Enquadramentos e pontos de fuga

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 6ª Assembleia Legislativa iniciou os trabalhos esta segunda-feira, com a cerimónia de juramento de lealdade dos 33 deputados, que teve lugar durante a parte da manhã. A primeira reunião plenária aconteceu durante a tarde tendo-se procedido à eleição do presidente, do vice-presidente e dos 1.º e 2.º Secretários da Assembleia. A ordem de trabalhos afigurava-se simples, mas ao longo da discussão dos vários pontos percebeu-se que a questão era mais complexa. Tratava-se de um plano bem pensado para estabelecer o enquadramento político da Assembleia.

Existem 14 deputados eleitos por sufrágio directo que, se se agruparem, acabarão por vir a ter uma influência considerável no hemiciclo. No entanto, apenas três quartos actuaram em conformidade com o espírito do sufrágio universal durante a eleição do presidente da Assembleia. Os restantes agiram de acordo com o que era esperado, do que resultou uma adesão à pré-estabelecida “lista de enunciados” da Assembleia Legislativa.

Ho Iat Seng foi reeleito presidente da Assembleia Legislativa com 30 votos a favor, resultado por demais esperado. Chui Sai Cheong obteve a vice-presidência com 29 votos, revelando plenamente toda a subtileza das suas negociações com o campo Pró-Regime. No caso de Kou Hoi, a eleição para 1.º Secretário faz parte da sua carreira e do seu percurso na Assembleia Legislativa. A eleição de Chan Hong para 2.º Secretário, resulta de uma troca de favores. Como toda a sessão foi transmitida em directo pela televisão o público pôde verificar as novas disposições na Assembleia Legislativa. Para escapar a este cenário vai ser necessário muito esforço mental durante os próximos quatro anos.

Antes da votação para a presidência da Assembleia, Sou Ka Hou, o mais jovem dos deputados, solicitou a Cheung Lup Kwan, que presidia à reunião plenária, que os eventuais candidatos à presidência do plenário pudessem falar para se ficar a conhecer as suas propostas. Mas o pedido foi recusado por Cheung, que alegou falta de tempo e de precedentes. Além disso nenhum dos outros deputados apoiou o pedido de Sou. Finalmente, os 33 deputados votaram e o resultado foi o que já se esperava. O processo da eleição de Chui Sai Cheong para vice-presidente foi similar, mas teve dois pontos a salientar. Em primeiro lugar, Ho Iat Seng obteve mais um voto de apoio do que Chui Sai Cheong, demonstrando que um dos quatro deputados da chamada “Frente Liberal” aceitou as condições pré-estabelecidas com a condição de não oferecer qualquer resistência. Em segundo lugar, a eleição de Chui Sai Cheong para vice-presidente é uma forma de satisfazer o chamado equilíbrio de poderes entre representantes dos trabalhadores e representantes do patronato. Aliás esta é uma prática habitual desde o regresso de Macau à soberania chinesa. A escolha de Chan Hong para 2.º Secretário não passa de um arranjo de bastidores. Aparentemente, o vice-presidente da Assembleia Legislativa não tem grande autoridade nem responsabilidade, mas a alteração no enquadramento político significou uma mudança na distribuição de poderes.

Antes do Chefe do Executivo ter apontado os sete deputados nomeados, Lam Heong Sang, antigo vice-presidente da Assembleia Legislativa (que tinha declarado a intenção de não se candidatar à eleição por sufrágio indirecto em representação do sector do trabalho), afirmou numa entrevista que não se importaria de ser nomeado deputado pelo Chefe do Executivo. Este excerto da entrevista pode levar os leitores a pensar que o equilíbrio de poderes na Assembleia, entre o sector que representa os trabalhadores e o sector que representa o patronato, será mantido através da reeleição de Ho Iat Seng e de Lam Heong Sang. Mas na realidade o que se passa é bem diferente. Não faço ideia porque é que o sector do Trabalho foi persuadido a abster-se de participar, mas sei de ciência segura que, quando Chui Sai On resignar em 2019, o seu irmão mais velho, Chui Sai Cheong, irá manter-se como vice-presidente da Assembleia Legislativa até 2021. Se Ho Iat Seng se demitir do cargo de Presidente da Assembleia Legislativa, para se candidatar à eleição para Chefe do Executivo de Macau, talvez possa realizar o sonho de se retirar em 2021. Nesse caso é provável que Chui Sai Cheong assuma o cargo de presidente da Assembleia e continue a desempenhar um papel importante na cena política.

Para além dos membros da Mesa da Assembleia Legislativa, a disposição dos lugares dos deputados no parlamento também é mais uma manifestação do novo paradigma político. Alegadamente, a Assembleia Legislativa informou os deputados de que, pela primeira vez, os seus lugares seriam escolhidos por sorteio. Posteriormente poderiam trocar entre si. Mas esta decisão foi objectada pelos deputados reeleitos, pelo que apenas os novos deputados se sentaram em lugares “sorteados”. O procedimento do sorteio vem substituir a prática tradicional da escolha dos lugares por ordem de chegada, que nos parecia justa. A seguir ao sorteio, os deputados com afinidades políticas foram trocando de lugares de forma a ficarem juntos e os independentes ficaram onde lhes calhou. No fim de contas, a disposição dos deputados continua a ser determinada pela vontade da maioria.

A Assembleia Legislativa é o centro de poder da RAEM. Não poderá caber apenas aos novos deputados a criação “de pontos de fuga no enquadramento”, vai depender também da sociedade civil e da sua vontade de se fortalecer e de tomar as rédeas do próprio destino.

20 Out 2017

O Verão mais longo

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]alando dos incêndios em Portugal no último fim-de-semana – tema incontornável, que aqui à distância das monções, dos verões húmidos e chuvosos, é algo que nem passa pela cabeça das nossas gentes. Tivemos aqui no domingo um tufão a passar-nos a cerca de 200 km do território, e com ele a chuva que caiu na segunda e terça-feira. Dei por mim a suspirar, enquanto lia nas redes sociais sobre o desespero dos nossos compatriotas, que desejavam que o S. Pedro os abençoasse com o líquido que pudesse pôr termo aos fogos que se alastraram por metade do território. E esta era uma chuva que para nós atrapalha.

Foi muito triste. Já o disse aqui aquando do incêndios de Pedrógão Grande em Junho último que “um morto já seria um morto a mais”, e se nessa altura foram 64, nos incêndios de há dias foram mais 41, número provisório. Foi mais do que o normal, num país que todos os anos vê repetir-se o mesmo cenário, mas além das fatalidades a lamentar, há ainda uma vasta parte do território nacional que foi delapidado pelas chamas – a quase totalidade do secular Pinhal de Leiria foi consumido pelo fogo, e deixou-me especialmente comovido ver o estado em que ficaram as localidades de Vieira de Leiria e S. Pedro de Moel, onde passei férias no Verão de 1988 e 1989. As perdas, quer humanas quer materiais, são incalculáveis, e dificilmente tudo será como antes.

Na hora de pedir responsabilidades, tivemos quem andasse a pedir a cabeça da Ministra da Administração Interna, que hoje (quarta-feira) acabou mesmo por se demitir. Era inevitável, nem que fosse pelo facto de ter sido a face política mais visível da tragédia. Há ainda quem vá mais longe e peça a demissão do Governo, pois a culpa é também “do Estado”. Ora aqui está uma confusão que se faz muito. O Estado não é este Governo, nem o anterior, nem todos os que vieram antes desse – somos todos nós. Da mesma forma que há quem facilmente culpe “a sociedade” disto e daquilo, ignorando que ele próprio faz parte integrante dessa sociedade. Em Portugal os fogos têm imensos “culpados”; ora é o mau ordenamento do território, ora é a falta de meios, ou o fogo posto, e aponta-se o dedo a um porque comprou submarinos em vez de equipamento de combate aos fogos florestais, à outra porque permitiu o planteio desregrado de eucaliptos, enfim, disparam-se em todas as direcções. Até aos pastores e aos caçadores, imagine-se, e ao próprio clima, que permitiu que este ano tivéssemos temperaturas pouco habituais para o Outono. É o velho hábito lusitano de pôr a albarda da culpa no burro que lhe dá mais jeito.

