Carta a Lili (Não tenhas medo)

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ara Lili,

Pode ser que esta minha missiva te apanhe de surpresa, mas não é nem nunca foi minha intenção invadir a tua zona de conforto, e espero também não te apanhar de mau humor, como dizes ser do teu timbre. Em primeiro lugar gostava de esclarecer que aquilo que tenho para te dizer não é necessariamente dirigido a ti, mas a quem queira tirar das minhas humildes palavras as ilações que considere oportunas, e mesmo que daqui se possa aproveitar alguma ideia, lembra-te que tens um bem precioso com que todos nascemos mas infelizmente nem todos se podem orgulhar de fazer dele o uso: o livre-arbítrio. Este nosso dom de poder escolher o nosso caminho, depois de termos sido inicialmente levados pela mão dos nossos pais, e dotados do saber transmitido pelos nossos mestres, provém de um outro igualmente inato, mas de mais difícil gestão: a liberdade. Este valor da liberdade assenta numa base menos sólida, mas onde ao mesmo tempo cabem as liberdades de toda a gente – “a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros”, não é apenas uma frase feita. O mais difícil mesmo é aceitar o que cada um entende por liberdade, e a medida da mesma que considera a melhor para si.
Se mais nada sabes de mim, Lili, sabes pelo menos que as distâncias nos separam; tu aí, no coração de Portugal, e eu aqui na Ásia Oriental, em Macau. O que nos une, quer queiramos quer não, é aquele grande abraço que um dia esse lugar que agora chegou a vez de ser teu deu ao mundo, e da ponta de uma das mãos abertas estás tu, e na outra estou eu, e em comum temos aquele sentimento que por vezes nos faz ficar mais próximos, que é a “Portugalidade”, aquele sentimento do ser lusitano que os nossos emigrantes tão bem exteriorizam e que nos faz encher o peito de orgulho. Pode ser que a forma como entendes este conceito seja diferente da minha, mas nenhum de nós está errado, e muito menos estará completamente certo. Ultimamente gostava de poder dizer que estou errado, e que não é esta a noção do ser Português que se recomenda, pois está muito longe da ideal e que passa em primeiro lugar por amar Portugal, o nosso país herdado dos nossos ancestrais. Mas se por um lado uma herança é parte do património individual ou dos bens de uma dada família, Portugal é a herança de todos, inalienável, indivisa, e tal como a própria liberdade, frágil e sujeita a que a diminuamos, deixando-nos com mais do que uma perda irreparável: um grande vazio no tal peito, outrora inflado de orgulho.
Mas vê se consegues perceber onde eu quero chegar, Lili. Somos aquilo que fomos, que fizemos, que ousamos um dia ser, e que em tempos foi muito mais do que somos hoje. Fomos uma das nações que de mundos ao mundo, e se daí se podem tirar coisas más e coisas boas, uma das boas foi o mundo ter ficado a conhecer-nos, e posso-te garantir daqui, do outro lado desse mundo, que nos olham mais como uma das suas partse integrantes, do que como um “invasor”, e quer gostemos ou não da palavra, é aquilo que um dia fomos. Curiosamente aqui os chineses referem-se a nós como “os piratas”, mas se para eles isso pode ser entendido de outra forma, para nós um “pirata” é um aventureiro, um destemido navegante dos sete mares, enfrentando desafios, vencendo batalhas, perdendo outras, e no ponto da História em que nos encontramos e ajudamos a escrever, deixa-nos onde estamos agora, eu aqui, tu aí, separados pela distância, e na soma de tudo o que somos, unidos pela Portugalidade.
Não sei nada de ti, Lili, nem tu de mim, mas és capaz de reconhecer em algumas das valências que nos aproximam aquele que foi o relato por excelência desse nosso passado que ainda faz eco no presente, e a que o poeta que ainda hoje todos comemoramos deu o nome de “Os Lusíadas” – que somos nós, e se temos consciência desse facto, talvez nem sempre o tenhamos presente em todos os momentos. Se alguma coisa retemos da epopeia narrada por Camões nessa obra que tantos de nós tratou injustamente por nos ser imposta enquanto jovens, tempo em que nos queriamos impor, foi a persistência e a coragem das nossas gentes. Se te pedir para me dizeres três personagens d’”Os Lusíadas” se calhar respondias o mesmo que eu: Baco, o velho do Restelo e o Adamastor. É engraçado quando o personagem principal somos nós mesmos, e as referências que nos vêm à memória são as das nossas adversidades. Mas isso não tem que ser necessariamente mau, ou uma expressão do nosso incontornável fatalismo, a que tão irremediavelmente entregues ficámos, que fizemos dele a nossa canção, e lhe demos o nome de fado.
E por falar em fado, também esse começou por ser invariavelmente triste, mas mais uma vez demos a volta por cima, e ora gingando ora cantando ao desafio, fizemos orelhas moucas das palavras do velho do Restelo, e fomos enfrentar o Adamastor, e imunes às ciladas de Baco fechamos os braços à volta do mundo, com a ilha dos Amores de portas escancaradas para nos receber, e onde somos sempre bem vindos. É por isso que me entristece que não nos encontremos num destes imensos pontos que temos em comum, e mais uma vez gostava de estar rotundamente errado. É nos momentos mais extremos que nos damos a conhecer, e da ponta da mão que abraça o mundo, olho para essa mão e vejo-a recusar segurar a mão de quem dela mais precisa, e por motivos que, seja eles qual forem, nada têm a ver com o impulso que nos fez meter nas Caravelas e enfrentar o Adamastor, que é o medo. Todos temos medo, uma vez ou outra, mas nunca devemos ficar unidos pelo medo, pois mesmo que nunca cheguemos a enfrentá-lo, o Adamastor ganha sempre.
Tanto eu como tu Lili, temos filhos, e os teus ainda mais pequenos que o meu rapaz, que é o único herdeiro que tenho, e queremos para eles o melhor, naturalmente. E queremos ainda que possam usufruír do melhor em plena liberdade, e dotados de um espírito crítico, advertendo-os dos perigos que são os Bacos e os Adamastores desta vida. É por isso e só por isso, Lili, que portas fechadas, ou neste caso as fronteiras que um dia estendemos até este ponto longínquo onde me encontro, e acreditar numa mentira por ser parte de um todo que achamos o mais válido, não se coadunam com essa liberdade, e serão com toda a certeza o ferro que fere de morte o espírito crítico que os impedirá de não comer do que não gostam. Um abraço do tamanho do mundo, Lili. Até à próxima, e sem medo.

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