar o sofrimento psicológico como um sinal de fracasso pessoal, mas antes compreender que a procura de apoio profissional é um passo importante para a recuperação do equilíbrio emocional e psicológico. Como idealista assumida acredito que através da consciencialização e promoção da saúde mental potencializamos as hipóteses de sucesso e recuperação eficaz dos nossos pacientes, diminuindo o isolamento, medo ou vergonha dos portadores de perturbações mentais e das suas famílias. Como psicóloga, sou defensora que cada pessoa é um ser único e multifacetado, e como tal deve ser respeitada a sua individualidade, identidade e história de vida. Neste sentido, temos o dever de zelar pela saúde psicológica dos nossos pacientes, promovendo uma visão inclusiva e ajudando na sua reintegração e compreensão da sua condição não só pelo próprio paciente como da sua família e comunidade. Precisamos trabalhar mais para que exista uma mudança nas atitudes sociais e promover uma consciência colectiva sobre a natureza das doenças mentais. Sendo a educação a chave para existir uma real transformação de mentalidades e uma eficaz protecção dos direitos humanos. Em suma, protecção, prevenção e melhorias na política de saúde são essenciais para o bem-estar da população. Assim, finalizo com uma citação do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon, “quando nos unimos, não há limite para o que podemos alcançar”. Por isso, vamos juntos melhorar as condições da saúde mental do território de Macau? Vocês podem sempre contar comigo, e eu? Posso contar com vocês para combater a discriminação e estigma na saúde mental?
Isabel Castro VozesDe não saber o que nos espera [dropcap style=’cricle’]1[/dropcap]. Desisti. Desisti na medida em que posso desistir, dadas as obrigações profissionais. Não quero saber. Digam-me quando se perceber o que foi isto, o que vai ser isto, o que foram estas eleições em Portugal. Não questiono resultados – cada um vota como quer, à direita ou à esquerda, no centro ou nos extremos. É a beleza da democracia, esta liberdade de ideias, por mais estranhas que nos possam parecer. É a liberdade de acreditar nas politicamente correctas inverdades que melhor nos soam. O pior veio depois, veio agora, está para vir. Nada é irrevogável. Nem ninguém. As propostas de ontem hoje já não têm qualquer interesse – o poder apaga tudo, condiciona tudo, muda tudo e todos. Desisti. Desisti de querer saber. Já sei o que me interessa: os próximos dois anos vão ser mais 24 meses de dias perdidos. Vão ser dias perdidos para quem lá está e para quem, como eu, não está mas gostaria que Portugal fosse uma opção, porque não é. Andamos sempre a ir à guerra sem ajuda. 2. Nas contas que alguma imprensa portuguesa tem feito esta semana, Macau entra na equação como sendo a incógnita. Os votos ainda não estão contados e ainda faltam uns dias para se saber do sucesso de José Pereira Coutinho. Estranho caso este que só as regras da mais deselegante política permitem compreender: um deputado de uma região administrativa especial de um país candidata-se ao parlamento de outro país. Avisa que, se ganhar, não pretende ocupar o cargo. Os eleitores que votaram nele não votaram bem nele, mas sim noutro qualquer que o vai substituir. Continuo sem perceber o que ganha Pereira Coutinho com esta candidatura, cabeça de lista de um movimento político sem qualquer expressão. Percebe-se o que ganha a candidatura, ao apostar em Macau num homem com capacidade de mobilização eleitoral. Os lucros políticos de Coutinho poderão ser muitos e vantajosos, mas com tudo isto ficou a perder, ao ser protagonista de uma dança que só lhe fica mal. 3. Mas por cá é mais Nova Iorque, corrupção, Nações Unidas. Ng Lap Seng ocupou a semana à imprensa, o caso está bicudo, afinal já não são só alegadas falsas declarações na alfândega norte-americana, afinal isto já mete corrupção, dinheiro gordo, pessoal diplomático, Macau. Como seria de esperar, aqui ninguém sabe de nada, o silêncio é um bom parceiro, nos negócios também, eles às vezes é que se esquecem disso. E um dia destes já ninguém se lembra – é o deixa andar a ver se passa. Ainda bem que vem aí o Grande Prémio, que Macau anda pelas ruas da amargura nas agências de notícias e nos jornais lá de fora, e a gente gosta que a terra faça boa figura. Depois do jogo que já não é infinito, dos junkets e dos escândalos, Ng Lap Seng não veio ajudar ao noticiário local de desgraças. Macau, terra harmoniosa e de gente séria. Ao volante e no Circuito da Guia a coisa vai correr melhor. 4. Antigamente era no salão nobre do Leal Senado, a emprestar alguma dignidade à coisa e à causa lusófonas. Este ano foi diferente – a conferência de imprensa do Festival da Lusofonia foi realizada no auditório do Mercado de São Domingos. Foi um momento oficial num local raras vezes usado para estes fins, sem sequer contar com a presença das associações que também se juntam à festa. Quem lá esteve diz que foi um acontecimento pouco lusófono e nada feliz. Apesar do cheiro a peixe que pode sempre fazer pensar no mar, o mar que permitiu que a língua andasse por aí, que a cultura andasse por aí, que se construísse este estranho conceito que não entendo. Apesar do cheiro a peixe.
Arnaldo Gonçalves VozesDepois das Eleições Legislativas em Portugal [dropcap style=’circle’]1[/dropcap]Chamados às urnas os portugueses elegeram, a 4 de Outubro, os seus representantes no Parlamento com base nos quais se formará o governo que dirigirá os nossos destinos colectivos, nos próximos quatro anos. As propostas submetidas a escrutínio eram basicamente duas: o afastamento do governo de direita e o fim da política de austeridade em nome de um crescimento imediato sustentado na Fé; a prossecução de um novo mandato focado em potenciar os sacrifícios pedidos aos portugueses em razão dos compromissos com a Troika e a devolução gradual dos rendimentos que foi imperativo captar para o reequilíbrio orçamental e o pagamento do dinheiro pedido emprestado. A escolha dos portugueses foi clara. Ganhou a Coligação Portugal à Frente com 38,55% do total dos escrutínios, ficando o PS em segundo lugar com 32,88% dos votos, seguindo-se o Bloco de Esquerda e o PCP (sob a capa da CDU) com 10,22% e 8,27%, respectivamente. Face ao que haviam sido as balizas propostas para o julgamento dos eleitores – maioria significativa pedida pela Coligação, maioria absoluta e derrota da direita pedida pelo PS – a vontade dos eleitores expressa nas urnas foi transparente: a Coligação tem agora um novo mandato como força mais votada para constituir governo, o PS foi derrotado nos seus marcos eleitorais e tem um responsável que se chama António Costa. Diferentemente do que expressaram os resultados eleitorais, a esquerda radical procurou, nos momentos seguintes, extrair uma outra leitura: que a Coligação apesar de ter conquistado 104 deputados no Parlamento e o PS ter ficado apenas com 85, não teria legitimidade para governar mas sim a esquerda que passara a deter uma maioria negativa. Ou seja o que valera para os governos de Mário Soares, António Guterres e José Sócrates (que governaram em minoria) não valeria para o governo de Passos Coelho, porque as esquerdas odeiam Passos Coelho. Quer dizer, a Constituição valerá quando joga nos propósitos das esquerdas mas nada vale quando favorece o centro-direita. Catarina Martins – a teatral líder do Bloco de Esquerda e do espaço político BE-CDU – reivindicava-se dessa leitura messiânica às primeiras horas da noite eleitoral, levando o Partido Comunista a reboque. 2. Não se pode desconhecer, contudo, que o quadro global de governabilidade se modificou, significativamente, com a composição da Assembleia da República. Com uma minoria aritmética de votos no Parlamento, o centro-direita terá de encontrar um novo estilo de governabilidade, de aplicação do programa eleitoral que submeteu aos portugueses e que recolheu o aplauso de 38% dos eleitores votantes, isto é dois milhões e sessenta e sete mil eleitores. Terá que saber negociar com a esquerda moderada, criando sinergias e ultrapassando fossos que não são tão grandes quanto isso (como aqui escrevi em crónica anterior) em matéria de programa económico e alinhamento ao Tratado Orçamental, às directivas da zona Euro. Os sinais que António Costa deu, na noite eleitoral, são promissores e a menos que o PS obreirista lhe imponha uma linha de convergência com as esquerdas comunistas, a negociação é possível e será, apesar de difícil, concretizável. Teremos o programa de governo aprovado no Parlamento e muito provavelmente o Orçamento com a abstenção do PS. É esse o quadro que Passos Coelho irá colocar ao Presidente da República e não tenho dúvidas que Cavaco Silva irá criar condições para que o governo da Coligação, legitimada por uma vantagem de seis pontos percentuais sobre o segundo concorrente, o PS, possa governar em concertação permanente. Espera-se que com a moderação, visão estratégica e discernimento que revelou na condução da campanha eleitoral – e cujo veredicto é em larga medida um vitória pessoal – Passos Coelho constitua um governo expedito, pragmático, formado por políticos profissionais, melhor ajustado aos dossiers sociais e que conduza o país, sustentado em bases seguras, a um ciclo de crescimento e progresso. O recuo do apoio nos eleitorados urbanos de Lisboa, Porto e Coimbra, com perda de 7, 4 e 2 deputados para o conjunto da Coligação, deve merecer uma atenção particular das directorias dos dois partidos e o procurar de um novo contrato de governabilidade com estes eleitores, onde se alicerça a base eleitoral do Partido Social-Democrata e o seu futuro. 3. As eleições mostraram duas coisas complementares. A primeira que as sondagens revelaram, com relativa proximidade, a sensibilidade aprofundada do país ao contrário do que afirmavam as esquerdas. A segunda que a opinião veiculada pela comunicação social, pelas televisões e pelas comunidades sociais em nada expressaram o sentir mediano dos portugueses. Elas foram, sobretudo, instrumentos de propaganda – logo sectários e parciais – de profissionais de marketing político, contratados pelos partidos da esquerda ou profissionais que ecoam agendas político-partidárias em vez de cumprirem a sua missão de informar, com isenção e imparcialidade. E se esse foi um efeito perverso em outras eleições mostrou-se com maior gravidade, nestas. Como alguém escrevia, a maioria silenciosa dos eleitores votou e escolheu o novo governo de Portugal mas ela não teve eco na informação que nos foi prestada. O que as eleições provaram é que esse jogo do engano e da mentira não vinga e que os eleitores, no fim, sabem muito bem fazer um juízo convergente aos interesses dos país. 4. No momento que escrevo esta crónica não são conhecidos os resultados dos círculos eleitorais da Europa e de Fora da Europa. São 4 lugares de deputados que estão em causa e que a confirmar-se a tendência nacional darão 2 a 3 deputados à Coligação Portugal a Frente e 1 ao PS. Esse é o meu prognóstico. Se assim for, a distribuição de lugares no Parlamento passará para 107 deputados para a Coligação, 86 para o PS, mantendo-se a restante distribuição pelo Bloco de Esquerda, a CDU e mais um deputado pelo PAN. Não creio que os eleitores do circulo Fora da Europa tenham acolhido os manobrismos rasteiros de quem, não se conseguindo fazer eleger nos principais partidos, escolheu o expediente de se propor como candidato por um partido que ninguém conhece e que captou 0.3% dos votos expressos, para se alcandorar aos ombros de quem controla politicamente no microcosmos de Macau, a um lugar de representação nacional. Seria um absurdo, uma mistificação e a violação de 40 anos de história da democracia portuguesa. As reclamações que intenta apresentar terão o resultado que espera sempre os populistas e os demagogos: o fracasso e a gargalhada.