O Presidente da República já veio a terreno afirmar que “nada poderá ser como antes”, e não vai ser, certamente. É preciso exigir mais, é lógico, e ter ainda alguma contenção na hora de se atribuir responsabilidades. Vejo pedir-se a reinstituição da “pena de morte” para os incendiários, pasme-se, ou ainda quem procure retirar dividendos políticos do número de vítimas mortais, chegando a instalar autênticos cadaverómetros, com o pretexto de os arremessar contra o Executivo. Nada disto faz sentido, e é, repito, de lamentar. Deixai pelo menos o fumo assentar e respeite-se o luto, antes de pedir contas aos vivos que as têm a prestar. É este o estado em que o Estado está, infelizmente. Mas o Estado também somos nós.

19 Out 2017

Estender a mão a quem precisa

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Governo de Hong Kong lançou em meados de Setembro um projecto de habitação social temporária, designado por “Programa de Alojamento Comunitário”. Através desta iniciativa serão entregues cerca de 340 apartamentos à organização de solidariedade social “Hong Kong Council of Social Service” (HKCSS). Os apartamentos serão distribuídos por cidadãos com baixos rendimentos, permitindo-lhes assim ter acesso a uma habitação com uma renda acessível. Será uma solução temporária para os problemas de alojamento destas pessoas.

O porta-voz desta iniciativa declarou que a renda virá a representar cerca de um quarto do rendimento dos locatários, ou mesmo menos. Desta forma, a renda da casa vai deixar de representar uma dor de cabeça para os beneficiários.

No entanto, esta solução não vai ser definitiva. Mal lhes seja atribuída uma habitação social, à qual são candidatos, vão ter de deixar os apartamentos.

Mas nem todos os apartamentos disponibilizados pelos proprietários podem ser usados pela HKCSS. Nestas circunstâncias, o ideal é a casa estar pronta a ser usada sem necessidade de reparações. Mas evidentemente, parte destes apartamentos vão precisar de obras. Caso contrário, serão inabitáveis. A HKCSS sublinha que só fará reparações simples e baratas. Não podem implicar quaisquer luxos.

A HKCSS adianta que o projecto deverá vir a expandir-se. Para além de se procurar mais senhorios dispostos a disponibilizar os apartamentos, a organização vai tentar obter a doação de terrenos baldios junto dos seus proprietários. Estes espaços deverão ser usados para colocação de contentores, onde também é previsto alojar estas pessoas. Não será permitido colocar mais de quatro contentores em fila.

Considera-se que um apartamento está desocupado quando, num determinado período de tempo, o seu dono não faz uso dele. O mesmo conceito aplica-se aos terrenos. Portanto, o projecto centra-se na ocupação temporária, por pessoas necessitadas, de casas e terrenos desocupados.

Os candidatos a este programa têm de preencher um certo e determinado número de requisitos. Em primeiro lugar, é necessário estarem à espera de habitação social há, pelo menos, três anos.

A partir desta informação podemos compreender de que forma se pode dar melhor uso à propriedade imobiliária em Hong Kong – uma região com uma carência extrema de terrenos para construção. Este plano demonstra como casas e terrenos desocupados podem servir os mais desfavorecidos. É uma situação em que todos saem a ganhar.

Esta medida recebeu o aplauso da população. É a prova de que ainda existem pessoas preocupadas com a situação dos mais pobres. Estas pessoas foram capazes de doar os seus recursos para providenciar às necessidades de quem precisa e proporcionar-lhes uma vida melhor. Embora estes benfeitores venham a receber uma renda, esta será relativamente pequena, se comparada com o preço de mercado. Este gesto significa amor ao próximo e preocupação com o bem-estar social.

Mas será que os contentores serão adequados para alojar pessoas? Até ao momento ainda não conseguimos obter uma resposta. Deverão ser feitos testes de viabilidade das instalações e em seguida poderemos pronunciar-nos. Mas, seja como for, é uma boa ideia e vale a pena ser experimentada.

Este projecto oferece uma solução a curto prazo. Se estabelecer uma sinergia entre as propriedades desocupadas e as necessidades dos mais desfavorecidos, podemos afirmar que pode vir a proporcionar uma utilização plena dos recursos imobiliários de Hong Kong. No entanto, não nos podemos esquecer que é um plano que oferece uma solução temporária. Numa perspectiva a longo prazo, se os recursos imobiliários de Hong Kong não se puderem expandir consideravelmente, o problema fundamental vai persistir.

Acrescente-se ainda que neste plano existem vários pormenores por esclarecer. Por exemplo, será que o Governo vai conceder benefícios fiscais aos doadores de casas e terrenos? Se os ocupantes danificarem as propriedades e não conseguirem pagar o prejuízo, quem assumirá a responsabilidade? Estas questões terão de ser consideradas.

Mas, a partir deste projecto, podemos concluir que Hong Kong tem espaço para os afectos. Esperamos que mais projectos desta natureza possam vir a surgir. Termos gente em Hong Kong capaz de estender a mão a quem precisa demonstra a generosidade desta cidade.

Estas acções caritativas são sempre bem-vindas em qualquer lugar.

17 Out 2017

(In)Declarados

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]arece ter chegado a um aliviante impasse, a situação na Comunidade Autónoma da Catalunha, depois do seu presidente Carles Puigdemont ter vindo ontem declarar a “independência suspensa” da região, o que em termos práticos significa que se regressa a estaca zero, ao momento antes do anúncio do referendo do último 1 de Outubro. O diferendo entre Madrid e Barcelona já é novidade nenhuma para ninguém, divide as opiniões, por vezes de forma mais apaixonada do que seria normal, mas por enquanto não, não vamos ter a reprise da Guerra Civil espanhola, ninguém vai ser encostado a um paredão e fuzilado, não vão haver terrores brancos, vermelhos ou de outra cor qualquer. E ainda bem, digo eu. A tal independência fica agora “suspensa”, qual “jamon” ibérico num fumeiro da fronteira com a França (pessoalmente prefiro o salmantino). Parece que numa Europa onde as tensões ideológicas parecem subir cada vez mais de tom, este é um refrescante passo atrás no que toca à questão catalã.

De facto a questão da Catalunha é demasiado complexa para se chegar a um consenso. A região pertencia à antiga coroa de Aragão, em conjunto com actual comunidade autónoma com o mesmo nome, a comunidade valenciana, as ilhas Baleares, a Sardenha, a Córsega e o sul de Itália. Com o fim deste reino, em inícios do século XVIII, os chamados “países catalães” foram integrados na coroa de Castela, mas isto nunca foi pacífico. A última vez que a Catalunha declarou a independência foi em 1934, por Lluís Companys, uma espécie de Puigdemont da época, que seria julgado e executado seis anos mais tarde pelo regime franquista, depois do fim da Guerra Civil. A opressão exercida por Franco parece ainda bem presente na memória dos povos que compõem a Espanha actual – e porque não haveria de estar, uma vez que nem passaram 50 anos desde a morte do “caudilho” galego – e a Catalunha não foi excepção. Franco proibiu a língua catalã, entre outras medidas na tentativa de uniformizar a nação espanhola, e só a partir da constituição de 1978 os catalães voltaram a ver reconhecida a sua identidade.

