Nem bom vento, nem bom alimento

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]ia ontem uma notícia na imprensa local que anunciava o desenvolvimento em curso em Da Nang, no Vietname. Dizia, entre outras coisas, que os junkets organizam 25 voos charter por semana (!) para China, falava de lucros já mirabolantes dos casinos existentes e ainda citava o responsável de turismo local que dizia estarem a posicionar a capital do centro vietnamita como um destino de lazer, praia e de reuniões e convenções. Fiquei mal disposto. Por Macau e por Da Nang. Por Macau porque tem ali um concorrente quase impossível de superar se as coisas continuarem como até agora por aqui. Por Da Nang porque a conheço bem demais, porque conheço bem demais os impactos do turismo massivo, e porque sei bem o que se está por lá a passar, e o futuro não vai ser bonito.
Soa familiar a declaração do responsável do turismo de Da Nang. Demasiado familiar, diria, mas com uma pequena (grande) diferença: praia. Naturalmente, não será pela praia que os turistas chineses (a grande maioria deles, naturalmente) lá irão mas é pela praia, também, que muitos outros, de outras partes do mundo para lá irão cada vez mais. Macau não tem praia, ou seja, Macau não tem uma praia que consiga sequer rivalizar com a China Beach. Mesmo que acontecesse o milagre da despoluição nunca as praias de Coloane conseguiriam fazer frente àquela costa magnífica. Isto para não falar do espaço disponível e de muitas outras coisas que aquela região vietnamita proporciona e que me vou escusar de referir porque nem seria justo, nem faria sentido. Que pode então Macau fazer? Que pode então Macau fazer quando já percebeu (finalmente!) que os turistas da China não bastam e que é preciso diversificar mercados? Macau, como os ingleses diriam, tem de limpar o seu acto, literal e figurativamente. Macau tem história mas tem vindo a perder os seus vestígios com a construção urbana desordenada. Macau tinha um bom ar mas agora, não bastas são as vezes em que é pior do que o ar respirado em Central (HK)! Não acredita? Aconselho então a baixar uma aplicação para telemóvel chamada “Global pm 2.5*” e verifique por si mesmo. À hora de escrita deste artigo, 20:30H, o centro de Macau registava um nível de 130 (considerado insalubre) e Central 85; até Foshan registava menos que Macau com 97 e, pasme-se, mesmo Cantão ostentava menos poluição atmosférica do que Macau (!) ao marcar o nível 104. Caem então pela base as teorias conspirativas que apontam o dedo ao continente para a poluição do território, porque não foi a China que mudou dramaticamente, fomos nós com obras incessantes e mal protegidas, autocarros a perder de vista, transportes públicos do tempo da Maria Cachucha, quando em Shenzhen se fabricam autocarros amigos do ambiente, torres de habitação e casinos que fecham as tomadas de ar da cidade, trânsito caótico. Porque é que o governo permite, e adopta, autocarros movidos a diesel é um mistério sem segredo: porque existem lobbies que viriam os seus rendimentos gasolineiros coarctados. Porque é que se permite a construção desenfreada e praticamente sem regras? Porque existem lobbies que disso dependem e que não estão nada interessados em construir melhor, nem sequer em parar de nos entaipar.
Chegamos aos mercados e é a desgraça. Fala-se nestes dias em Hong Kong que estão preocupados com mais um potencial escândalo alimentar por não saberem se a carne que está a ser vendida ao público está, ou não, carregada de antibióticos. Estes são utilizados por criadores menos escrupulosos para fazerem as aves e os bovinos crescerem mais rápido. Isto surge quando existe uma campanha mundial de alerta para o uso excessivo de antibióticos que está a causar resistências e a torná-los ineficientes. E se eles estão na carne que consumimos, mesmo que não nos encharquemos de antibióticos quanto temos um resfriado, acabamos por levar com a dose no prato. Em Macau nem sequer a rotulagem é uma preocupação. Rótulos exclusivamente em chinês, carnes que congelam e descongelam, armazenamentos da idade da pedra… Assim nunca seremos um destino de nível mundial, nem regional quanto mais mundial.