Leocardo Vozes…E os votos foram p’rós cães [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s resultados das eleições legislativas do último domingo em Portugal levam-me a tirar algumas conclusões, o que daqui à distância de Macau pode parecer algum atrevimento da minha parte, longe que estou dessa grande tropa fandanga que é a realidade lusitana. Mas pronto, faço-o na mesma, so what? Vão fazer o quê, “castigar-me nas urnas”, como disseram que faziam com o Coelho e com o Portas? Era o castigas, e a julgar pelos MAIS DE DOIS MILHÕES DE VOTOS que a coligação “Portugal à Frente” (nome foleiro, diga-se de passagem) obteve nestas eleições, tenho carta branca para dizer mal do que quiser e de quem quiser, que no fim ainda me pagam um jantar. Ou dois. Bem, ponto por ponto, é assim: – Já é habitual ouvir-se por altura das eleições que “a abstenção é à partida a grande vencedora”. Acontece que essa frase feita entoada sempre com um tom mais ou menos fatalista é tecnicamente uma mentira, um engodo. A participação ficou pelos 57%, apenas menos um ponto que as eleições de 2011, e apesar da insistência nessa ladainha de que os portugueses estão cansados da política e dos políticos, mais de cinco milhões deles foram votar. Seremos um hipócrita, medroso e fanfarrão? Nada disso, que exagero – somos uns vivaços, isso sim. Fossem fazer um inquérito para saber a principal causa da abstenção, e “preguiça” surgiria à cabeça (isto se as respostas fossem sinceras, claro, e claro que nunca seriam). – Ao contrário das competições desportivas, em que ganha quem marca mais golos, faz mais pontos, salta mais alto ou corre mais rápido, na política é tudo “relativo”. Das forças partidárias representadas no Parlamento, a coligação foi a única que perdeu votos e mandatos em relação a 2011, e mesmo assim pode-se dizer que saiu vencedora. O PS subiu quatro pontos percentuais e conseguiu mais 11 mandatos, mas António Costa pode estar de saída, o que seria mais ou menos como José Mourinho ganhar todos os jogos com o seu Chelsea, e no fim ser despedido por causa dos “maus resultados”. – Mas em política é mesmo assim, tudo muito esquisito; imaginem que em pleno século XXI, ano da graça de 2015, há um indivíduo com uma aparência semelhante ao Conde Drácula que chama as pessoas de “povo” e “camaradas” – claro que me refiro a Jerónimo de Sousa, o torneiro mecânico que se promete eternizar na liderança dos comunistas portugueses que aos 68 anos, e pela bitola marxista, é considerado “uma jovem promessa”. Por outro lado o Bloco de Esquerda obteve o seu melhor resultado de sempre, o que me deixa perplexo; depois de vários anos com o demagogo mas simpático Francisco Louçã na liderança, surge uma barata-tonta ainda mais demagoga, uma tal Catarina Martins, que parece excitar ainda mais as paixões populares. Vá-se lá entender porquê, pronto, é a “democracia” em todo o seu esplendor. – E por falar em “demagogia” e afins, uma das queixas mais comuns dos eleitores portugueses é a “falta de alternativas”, isto referindo-se, obviamente, à sempre-mesmice do “ora agora sacas tu, ora agora saco eu” dos partidos do arco da governação. Ora alternativas é coisa que não falta, e mais uma vez o freguês tinha ao seu dispor nada mais nada menos do que 16 (dezasseis) quadrados no boletim de voto onde colocar a cruzinha. Só que aquilo que se afigura como solução acaba apenas por tornar as coisas ainda piores, o que me leva ao ponto seguinte. – Confesso que fiquei preocupado com a possibilidade do Partido Nacional Renovador (PNR), o tal da extrema-direita cor-de-rosa-choque, vencer as eleições com maioria absoluta. Sim, a sério, pois a julgar pelas preocupações expressas pelos portugueses nos últimos meses, com os refugiados, imigrantes e beneficiários do Rendimento Social de Inserção a servirem de bode-expiatório para todos os males do mundo, julguei que fossem votar em massa nos fachizóides. Afinal enganei-me, e os gajos tiveram menos de metade dos votos do PCTP/MRPP. Folgo em saber que ainda há mais portugueses que acreditam no maoísmo e na ditadura do proletariado, do que nos delírios dos nazistas de papelão. – Os que realmente quiseram demonstrar o seu desagrado com o negro quadro da política em Portugal foram votar em branco, ou desenharam cornos, bigodes o outras inanidades no boletim, o que levou a que o já célebre “Nulos” obtivesse um resultado melhor que meia dúzia de partidos, movimentos e outras plataformas ditas “alternativas” todas juntas. Melhor do que este “Nulos” só mesmo o partido dos “Fantasmas”. Sim, pois li algures que em Portugal existem nos cadernos eleitorais “mais de dois milhões de eleitores fantasma”. Desconfio que foi graças a estes que o Cavaco venceu as presidenciais. Só um palpite, não me levem a mal. – Finalmente os votos que foram para os cães, literalmente. Esqueçam os reformados, os imigrantes ou outros expedientes que visam nada mais do que obter um tacho: chegou o Partido “Pessoas-Animais-Natureza”, ou PAN, que já há quatro anos esteve muito perto de obter um mandato. Desta vez bastaram 2% dos votos no círculo eleitoral de Lisboa para conseguir um dos 47 assentos reservados para a capital do país, mas no fim fiquei desiludido com o nome do candidato eleito pelo PAN: André Lourenço e Silva? Que raio de nomes andam as pessoas a dar aos bicharocos, com franqueza. E que tal “Piloto”, “Bolinhas”, “Tareco” ou “Milú”? Não tinha muito mais piada? E foram assim as eleições legislativas em Portugal. Não queria deixar de mencionar os mandatos ainda por apurar, nomeadamente os dois reservados ao círculo da imigração fora do espaço europeu, onde o aliciante será saber se o “nosso” José Pereira Coutinho consegue ou não a eleição. Coutinho, candidato pela plataforma “Nós, Cidadãos” diz-se prejudicado com a forma como decorreu o processo eleitoral, com atrasos na entrega dos boletins, etc., etc. (o costume…), e ameaça mesmo “impugnar as eleições”. Ui, fosse isso assim tão fácil, impugnar as eleições legislativas em Portugal, e nem consigo imaginar o que é necessário para que se cometa tal proeza. Talvez fosse melhor perguntar aos SAFP. Aos SAFP?!?! Porquê aos SAFP??? Sim, aos SAFP lá de Portugal, não aos de Macau, é óbvio. Então, falamos a sério ou andamos a mangar com a tropa?
António Conceição Júnior VozesA árvore Uma folha quando cai do ramo retorna às raízes. Provérbio chinês [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]esde a Edénica macieira, antiga, enorme e frondosa, à Sephirot, a árvore da vida do judaísmo esotérico que, organizada em três colunas, representa as divinas emanações da criação de deus (ex nihilo), cuja natureza transcende a da macieira no que tem de construção simbólica: a natureza da divindade revelada, a alma humana e o caminho espiritual para a ascensão do homem. Terão sido os chineses a criar, há quinze séculos, aquilo que chamamos de árvore genealógica. Deixavam escritas no mesmo caderno de família, guardado no templo da aldeia natal, o registo de todos os nascimentos através dos séculos, indicando os parentescos em que são tão confucianamente precisos, e a mobilidade ancestral. Abrem-se milenares árvores, numa abundância de ramos, nascidos de poderosos troncos, prenhes de seiva percorrendo o frondoso emaranhado nascido do tempo. Em cada árvore se manifesta o ciclo da vida. Na sua imobilidade e enorme vitalidade, que nos transporta para a metáfora da existência e nos remete para a reflexão da razão, a árvore incorporou a presença da divindade. E como diz o provérbio chinês, quando da copa da frondosa árvore da vida se destaca um folha, ela retorna às suas raízes, essa outra copa submersa que, sustentando a visível, existe e sem a qual tudo feneceria. Neste ciclo, ocorre-me a árvore criada pelo imaginário de James Cameron no filme “Avatar”, uma obra que segue de perto a pista deixada por “Matrix” de Lana e Lawrence Wachowski, onde a mente protagoniza no imenso império da ilusão. Nessa imensa árvore, réplica da macieira e, porque não, da Sephirot, estabelece-se uma outra premissa, o Tempo, a adicionar às três dimensões com que habitualmente lidamos. Será a incomensurabilidade deste Tempo (“deve ser o antepassado dos deuses”) o invisível e inominável nome de deus? Sendo inominável, apenas nos resta o acto de intuir, de compreender que a essência não reside na ilusória realidade do mundo que conhecemos, mas, antes, na indizível linguagem que se não pronuncia? Assim, a árvore significa a intrincada dimensão da divindade, da ancestralidade, do amplexo enorme, frondoso. Não deixa de ser curioso como as lendas das manifestações divinas se associam a árvores, arbustos em chamas, ou como em Fátima é a azinheira o púlpito da aparição, ainda Matrix ou Avatar não tinham sido pensados. E nesta mobilidade enclausurada pela obscuridade a que a humanidade está votada, é imperioso proteger a árvore, mesmo que a ignorância já impere, atolada nos meandros de si mesma, embrenhando-se cada vez mais na esterilidade do breu, malefício do mal, prado onde os ignaros se agigantam com pernas de girafa, pastando ousadias. E, assim, o mal subsiste pela ignorância. E o bem, maniqueisticamente falando, busca ansiosamente a aspiração de uma essência (quase) inatingível, face aos malefícios da ilusão, que provocam nos sentidos dos que prosseguem o difícil trilho do conhecimento. E enquanto as sombras pairam, o verdadeiro retorno à raiz apenas sucede às folhas que tenham aspirado tal aroma. O resto é apenas gravidade.
Sérgio de Almeida Correia VozesO príncipe “Meu Deus, como a sua presença eleva o nível da conversa!”, disse-me Swann como que para se desculpar diante de Bergotte, ele que no meio dos Guermantes adquirira o hábito de receber os grandes artistas como bons amigos a quem se procura apenas dar a comer os pratos de que gostam, jogar os jogos ou, no campo, praticar os desportos que lhes agradam. (…) Eu dissera-lhe tudo o que sentia com uma liberdade que me surpreendera (…). Do mesmo modo que os padres, que têm a maior experiência do coração, podem melhor perdoar os pecados que não cometem, também o génio, que tem a maior experiência da inteligência, pode compreender melhor as ideias mais opostas às que constituem o fundo das suas próprias obras.” – Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Volume II, À Sombra das Raparigas em Flor [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onheci-o em Novembro de 1986, num jantar em casa de um companheiro da juventude de meu pai. Eu chegara à cidade no dia anterior. Tinha vinte e quatro anos. Quando me conheceu perguntou-me o que fazia. Tímido, acabado de aterrar, lá lhe respondi, com a deferência devida para com quem é simpático, agradável, e nos recebe em terra estranha fazendo jus a um sorriso largo e bondoso sem nos conhecer de lado nenhum. Como se me conhecesse há uma eternidade. Disse-me para no dia seguinte ir ter com ele, ou quando quisesse, para tomarmos um café, ele estaria por lá. Lá era o Banco Nacional Ultramarino, em Macau. E ele era uma estrela. Ele era o Brás Gomes. Frequentara a Escola Naval, de onde não saiu almirante, mas como em todos os locais por onde passava deixou um rasto de amigos, de companheiros, de conhecidos e desconhecidos que o admiravam. Pela simplicidade, pelo trato, pela educação. Com amigos comuns no ramo naval, nesse tempo voltámos a ver-nos várias vezes, nas mais diversas circunstâncias, em reuniões de amigos e em cerimónias oficiais. Sempre jovial, sempre bem disposto, uma referência onde quer que estivesse. Amante das coisas boas da vida, gostava de estar com os seus amigos, de um bom convívio, de uma boa gargalhada, de uma refeição generosa ou de um vinho de excepção, transportava consigo toda a herança de um império. Da Índia aos pântanos da Guiné-Bissau, por onde andou no tempo da outra senhora. Tinha histórias e recordações de todo o lado, que relatava com prazer enquanto puxava do seu Lancero ou do seu Churchill. Quando Carlos Móia, de quem era amigo, chegou à vice-presidência do Benfica, conseguiu convencê-lo a trazer a equipa de futebol a Macau. Então treinada pelo grande capitão, Mário Wilson, tive o prazer de com ele ver, num épico final de tarde, o Benfica golear (8-0) a jovem e inexperiente Selecção de Macau. O José Manuel Brás Gomes era a porta para tudo. Pelo BNU, em Macau, passou muita gente, muitos directores, mas ali Portugal tinha sempre um rosto e um nome: o dele. Certamente que haverá pelas pátrias desse mundo outros parecidos com o José Manuel. Duvido é que haja algum igual. E nem sei se Portugal, algum dia, depois de ficar sem império, voltará a ter outro assim. Conhecia meio-mundo, e não precisava de conhecer a outra metade porque, em contrapartida, todo o mundo o conhecia. Não havia quem chegasse de Portugal, da China, do Brasil ou dos Estados Unidos, sem nunca ter posto os pés em Macau, que não trouxesse um cartão, uma carta, uma recomendação ou o número de telefone dele. Para simplesmente falar com ele, levar-lhe um abraço de alguém, encontrar um parceiro de negócios ou ser aconselhado sobre um bom restaurante. O número de negócios que proporcionou entre portugueses, chineses, macaenses e até alguns marcianos que lhe apareceram à frente é incontável. E a muitos ajudou a construírem fortunas. Não havia vez alguma que o encontrasse que não tivesse um sorriso, uma palavra amiga, um abraço para oferecer. Até quando o Benfica perdia. Um dia, depois de alguns anos infindáveis e miseráveis, disse-lhe que se quisesse ser candidato eu apoiá-lo-ia para a presidência. Há tempos repeti-o entre amigos. Ele sorria, ria-se, piscava-me o olho e arrancava mais uma fumaça. Apaixonado pelo ténis e pelo golfe, que praticava com assiduidade, recordo-me de com ele ter acompanhado o primeiro Open de Macau a contar para o circuito internacional. Corria mundo para jogar golfe. Um dia encontrei-o em Guam com a sua inseparável companheira, sua mulher, onde tinha ido experimentar os novos campos. Recordo-me, também, de uma manhã ter ido ter com ele ao banco, tendo ele acabado de chegar de férias. Perguntei-lhe onde tinha estado dessa vez. O olhar cintilante e um sorriso ainda mais largo abriram-se para me dizer duas palavras mágicas: St. Andrews! “Mas estava frio”, acrescentou logo a seguir. Não sei ao certo quantos governadores de Macau passaram por ele. Não sei quantos lhe ficaram a dever favores, muitos, atenções, gentileza, simpatia, boa educação. Nunca cobrou nada a ninguém. Nem aos chatos. E fazia questão que fosse mesmo assim. Era um tipo de uma seriedade à prova de bala. Podia ter saído do BNU e ter tido todas as “avenças” que quisesse, só que a sua liberdade, o seu espírito livre e rebelde, a sua honradez e o seu carácter nunca o permitiram. O José Manuel Brás Gomes podia ter sido Governador de Macau. E teria sido, seguramente, o melhor Governador de Macau. Porque o José Manuel Brás Gomes era acima de tudo um construtor de pontes, de estruturas sólidas e duradouras, que ainda por cima sabia conservar com elegância. De vez em quando contava histórias do fim do mundo, fazia-nos rir a bom rir. E, todavia, nunca ninguém lhe ouviu uma inconfidência ou soube da boca dele o que não pudesse ser conhecido. Sabia histórias de reis e de rainhas, de ricos e de pelintras simpáticos, do Spínola, de comandos e de fuzileiros, porque teve de lá andar com eles, e também de sacanas da pior espécie e de filhos da puta, que ele também conheceu alguns e distinguia-os à légua. Sabia os nomes deles todos. E gostava tanto de esquerdistas, comunistas ou de socialistas, entre os quais sabia que eu me incluía, como gostava de sportinguistas. Porém, duvido que algum tivesse deixado de ser seu amigo ou de lhe dar um abraço por essa razão. O José Manuel era franco, leal, directo, um modelo de cavalheiro. Um senhor. Ultimamente tive o privilégio de estar com ele com mais frequência. Estava com mais disponibilidade, fosse no Clube Militar, do qual era membro da direcção, ou noutro lado qualquer. Encontrava-o regularmente às sextas-feiras, nas reuniões do nosso “Comité Central”. Nos últimos tempos não apareceu. Não podia. Falei com ele ao telefone, há duas semanas, como muitas vezes fazemos com os “camaradas” ausentes sempre que nos reunimos. Não sabia quando regressaria. Avisei-o de que iria ver os jogos com o Galatasaray e o Boavista. Confidenciou-me que ainda estaria por Lisboa nessa altura. Disse-me para lhe ligar quando chegasse, para irmos almoçar. Já não chegarei a tempo. O príncipe, o José Manuel Brás Gomes, foi-se hoje embora. Vamos todos sentir a sua falta. A esta hora estará a cear noutras paragens, construindo novas pontes. Ou a acender um charuto entre amigos. Rindo a bom rir, espalhando classe, educação e muita liberdade. Era o que melhor sabia fazer. Portugal, mais do que a muitos outros, fica a dever-lhe o fim honroso do império. Sozinho ele valia por um exército.