Ao contrário dos bascos, que enveredaram pela luta armada, os independentistas catalães optaram antes pelo endoutrinamento, levando ao aparecimento de uma geração que pouco ou nada quer ter a ver com Madrid. O argumento económico não é também despeciendo, uma vez que a Catalunha contribui com uma boa parte do PIB de Espanha, um argumento que, e sejamos honestos, não é fácil de digerir no contexto de um território debaixo da mesma bandeira, e tão vasto como é a Espanha. O próprio parlamento catalão é o reflexo desta divisão; os independentistas do “Juntos pelo sim” ocupam 62 dos 135 assentos, e precisam da “muleta” do CUP (Candidatura de Unidade Popular), que detém 10 lugares, para formar uma maioria que lhes permita governar. Quanto ao referendo que Madrid proibiu e reprimiu, e cuja adesão e a própria forma como foi realizado não nos deixa saber realmente qual é a vontade do povo catalão, há um dado a reter: o da abstenção. É desonesto afirmar que os catalães que não participaram do referendo não estão interessados na independência, e a tal “maioria silenciosa” da qual uma parte saiu às ruas no início desta semana declarando a sua lealdade a Madrid, pode não ser uma maioria, de todo.

A muitos de nós, portugueses, encanta o romantismo da causa da independência catalã – deve ser a nossa costela da padeira de Aljubarrota a falar mais alto. Chegou-se mesmo a estabelecer um paralelo entre a actual situação na Catalunha e a restauração de 1640, pelo menos no que concerne à legalidade e à constitucionalidade da iniciativa separatista; Portugal também se declarou independente à revelia da vontade de Castela. Outros há ainda que não viam com bons olhos o nascimento de uma terceira nação ibérica, e curiosamente vi gente que esteve do lado do Brexit a manifestar-se contra a “terra lliure” catalã, como se existissem cisões que se justificam mais do que outras (a própria União Europeia opôs-se desde a primeira hora às intenções separatistas da Catalunha). Nas redes sociais as posições extremaram-se, os ânimos exaltaram-se, amigos desamigaram-se, pintaram-se os piores cenários, choveram acusações de parte a parte, enfim, uma indigesta butifarra. Não há necessidade, então? A gente pode trocar ideias e pontos de vista divergentes, sem tornar isto num Real Madrid – Barcelona…

12 Out 2017

A diplomacia do hambúrguer

“Eight months ago, Donald Trump proposed a round of burger diplomacy with North Korea’s leader Kim Jongun. He wouldn’t give him a state dinner, he said, possibly in an attempt to sound judicious, but “eating a hamburger at a conference table” would be a good way to open “a dialogue”. At the time, Mr. Trump’s words aroused much derision. Everyone with any opinion informed or not, agreed that it was simply ludicrous to propose a shared burger moment with the reclusive leader of a totalitarian state that is known for much bellicose posturing and some belligerent actions.”
“Can burger diplomacy win North Korea over?” – Rashmee Roshan Lall

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] mudança de acontecimentos incrivelmente perturbadora e muito previsível na Ásia Oriental, começou a 3 de Setembro de 2017, quando a Coreia do Norte testou com sucesso uma nova bomba nuclear. Tratou-se de um teste subterrâneo de uma bomba de hidrogénio, colocada na ponta de um míssil balístico intercontinental. O evento teve e imediatamente resposta por parte do presidente dos Estados Unidos, que condenou, afirmando que a Coreia do Norte é uma nação desonesta que se tornou uma grande ameaça e constrangimento para a China, que está a tentar ajudar, mas com pouco sucesso e qualquer ameaça para a América e seus territórios, incluindo as ilhas Guam ou os seus aliados, terá uma resposta militar maciça, eficaz e esmagadora.

O líder norte-coreano Kim Jong Un deve atender à voz unida do Conselho de Segurança da ONU, tendo todos os membros concordado unanimemente sobre a ameaça que a Coreia do Norte representa, e permanecem unânimes no seu compromisso com a desnuclearização da península coreana, não pondo sequer a hipótese da aniquilação total do país. A bomba de hidrogénio é muito mais poderosa que as bombas atómicas, ou bombas de fissão, que o país testou. A Coreia do Norte afirmou ter testado uma bomba de hidrogênio em Janeiro de 2016, mas os outros países, incluindo os Estados Unidos duvidaram.

A bomba nuclear que foi testada foi a maior e mais potente alguma vez efectuada pela Coreia do Norte. O Secretário-geral da ONU afirmou que o teste foi profundamente desestabilizador para a segurança regional, e o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se de emergência no mesmo dia para discutir a questão, sendo de total condenação. O Conselho de Segurança tinha-se reunido uma semana antes depois da Coreia do Norte ter disparado um míssil que sobrevoou a ilha japonesa do norte de Hokkaido, tendo reprovado veementemente o acontecido. O Conselho de Segurança no início de Agosto aprovou por unanimidade um novo conjunto de sanções destinadas a travar a capacidade da Coreia do Norte de obter fundos para custear o seu programa nuclear.

É de recordar que durante meses, a Coreia do Norte absteve-se de realizar qualquer teste nuclear e de lançar mísseis sobre o Japão, mas parece ter decidido acabar com essa restrição. A nova série de sanções pode não ter efeitos práticos imediatos, pelo que o Japão e a Coreia do Sul defendem uma maior pressão diplomática sobre a Coreia do Norte. A rapidez que a Coreia do Norte tem usado para desenvolver o seu programa nuclear, apanhou muitos analistas desprevenidos, pelo facto de Kim Jong Un perseguir tão obstinadamente a aquisição de um poderio militar nuclear, mas que não constitui grande surpresa. Todavia, a grande parte das notícias actuais e as teses académicas explanam sobre a forma como o ditador norte-coreano, percorreu esse caminho, simplificando o entendimento sobre o mesmo, pela sua lógica. É importante corrigir o que existe de errado nas razões que levam a Coreia do Norte a este estádio, e entender o raciocínio de Kim Jong Un, pois é essencial para encontrar uma solução viável para a actual crise de tensão que amarra a região, como resultado das suas acções.

Os mais realistas pensam que compreendem completamente a sua motivação e estão a tocar trombetas aos quatro ventos, dado que que Kim Jong Un sente-se assustado com a possibilidade de potências exteriores  invadirem a Coreia do Norte para mudarem o regime. O ditador norte- coreano deve ter assistido com horror às acções do Ocidente, quando derrubou os governos no Afeganistão, Iraque e  Líbia porque possuíam regimes tirânicos que perseguiam o povo e ameaçavam a civilização ocidental. O líder norte-coreano, quase certamente, concluiu que o seu regime poderia ser o próximo e decidiu que o aumento da sua dissuasão nuclear seria a única forma de garantir a sua sobrevivência, e consequentemente, está à procura do rápido desenvolvimento do seu programa nuclear, preferindo que o seu povo coma erva, devido às  sanções hiper-restritivas, que abandonar o caminho do poderio nuclear.

A resposta americana foi a de aumentar o seu sistema de “Defesa Terminal de Alta Altitude (THAAD na lingua inglesa)” em países viznhos, aumentar o estado de alerta das suas forças navais na região, realizar exercícios militares de alto nível de dificuldade e complexidadel com a Coreia do Sul, procurar sempre mais restritivas sanções económicas e diplomáticas e uso de retórica inflamatória, que promete fogo e fúria, o que fez aumentar a determinação de Kim Jong Un de adquirir mais armas nucleares e mísseis balísticos, criando uma espécie de corrida armamentista. Ainda que possa parecer anacrónico, para ser justo com os mais realistas, parece que estão certos.