Macau precisa de visão e de coragem se não quiser transformar-se na quimera de destino mundial de lazer num destino irrelevante para turistas manhosos que tanto se lhes dá assim como assado. Macau precisa de saber honrar a sua história, de proteger e dar vida ao seu património, ocidental e chinês, e deixar apenas de pintar fachadas. É absolutamente necessário dar conteúdo às fachadas, não podemos ter Lilaus fantasmas anos a fio porque o património vive-se não se admira. Temos de saber honrar a distinção da UNESCO e acabar com a salganhada que é hoje em dia o centro histórico da cidade onde cada um monta o reclamo como lhe apetece e que, como alguém me dizia no outro dia e muito bem, parece-se mais com o free-shop de um aeroporto do que com o centro de uma cidade secular. Macau precisa de esplanadas, precisa de tirar carros e autocarros da rua, mesmo de fechar ruas ao trânsito, precisa de apoiar o comércio tradicional, precisa de se ligar mais às artes, ao ensino de qualidade, ao verdadeiro lazer que não passa apenas por piscinas de ondas e salas de cinema XPTO, mas pelo prazer de caminhar, de descobrir uma cidade secular e viva onde apetece descobrir ruas e becos e não mais uma loja de ourives de Hong Kong – como eles por lá se devem divertir agora; vieram para aqui fazer o seu à custa dos parolos enquanto vão recuperando a sua cidade para, eles sim, a transformarem no tal destino turístico mundial que Macau sonha mas não tem unhas para arranhar. Não podemos mais ser provincianos e temos de saber aproveitar os ganhos da época de ouro para transformar esta cidade num local onde as pessoas queiram vir e, acima de tudo, estar. Uma cidade ecológica, moderna mas tradicional, onde a vida seja um prazer de facto e não um prazer de catálogo e filmes institucionais. Uma cidade que honre a sua história e a sua forma de vida e não um gueto de proibições, centro comercial foleiro e descoordenado, purgatório luminoso sem eira nem beira.
Para isto Macau precisa de coragem política, como a que teve Alexis Tam ao defrontar os lobbies da saúde privada na assembleia, mas não pode ser só ele, nem pode ser apenas o governo – nós também temos de a ter para exigir, para propor, para deixar os carros em casa e acabar com a desculpa dos filhinhos, coitadinhos, que não podem ir a pé para a escola. Daqui a uns anos eles vão agradecer-nos a boleia quando tiverem uma cidade (ainda mais) irrespirável…
Macau precisa de coragem para tomar decisões que pensem mais no bem comum e menos no bem de alguns. Macau precisa de um plano de transformação urgente. Ou melhor, de um plano de recuperação urgente porque o que está a acontecer agora não nos pode levar a nenhum lugar aprazível porque mais Da Nangs virão.

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*material particulado (sigla em inglês, PM, de particulate matter), são partículas muito finas de sólidos ou líquidos suspensos no ar. Para ser considerado PM, suas dimensões (diâmetro) variam desde 20 micra até menos de 0,05 mícron[1]
As maiores fontes antropogênicas de particulados são a queima de combustíveis fósseis em motores de combustão interna de veículos, termoeléctricas e indústrias e as poeiras de construção e de áreas onde a vegetação natural foi removida.

MÚSICA DA SEMANA
Tema da Banda sonora do filme “Good Morning Vietnam”
“Nowhere To Run” – Martha And The Vandellas
Nowhere to run, baby nowhere to hide
I got nowhere to run, baby nowhere to hide
It’s not love, I’m running from
It’s the heartaches, I know will come
’Cause I know, you’re no good for me
But you’ve become a part of me
Everywhere I go, your face I see
Every step I take, you take with me, yeah
Nowhere to run, baby, nowhere to hide




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