Hoje Macau VozesEntre isto e outra coisa qualquer (Sobre o novo livro de Tiago Saldanha Quadros) [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando em 2013 iniciámos o processo de concepção do livro Macau Sessions. Dialogues on Architecture and Society queríamos de alguma forma dar corpo, reunir, arquivar, partilhar uma espécie de estado da arte no que ao urbanismo e arquitetura de Macau diz respeito, numa perspectiva contemporânea e acessível ao público em geral, de forma a permitir o alargamento do debate de questões que afinal são do interesse de todos. Sentíamos que o conhecimento que se produz sobre Macau nesta área do saber estava muito disperso, sendo publicado por autores e especialistas sediados em Macau, mas também nos Estados Unidos, na Austrália, em Singapura, Hong Kong, China e Portugal. Como poderíamos nós reunir, compilar, partilhar esse conhecimento no sentido de iniciar uma reflexão e um debate que fosse mais universal, mais abrangente, mais relevante e sobretudo mais inclusivo? Explorámos ideias, alternativas, modalidades. Tratando o livro, como projecto curatorial, e seguindo o exemplo de Hans Ulrich Obrist, optámos pela entrevista, explorando “the idea of an interview with an artist (architect) as a medium” e assumindo que todo aquele que intervém na cidade participa e colabora na criação daquilo que desejaríamos que fosse uma obra de arte. A entrevista – entre o olhar de um e de outro Uma entrevista é um diálogo e situa-se entre o que um vê e o que vê o outro (entre-vistas). O diálogo é, por oposição ao discurso, a forma mais dinâmica da inteligência humana, é a inteligência interrompida, interrogada, e por isso estimulada à sua máxima expressão, acuidade, a assertividade no imediato da conversação. Diria mesmo que o diálogo é a inteligência em movimento. Como método de investigação a entrevista permite enunciar elementos de reflexão extremamente ricos. Há na entrevista, conversação, diálogo um contacto entre o investigador e os seus interlocutores, que obriga a uma sistematização e clarificação dos conteúdos muitas vezes difíceis de encontrar em textos de natureza académica, facilitando por isso um debate mais alargado, mais inclusivo. Por outro lado, a entrevista permitiria aos entrevistados a partilha de uma dimensão mais humanizada das suas práticas, da análise de problemas específicos, reconstituindo processos de acção, de experiências ou acontecimentos do passado. A assemblage Este livro transformou-se numa assemblage: pedaços de “coisas” que se reuniram num único contexto. O conjunto, agrupamento ou reunião dessas “coisas”, “ideias”, “pensamentos”, “práticas”, “pontos de vista” ou “pontos entre vistas” pode revelar e gerar um qualquer número de “efeitos”: In a book, as in all things, there are lines of articulation or segmentarity, strata and territories; but also lines of flight, movements of deterritorialization and destratification. Comparative rates of flow on these lines produce phenomena of relative slowness and viscosity, or, on the contrary, of acceleration and rupture. All this, lines and measurable speeds constitutes an assemblage. A book is an assemblage of this kind, and as such is unattributable. It is a multiplicity — but we don’t know yet what the multiple entails when it is no longer attributed, that is, after it has been elevated to the status of the substantive. On side of a machinic assemblage faces the strata, which doubtless make it a kind of organism, or signifying totality, or determination attributable to a subject; it also has a side facing a body without organs, which is continually dismantling the organism, causing a signifying particles or pure intensities or circulate, and attributing to itself subjects what it leaves with nothing more than a name as the trace of an intensity… (Deleuze) Entendido deleuzianamente, este livro pode produzir, pelo menos assim o desejamos, um número infindo de efeitos, em vez de se apresentar como um todo organizado e coerente que procura apresentar uma visão única e dominante. A beleza desta abordagem reside exactamente na liberdade obtida por via da falta de organização sistemática, permitindo a inclusão no seu corpo de um número muito diverso de elementos, que podem aglomerar-se entre si ou entrar noutras assemblages com os seus leitores, livrarias, ou bibliotecas. Ser curador, na sua dimensão mais contemporânea, significa preservar, no sentido de preservar o património, a arte; significa seleccionar novos trabalhos, ideias, pensamentos, ligá-los à história da arte e das ideias e da filosofia; e apresentá-los de forma única ao mundo, exibindo-os, partilhando-os. Joseph Beuys falou-nos na ideia de expandir a noção de arte. Gilles Deleuze procurou expandir a noção de livro e Hans Ulrich Obrist expandiu a noção de curadoria. Aqui procurámos situar-nos entre isto e outra coisa qualquer. Ou seja, procurámos o lugar da cidade enquanto obra de arte pública (no sentido em que todos podem/devem participar, colaborar), a entrevista enquanto médium e o livro enquanto assemblage deleuziana ou projecto de curadoria obristiana. Entre isto e tudo o que este livro assim concebido puder ou conseguir despertar, dar existência. Enfim, entre isto e outra coisa qualquer, porque ser-se entre, é ser-se por definição indefinido. Margarida Saraiva Directora Artística BABEL – Organização Cultural
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDonald Tsang [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]ex Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi formalmente acusado pela Comissão Independente Contra a Corrupção (ICAC) com base em duas ofensas à lei, praticadas durante o período do seu mandato. Em 2012 surgiram rumores de que Donald Tsang receberia subornos de representantes de grandes interesses económicos. À época foi ventilado que teria feito diversas viagens na companhia de grandes magnatas, nos seus jactos e iates privados, e que tinha alugado um apartamento de luxo em Shenzhen, já a preparar a retirada do governo. A decisão de levantar o processo surgiu após um período de investigações que se estendeu por três anos. Em Setembro de 2014 o antigo Procurador Geral de Hong Kong, o Sr. Grenville Cross, afirmou que a lentidão da investigação “poderia vir a figurar nos Recordes do Guinness”. O cargo de Procurador Geral, em Hong Kong, está dependente da Secretaria Geral de Justiça. De acordo com o artigo 63 da Lei Fundamental de Hong Kong, a decisão de formalizar uma acusação criminal é, apenas e exclusivamente, da competência da Secretaria Geral de Justiça. Nenhum organismo poderá interferir nas decisões tomadas por esta Secretaria no que respeita a acusações criminais. Na medida em que as relações de trabalho entre o Chefe do Executivo e a Secretaria Geral de Justiça são muito próximas, para que não haja suspeitas desnecessárias, a Secretaria Geral autorizou o Procurador Geral a tomar a decisão de acusar, ou não, Donald Tsang. Depois de Grenville Cross se ter retirado do cargo, em Junho de 2015, o Sr. Keith Yeung Kar-hung, o actual Procurador Geral, anunciou que a decisão final seria conhecida nos três meses seguintes. Esta promessa veio efectivamente a cumprir-se. No dia 5 de Outubro de 2015 assistimos à acusação formal de Donald Tsang. As implicações deste caso são da maior importância, quer para a sociedade civil de Hong quer para os seus funcionários públicos. Em primeiro lugar, o caso de Donald Tsang constitui um bom exemplo, para fazer recordar a todos os funcionários governamentais de Hong Kong, o significado dos termos “má conduta” e “declaração de conflito de interesses”. Como é do conhecimento geral, em Hong Kong, depois da reunificação, os casos de suborno e corrupção, e outras más condutas envolvendo funcionários públicos, têm vindo a aumentar. O caso de Donald Tsang é o mais “famoso” já que foi Chefe do Executivo de Hong Kong. Ocupou o mais alto cargo oficial. Esta situação é, até certo ponto, um alerta a todos os funcionários públicos para que não lhe sigam o exemplo. É um indicador de que o governo quer manter Hong Kong afastado de casos de suborno e os seus funcionários públicos longe de “más condutas”. Em segundo lugar, pensando nos residentes de Hong Kong, a formalização desta acusação aumenta a confiança da população. Faz passar, de forma clara, a mensagem de que a Lei se destina a julgar os procedimentos individuais na sociedade. A Lei irá tratar todos por igual, quer o individuo ocupe um importante cargo governamental, ou quer seja apenas um simples cidadão de Hong Kong. Decorre, pois, que a noção de Estado de Direito é uma pedra basilar da sociedade de Hong Kong. O governo permite que sejam as instâncias judiciais a lidar com estes assuntos. Em terceiro lugar, Hong Kong está actualmente a enfrentar diversos problemas sociais, como por exemplo, aumento de preços, piores condições económicas – devido ao decréscimo de turismo da China continental, etc. O caso de Donald Tsang pode ajudar os cidadãos de Hong Kong a esquecer estes problemas por algum tempo. Donald Tsang compareceu a tribunal na tarde de 5 de Outubro. Embora o procedimento judicial já se tenha iniciado, Donald Tsang não é obrigado a prestar depoimento perante os juízes no primeiro dia do julgamento. No primeiro dia, o tribunal limita-se a fazer cumprir certas formalidades, que o réu tem de presenciar. A próxima sessão terá lugar a 11 de Novembro. Se Donald Tsang for condenado, poderá sofrer graves consequências. Pode ver-se privado da reforma de aposentação, à volta de 80.000 dólares de Hong Kong mensais. Além disso, pode também ver fugir o título honorífico “Grand Bauhinia Medal” (GBM) com o qual tinha sido agraciado. O GBM é um título muito prestigiado em Hong Kong. O titular do GBM é convidado pelo governo de Hong Kong para participar em todos os eventos de destaque; por exemplo, a festa promovida pelo governo a 1 de Outubro para celebrar a fundação da República Popular da China. Este título também abre as portas do Primeiro Acesso no aeroporto de Hong Kong. O Primeiro Acesso é uma passagem destinada apenas às elites de Hong Kong. Sempre que a pessoa distinguida com esta honra está a chegar ou a partir de Hong Kong, os serviços de alfândega tratam a inspecção da sua bagagem à parte. Estes benefícios podem ser-lhe retirados se a sua culpa for provada. A decisão de privação de benefícios é da responsabilidade do actual Chefe do Executivo, Sr. Leung Chun-Ying. Antes da reunificação, Donald Tsang também tinha sido distinguido com o título “Knight Bachelor” (KB). Esta distinção foi herdada do sistema honorífico britânico. O título confere ao seu portador a categoria de “Sir”. No website “Wikipedia” lê-se o seguinte: “É o degrau mais baixo para quem é armado Cavaleiro pelo Monarca e não pertence a qualquer das Ordens de Cavalaria. Os Knights Bachelor são os Cavaleiros britânicos mais antigos (esta categoria já existia no séc. XIII no reinado de Henrique III), mas os Knights Bachelor encontram-se abaixo de todos os Cavaleiros de outras ordens.” Se Donald Tsang for condenado perderá o título de Knight Bachelor. Se for o caso, será lamentável porque vai perder tudo. Será que Donald Tsang vai ser considerado culpado? Ninguém sabe. Só precisamos acreditar que as nossas instâncias judiciais irão proporcionar a Donald Tsand um julgamento justo. Estejamos atentos para ver o que o futuro nos reserva. * Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Fernando Eloy VozesAnimais e pessoas [dropcap style=’circle’]É[/dropcap]fácil de dizer agora, eu sei, pois as “previsões no final do jogo” são sempre mais acertadas mas a verdade é que o resultado destas eleições terá sido dos mais previsíveis de sempre. Por partes: era claro que o PS com António Costa nunca se conseguiria livrar do fantasma de Sócrates, como era certo que o homem não entusiasma ninguém e a velha guarda que o acompanha não ajuda em nada; era também evidente que o PS é um partido ideologicamente desorientado e que não foi capaz de apresentar uma alternativa credível ao governo de direita. Não seria difícil arriscar que ninguém iria entregar a cadeira ao Costa, quanto mais a maioria absoluta que ele ainda pediu no auge do delírio. Também