Todavia, as suas exposições apenas capturam metade da história, pois uma parte da razão pela qual Kim Jong Un perseguiu o seu programa de mísseis nucleares e balísticos,  é  por ser uma das bases centrais da sua plataforma de política interna. Quando Kim Jong Un sucedeu ao seu pai, Kim Jong-il, em 17 de Dezembro de 2011, herdou o seu programa “Songun Chongch’i” ou modelo de política militar, como orientação para a governança interna e política externa, e que enfatizou a expansão do exército norte-coreano e a sua prioridade sobre a população civil. Esta doutrina deu imenso prestígio e poder às forças armadas e, quando Kim Jong Un tornou-se líder, ficou rapidamente preocupado com o facto da sua influência estar fora de controlo e poderia ameaçar o seu governo.

 Os seus medos, provavelmente, foram agravados por divisões devido a conflitos dentro das forças armadas, que o poderiam derrubar. O líder norte-coreano como resposta, substituiu  o programa “Songun Chongch’i” por um novo programa, denominado de “Byungjin (Desenvolvimento Paralelo na tradução para a língua inglesa).” O “Byungjin” é uma criação peculiar, que envolve o duplo avanço da economia da Coreia do Norte e o seu programa nuclear. Os militares não baixam formalmente de estatuto, mas não recebem os privilégios especiais que lhes eram concedidos pelo programa “Songun Chongch’i”. Esta ausência implica que as forças armadas não são mais os meninos bonitos, favoritos e não desafiados do regime, mas que foram substituídos pelo Partido dos Trabalhadores da Coreia.

O lado económico do programa tem como objectivo ajudar a reequilibrar o poder dentro do país, para que os militares não sejam a força suprema. O lado nuclear destina-se a contentar o ânimo dos militares sobre essa mudança radical, ao sugerir que não foram destituídos de importância, mas que a visão mudou da força convencional para a nuclear, permitindo que Kim Jong Un continue a ser visto como um líder corajoso e um advogado dos militares, enquanto também extermina os elementos mais perigosos das forças armadas por questões de segurança interna e pessoal. É uma façanha dificil e Kim Jong Un não se pode arriscar a ser visto como um líder militarmente fraco, enquanto a transição do programa “Songun Chongch’i”  para “Byungjin” não estiver concluída.

A sua habilidade para abordar o confronto actual sobre o seu programa nuclear com os Estados Unidos de forma conciliadora é bastante limitada. O líder norte-coreano  sente que deve ser visto pelas suas forças armadas, como uma figura forte o suficiente para enfrentar o mundo exterior, e se recuar ou procurar um acordo, poderá ser olhado como um covarde ou mesmo um traidor do legado do pai aos olhos das forças armadas. Tal, pode aumentar a possibilidade de oficiais desencantados considerarem a realização de um golpe de estado, que tarde ou cedo, será dado. A acrescentar aos medos de Kim Jong Un é o seu conhecimento sobre o destino do ex-primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchev, que foi deposto em um golpe interno, dois anos depois de recuar frente à determinação americana, aquando da crise dos mísseis cubanos.

A percepção de que Khrushchev havia sido humilhado durante o conflito, contribuiu em grande parte para a decisão dos conspiradores de se moverem contra ele. A ironia para Khrushchev foi que, de facto, conseguiu disputar concessões significativas dos Estados Unidos, incluindo a remoção dos seus misseis nucleares da Turquia. Todavia, esses ganhos foram mantidos secretos que mesmo os conspiradores que o derrubaram não estavam cientes deles, e Khrushchev pareceu quer a nível  nacional, como mundial ter perdido o confronto com o presidente Kennedy.

Os esforços dos Estados Unidos para resolver a actual crise com a Coreia do Norte, deve levar em consideração o facto de que a Kim Jong Un é motivado por preocupações de segurança internas e externas, ao invés de considerarem simplesmente a última inquietação. É de ressaltar que durante a chuva de crispações que acompanharam as ameaças de Kim Jong Un contra as ilhas Guam, a administração Trump reagiu na direcção errada para que Kim Jong Un não atacasse o território insular dos Estados Unidos. Ao louvar a sua decisão, o Presidente Trump fez Kim Jong Un sentir-se como se tivesse recuado, o que arriscava a torná-lo fraco internamente. A incapacidade de Kim Jong Un de aceitar esse resultado, pode muito bem ter ajudado a alimentar a sua decisão de reactivar a situação, testando uma nova bomba nuclear em seguida, permitindo-lhe demonstrar à sua audiência militar interna que não se curvará diante das pressões estrangeiras, mas simplesmente se movia indirectamente para um confronto ainda maior e mais importante.

A resposta para os Estados Unidos não pode ser tão simples como oferecer concessões a  Kim Jong Un, pois traria os seus inerentes problemas. Primeiro, os esforços comerciais anteriores para trocar tecnologia e alimentos com a Coreia do Norte, para interromper o seu programa nuclear não alcançaram o objetivo desejado, porque o regime norte-coreano enganou descaradamente todos, e continuou a desenvolver as suas armas.  Tentar de novo a mesma situação, poderia simplesmente levar a uma repetição do ciclo, em que a Coreia do Norte obtém novas distribuições, em troca das mesmas promessas vazias de interrupcão do programa nuclear que ofereceu antes, e continuaria a desenvolver as suas capacidades bélicas.

É de considerar, em segundo lugar, que  subornar um estado hostil para travar o seu programa nuclear com presentes de ajuda e tecnologia, abriria um desagradável precedente de que qualquer Estado que quisesse extorquir benefícios similares dos Estados Unidos deveria prosseguir o seu programa nuclear. Em terceiro lugar, existe uma dimensão humanitária extremamente importante que não pode ser ignorada, que é o facto de Kim Jong Un ser um ditador totalitário horroroso, e os Estados Unidos não devem tolerar qualquer solução que o ajude a aumentar o nível de sofrimento que pode infligir ao seu povo. É improvável, por exemplo, que o presidente Trump decida o levantamento das sanções que foram impostas à Coreia do Norte, em 2016, em resposta aos seus abusos contra os direitos humanos, porque estes foram especialmente dirigidos para minar a capacidade do regime de prejudicar o seu povo.

Se os Estados Unidos realmente querem resolver a crise actual, tem que oferecer a Kim Jong Un uma saída que não só acalme os seus medos de segurança externa, mas também permita que evite perder a face internamente. Ao mesmo tempo, deve fugir da situação de ter sucumbido à chantagem nuclear aos olhos da liderança norte-coreana e do mundo em geral, evitando também ajudar a facilitar o aumento do abuso infligido à população norte-coreana pelo seu regime. Será complicado criar esta solução, mas é um caminho que é muito mais desejável do que a alternativa realista de uma corrida aos armamentos cada vez maior, e a uma guerra de palavras que poderia facilmente resultar ao uso intencional ou não de armas nucleares.

A outra opção pode ser a do presidente Trump  convidar Kim Jong Un a comer um hambúrger, como sugeriu durante as eleições presidenciais de 2016. Os dois líderes sentados para uma refeição, talvez em um pitoresco local das ilhas Guam, permitiria que Kim Jong Un  voltasse ao seu país como um líder em igualdade de poderio bélico que o presidente dos Estados Unidos, o que seria considerado como não tendo sido uma especial façanha, pois nenhum presidente americano deu a oportunidade e possibilidade de cumprimentar e falar com um líder norte-coreano. Ao mesmo tempo, esta solução impediria os Estados Unidos de oferecerem alguma coisa tangível, que pudesse ser entendida como suborno na Coreia do Norte ou no mundo, ou que poderia ser usado para intensificar o sofrimento da  população norte-coreana.

Todavia, permitiria que os dois líderes se envolvessem em um diálogo directo, o que por sua vez, poderia criar empatia e encorajá-los a resolver os seus actuais problemas e futuros através de conversações, em vez de ameaças e acções hostis. Os Estados Unidos podem não ser capazes de forçar a Coreia do Norte a abandonar o seu programa de mísseis nucleares e balísticos, mas podem, pelo menos, encorajá-los a comunicarem-se com o mundo, usando a diplomacia em vez de atiçar birras nucleares e falsas declarações de guerra. Se a  “diplomacia do hambúrguer” pudesse ajudar a alcançar esse fim, seria um esforço que valeria a pena.

