Má sorte ser jornalista

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]diário i e o semanário Sol vão fechar em Portugal. Alegadamente darão lugar a um novo projecto mediático.
Isto é uma péssima notícia. É dramático, naturalmente, para os 120 profissionais que vão ser despedidos. E para as suas famílias. Entre aqueles que vão agora para o desemprego estão sobretudo jornalistas. Desde o início da crise financeira de 2008, já terão sido despedidos em Portugal 1200 profissionais do sector da comunicação social. Um olhar mais distanciado destas duas redacções e menos próximo dos 120 dramas por que estas pessoas estão por estes dias a passar, o que esta notícia revela é que a liberdade de expressão fica mais pobre, o pluralismo mitigado e a capacidade de todos nós conseguirmos interpretar o mundo diminuída.
É evidente que este não é um problema específico do sector da comunicação social. Infelizmente. É transversal ao sector empresarial português. A crise – convém sempre recordar – começou por ter natureza financeira. Mas depois de ter afectado profundamente a economia portuguesa, continua ainda hoje, acima de tudo, a ser marcadamente social. Isto explica, por exemplo, que, nos quatro últimos anos, tenham saído de Portugal, para procurar trabalho no estrangeiro, temporária ou permanentemente, mais de 485 mil pessoas. O que os dados do Prodata nos dizem também é que, desde 2008, encerraram sempre mais empresas do que aquelas que abriram, com a excepção do ano de 2013 (os números do ano passado ainda não estão disponíveis).
Sem dados tão sistematizados acessíveis online, no sector da comunicação social podemos apenas pintar o quadro das últimas décadas. Nos anos da pujança económica e da inundação de Portugal com fundos comunitários, centenas de jornalistas foram formados. Foi um fenómeno, que coincidiu com a explosão das rádios piratas e a subsequente legalização do sector. Não foram apenas os cursos universitários, quais cogumelos, que se reproduziram um pouco por todo o país. Também os cursos técnico-profissionais levaram a que fossem chegando ao mercado profissionais qualificados, que foram entrando nas redacções, rejuvenescendo-as, e trazendo um pouco mais de conhecimentos teóricos aos seus profissionais. Os jornalistas da “velha guarda” – da tarimba –, formados no dia-a-dia das redacções, foram paulatinamente cedendo os seus lugares aos jovens vindos das universidades.
Com a crise económica, as receitas da publicidade caíram e as empresas de comunicação social foram ao longo dos anos procedendo a reestruturações que conduziram inevitavelmente a despedimentos. Em parte, isto tem muito que ver com os avanços tecnológicos e com as diversas tarefas – outras – que os jornalistas passaram a desempenhar.
Os tempos são completamente diferentes hoje nas redacções do que eram há apenas duas décadas. O advento da internet, primeiro, e do social media, depois, modificou totalmente o papel desempenhado pelo jornalista. Não foi assim há tanto tempo que as equipas de reportagem eram constituídas por quatro pessoas: o motorista, o repórter de imagem, o jornalista e o paquete que carregava o material. Eram tempos extraordinários. Quando se saía da redacção para se fazer a cobertura de um incêndio e o motorista não estava imediatamente disponível, corria-se o risco de que quando lá chegados, o incêndio já tinha sido controlado ou mesmo debelado. Isto era um drama para as televisões (ou melhor, televisão, que só havia uma), pois não haveria imagens para mostrar das labaredas. Agora, passe a imagem, o jornalista vai sozinho em reportagem, mais o seu bloco de notas, câmara de filmar e gravador.
A primeira grande alteração foi a introdução dos telemóveis. Subitamente, os jornalistas deixavam de estar obrigados, quando estavam em reportagem no interior do país, a descobrir um estabelecimento comercial que os deixasse usar o telefone para ditar a notícia para a redacção ou a gravar pela linha telefónica. Era ainda preciso parar o carro – é um facto –, levantar a antena do “tijolo” do telefone móvel, escolher uma localização em que o sinal da operadora fosse suficientemente forte para a voz ser escutada e gravar a peça.
Com a internet, o jornalista deixou de escrever apenas uma estória, para o dia seguinte. Passou a ter de actualizar regularmente o website de publicação. Se numa primeira fase os jornais ainda estabeleceram secções para o online, recorrendo às centenas de licenciados que estavam a sair dos cursos universitários, há muito que o jornalista é agora uma espécie de três-em-um. Faz a peça para o online, para a TV e para o jornal do dia seguinte. Põe som e imagem no website e ainda escreve uns parágrafos, as mais das vezes, do sítio onde está em reportagem. São tempos totalmente diferentes. Com a digitalização da rádio, o técnico de som saiu de cena – é agora o jornalista que produz e grava a peça sozinho.
Com estas inovações tecnológicas, a par com os cortes salariais, as reduções de quadros e a crise no sector, o jornalista médio deve hoje produzir três vezes mais do que acontecia há 20 anos e aufere, em média, consideravelmente menos do que se ganhava então.
O resultado de tudo isto, para o consumidor final, é o triunfo do jornalismo mainstream, suportado financeiramente por meia dúzia de empresas transnacionais, com interesses em áreas de negócio estratégicas. E leva a que o jornalista sobrevivente, aquele que ganha menos agora do que quando chegou a chefe há 15 anos, se interrogue sempre, e cada vez mais, se tem “tempo” para escrever sobre esta ou aquela estória. Talvez não haja. Sistematicamente.
Uma das grandes consequências disto tudo é o desinvestimento no jornalismo de investigação. Com algumas honrosas excepções, como a RTP – viva o serviço público! – e o seu programa de investigação emitido às sextas-feiras, pouco se investiga em Portugal. E o aumento de popularidade de blogues independentes, que fazem um esforço para tentar enquadrar a actualidade. De resto, de uma maneira geral, estamos todos a deixar de nos interrogar como é que tão rapidamente nos foi dito que havia um passaporte sírio ao lado de um dos alegados terroristas que se fizeram explodir em Paris, ou como havia uma câmara de televisão a filmar o avião de combate russo a ser abatido pela Força Aérea Turca, em terra de ninguém, um dia depois de uma cimeira Rússia-Irão.

(Em memória do Francisco, que, há 23 anos, me desafiou a ser jornalista.)

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