foi evidente que o Partido Comunista continua a viver num limbo temporal onde nunca perde eleições, antes pelo contrário, desajustado dos dias e que apenas convence os que sempre convenceu. Seria portanto fácil de prever a manutenção dos votantes ou diminuir um pouco porque as pessoas vão morrendo. Ficou mais ou menos na mesma. Não ficou menos aparente que o Bloco de Esquerda poderia aumentar a sua votação porque as pessoas estão fartas dos partidos do arco da governação, porque aos socialistas lhes falta a irreverência e a frescura (aparente) do Bloco de Esquerda e porque o PCP é o mono que é. Perante este cenário era evidente a falta de alternativa e, quando assim é, a tendência de muitos é a de optarem pelo diabo conhecido. Ou seja, era expectável que a aliança com o nome mais cartoonístico de sempre (PAF!), a sugerir as bofetadas do Astérix connosco no papel de romanos, não iria ser massivamente derrotada apesar nos continuar a dizer que ‘ou comemos a sopa deles ou não vamos para a rua brincar’. Tinha de dar empate pois, verdadeiramente, ninguém quer nenhum dos “dois grandes” sozinhos na governação. Era como aqueles jogos onde dá vontade que percam ambos. O problema da opção comezinha pelo diabo conhecido é que já permite aos líderes Europeus, como o fizeram de imediato, dizer que afinal a austeridade fazia sentido, que os portugueses gostaram e, se for preciso mais, estão prontos para a pancada. Paf! Perante este cenário político desolador também não seria muito difícil adivinhar que a abstenção voltaria a ganhar as eleições. Este ano, apesar do bruaá que corria antes do fecho das urnas, comentando-se que a abstenção iria finalmente descer, acabou por ser ainda superior a 2011: 41,97% há 4 anos atrás, 43.07% em 2015! Foi também notória a ansiedade da classe politica perante a possibilidade da abstenção descer, desejosa que está de se sentir profundamente legitimada; saiu-lhes o proverbial tiro pela culatra pois mais de 4 milhões de portugueses não votaram. Não é coisa pouca, quando observamos que os PaFes tiveram perto de 2 milhões de votantes, o PS 200 mil menos e o Bloco representa mais ou menos um Rock in Rio e meio com 540 mil votantes. Mas se o desprezo pelas opções no menu não fosse por demais evidente, veio ainda o Presidente da República lembrar-nos que está bem longe o tempo em que ele era um jovem sadio que saltava barreiras, ao dizer que, e cito, tivemos uma campanha “esclarecedora, serena e elevada e com muito menos crispação”, quando todos sabemos que foi tudo menos isso. Era a acha que faltava para que muitos dos que ainda pretendem manter a sanidade mental achassem que a rapaziada andava toda a brincar connosco e se borrifasse para as eleições. Esclarecedora, como? Menos crispação, quando exactamente? Não terão as principais formações politicas passado a campanha a acusarem-se mutuamente? Não terão todos continuado a discursar aos gritos? Não terão todos passado a campanha a debitar chavões sem conteúdo prático? Não terão todos anunciado que não fariam acordos com ninguém? Não andaram quase todos a cantar o “My Way” e a ensaiar para o “Kill Bill in São Bento”? Não era difícil, portanto, adivinhar os resultados destas eleições. Difícil é prever o que vai acontecer agora. A verdade é que a maior parte dos que votam está à esquerda e a mensagem política a retirar pela rapaziada no parlamento e pelo saltador de barreiras reformado só pode ser “entendam-se”, por opção de mergulhar o país numa crise política de efeitos difíceis de antecipar mas que não auguram nada de bom. No clima cavaquiano esclarecedor e de menor crispação onde Costa chegou ao ponto de dizer que o PS não iria apoiar o primeiro orçamento de Estado dos PaFes, onde o Bloco e o PC se recusaram a entender-se com a direita e mesmo entre eles, onde ninguém concorda com ninguém, “all bets are off”. Mas agora que assentou a poeira da campanha está chegada a hora de começarem os ditos pelos não ditos. Como bom partido vanguardista, o Bloco de Esquerda, desejoso de ser o CDS da esquerda e finalmente sentar a bunda no governo e entrar para o famigerado arco da governação, veio ontem piscar o olho ao PS que, como se sabe, tem diferenças insanáveis com eles como a manutenção na Europa ou no próprio euro. Mas, provavelmente, António Costa ter-se-á demitido esta noite na reunião da Comissão Politica e os cenários serão todos possíveis. Fica também destas eleições o retrato de um país à deriva em termos ideológicos onde a população se sente órfã de alternativas às politicas de austeridade da direita e completamente desfasada das opções politicas à disposição. A menos que a putativa regeneração do PS nos traga algo de verdadeiramente novo; isto se for capaz de se renovar como os Trabalhistas se vão renovando no Reino Unido; mas isso não parece fácil de imaginar porque nem o PS tem um Corbin à vista nem o Seguro é esse algo de verdadeiramente novo. Mas nem tudo foi mau e isso era mais difícil de prever. Não seria muito difícil prever que a vacuidade das escolhas poderiam vir a permitir a ascensão de micro partidos, como de facto veio a acontecer, mas não seria fácil de determinar qual desses cresceria mais. Podiam ser os Republicanos de Marinho, pelo seu mediatismo e diatribes, o que nos traria umas sessões parlamentares mais animadas com traulitadas à esquerda e à direita, dificilmente seria o MRPP pois está mais ou menos como o PC desde o 25 de Abril e, felizmente, não foram os acéfalos do PNR que apesar de terem registado mais 10 mil votantes do que há 4 anos, com 27 mil eleitores, continuam a não ser suficientes para encherem um estádio de futebol. Calhou, ou é sinal dos tempos, que fosse o Partido dos Animais e das Pessoas a furar o bloqueio. Não é uma má noticia porque, pelo menos, traz um discurso novo, pacifista, progressista, típico de uma nova forma de encarar o mundo, que mais tarde ou mais cedo terá de ser transversal a todas as forças políticas. Talvez sejam uma lufada de ar fresco nos corredores bafientos de São Bento, talvez consigam trazer ideias novas para o debate politico e, espera-se, uma nova forma de falar com as pessoas. Parece-me um sinal importante a registar nestas eleições. E não deixo de registar a curiosidade de que num país onde os políticos se comportam como irracionais, porque animais são todos, seja o partido que defende os genuínos irracionais (serão?) a chegar ao Parlamento nesta fase de aparente vacuidade ideológica. No fundo, parece-me que o que todos devemos ambicionar é que as pessoas sejam tratadas menos como animais e os animais mais como pessoas. MÚSICA DA SEMANA PINK FLOYD – “Pigs (Three Different Ones)” “Big man, pig man, ha ha, charade you are You well heeled big wheel, ha ha, charade you are And when your hand is on your heart You’re nearly a good laugh Almost a joker With your head down in the pig bin Saying “keep on digging” Pig stain on your fat chin What do you hope to find? When you’re down in the pig mine You’re nearly a laugh You’re nearly a laugh But you’re really a cry.”
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPara-sexual [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]uma biografia não oficial, David Cameron foi acusado de ter metido o pénis na cabeça de um porco morto. Necrofilia para uns, zoofilia para outros. O que pensar de alguém que coagido ou não, durante a sua juventude, tenha enfiado o seu órgão sexual numa carcaça animal? Perdão, tenha simulado um falaccio com a decapitada cabeça de um porco? Se era ou não a real fantasia do primeiro ministro britânico, nunca o saberemos. Nem se o evento de facto aconteceu, não é o tipo de coisas que se confessem ao mundo. Lembro-me da primeira vez que entrei numa sex shop e de ter visto em destaque filmes pornográficos com cavalos Lusitanos. Reparem: não eram uns cavalos quaisquer, eram cavalos Lusitanos. A fantasia vai tão longe quanto à raça de cavalo. Lembro-me também quando fui ao museu erótico em Paris, e que atenta aos filmes pornográficos dos anos 30 (filmes mudos!) aparece um cão a participar na actividade. Zoofilia soa-me a uma coisa estranha. Poderia tentar entender momentos de desespero, puros e ocasionais, para justificar o acto. Contudo, de acordo com o Kinsey, 40 a 50% dos rapazes que cresceram em quintas experimentou sexo com um animal pelo menos uma vez. Mas há quem se auto-denomine de zoófilo, e nesses casos a atracção é recorrente e o acto regularmente praticado. Pelas mais variadas razões: porque a atracção sexual é forte, porque querem expressar o seu amor e afecto pelo animal ou porque os animais são mais fáceis de satisfazer. E há diferenças entre a forma como sexualmente te relacionas com o animal. As classes de zoofilia começam com o role-play (quando pedes que o teu parceiro se mascare de um animal qualquer para uma noite kinky) e vai até à exclusiva relação sexual com animais, e mais ninguém (humano). Há até diferença entre sexo com um animal com ou sem afecto, a última mais comummente designada por bestialismo, o acto onde se esturpa o animal, pura e simplesmente. A zoofilia é só uma de muitas parafilias que por aí andam, nome generalizado que se dá ao comportamento sexual desviante. À necrofilia e à zoofilia juntam-se muitas mais. Muitas, mesmo. Cyprinuscarpiofilia descreve uma especial excitação sexual por… carpas. Sim, carpas. O porquê vai para além da minha compreensão. Temos ainda galaxiafilia que descreve a atracção sexual pelo aspecto leitoso da via láctea. Talvez uma tendência natural para os amantes de ficção científica? Para mais parafilias surpreendentes, sugiro a pesquisa. Não se vão arrepender. Para regulamentar estes desvios no comportamento sexual temos um livrinho chamado DSM, manual de auxílio a psiquiatras e psicólogos no diagnóstico de psicopatologias, que entre distúrbios da mente, tenta definir os distúrbios do sexo. A definição tem estado em constante desenvolvimento porque tem-se percebido que umas preferências sexuais estranhas não são necessariamente patológicas. Será considerada patologia se a tal preferência levar o indivíduo a seriamente magoar-se a si próprio e ao outro, física e psicologicamente. Mas há contudo, preferências sexuais que consensuais entre o casal são desenvolvidas na esperança de contribuir à satisfação plena. Por exemplo, práticas leves de sadomasoquismo ou os mais variados fetiches. Todos felizes. Sim, é preciso que fiquem todos felizes. Urofilia é o prazer sexual em urinar para cima do outro ou receber urina do outro. Sem consenso seria de uma violência (surpresa!) extrema. Não é para todos. A lição a ser tirada é que preferências estranhas não são anormais, são só diferentes. E cada vez mais, culturalmente, se aceitam extravagâncias que com sentido crítico se incluem no mundo da possibilidades sexuais. Só reflecte a necessidade criativa sexual. Filmes, música, literatura, moda, arte, cada vez mais exploram o enfraquecimento de fronteiras, outrora rígidas, mas agora flexíveis do que uma sexualidade normal poderá envolver. Salvaguardando, contudo, que existem práticas condenáveis que clinicamente se definem como distúrbios, de consequências médico-legais. O trabalho de casa para esta semana é esse mesmo. Descobre a saudável parafilia que há em ti.