11 Out 2017

Porque é que se faz sexo?

[dropcap style≠'circle']E[/dropcap]ste pedaço de texto apresentar-se-á como um desabafo – porque existem pessoas altamente competentes, i.e., com doutoramentos e essas oficializações de inteligência e de respeito, que poderiam falar das sua disciplinas de forma diferente. Tenho a impressão que a ciência e as suas várias disciplinas desenvolvem ideias bizarras sobre os humanos e o comportamento, e tentam de alguma forma comunicá-las ao mundo de forma nua e crua.

Um dos problemas teóricos nunca resolvidos é… porque é que se faz sexo? Não há respostas claras para isto, do ponto de vista da evolução. Porque aparentemente, não há vantagem em termos sexo – copular a dois para trazer filhos a este mundo. Sempre pensei que a variabilidade genética fosse a causa principal para nos termos tornado seres sexuais em vez de assexuais e de reprodução por mitoses sucessivas. Parece que não é bem assim, por isso vieram agora com a explicação que talvez seja o contacto com os micróbios e na criação de resistência a agentes estranhos. Mas também não se tem a certeza – e sobre a evolução é difícil ter a certeza porque não estávamos lá para assistir.

Estas são apenas algumas explicações de porque é que há milhões de anos atrás viemos todos de seres unicelulares que se desenvolveram em seres que nós somos hoje. Se traz alguma coisa para o sexo de hoje em dia? Tenho sérias dúvidas. Mas há quem ache que sim, e que insiste em trazer estas dúvidas teóricas de quando éramos coisas, possivelmente, sem consciência, para os problemas do sexo hoje em dia. Afinal, porque raio é que fazemos sexo? Se pensarmos no comportamento humano como resultado de impulsos meramente biológicos embrulhados em algum conteúdo social, então sim, porque é que ainda nos incomodamos com esta prática de troca de fluídos?

Os algoritmos da natureza e da evolução estão a ser utilizados para a evolução computacional e é bastante interessante ver que a nossa ‘estratégia sexual’ não é utilizada de todo. Isto é, o sexo não vale de nada para o mundo dos computadores – e se os computadores que têm o potencial para serem mais inteligentes que nós não precisam de sexo, a pergunta continua a insistir, porque é que nós ainda precisamos? Vou dar uma explicação ateórica, fruto de introspecção – é que eu fico mesmo incomodada quando explicam a nossa humanidade de forma tão mecanizada e oportunista.

Nós, ao contrário dos robots, temos uma caixa negra dentro do nosso crânio que aprendeu que o sexo é bom, prazeroso e, quiçá, romântico. Também aprendemos que o sexo é socialmente difícil de ser trabalhado, e que se rege por perspectivas e práticas muito distintas, fruto do que nós somos e gostamos de ser. Freud, o menos mecanicista de todos, envolveu o sexo em tanto mistério que lhe atribuiu a responsabilidade da nossa saúde e bem-estar. Nós já não temos sexo com a desculpa de ter bebés, nós temos sexo porque procuramos prazer e intimidade.

Para os que se identificam como sexuais – excluindo os assexuais – o sexo é um veículo pessoal e social para nos descobrirmos e ao(s) outro(s). Acho que não digo nenhum disparate quando me atrevo a julgar o sexo como quasi-transcendental, e isso os computadores nunca saberão o que é.

10 Out 2017

A segunda transferência

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira transferência de soberania ocorreu em Macau quando Portugal passou para a China a administração deste território. Foi em 1999. Desde então, Macau foi governado pelas suas gentes. Contudo, não o foi para as suas gentes. Se o consulado de Emund Ho se pode escudar no facto de ter implementado a liberalização do Jogo, com todas as desarmonias daí decorrentes, bem como na inexperiência governativa, já Chui Sai On é com dificuldade que explica o desinteresse do seu Executivo pelo bem-estar da população. Mas o facto está aí, para quem o quiser ler: este Governo não realizou nenhuma grande obra que realmente beneficiasse a população, nomeadamente o Hospital das Ilhas e o metro ligeiro, tal como não resolveu nenhum dos problemas que o crescimento desordenado deu origem: habitação, trânsito, saúde, etc..

O que se assistiu na última década, com o beneplácito governamental, foi ao enriquecimento brutal de algumas famílias e dos seus satélites, num completo, por vezes arrogante, desprezo pelas necessidades populares. Este “feudalismo” foi sempre entendido como o “pagamento” de Pequim aos clãs nos quais depositava confiança pela sua acção patriótica durante o tempo dos portugueses. Ora esta era parece, com Chui Sai On, estar a chegar ao fim.

No fundo, trata-se de pessoas que já detinham o poder económico mais ou menos desde 1966 e dos acontecimentos motivados pela Revolução Cultural. Até 1999, conseguiram garantir a sua continuidade no poder para o futuro, como algo de “natural” porque eram eles já os líderes de facto desta cidade. E os que mais lucravam com isso, se exceptuarmos a família de Stanley Ho.

Ora este tempo parece estar a chegar ao fim. Com efeito, existem vários sinais deste facto e um deles, nada despiciente, é o último discurso de Chui Sai On, por ocasião do Dia Nacional, proferido no dia 1 de Outubro.

Senão vejamos. O actual Chefe do Executivo começou por falar dos problemas que afligem a população e na obrigação de resolvê-los! E foi por aí fora: segurança social saúde, habitação, trânsito, poluição, encheram a primeira parte do discurso de Chui pela primeira vez numa ocasião destas. Normalmente, o Chefe do Executivo fica-se pelo elogio do costume ao apoio do Governo Central e à garantia de que a RAEM prosseguirá as estratégias definidas, nomeadamente no que concerne os países lusófonos e o projecto “Uma Faixa , Uma Rota”, por meio de juras de patriotismo. Mas desta vez não. Chui centrou a sua atenção no que definiu como “a felicidade” popular. Ou seja, o discurso não parecia seu e, pelo conteúdo apresentado, talvez esteja a indicar o caminho que o futuro nos reserva.

Talvez o tufão Hato tenha sido o evento que mostrou claramente o quanto o rei vai nu e o quanto esse mesmo rei pouco se preocupa com a sua população. A falta de preparação das autoridades mais ricas do mundo em terra de tufões, a falta de meios e de liderança, bradou aos céus e o Céu (Pequim) não pôde fazer orelhas moucas. O Hato veio descobrir uma careca que todos os habitantes de Macau sabem estar lá mas que os cheques anuais e outras benesses sem conteúdo pretendem ocultar. E talvez o Governo Central tenha entendido que chegou o momento de dizer alto e pára o baile antes que uma terra pacífica e alinhada com a Mãe Pátria comece a desalinhar a dança e a dar passos parecidos com os dali de Hong Kong. Um bailarico que Pequim, como se sabe, pouco aprecia.

Os sinais estão aí. E não passam apenas por pessoas vindas do Norte, como Wong Siu Chak (o Secretário a quem o tufão Hato também deve ter roubado os sonhos de ser Chefe do Executivo) ou André Cheong. Agora há mais: trata-se da implementação de uma política voltada para os interesses populares, o que pressupõe talvez o fim de medidas implementadas a pensar apenas nos interesses de alguns.

Estaremos pois perante uma segunda transferência de soberania, o fim de um ciclo. Contudo, ao contrário do que se passou em 1999, o que aí vem permanece um mistério. Não se perfila ainda um candidato a Chefe do Executivo mas, seja ele Lionel Leong ou Ho Iat Seng, independentemente do seu nome e filiações, cremos que a política terá de ser necessariamente outra e o discurso de Chui Sai On é disso um claro e inequívoco sinal. Pequim terá entendido que as contas estão saldadas e chegado o momento de realmente pensar na população. Afinal, com tanto dinheiro disponível, não há-de ser assim tão difícil.

6 Out 2017

A independência judicial e o estado de direito

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Fraser Institute do Canadá atribuiu o primeiro lugar a Hong Kong no relatório sobre a Liberdade Económica Mundial, publicado no passado dia 28 de Setembro. No entanto, quanto à independência judicial, Hong Kong não foi tão bem classificado, após escrutínio ao funcionamento dos Tribunais da cidade.

Hong Kong tem mantido a primeira posição na alínea consagrada à Liberdade Económica Mundial desde 1980. Singapura continua em segundo, seguida da Nova Zelândia. A China ocupa o 112º lugar.

Num outro relatório, elaborado pelo World Economic Forum, Hong Kong surge em 13º lugar no que respeita independência judicial, classificação registada no último Índex de Competitividade Global, com uma pontuação de 6.1, num máximo de 7. O ano passado tinha obtido o 8º lugar da classificação. O relatório sobre a Competitividade Global para 2016-2017 avalia as diversas vertentes da competitividade de 138 economias, providenciando uma visão sobre os motores da sua produtividade e da sua prosperidade.

O Secretário da Justiça, Rimsky Yuen Kwok-keung, deu a cara em defesa do Governo da RAEHK, afirmando que o Executivo estava preocupado com a descida de classificação, mas salientou que o relatório ainda tinha atribuído a Hong Kong um lugar de topo na alínea da independência judicial na Ásia.

Rimsky acrescentou que factores subjectivos poderiam ter influenciado a percepção da independência judicial das comunidades locais e internacionais de Hong Kong. Quanto a ele, não via qualquer factor objectivo que pudesse afectar a independência judicial da cidade, já que os Tribunais lidam com todos os casos com imparcialidade e sentido profissional.

Rimsky empenhou-se em provar que a independência judicial de Hong Kong nunca é comprometida. E o motivo que o levou a esforçar-se por clarificar esta questão prende-se com a importância do tema. A independência judicial verifica-se quando as decisões dos Tribunais não são influenciadas pelo poder executivo, nem pelo poder legislativo. As deliberações do juiz não deverão estar dependentes de qualquer pressão, de forma a poderem ser justas e rectas. Só desta forma se pode garantir que o interesse das partes em conflito esteja assegurado.

Para garantir a independência judicial, actualmente em Hong Kong a nomeação do juiz é permanente. Não pode ser despedido, salvo se existir algum erro grave que o justifique. Só se retirará quando atingir a idade da reforma. O facto de não temer o despedimento coloca-o à vontade, mesmo em casos que levem o Governo a Tribunal.

Em segundo lugar, é necessário considerar que um juiz é humano e pode cometer erros. Para o proteger a lei confere-lhe imunidade legal. O juiz não pode ser processado por nenhuma das partes em conflito, ou indiciado pelo Governo por ter cometido um erro jurídico. Se algum dos litigantes ficar insatisfeito com a sua decisão terá de recorrer a um Tribunal de instância superior. A imunidade legal protege o juiz. Sem esta protecção poucos aceitariam este cargo.

Em terceiro lugar, garante-se que não existirá qualquer pressão na sala de audiências. Neste sentido, a imprensa nunca deve dar atenção excessiva a casos em julgamento. Devem também evitar-se demonstração de protesto contra o juiz.

Os pontos mencionados não se excluem entre si. Para defender a independência judicial devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance.

A independência judicial está também intimamente ligada ao Estado de Direito e à noção de que todos têm de agir de acordo com a lei. A lei deve estabelecer os padrões básicos dos comportamentos sociais. A Lei terá sempre de ser o instrumento de resolução de qualquer contenda. Todos devem ser iguais aos olhos da lei. Se alguma das partes em confronto desfrutar de qualquer benefício, não estaremos a ser governados pela lei e a injustiça imperará.

No entanto, dois relatórios atestam em simultâneo a descida de posição de Hong Kong nesta alínea, e o assunto terá de ser debatido. Embora Rimsky tenha afirmado que não existem factores objectivos que justifiquem a descida de classificação, os comentários dos relatórios parecem muito preocupantes.

Mas poderemos analisar os relatórios de outra forma. A razão que nos leva a recorrer à lei para solucionar contendas é a confiança que depositamos na sua capacidade de criar padrões. Se o nosso comportamento estiver em conformidade com o estipulado, em caso de contenda confiamos que a lei estará do nosso lado. A lei existe para proteger os nossos interesses. Mas a lei não é uma arma com que possamos atacar os nossos oponentes. A lei gera uma crença que orienta os nossos espíritos. Acreditamos que a lei nos ajuda a resolver os nossos conflitos, é-nos, portanto, útil.

Com dois relatórios a criticar a independência judicial de Hong Kong, percebe-se que algumas pessoas não estão completamente confiantes no sistema legal da cidade. Será bom que o Governo da RAEHK clarifique a situação. Quando Rimsky afirma que não existem dados objectivos que comprovem qualquer falha na independência judicial, parece-me correcto. Mas a ausência de clarificação por parte do Governo pode criar mais mal-entendidos.

A longo prazo, é melhor para o Governo da RAEHK dar um passo no sentido de reforçar a confiança do público no sistema legal da cidade. A confiança no sistema legal nunca pode ser afectada.

 

Professor Associado do IPM

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

Blog: https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog

Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

5 Out 2017

Playboy

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Hugh Hefner, o criador e fundador da revista Playboy, faleceu a semana passada com 91 anos. Há quem o considere um ídolo, um homem que lutou e viveu os seus sonhos e não o dos outros – citação do próprio – ou há quem exalte os valores filantrópicos e liberais do ‘Hef’ e da luta política-social pelo sexo livre e sem preconceitos. Mas também há quem reflicta se se pode considerar feminista o homem que tornou a pornografia um lugar-comum.

Andei a vasculhar nos meios de comunicação o legado do homem-lenda Hugh Hefner, para rapidamente perceber que é polémico. Se há quem esteja de luto porque o símbolo da revolução sexual deixou este mundo, outros estão a mostrar as garras de raiva porque muitos continuam a pintá-lo como um libertador do sexo, quando provavelmente desenvolveu outro tipo de cativeiro. Talvez… um cativeiro para coelhinhas? Mulheres feitas coelhas que, com fatos de corpetes apertadíssimos, peitos generosos, pernas descobertas, orelhinhas acetinadas e, normalmente, de cabelos loiros, eram treinadas e incentivadas a serem o protótipo da mulher sexy. Elas passeariam por entre os homens que frequentavam o Clube Playboy ou seriam um dia fotografadas para a revista, desta vez, nuas.

Do homem fala-se da inteligência extraordinária que foi precocemente reconhecida, apesar de se ter desinteressado da escola. Cresce, aparece, e começa a ter ideias que vêm a revolucionar a forma como a cultura popular vê o sexo e o corpo feminino nu. Nos anos 50, sem grandes expectativas no que ia dar, lança primeira edição da Playboy com a Marilyn Monroe vestida, na capa, e nua nas páginas centrais. A ideia era criar uma revista que pudesse entreter o homem contemporâneo: com textos de autores bem respeitados (e.g. Kerouac) ilustrado com mulheres lindas de morrer a mostrarem-se tal qual como vieram ao mundo. Esta revista popularizou-se de tal forma que veio contribuir para a revolução sexual que durante os anos 60 e 70 tiveram o seu pico de expressão.

Por isso, sim, as ideias do falecido trouxeram algum empoderamento sexual ao mundo, mas ao mundo predominantemente masculino. Esta figura mítica veio capacitar os homens a re-descobrirem a sua sexualidade de forma a gozarem o desejo sexual de forma livre e desinibida – normalmente com uma revista Playboy escondida debaixo da cama. Se trouxe alguma coisa à sexualidade das mulheres… aí é que as opiniões divergem. Parece que as opiniões caem entre julgá-lo um feminista ou um chulo.