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesA caridade do Pornhub [dropcap style=circle’]E[/dropcap]m Macau, a atribuição de bolsas de estudo não constitui problema para os nossos estudantes. Diversas empresas estão dispostas a atribuí-las a quem tiver bons resultados escolares. No entanto em Hong-Kong as coisas são diferentes. São concedidas menos bolsas de estudo do que entre nós. Agora imagine! Se precisasse de uma bolsa de estudo e uma determinada empresa estivesse disposta a concedê-la, ficava contente não é verdade? Mas o que é que acharia se a oferta partisse da empresa “Pornhub”? Pornhub é um dos maiores websites de vídeos para adultos. Exibe filmes pornográficos. A 3 de Setembro último, o website “discuss.com.hk” publicou uma notícia onde se fazia saber que a Pornhub estava a oferecer uma bolsa no valor de 25.000 dólares americanos. Os requisitos eram simples. Aos candidatos era pedida uma média de 3.2, a apresentação de um texto sobre o tema “Como podemos lutar para fazer os outros felizes?” e a realização de um vídeo com a duração de cinco minutos que “demonstre os méritos do seu trabalho e algo mais que queira apresentar.” Mais à frente a Pornhub esclareceu que os estudantes que desejassem vir a trabalhar na empresa não precisavam de se candidatar. A Pornhub apenas julga os estudantes pelo valor das suas mentes e dos seus corações. A “pornografia” não era para ali chamada. O Vice-President da Pornhub, Corey Price, fez saber, via e-mail, que a empresa decidiu atribuir bolsas de estudo por fazer sentido nesta fase do seu percurso. É uma forma de retribuir e proporcionar novas experiências e oportunidades aos fãs da Pornhub. Críticas favoráveis e desfavoráveis fizeram-se ouvir após este anúncio. Por um lado um comentador sugeriu que representa mais uma bolsa, logo os estudantes terão mais escolhas. Por outro lado, o mesmo comentador, acrescentou que alguns estudantes terão de “fechar os olhos” ao candidatarem-se a esta bolsa. Não vão ter em linha de conta os prejuízos que a pornografia traz à sociedade. Este tipo de bolsa representa mais uma “promoção do negócio” no mundo empresarial. Independentemente do ponto de vista de cada um, podemos afirmar que, na sociedade chinesa ver pornografia levanta sérios problemas morais. Os jovens estão proibidos de ver este tipo de vídeos, porque os encoraja a ter relações com vários parceiros. É claro que temos também de salientar que hoje em dia a educação é preciosa para a juventude. Como as propinas são muito elevadas, os estudantes com boas médias contam com as bolsas de estudo para os apoiar. Os estudantes com médias mais baixas já não podem contar com estes apoios. É possível que os empréstimos governamentais ou bancários lhes possam valer até certo ponto, mas o problema financeiro persiste. A bolsa da Pornhub pode vir a ajudá-los por um lado, mas também os pode prejudicar, porque é uma forma de promover a pornografia junto deles. Mas para além da promoção da pornografia, também nos devemos preocupar com o facto de os estudantes poderem vir a tornar-se actores nestes filmes. Em 10 de Outubro de 2010,, o website “hk.apple.nextmedia.com” publicou a história de uma estudante da Arizona State University, Elizabeth Hawkenson. O artigo fez-nos saber que a jovem se tinha tornado actriz de filmes pornográficos. Elizabeth contava que por causa da necessidade de pagar as propinas, que são muito elevadas, precisava de dinheiro e por isso aceitou começar a fazer filmes pornográficos. Só para mostrar que era maior, ela exibia o cartão da Universidade no filme. Despia-se, deixava-se filmar e depois faziam amor. O fotógrafo pagou-lhe 2.000 dólares e garantiu-lhe que o vídeo só estaria disponível para quem quisesse pagar. Ou por outras palavras. Não há dinheiro, não há vídeo! Este caso foi denunciado por outro estudante que frequentava a mesma Universidade de Elizabeth . Se a queixa for fundamentada, a bolsa de 33.000 dólares, que lhe tinha sido concedida pela Universidade, pode ser confiscada e o resto das mensalidades retirado. Podemos afirmar que Elizabeth participou num filme pornográfico porque precisava de dinheiro. Este experiência, vinda do outro lado do oceano, pode sugerir-nos outra história. A 18 de Outubro de 2012, o website “nownews” anunciou que Chan Kit Ngan, estudante de Direito da Universidade de Singapura, tinha carregado para o seu blog, um vídeo de cariz sexual. No filme ele simulava violar a namorada. Desafiava ainda o público a comentar o seu desempenho sexual. Chan Kit Ngan tinha recebido uma bolsa para frequentar a Faculdade de Direito. É evidente que a publicação deste vídeo não foi movida pela necessidade económica Ele próprio afirmou, no decurso da notícia publicada:, “Como é que a Universidade vai lidar com este caso? Cancelamento ou confiscação da bolsa? Não posso dizer que o assunto não me preocupe, mas se a Universidade for para a frente com o processo, terei de aceitar. Agora já tenho a minha empresa e as minhas poupanças.” Pela notícia também ficamos a saber que a namorada de Chan Kit Ngan teria afirmado que, mal terminou a Universidade, soube que gostava de se despir da cintura para cima; ou seja, mostrar os seios. Queria ser actriz de filmes pornográficos. A bolsa oferecida pela Pornhub sugere-nos que, ao aceitá-la, estamos a acrescentar mais um contributo à nossa sociedade, mas, ao mesmo tempo, estamos a aceitar a promoção da pornografia entre nós. Podemos ainda pensar que as propinas elevadas podem dar azo a que os estudantes venham um dia a actuar em filmes pornográficos. Se um caso como o de Elizabeth surgir entre nós, como é que as nossas instituições irão lidar com a situação? Existem, a nível escolar, regras para lidar com estes problemas? Para terminar, como é que as escolas podem lidar com casos como o de Chan Kit Ngan, em que a participação não é movida por necessidades económicas, mas sim por desejos pessoais? Estas são questões que nos merecem alguma reflexão. * Consultor jurídico da Associação de Promoção de Jazz de Macau Blog: https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Tânia dos Santos Sexanálise VozesEm Trabalhos [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]sexo pode ser muita coisa, um trabalho também. O sexo dá trabalho, claro, não fosse uma actividade física de alto rendimento calórico. Mas o sexo é trabalho para muita gente. A indústria do sexo gera uma quantia generosa por ano porque há quem goste de consumir, e muito. Na minha limitação de conceitos de economia, consigo bem entender a lei da procura e da oferta: se há quem quer, há quem faça. Mas quem são estas pessoas que o fazem? De onde vêm, como se vêem, como as entendemos? Os mais atentos devem-se ter deparado com a notícia que recentemente correu sobre uma professora de música do ensino secundário nos Estados Unidos da América a quem a vida na pornografia foi desvendada e consequentemente, viu-se obrigada a desistir do seu emprego diurno. Nas mais variadas descrições do sucedido houve uma especial preocupação em incluir uma linha como ‘os adolescentes com quem a professora trabalhava, estão livres de perigo’ ou qualquer coisa como ‘estão seguros’. Outro exemplo controverso nos Estados Unidos da América foi o da Belle Knox, uma aluna de direito na Universidade que achou por bem seguir um part-time na pornografia para pagar os seus estudos. Porque vejamos, render-lhe-ia muito mais do que trabalhar como empregada de mesa num qualquer restaurante perto do campus universitário. Quando descoberta, por outro qualquer aluno consumidor de pornografia, foi alvo de ameaças bastante violentas e, assim, ostracizada por todos em redor. Parece que há uma tendência natural em lidar com as pessoas que dão a cara à indústria como se de presidiários se tratassem. Pessoas de uma má influência brutal e, por isso, dignas de ser evitadas e privadas da vida que cada um de nós leva. Estas pessoas são socialmente pressionadas a levar uma vida à parte, num mundo à parte. O mundo do sexo que existe por aí, mas não sabemos bem como. [quote_box_left]”Na minha limitação de conceitos de economia, consigo bem entender a lei da procura e da oferta: se há quem quer, há quem faça. Mas quem são estas pessoas que o fazem? De onde vêm, como se vêem, como as entendemos?”[/quote_box_left] Se já divaguei o suficiente sobre os prós os contras da pornografia anteriormente, tenho a acrescentar esta pequena reflexão acerca de quem para ela trabalha. E, julgo eu, enaltecer o facto de que se tratam de pessoas que não têm como principal objectivo de vida depravar todos aqueles que os rodeiam, ou seja, levar para esta vida pornográfica todos os amigos, colegas de trabalho ou alunos. São pessoas que estão lá porque há outras que gostam de ver pornografia, que até em quantidades saudáveis dão uma outra pimenta saudável ao sexo. São pessoas, espero eu, que fazem o que fazem porque gostam de fazê-lo. E não porque a vida depravada os levou a fazê-lo. Mas eu entendo, não é a carreira de sonho que gostaríamos que uma filha ou filho tivessem. However, people gotta do what people gotta do. Por exemplo, vem-me à cabeça o Lars von Trier que nos últimos filmes, sem pudor nenhum, tem mostrado uma tendência erótico-pornográfica que não é necessariamente má. Má no mesmo sentido com que a pornografia é vista, e de quem a faz. Controversa, sem dúvida, mas não é por isso que pomos os pobres actores à margem da sociedade e a carregar a cruz da taradice. Isto para dizer que trabalho é trabalho com a dedicação que lhe queremos dar, por isso façam o favor de deixar os actores pornográficos em paz e deixem-se de conservadorismo. Estou a pensar na pornografia que dentro das suas especificidades e pressupostos leva a uma discussão diferente do que se pensarmos nos outros produtos e trabalhadores da indústria. Se nos estendermos ao negócio dos brinquedos sexuais, por exemplo, já existe uma tentativa de tornar normal a forma como potencialmente se inclui no nosso rotineiro dia-a-dia. Estou a pensar nas reuniões à lá ‘reuniões tupperware’ com uma demonstração divertida e moderna de criatividade sexual (com acessórios) às mulheres mais interessadas. Uma forma mais discreta para adquirir os produtos mais desejados sem ter que entrar em lojas de montras negras onde temos a sensação que só os sofredores de parafilias entram. Lá está o estigma a atacar as alminhas que tentam apimentar a sua relação romântica ou só mesmo sexual. Claro que se começarmos a procurar sofisticação, sofisticação na indústria, em geral, aparecerá. Porque se há uma tendência para a ver como degradante, para quem consome e para quem a faz, talvez seja interessante desenvolver repostas em tom de contestação. Na esperança de aparecer pornografia de melhor qualidade, feita pelos melhores a ser dada aos melhores. Sem remorsos, sem as nuvens negras da desonra, sem a marca penitenciária do sexo.
António Conceição Júnior VozesOs janízaros À medida que o desenvolvimento social cresce, os núcleos expandem-se, por vezes através da migração e por vezes da cópia ou inovação independente levada a cabo pelos vizinhos. As técnicas que funcionaram bem num núcleo mais antigo – quer essas técnicas sejam a agricultura e a vida nas aldeias, as cidades ou estados, os grandes impérios ou a indústria pesada – disseminam-se por novas sociedades, novos ambientes. Por vezes essas técnicas florescem no seu novo enquadramento; por vezes, avançam aos tropeções; e, por vezes, precisam de modificações gigantescas para funcionar de todo. Ian Morris in “O Domínio do Ocidente” [dropcap style=’circle’]K[/dropcap]ublai Khan, neto de Gengis Khan, fundou formalmente a dinastia Yuan (1271-1368), a primeira experiência de “achinesamento” da cultura nómada dos mongóis por uma outra, bem mais poderosa, a que se poderá chamar, com propriedade, a cultura Han, ou seja, a cultura e civilização multimilenária da China. Sucedendo aos Song, os Yuan depressa foram envolvidos pelo nacarado da ostra chinesa e, num breve espaço de meros 97 anos, brilharam efemeramente no universo chinês. O retorno à cultura Han sucedeu-lhe prontamente, por via da emergência dos Ming (1368-1644), mas de novo veio a queda do Mandato Celestial, agora em favor dos nómadas provenientes da Manchúria, os Qing (1644-1912). A corrupção e a decadência deram origem então à emergência de um conceito ocidental, inteiramente estranho à China: a República que, após alguns percalços, se iria manter e progredir até aos dias de hoje. Se a “sinificação” por poderio cultural englobou mongóis e manchus, isto é, quando os conquistadores se tornam reféns da cultura do território conquistado, o processo subsequente constituiu – através das atribulações dos finais da última dinastia – a lenta emergência do Ocidente no Celeste Império. Efectivamente desde a China dos Tang, séc. VIII que comunidades de Judeus se instalaram na China, precedendo Marco Polo, século XIII e Matteo Ricci, século XVI, este talvez o mais completo e antigo caso de transculturação na cultura chinesa, como conselheiro do imperador Wan Li. [quote_box_left]Macau precisa de identificar sociologicamente os diversos grupos da sua população para que a operacionalidade