As evidências políticas apontam para uma preocupação da sexualidade feminina – ao ter apoiado a distribuição livre de contraceptivos femininos ou pela legalização do aborto. Mas o resto do pacote comercial que passava cá para fora… aquela mansão, as sete namoradas, todas loiras e ‘plastificadas’ por um cirurgião ou as constantes entrevistas em que reforça a ideia de que as mulheres são e serão objectos do sexo…

Eu consigo reconhecer o que de bom o homem trouxe ao nosso sexo e à sociedade globalizada. Aliás, os mais de cinquenta anos de existência do conceito constitui uma bela colecção de como o corpo da mulher (e o padrão de beleza) tem-se alterado. De mulheres com corpos de ampulheta, mamas de grandes e variadas aréolas mamárias vimos transformarem-se em mulheres mais esguias e de peitos mais artificialmente avantajados. Dizem as más línguas que era o próprio Hefner que insistia (e contribuía financeiramente) para os implantes das colecções mais recentes de coelhinhas-namoradas. Também dizem as más línguas que as namoradas eram sujeitas a um tipo de tratamento pouco digno, que eram obrigadas a recolherem-se aos seus aposentos todos os dias às 9 da noite, vestidas de pijamas de flanela cor-de-rosa. Os rumores também conjeturam o sexo programado e (provavelmente) forçado entre coelhinhas e um homem idoso.

Graças a ele temos o sexo livre e graças a ele temos mulheres ainda em menor controlo da sua própria sexualidade. Vamos ver agora qual a herança do império do sexo porque o homem já foi. Agora descansa no jazigo ao lado do da Marilyn Monroe, a quem outrora fez capa de revista – sem nunca lhe ter pedido permissão.

5 Out 2017

Um cenário que nunca muda

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] abertura de novos casinos em Macau parece não ter fim. Após o Wynn Palace, o Parisian,  o Legend Palace, o mais recente hotel-casino que pertence ao influente homem da comunidade de Fujian acabou de abrir.

O que eu quero salientar é que este casino, o Royal Dragon, e que tem 20 mesas de Jogo, situa-se ao lado de edifícios habitacionais e de escritórios, de serviços públicos e privados, assim como fica perto do IPM. O que as pessoas sentem quando saem de casa ou do escritório e logo se deparam com um casino? Às vezes parece  que são como as lojas de conveniência, que se podem encontrar ao virar da esquina.

Mas teoricamente não são! Como se sabe, as autoridades defendem a mudança do panorama da dependência do jogo. Em 2008 o Governo de Macau anunciou que não ia conceder mais terrenos para construir novos casinos, nem aceitava novos pedidos de terrenos pelas operadoras de jogo.

Ouvi dizer que o terreno onde está o novo casino é da concessão da STDM, mas ser usado como um hotel, não como um casino. O que é duvidoso não é só o funcionamento da zona de massas nesse hotel-casino, mas também a autorização do pedido da transferência de mesas de jogo, quando o responsável da DICJ tinha dito de manhã que a autorização ainda não tinha sido emitida mas à tarde já foi. Um episódio ocorrido na terça-feira.

Recordo que em 2007, o Governo confirmou a ideia de afastar as salas de máquinas de jogo das comunidades, bem como publicou um regulamento administrativo que regula estas máquinas de Jogo.

No entanto, passados quase dez anos, Macau continua a ter novos estabelecimentos de Jogo, abertos uns atrás dos outros. E até agora, ainda existem várias salas de jogo em zonas perto de habitações.

Talvez entre a idealidade e a realidade haja sempre distância. O Governo e a sociedade querem que todos joguem responsavelmente, que os cidadãos não fiquem viciados, sobretudo os trabalhadores de jogo. No entanto, na realidade muitos continuam a perder o seu tempo e a apostar o seu dinheiro nas mesas ou máquinas de jogo, e muitos até pedem ajuda de tratamento para o vício.

Isto não é novidade, mas a influência é consecutiva. O Governo pode introduzir, na lei, a interdição da entrada de trabalhadores do sector do jogo nos casinos fora das horas de trabalho, com vista a reduzir a probabilidade de se tornarem jogadores problemáticos, mas não podem proibir a entrada de residentes em geral.  Muitos deles usam o jogo como um entretenimento banal, o que não é saudável para a comunidade.

Jogar é um acto pessoal e jogar sem vício depende de auto-disciplina. Mas quem tem poder deve criar um ambiente para que os jogadores não criem problemas para si próprios, para as suas famílias nem para a sociedade.

29 Set 2017

Bipolares

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sta semana tomei a liberdade de “roubar” ao meu amigo Manuel Cruz um desabafo seu nas redes sociais, que aqui passou a reproduzir, com a devida vénia.

Permitam-me um desabafo: tenho amigos de direita. Mas nem um – nem um! – diz o que leio de certa gente que comenta aqui no facebook. Trump é um génio. Costa, um monhé horroroso e usurpador e ladrão. Pretos e ciganos, nem vê-los. Árabes, essa raça maldita. Os gays, trans, lésbicas e quejandos deviam ser exterminados. Comunistas, uns facínoras sanguinários. No tempo de Salazar é que era bom.

Fico com o coração apertadinho, com um nó na garganta. Não consigo entender tanto ódio a quem nunca nos fez mal, a quem é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos completa. Não consigo entender tanta paixão por abjecções como o patrão da Casa Branca. Não consigo, por mais que tente, sentir que esta gente é gente.

Eles sim, estão cá a mais. Que belo país não se faria com os ultras de todo o mundo. Eles estariam no paraíso. E, nós, mais arejados.

Como o entendo tão bem, meu caro, e partilho da sua angústia. Como se sabe, vamos ter eleições autárquicas em Portugal no próximo domingo, e apesar de se tratar apenas do exercício da democracia na sua variante do poder local, os resultados deste sufrágio vão servir também de barómetro à satisfação do eleitorado pelo actual executivo governamental. Assim dizem. Num país cada vez mais bipolarizado entre direita e esquerda, e com a retórica a subir cada vez mais de tom, prevê-se uma derrota pesada da direita, e por culpa própria. É que esta direita que anda por aí à solta não é a direita liberal e progressista da via da social-democracia em que tanto eu como muitos – possivelmente também confusos por esta altura – se revê.

Esta direita espalha brasas é a direita anti-democrática, a extrema-direita clássica, e não só – houve parte da “velha guarda” que resolveu sair da toca e dar sinais de vida. Esta direita “ultra” ainda faz pouco eco em Portugal, mas tem sido responsável pelos maiores equívocos a que temos assistido ultimamente na Europa e no mundo. Não me surpreendeu tanto o ressurgimento da extrema-direita nas últimas eleições da Alemanha, que ficou expresso em “apenas” 13% dos votos. E porquê apenas? Com as tácticas de medo, a propaganda chinfrim e o maniqueísmo que vêm vindo a ser aplicadas na Europa de há três ou quatro anos para cá, podiam ter chegado a uns 20%, limpinhos.

Afinal esta direita, a gémea má da direita como deve ser, conseguiu convencer os rústicos da Provença que nunca viram um árabe na vida de que estes “vinham aí” para o “roubar”, “matar” e “violar as suas filhas”, ou para “destruir a sua cultura e modo de vida”. Foram estes que recrutaram uma legião de aposentados britânicos para votar na saída da União Europeia, com a (falsa) promessa de injectar o dinheiro de Bruxelas no seu próprio plano nacional de saúde. Guardando o melhor para o fim, foram estes meninos que sentaram na Casa Branca a pessoa mais inepta que se podia recear, e sob o pretexto de que ia “vazar o pântano” da política em Washington. Não apenas se absteve de vazar aquele, como tem aberto uns outros quantos em seu nome.