dos seus actores anónimos possa integrar-se nos objectivos, direitos e deveres que a consciência da cidadania exige[/quote_box_left] Se a presença de Marco Polo, Matteo Ricci e, no século XIX, as forças ocidentais a imporem os resultados da Revolução Industrial num Império tornado progressivamente obsoleto e culminando nas práticas da regente Tzu Shi, o que se testemunha no dealbar do século XX é a ocidentalização do pai da China Republicana, e dos seus camaradas. Gente culta que curiosamente passou por Macau e a este Território esteve ligada, tanto quanto Matteo Ricci, prontamente decretou a excisão de todas as tranças da subjugação manchú e a adopção de trajes ocidentais. Porém, e dando o salto para a evolução histórica da Grande China e a recente emergência das sociedades de consumo provenientes da economia socialista de mercado, parece existir em Macau uma faixa de gente que se desligou das suas próprias raízes, para abraçar um mundo global cuja complexidade não domina. Este grupo, cuja leitura do mundo é unidimensional, sem domínio de uma segunda ou terceira língua, constitui um desafio sócio-educativo-cultural a merecer ser objecto de um estudo sociológico que permita identificar os diversos graus de absorção do que já se tornou híbrido, e que em quantidades diferentes habitam esta percentagem da população. Daria a este grupo o nome adaptado de Janízaros1 por ter ocorrido neles uma captura da sua cultura original e o trânsito para um patamar ocidentalizado, cuja apreensão tem características de incompletude no processo de apreensão e transição para Ocidente. Assim, os instrumentos e saberes que os informam estão sujeitos a interpretações oscilantes, mediante a perplexidade que cada tema lhes suscita. Macau precisa de identificar sociologicamente os diversos grupos da sua população para que a operacionalidade dos seus actores anónimos possa integrar-se nos objectivos, direitos e deveres que a consciência da cidadania exige. Hoje em dia espera-se por uma Cidadania integrada no global e não na exclusão por incompletude. Dez sultões Otomanos criaram uma força de elite conhecida por Janízaros, formada por homens que tinham sido raptados em crianças, geralmente gregos de famílias de fé católica, educando-os na lei do Islão, no idioma turco e no manejo de armas e artes militares.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesPerturbações nas margens do Lago Nam Van [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]pesar do progressivo declínio das receitas do Jogo que se tem verificado, acredita-se que o governo da RAEM ainda possa continuar a viver desta actividade enquanto o saldo fiscal for positivo. Este período irá desafiar as capacidades das autoridades governamentais de Macau e pôr à prova o seu patriotismo. Será que este ano vai haver aumento nos salários dos funcionários públicos? Se esta questão se colocasse ao nível do sector privado, a resposta seria: se a empresa está a enfrentar dificuldades é uma sorte não haver despedimentos colectivos! Os aumentos de salários estão dependentes da capacidade financeira das empresas. Mas efectivamente a posição das associações representativas do funcionalismo público é sempre a defesa dos aumentos salariais. E quanto ao Plano de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico, será que vai continuar? Se a questão de divisão da riqueza se colocar no seio de uma família, compreende-se facilmente que se os rendimentos dos pais diminuírem a mesada dos filhos terá de baixar! Mas na realidade as organizações laborais exigem a manutenção do Plano. É compreensível que seja bom para os trabalhadores haver aumentos salariais todos os anos e que as crianças não se importem de receber mesadas maiores. Mas se nos colocarmos na perspectiva do governo, a que fontes iremos buscar os financiamentos? De momento esta situação faz-me lembrar um velho ditado chinês: é fácil dividir a riqueza, difícil é dividir as dificuldades. Por falar em dividir dificuldades, algo de novo se passa nas forças da cena política “Liberal e Aberta” de Macau. Em primeiro lugar, a Associação para o Desenvolvimento Comunitário de Macau foi fundada oficialmente e o seu núcleo é formado por membros veteranos e ex-membros da Associação Novo Macau. Em segundo lugar, o presidente da Associação Novo Macau, Sou Ka Hou, saiu do gabinete para prosseguir os seus estudos em Taiwan. O vice-presidente Scott Chiang interrompeu os estudos por um ano e foi eleito para substituir Sou Ka Hou. Estas duas associações passaram a actuar desta forma em Setembro de 2015. A reestruturação foi atribuída a reeorganizações individuais. Mas na realidade representa uma preparação para as eleições para a Assembleia Legislativa, agendada para 2017. Quando associações pró-governamentais se candidatam à eleição para a Assembleia Legislativa têm, frequentemente, apoio financeiro do governo. E por mais que muitas delas tenham prestado um serviço púbico válido, este apoio reforça a sua imagem junto da comunidade. Na medida em que a Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da RAEM não foi revista, o facto de um líder de uma destas associações se candidatar à eleição para a Assembleia Legislativa continua a provocar controvérsia sobre a imparcialidade e a justiça. De facto, estas organizações pró-governamentais têm vindo a organizar as sua campanhas para a corrida à Assembleia Legislativa de forma “invisível” já há muito tempo. Comparadas com estas associações e com os grupos políticos apoiados nos bastidores por interesses ligados ao jogo, as forças da cena política “Liberal e Aberta” estão em desvantagem na corrida para a eleição à Assembleia Legislativa. A Associação de Novo Macau está limitada a nível de recursos e também por estratégias que adoptou no passado, e não tem um apoio sólido da comunidade. Na eleição para a Assembleia Legislativa de 2013, a Associação obteve menos votos do que em anos anteriores. Este facto foi um sinal de alerta. Embora este retrocesso pudesse ter sido transformado numa motivação para o aperfeiçoamento, após as mudanças na liderança da Associação em 2014, os problemas de longa data continuaram por resolver e os seus membros mais “seniores” decidiram organizar uma nova frente de serviço comunitário já que não conseguiam colaborar com os novos líderes. A evolução destas associações segue um padrão, que leva à sua continuação ou à sua dissolução. A Associação de Novo Macau evoluiu de um grupo politico único para dois grupos. Se olharmos pelo lado negativo pudemos ver uma divisão de poder, mas pelo lado positivo observamos um crescimento em separado. De facto a Associação ganhou mais poder por ter dois grupos no seu seio! Ultimamente ocorreram alterações individuais na Associação de Novo Macau. Ainda é cedo para afirmar se estas mudanças serão pontuais ou se se transformarão numa força com capacidade de conduzir Macau a mudanças políticas efectivas. Com Sou Ka Hou, o antigo presidente da Associação de Novo Macau, prosseguindo os seus estudos em Taiwan e, observando a forma serena como Scott Chiang, o substituto de Sou, agiu durante a entrevista que deu ao canal português de TV da TDM, leva-nos a crer que a nova geração da Associação de Novo Macau amadureceu depois de passar por algumas provas e atribulações. É possível que tenham algumas hipóteses de ganhar a eleição para a Assembleia Legislativa, agendada para daqui a dois anos. Não é necessariamente mau as receitas do jogo caírem.
Isabel Castro VozesDa podridão [dropcap style=’circle’]É[/dropcap]como se só o dinheiro contasse. Só o dinheiro tem valor nesta esquizofrenia em que Macau se tem arrastado. O dinheiro dos outros é muito e o meu não, o dinheiro que se deu a ganhar aos outros foi tanto e fez o meu dinheiro ser menos. Mas depois vem a austeridade e, afinal, não é nada bom que os outros não façam muito dinheiro, porque se os outros não têm muito dinheiro eu terei ainda menos, eu que conto os trocos que trago no bolso do casaco. Macau vive nesta coisa de não saber como sair da monotonia financeira, a chatice da pataca, a pataca, a pataca, só a pataca. E o dólar de Hong Kong também. Macau não se diversificou (jargão político número um) e Macau viu o fosso entre ricos e pobres aumentar consideravelmente nos últimos anos (jargão político número dois). Macau não aproveitou os anos do crescimento económico pujante (que agora, ao que parece, as vacas são magras) para trabalhar nas áreas em que mais mudanças são necessárias: a segurança social, o direito do trabalho e a educação sobretudo daqueles que mandam, directa ou indirectamente. Não se aproveitaram os dias de glória para negociar a favor de quem não tem cartas na manga. Ainda a protecção da parentalidade. Na semana passada, uma mulher, mãe de filhos, mulher de empresário, caridosa de profissão, deputada à Assembleia Legislativa, veio defender publicamente que a licença de maternidade – esses dois meses incompletos em casa a que as mulheres têm direito – não deve ser aumentada. Melinda Chan tem um argumento: as dificuldades com que se deparam as pequenas e médias empresas. Esta nobre causa económica move-a muito mais do que as dificuldades das pequenas, médias e grandes famílias. O que é preciso é produzir, preferencialmente sem grandes custos. No fim do dia, as patacas é que contam. [quote_box_left]Agora que órfãos, viúvas e desprotegidos choram sobre as previsões trágicas para a economia local, aqueles a quem não interessa que Macau saia da idade das trevas põem o nariz de fora à descarada e abrem a boca sem pudor. Macau que continue a ser das trevas, que as patacas é que importam[/quote_box_left] Fosse Melinda Chan um caso raro e estaríamos nós, todos nós, muito bem. Sucede que não é – a filosofia dominante entre quem manda, directa ou indirectamente, consiste na pouca consideração pelos problemas dos mais fracos. É a lei da pataca, que o dinheiro é que conta. Não se aproveitaram os dias de glória dos casinos para se mudar mentalidades na concertação social. Agora que órfãos, viúvas e desprotegidos choram sobre as previsões trágicas para a economia local, aqueles a quem não interessa que Macau saia da idade das trevas põem o nariz de fora à descarada e abrem a boca sem pudor. Macau que continue a ser das trevas, que as patacas é que importam, os filhos dos outros crescem com mãe ou sem mãe em casa, com o pai presente ou noutro sítio qualquer. Patrões e trabalhadores não se conseguiram entender, ao longo destes anos, em relação ao que devem ser as contribuições para a segurança social. Patrões e trabalhadores ainda não foram capazes de definir um salário mínimo universal que tenha, entre outras virtudes, a capacidade de disfarçar a desfaçatez. Patrões e trabalhadores não se entendem e o Governo, sujeito passivo nestes processos de negociação, foi deixando correr a tinta como mais jeito deu a quem mais manda. Depois há casos como o Dore, que revelam a dificuldade em aceitar que o teu Mercedes é muito maior do que o meu. Numa cidade em que o dinheiro é fácil, não há que seguir pelas estradas mais difíceis, atalha-se e isto vai correr bem, há histórias no passado que acabaram mal mas o passado já passou, vou ali remediado e às tantas ainda volto rico. Alguns não voltaram porque se esqueceram que, em mundos de contornos difíceis, as coisas nunca são como parecem e já se sabia que, mais cedo ou mais tarde, algo deste género iria acontecer. Nesta cidade não há santos e a caridade pratica-se ao estilo de Melinda Chan. A ditadura das estatísticas assusta os mais optimistas e há mesmo quem diga que isto já deu o que tinha a dar. O pessimismo que se instalou é de uma extraordinária conveniência à manutenção da podridão. Este Governo de boas intenções feito vai ter a tarefa dificultada por quem não quer, de modo algum, deixar de ganhar patacas, muitas patacas, dinheiro, imenso dinheiro. Afinal, pobres dos pequenos e médios e grandes empresários que já se vêem em apuros porque as mulheres engravidam e ficam confortavelmente em casa a olhar para desinteressantes recém-nascidos, num desmerecido ócio subsidiado com o suor dos patrões que labutam de sol a sol. E ainda há quem ande por aí a falar de salário mínimo. São as patacas, estúpido.
Leocardo VozesBali (a ilha, não do verbo balir) [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão há nada mais chato que ter que aturar um tipo a falar das suas férias, daquilo que viu, de como se divertiu e tudo isso, certo? Dá logo vontade de o mandar a tal sítio, e já agora esse sítio pode ser o mesmo onde passou as tais férias – “Olha, se gostaste tanto, porque é que não ficaste por lá?”. Digam lá se é ou não é o que dá vontade, em vez de ostentar aquela expressão idiota, com um sorriso de parvinho, anuindo com a cabeça e repetindo a cada cinco segundos “Ai sim? Que giro…”, intervalado de quando um vez com “tenho que lá ir, também”, como se se estivesse a falar de um lugar a meia hora daqui, e que desse para ir lá já amanhã. E se o tipo mostra fotografias, algumas em calções, exibindo a pança e as patorras calejadas? Ui! E quando se gaba dos descontos, ou das promoções, e outras coisas de que milhares como ele usufruíram, mas de que julga ter o exclusivo, como se fosse o Emir da Fartónia? “Last but not least”, há ainda os que evidenciam aquilo que eu chamo “síndrome de Álvares Cabral”: falam do local onde estiveram como se tivessem sido os primeiros, e até agora únicos, a ter lá ido. É terrível ter de ouvir falar das férias dos outros, sim, mas consigo pensar em tanta coisa pior, sei lá, a escravatura sexual, por exemplo. Isto tudo por dizer que…ah sim: estive em Bali. Sabiam??? Juro! Foi o máximo! Falando a sério, fui mesmo a Bali, e foi mesmo o máximo, e no parágrafo anterior quis apenas relativizar um bocado a coisa, para não dar a entender que fui a algum sítio de que ninguém ouviu falar, mas onde toda a gente devia ir também. De facto não dou um bom “turista”, e sou incapaz de ficar estuporado a contemplar um monumento, ou uma curiosidade qualquer, como se fosse a primeira vez que sai de Vila Franca da Parvónia, onde a telefonia é a tecnologia mais recente. Gosto é de me misturar com os locais, fazendo de conta que sou um deles, ando a tratar da vidinha, e o melhor é os vendedores da banha da cobra e “otros recuerdos” irem antes chatear os tótós que andam perdidos, de mapa na mão mas no entanto olhando para cima. O que diabo essa gente que procura orientar-se num lugar estranho pensa que vai encontrar olhando…para cima? Uma seta feita de nuvens com a legenda “é aqui”? Mas no caso de Bali torna-se difícil, senão mesmo impossível, passar despercebido, de tão nítidas que são as diferenças entre a minha pessoa e os balinenses (Balianos? Baleeiros? Balios?) – é o que acontece quando se nasce branco e sem graça nenhuma. E a diferença é Bali, e parecendo isto um chavão já mais que gasto, ali pode-se mesmo aplicar no seu estado mais puro e duro. Antes de ter lá ido tinha uma noção de que Bali era uma ilha do arquipélago da Indonésia, e assim sendo estaria a visitar “a Indonésia”. Nada disso, e não tendo nada com que comparar, pois nunca estivera antes na Indonésia e posso continuar a dizer que nunca estive, não sei se é melhor ou pior: Bali é simplesmente Bali, e nem sei como é que os Bali-coisos ainda não se lembraram de solicitar a independência, em vez de ficarem referenciados como “mais uma província” da Indonésia. Note-se que nada me move contra o país propriamente dito, e a este ponto gostaria de acrescentar que não tenho agora nem nunca alguma vez tive fosse o que fosse contra este país e/ou o seu povo. Quis deixar isto bem vincado, de modo a desmarcar-me daquelas pessoas que há vinte anos nem podiam ouvir falar da Indonésia e derivados sem desatar logo a berrar “Assassinos! Liberdade para Timor-Leste!”, feito selvagens, e depois foi o que se viu. Não seria de esperar outra coisa quando se nutre um ódio inexplicável por algo situado numa realidade distante e completamente díspar da nossa, e de que nada se sabe. É só para vos recordar dessa triste figura; é o nosso fado, deixem lá. E já que falei de “realidade distante”, foi disso mesmo que me apercebi ao terceiro ou quarto dia em Bali: nunca tinha estado tão longe de Portugal! Estava ali mesmo nos antípodas, mais perto da Austrália do que seria recomendado para quem não gosta de ficar de cabeça para baixo no globo terrestre, e pensei que fosse sentir alguma coisa, um zunido nos ouvidos ou isso, mas nada. Sinceramente, nem dei pelos dias que passavam, de tão aprazível e idílico que é Bali, e as minhas preocupações resumiam-se a pensar o que ia ser o almoço, e depois disso o que iria comer ao jantar, e se teria estômago para tudo aquilo. Claro que estamos a falar de um tempo passado, na minha era pré-Bali, há uns dez quilos atrás. Uma das coisas que mais que encantou foi ver de como existe vida para além dos turistas, e de como estes podem circular livremente sem que alguém os venha assediar, oferecendo CDs piratas, droga, virgens ou rapazinhos, e de como tudo isso se pode lá encontrar na mesma, para quem gosta, sem que o exponham à vista de casais, crianças ou excursões da terceira idade. O pior que me aconteceu foi estarem a oferecer-me transporte para o dia seguinte – as duas palavras que mais ouvi em Bali foram “transport” e “tomorrow”. Se ainda há quem na hora de escolher o destino para umas férias demasiado curtas para ir a Portugal, ou longas demais para ficar em Macau, e acaba sempre por optar pela Tailândia, ao ponto de já saber o nome de quase metade dos habitantes de Pattaya e Kho Samui, proponho Bali como alternativa. Aqueles receios de bolso que se atiram quando se tenta justificar o facto de nunca ter ido a um sítio super-bestial, em vez de dizer apenas “não calhou” ou “não me apeteceu lá ir” que mais se ouvem quando se fala de Bali, são completamente injustificados e patetas; o tal ataque terrorista já foi há dez anos e quase ninguém se recorda, o “tsunami” foi do outro lado do arquipélago, e a religião praticada pela maioria não é o Islão, mas antes uma espécie de variante polinésica do hinduísmo – estou a ver o “haka” da selecção de râguebi da Nova Zelândia? Algo dentro desse género. E por quanto é que sai a brincadeira, afinal? Diria que se paga o dobro do que custariam o mesmo período de papo para o ar na Tailândia, mas tem-se dez vezes mais qualidade. Pensem nisso, e se forem lá depois podem dizer-me se gostaram ou não, mas poupem-me nos detalhes. É que estive lá o mês passado, não sei se já vos contei…
Rui Flores VozesTrabalhador humanitário: profissão de alto risco [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]uma altura em que a vaga de migração para a Europa não parece abrandar e os governos europeus têm dificuldade em encontrar uma resposta comum para um problema que põe em causa a solidariedade europeia, o papel das organizações humanitárias ganha relevo. Na ausência de políticas tendentes a favorecer o acolhimento dos refugiados – como se vê no caso dos países do grupo de Visegrad (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia), que recuperaram uma aliança de sete séculos para rejeitar políticas de acolhimento de refugiados – as pessoas, individualmente, e a sociedade civil, através de organizações, têm tido um papel essencial ao prestarem apoio aos migrantes que tentam encontrar na Europa um porto de abrigo. As imagens correram mundo há semanas, quando habitantes de várias cidades da Alemanha, por exemplo, foram para a rua acolher os estrangeiros recém-chegados. Ofereciam-lhes café, água, roupa, numa verdadeira demonstração de que os refugiados eram bem-vindos. E não o fariam, seguramente, a pensar na necessidade da reposição demográfica do país, razão que muitos apontam, por estes dias, para justificar a boa vontade germânica. Afinal, muitos dos candidatos a refugiados entrevistados pelas cadeias internacionais de televisão falam inglês fluentemente, têm cursos superiores, são técnicos aparentemente capacitados e poderiam com facilidade ser integrados na locomotiva económica alemã, que continua a evoluir a grande velocidade, consequência do excelente desempenho das suas exportações. Mas a dimensão da onda de refugiados veio contrariar um pouco a tese conspirativa de que o afluxo de migrantes à Europa resultava de um interesse particular germânico. [quote_box_left]Quer na Síria quer no Sudão do Sul, a maioria dos bens disponibilizados às populações já são entregues por via aérea, de forma a diminuir o risco para os trabalhadores humanitários[/quote_box_left] O que é facto é que a vaga não tem parado. E ninguém sabe quando vai parar, contingente que depende da resolução de um número de conflitos que persistem em tão díspares locais quanto o Afeganistão, a Eritreia, o Iémen, o Iraque, a Síria ou a Somália. Neste campo da resolução dos conflitos, é naquele que está mais activo, o da Síria, que uma eventual resolução ganha força, quando militares russos e americanos parecem finalmente começar a falar numa possível divisão da Síria em vários partes com a manutenção no poder de Bashar al-Assad. Esta onda de refugiados e o apoio que têm recebido de organizações não-governamentais contrasta, de facto, com a atitude pouco entusiasta com que alguns Estados têm lidado com o assunto. Mas permite também reflectir um pouco sobre o papel das organizações de apoio humanitário e as dificuldades que têm no terreno. Fazendo fé nos dados mais recentes, a comunidade global de trabalhadores humanitários contabiliza 450 mil pessoas. É quase o equivalente a dois-terços da população de Macau que trabalha para agências internacionais como o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Cruz Vermelha Internacional, o Programa Alimentar Mundial, o Fundo das Nações Unidas para as Crianças. Segundo um estudo publicado recentemente pela Humanitarian Outcomes – um centro de investigação e de assessoria na área do trabalho humanitário – só em 2014, houve 190 ataques de grande dimensão contra trabalhadores de organizações humanitárias. O crime mais cometido contra os trabalhadores humanitários é o rapto. No total, houve 328 vítimas em 27 países. O Afeganistão, a Síria e o Sudão do Sul são os países mais violentos. Na verdade, o número de ataques a trabalhadores humanitários diminui quando comparado com 2013. Mas parece que não há grandes razões para celebrar, pois, no último ano, muitas das agências internacionais de apoio humanitário diminuíram a sua presença no terreno, particularmente nas áreas mais inseguras. Ou seja, nos territórios onde as populações mais precisam de ter um mínimo de apoio – água, comida, abrigos, kits de higiene – para viverem no limiar da dignidade, é onde as agências internacionais têm desinvestido. Como está bom de ver, é desses territórios que fogem os refugiados que por estes dias chegam em massa à Europa. Quer na Síria quer no Sudão do Sul, países extremamente perigosos para o trabalho humanitário, a maioria dos bens disponibilizados para as populações já são entregues por via aérea, de forma a diminuir o risco para os trabalhadores humanitários. A Síria é mesmo o maior conflito activo que tem dentro das suas fronteiras uma percentagem menor de trabalhadores de apoio humanitário. Mas os dados sobre os ataques aos trabalhadores humanitários podem nem corresponder à realidade que se vive no terreno. É que, por um lado, as agências internacionais, para evitarem uma contabilidade negativa do aumento do número de ataques, há muito que recorrem às chamadas organizações locais da sociedade civil para fazer a distribuição dos bens que têm para doar às pessoas que deles precisam. As organizações locais, por seu lado, para não perderem o contrato de associação com os grandes da ajuda humanitária, acabam por escamotear o número de ataques que efectivamente sofrem. Ainda para mais, estas organizações, que têm orçamentos limitados e falta de pessoal qualificado, cortam sempre nos custos relacionados com a segurança e são em muitos casos vítimas silenciosas dos conflitos cujos efeitos procuram diminuir.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPrecocemente [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]egundo Freud, a ejaculação precoce é uma tentativa sádica, exclusivamente masculina, de não permitir prazer à mulher (ou seja, planta a semente, mas ela fica a ver navios, orgasmo-wise). Consigo imaginar mais de que um método para expressar este sadismo inconsciente, mas de facto, o ejacular precoce não faz muito sucesso pelo público e tão pouco se encaixa no BDSM praticado actualmente. Mentes mais masculinas até que poderão interpretar esta precocidade como um forte sinal de virilidade. Espero que não sejam muitos. De acordo com o que estive a ler por aí, a ejaculação precoce é tendencialmente vista como problemática. Não sou muito a favor da problematização do que quer que seja, porque daí se desenvolvem certas situações pessoais, emocionais e relacionais. Consigo imaginar a ânsia, os nervos, a expectativa e até a insatisfação com o próprio e com o outro. A ejaculação precoce pode ser um problema, mas não o é, necessariamente. E isso provam as Coreanas, que num estudo mostram que mesmo com namorados que sofrem de ejaculação precoce, o nível de satisfação na relação, de acordo com elas, é bastante alto. Perceber que isto é algo que acontece a uns e a outros, numa ou outra altura da vida, mais ou menos regularmente, é provavelmente a forma mais saudável de ver a coisa. As causas são raramente orgânicas, não é uma infecção ou uma disfunção biológica que irá causar tal pressa no clímax masculino. Normalmente, os causadores, são de natureza psicológica, e não há nada de mais assustador do que pensar que isto não fica curado com uns simples comprimidos. Há que ter uma mente aberta para aceitar que é preciso experimentar umas coisinhas menos usuais, e que provavelmente há trabalhos de casa para fazer. As tácticas retardadoras do processo ejaculatório talvez sejam pensar no futebol, no IRS, na lista de supermercado, nas pernas peludas da sogra ou nas legislativas. Ou o que normalmente funciona, para os corpos simplesmente mais desabituados a sexo, é uma masturbação pré-coito, para acalmar os ânimos. Se o orgasmo masculino precoce é algo um pouco mais recorrente, muito provavelmente estas técnicas não funcionam. Porque é a comunicação entre o corpo e a mente, o pénis e o cérebro, que não entende aquele momento de ‘quase, quase’ lá, para o poder atrasar uns preciosos momentos mais. Por isso, se for qualquer coisa dita de mais problemática há quem tenha desenvolvido terapêuticas. Masters e Johnson sugerem ‘o aperto’ e Kaplan sugere o ‘pára-começa’. Passo a explicar: tanto um e outro são exercícios para serem vistos como tal, e se praticados com o parceiro com regularidade, produzem efeitos a longo prazo. O aperto é qualquer coisa como apertar com o polegar a uretra com a cabeça do pénis entre dois dedos. Isto deverá ser feito assim que o indivíduo se sentir mais próximo do derradeiro momento, o mais próximo que conseguir. Depois de acalmar a ânsia, mas não perder a erecção, retomar o processo. O ‘pára-começa’, acho que conseguem imaginar do que se trata. Para não desanimar as almas sexualizadas, e para clarear a nuvem problematizadora que a ejaculação precoce às vezes carrega, sugiro, então, a reflexão das coisas boas que pode trazer, porque nem tudo é assim tão terrível. 1. Faz sentir uma mulher sexy. Imaginem uma ejaculação descontrolada pelo simples vislumbre de um mamilo, ou de todo um corpo giro. ‘Sou tão boa que ele nem aguentou’. Parece-vos estranho, mas prometo que não é incomum. 2. É fácil, rápido e dá milhões. Para os casais de ambos membros especialmente orgásmicos que desejam uma vida sexual saudável mas que tem pouco tempo para estas coisas. Pessoas ocupadas, que querem dormir a horas e trabalhar no dia seguinte depois da satisfação mútua de se terem por uns bons minutos. 3. Perceber que o sexo não deveria terminar só porque ele se vem. Vejamos, há toda uma selecção de actividades eróticas para prolongar o momento. Diria até que apela à criatividade de cada um. 4. Obriga a comunicação. O que a ejaculação precoce traz de melhor é provavelmente a possibilidade da expectativa sexual, ou até o descontentamento, ser discutido e resolvido. Ejaculação precoce não é de todo o fim do mundo, já se viu que é uma coisa que pode ser muito bem trabalhada. Agora o que se precisa é: pessoas disponíveis para tal. Um apelo pela criativa dissolução do que a ejaculação precoce representa de mau. Assim, na pequena estória da semana passada, imaginem o mesmo desenrolar, e da surpresa e embaraço de ele se vir assim, de repente, vem… tudo o resto que ficou por acontecer.
Hoje Macau Vozes“Aprende com o material geológico sob os teus pés” * Mário Duarte Duque [dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Aprende com o material geológico sob os teus pés” era a proposição 33 das 50 Ideas for the New City, in The Urbanomnibus net, 2011 [https://urbanomnibus.net/ideas/]. Proposição que assentava no princípio de que o que permite fazer melhores escolhas sobre o modo de construir é a compreensão sobre a constituição e sobre o modo como os impactos do tempo geológico afectam o nosso ambiente edificado. Tais processos, designados por geomorfológicos, desenvolvem-se em diferentes escalas de tempo e de espaço, que tanto podem respeitar a uma região como apenas a um local dessa região, mas também processos que tanto se podem manifestar num instante, como numa escala temporal tão dilatada que os tornam imperceptíveis ao longo de gerações. Disso resulta que a interpretação e a definição desses enquadramentos geográficos e temporais, constitui uma base de conhecimento próprio que é intrínseca e essencial desenvolver e organizar em cada localização urbana. Ou seja, o património geológico faz parte da tradição urbanística e física dos lugares, tal como a paisagem edificada e a paisagem natural sobre as quais já recaem convenções de protecção. Por isso, o património geológico, no qual também se inclui o património hídrico, deveriam ser igualmente contemplados como acervo de um grupo cultural. Chegados aqui, a entrevista do Sr. Eng. Lee Hay Ip publicada ontem neste jornal, é pertinente porque não só denuncia a falta de sensibilidade para as questões da geotecnia na RAEM, mas também, senão principalmente, denuncia ignorância dos actuais habitantes da RAEM no que diz respeito a essa realidade que é intrínseca à cultural local. Em verdade, o conhecimento de que era lodo, grande percentagem do solo no local designado hoje para o parque de materiais e oficina do metro ligeiro, poderá ter sido uma incógnita para o Gabinete para as Infra-Estruturas de Transportes (GIT), mas já não seria incógnita para qualquer pescador da região com 60 anos, que poderia assegurar que já não era possível aproximar-se de barco do istmo entre taipa e Coloane, antes da construção do aterro do COTAI, exactamente por causa do lodo. Como está ao alcance de qualquer um interpretar que as encostas de granito da ilha da Taipa descem até ao actual aterro do COTAI, aí afundam, para voltar a emergir na ilha de Coloane. E que, assim sendo, é sob o COTAI que está o vale mais profundo dessa formação rochosa e onde terão que se cravar as estacas mais profundas. Tirando pela distância entre as ilhas, por mera lógica morfológica, admitir-se-ia até que tais estacas fossem as mais profundas que alguma vez se cravaram na RAEM. Mas também nada que qualquer empreendimento efectuado em torno não pudesse confirmar em função das prospecções que necessariamente tiveram que mandar efectuar ao solo. E é assim que, em vez de as sociedades desenvolverem soluções mais adequadas e melhor suportadas no que já deveriam conhecer, protelam tais soluções, porque primeiro há que recuperar o que entretanto desaprenderam.
José Simões Morais Perspectivas VozesMigração questão milenar “JHA is a fragmented policy field that responds to different policy-making rules (intergovernmental and supranational. The development of a JHA external dimension is dependent upon two variables: states’ preferences and historical legacies. The different combination of those variables border management, counter-terrorism and rule of law promotion leads to different patterns and trends. The most general trend identified is that the JHA external dimension, applied to the Mediterranean region, is more dependent upon institutional processes (historical legacies and Member states’ preferences) than upon ideational elements. Contrary to widespread belief, the development of a JHA external dimension started well before 9/11 and was the result of various institutional factors, in particular path-dependency and states’ preferences.” The Mediterranean Dimension of the European Union’s Internal Security Sarah Wolff [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]maior parte das vezes por necessidade, outros obrigados por outros conflitos e guerras, e umas quantas mais pelo desejo de alargar o seu poder, há milhares de anos o ser humano tem emigrado, ou foi deslocado pela força para novos locais ou países, sendo um fenómeno que se repete actualmente, com o fluxo descomunal de cidadãos provenientes de África e do Médio Oriente para a Europa. As previsões da “Organização Internacional para as Migrações (OIM) ”, calculam que mais de quatrocentas e trinta mil pessoas atravessaram o Mediterrâneo para a Europa, desde o início do ano, e cerca de duas mil e oitocentas pessoas morreram ou desapareceram nessa tentativa, e cujo número aumenta diariamente. As previsões podem estar muito aquém do número real, pois milhares de pessoas têm atravessado as fronteiras a pé, provenientes da Síria, Iraque, Afeganistão, Irão e Paquistão à procura de um futuro melhor para si e suas famílias e, muitas das vezes fugindo de conflitos, perseguições e da crise económica. Assim aconteceu na antiguidade com grandes migrações, e movimentos de deslocamento relativamente recentes como as duas grandes guerras mundiais ou a crise dos refugiados na antiga república da Jugoslávia, em que desenraizados carregando nas costas os seus poucos pertences, se sujeitaram a caminhadas enormes de centenas ou milhares de quilómetros. O Alto-comissário das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) estima que existem cinquenta milhões de vítimas de deslocação forçada, incluindo refugiados, requerentes de asilo, apátridas e deslocados internos. As primeiras migrações deram-se há milhares de anos de África para a Europa e Ásia, assim como, deste último continente para a América, através do Estreito de Bering, aproveitando o congelamento do mar e o menor nível das águas. É de considerar os povos asiáticos que povoaram partes da Europa. Há mais de dois milénios, indo-europeus que inicialmente podem ter vindo de regiões da Ásia estenderam-se pelo centro e sul da Europa e assim nasceu o mundo greco-latino, embora para o Ocidente foram outros, conhecidos como celtas e germânicos. Os povos gregos e fenícios habitaram extensas terras do norte da África e outras regiões no território europeu e fundaram as “polis”, termo que passou a denominar as primeiras cidades antigas. Ainda existem alguns indícios, de que os Vikings, povos do norte da Europa, pudessem ter chegado ao que é actualmente a América do Norte, muito antes de Cristóvão Colombo, e dessas supostas viagens não existem indicações de que tal facto, tenha criado uma migração, como aconteceu depois da primeira viagem dos genoveses em 1492. Os “Descobrimentos” deram lugar a um grande movimento migratório dos países europeus, liderados por Portugal, Espanha e Inglaterra para o “Novo Mundo”. A extensão do território americano e a sua imensa riqueza natural, também, deram origem à chegada de todo o tipo de europeus que não vieram necessariamente com boas intenções, como ficou provado pela devastação de muitos povos da América Central e do Sul. O capítulo mais vergonhoso da humanidade, após a descoberta da América, foi o tráfico de negros de África para trabalhar e explorar os recursos naturais do novo continente, uma vez que a subjugação dos povos indígenas não foi suficiente para fornecer mão-de-obra para a grande quantidade de trabalho existente. A escravidão que se deu, desde 1500 até 1850, fez chegar doze milhões de negros ao continente americano. Ainda que o descobrimento da América tenha gerado vagas sucessivas de emigrantes europeus, o grande fluxo de pessoas em busca de outras oportunidades no “Novo Mundo”, ocorreu depois de 1800 e não conseguiu parar até à primeira metade do século XX. Estima-se que em quase um século e meio vieram para a América cinquenta e cinco milhões de pessoas. Aos Estados Unidos, desde o final do século XIX chegaram mais de um milhão de emigrantes por ano, particularmente ingleses, irlandeses, italianos, austríacos e gregos que se instalaram inicialmente na costa leste e centro do país, embora muitos tenham atravessado o país para Ocidente, onde a corrida ao ouro durou várias décadas. A primeira e a segunda Guerra Mundial foram, por causa do seu impacto e brevidade, as duas fontes de deslocação e migração dentro da Europa e de outros continentes por comunidades expulsas. Os movimentos que foram criados pelos dois conflitos e que também incluía a redefinição das fronteiras de muitos países são estimados em quarenta e cinco milhões de pessoas. A Guerra Civil espanhola foi um conflito que resultou no exílio de mais de um milhão de pessoas que foram principalmente para a América e, em menor grau para outros países europeus. A independência, e posterior divisão do subcontinente indiano, levou ao deslocamento de mais de quinze milhões de pessoas, principalmente por motivos religiosos, dois anos após o término da II Guerra Mundial. A guerra de três anos e a posterior divisão da Coreia em duas, em 1953, foi também motivo de deslocamento de aproximadamente quatro milhões de pessoas. Os conflitos nos Balcãs, que ocorreram na década de 1990, através de um conjunto de guerras étnicas e religiosas, e que causou a fragmentação da República da Jugoslávia, deixaram quatro milhões de pessoas deslocadas. A África foi assolada por vários conflitos que ocorreram no Sudão, Libéria, Ruanda, Serra Leoa, Tanzânia, Guiné e Etiópia, dos quais resultaram dez milhões de refugiados e pessoas deslocadas. O “Conselho Europeu para a Justiça e Assuntos Internos” reuniu-se em Bruxelas, a 14 de Setembro de 2015, para debater a actual crise de migração, sabendo que a União Europeia (UE) se encontra profundamente dividida quanto à gestão da maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial. A Alemanha tinha anunciado que iria proceder à reinstalação dos controlos na sua fronteira sul com a Áustria. A Áustria, de seguida instalou o mesmo procedimento na sua fronteira com a Hungria e a Eslováquia. A Holanda reforçou os seus controlos e a Polónia e a Bélgica estudam semelhantes medidas. Os ministros do Interior e da Justiça da UE, perante este trágico cenário não conseguiram chegar a um acordo sobre a distribuição de cento e vinte mil refugiados, que seriam adicionados aos quarenta mil que tinham sido aceites em Maio de 2015, dado não ter havido unanimidade, porque a Hungria, Eslováquia, Polónia, República Checa e Letónia, recusaram a proposta. A Presidência do Conselho concordou que antes da realização de uma cimeira de líderes, existiria uma nova reunião a 8 de Outubro de 2015, na qual se poderia votar por uma decisão que não carecia de unanimidade, e o grupo de Estados-membros que se recusaram a aceitar a proposta apresentada, não constituem uma maioria que impeça a aprovação das medidas postas a discussão. Os ministros apenas aprovaram um conjunto de medidas, a maioria quanto ao encerramento de fronteiras e impedimento da chegada de mais refugiados, sendo um dos principais pontos de consenso, a construção de centros de retenção na Grécia e Itália e a detenção de quem pise solo europeu, para separar os refugiados com direito a asilo dos emigrantes económicos. É de recordar que entre os refugiados se encontram muitos terroristas do estado islâmico, que as autoridades europeias se recusam a aceitar, apesar dos avisos de todos os quadrantes, incluindo do Papa Francisco. Os emigrantes económicos estão sujeitos à repatriação. A Alemanha quer incluir na lista dos países donde provêem os refugiados com direito a asilo, o Iraque, dado ter mais de três milhões de pessoas deslocadas internamente, e trezentas e setenta mil refugiados no exterior, sendo lar de duzentos e cinquenta mil refugiados sírios, e ter mais de oito milhões de pessoas a precisar de assistência humanitária e o estado islâmico controlar quase um terço do território. A Turquia não estaria em princípio na lista dada a situação dos curdos. Além disso, não haveria nenhuma distribuição dos refugiados na Europa até os centros de retenção estarem a operar e as fronteiras externas estarem mais cerradas. A Itália solicitou que a “Frontex”, a agência de controlo da fronteira europeia, seja responsável pelo repatriamento de emigrantes sem direito de asilo e que sejam financiados com fundos comunitários. Os ministros também estudaram a criação de mais campos de refugiados na África e no Médio Oriente para declarar que quem se encontre nesses campos não estaria em perigo e, logo, não tem direito de asilo. Além disso, concordaram em aumentar os fundos europeus para o “ACNUR” com o fim de melhorar a vida em campos de refugiados nos países vizinhos da Síria, Turquia, Líbano e Jordânia. A Turquia podia cooperar impedindo a saída de barcos das suas costas. A UE aprovou a segunda fase da operação militar EUNAVFOR Med, destinada a combater militarmente as máfias de traficantes de pessoas no Mediterrâneo. A primeira fase que se iniciou há quatro meses, apenas realizou a vigilância área e marítima, enquanto a segunda fase terá por objectivo deter os traficantes de pessoas e desmantelar o seu modelo económico. A missão só actuará em águas internacionais em virtude da ONU se negar a fazer aprovar uma resolução que permita ao dispositivo europeu a entrada em águas territoriais da Líbia. A hipotética terceira fase incluiria a inutilização nos seus portos, por meios militares, das embarcações que servem de transporte a emigrantes e refugiados desde a Líbia até Itália, mas para ser activada carece de um pedido expresso do governo líbio ou de uma resolução da ONU. As questões relacionadas com a migração serão objecto de novo debate no Conselho JAI de 8 de Outubro de 2015 e no Conselho Europeu, de 15 e 16 de Outubro de 2015. A cimeira especial sobre a migração, realizar-se-á, em La Valetta, a 11 e 12 de Novembro de 2015. Em Setembro de 2010, Kadafi ameaçou a UE de que a Europa se tornaria um continente negro se não lhe fossem pagos cinco mil milhões de euros por ano para parar a vaga de emigrantes de África para a Europa. Esta anedota, que agora pode ser meditada a partir da perspectiva da guerra na Líbia, é realmente triste e sintomática das contradições das políticas da UE para a região ao longo dos últimos anos. O espírito positivo inicial do “Processo de Barcelona” foi ultrapassado por preocupações da “realpolitik” que levaram os europeus a ser menos contundentes sobre a promoção de princípios normativos, tais como a democratização. Em vez disso, parece que as preocupações da migração, controlo de fronteiras e segurança interna da UE tomaram precedência sobre a promoção do Estado de direito e da democratização. Talvez tenha chegado a hora de rever a política externa e de segurança da UE para a região e investigar como as políticas JAI não só devem servir a segurança interna da Europa, mas também poderem contribuir para a segurança dos cidadãos da região. O objectivo de acelerar a liberdade, segurança e justiça na região é mais do que nunca desejável.