Em Portugal estamos mais ou menos descansados – ainda. Esta direita “mutante” faz sobretudo alarido nas redes sociais, onde é mestre “confusionista”; adultera factos, difunde o ódio, urde teorias da conspiração delirantes, e vai contra aquilo que chama “multiculurismo”, que protesta –  depois mete-se no Mazda e vai comer um “kebab”, e chama de “marxistas” a todos que não concordem com ele em género e grau. Sobre o isso do multicularismo, para mim é como tudo: tem virtudes e tem defeitos. A eliminação pelo defeito já foi tentada antes, e com os resultados desastroso que se conhecem. A direita convencional não se deixa levar pelo conceito, mas às vezes deixa-se contagiar; ora pede mais mortos nos incêndios, ora apoia um candidato às autárquicas que promove abertamente a segregação de uma minoria, uma sucessão de momentos infelizes. Tudo isto prolifera e reproduz-se a cobro de uma nova interpretação do conceito de “politicamente correcto”, que passou a ser uma coisa “má”. Em suma, o tal “desprezo pelo politicamente correcto” passou a servir de pretexto e cobertura para que se balbuciem ou se  escrevinhem todos os tipos de disparate.

Esta bipolarização é péssima, e leva a uma espécie de obsessão que se extende muito para lá dos limites do debate (?) político. O fanatismo tem aparecido em força na clubite futebolística, na religião, nos direitos dos animais, nos defensores do Tony Carreira, nos anti-Ronaldo, enfim, há de tudo, como na farmácia. Hoje ter uma convicção é mais ou menos como ter uma doença crónica: está lá, chateia um bocado, e o único tratamento é dar sempre razão ao paciente. Assim no domingo que vem muito provavelmente o sortido de esquerdas terá mais uma razão para festejar, a direita radical fica a resmungar, e nós, bem, ficamos a suspirar por um dia destes, quando todo este catarro democrático passar e deixemos de ser tão bipolares.

28 Set 2017

É difícil ser mulher

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] regular leitor deste excerto temático saberá que tenho uma natural tendência para discutir a condição feminina nos dias que correm. Às vezes ser mulher não é fácil, já cantava a Tammy Wynette, que termina com um refrão que só exalta a representação feminina de dependência daquela altura – stand by your man. Esses eram tempos nos 60s de música country  que espelhavam realidades conjugais ainda bastante tradicionais. Agora já se fala do amor, do matrimónio, de homens e mulheres de maneira diferente, ou pelo menos tenta-se. Contudo, e isto parece persistir ao longo do tempo, ser mulher continua a não ser fácil.

Como todos bem sabem, há países onde as mulheres ainda não têm direitos. Na Arábia Saudita só muito recentemente lhes foi concedida a possibilidade de assistirem a um jogo de futebol num estádio – e isto não podia ser mais mundano. As mulheres permanecem limitadas na sua expressão mental, emocional e sexual com risco de serem mortas porque dizem e fazem aquilo que querem. Estive atenta à história de Qandel Baloch no Paquistão, uma estrela das redes sociais, que foi morta pelas mãos do irmão por estar a ‘desonrar’ a família com a sua honestidade online.

Até em sociedades ditas civilizadas e onde os direitos políticos e de representação já foram atingidos, há dificuldades que teimam a ser ultrapassas. Reparem na Google, que muito recentemente se viu alvo de atenção pública em torno da diferença salarial entre mulheres e homens. Uma empresa tão incrivelmente progressiva, com políticas de bem-estar laboral de ponta! Mas surpresa: paga muito mais aos homens do que às mulheres. O pior é que ainda tem de se discutir se esta é uma questão ou não, porque os nossos problemas estruturais e endémicos dificultam o reconhecimento de que a discriminação de género ainda é uma realidade.

Culpo os papéis de género que tornam as expectativas sociais demasiado estáticas, demasiado inflexíveis, e por vezes, demasiado incompatíveis. Ser mulher é ser cuidadora, esposa, mãe, filha, emocional, bonita, que se cuida, carinhosa, frágil e vulnerável, sempre muito vulnerável. Estas características frequentemente se contrapõem com outras formas de ser e estar e entram em conflito pessoal e social. Dou-vos outro exemplo igualmente mundano: em pleno séc. XXI, uma mulher com pêlos nas pernas ainda é uma ‘novidade’ e vai ser alvo de olhares de surpresa e provavelmente de algum desdém.

Para além da representação feminina temos também a anatomia feminina – o corpo de mulher – que não é de todo a característica de definição exclusiva. Esta anatomia de mamas, útero, ovários, vagina e vulva exige cuidados e um entendimento particular do corpo, corpo esse que está preparado para o sexo, para menstruar e parir. As mulheres, porque são mulheres e carregam uma história de discriminação e negligência, vêem os seus corpos a serem entendidos por poucos. As femininas mais militantes dirão que esta negligência, em particular, no contexto médico, é uma forma de controlo social – eu diria que não é tão propositado, mas sintomático do que a mulher sempre representou ao longo de tanto tempo. Não é por acaso que sintomas relacionados com o transtorno pré-menstrual ainda são mal diagnosticados.

Contudo, ser mulher não é sempre difícil, depende muito das coordenadas da nossa nascença, que ditam a facilidade com que se pode ser do sexo feminino. Ser mulher, acima de tudo, pressupõe uma ou outra batalha que ainda tem que ser travada. As representações populares do feminino precisam de uma reviravolta de vez em quando, para agitar os (ainda demasiados) corações tradicionais e conservadores. Querem-se mulheres com ou sem mini-saia, com ou sem pêlos nas pernas, emocionais e analíticas, enfermeiras e engenheiras. Mulheres que querem ser elas próprias.

27 Set 2017

Apelo ao compromisso

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado domingo, dia 17, realizou-se um encontro em Hong Kong de repudio à independência do território. No palco, aos gritos, um homem reclamava a “morte” para os activistas pró-independência. O homem, Junis Ho kwan–yiul, ainda acrescentou, “sem piedade”. Por estas declarações, a população depreendeu que os activistas pró-independência de Hong Kong deveriam ser executados.

O discurso de Ho gerou grande polémica na antiga colónia britânica. Era voz corrente que Ho tinha encorajado as pessoas a matar os activistas pró-independência.

Na sequência destas declarações, Ho deu uma série de entrevistas. O entrevistado alegou em sua defesa que, em cantonês, “morte” pode ser usada em vários sentidos. Não quer necessariamente dizer matar. O que ele queria dizer era que as vozes a favor da independência de Hong Kong tinham de ser travadas, e que Hong Kong nunca se poderia separar da China. Ho também referiu uma série de exemplos para sustentar a sua argumentação. Mas como foram todos formulados em chinês, vamos ignorá-los.

Ho foi Presidente da Sociedade Legista de Hong Kong. Actualmente é membro do Conselho Legislativo. Os seus antecedentes jurídicos e políticos tornaram as pessoas mais sensíveis às suas afirmações. Alguns perguntavam-se, como é que alguém com um profundo conhecimento da Lei pode fazer afirmações desta natureza. Será que isto é legal?

Ainda no seguimento deste caso, o Conselheiro Sénior Ronny Tong Ka-wah deu uma entrevista. Adiantou que Ho poderá ter infringido a secção 26 do Regulamento da Ordem Pública. Esta secção refere que, qualquer pessoa desprovida de autoridade legal, que profira declarações em assembleia pública, ou se comporte de forma que revele intenção de incitar ou induzir outrem a matar ou a atentar contra a integridade física de terceiros, está a transgredir a lei e sujeita-se a uma pena de prisão, que pode ir de 2 a 5 anos, dependendo da gravidade do delito.

O termo “incitar” é referido na secção 26. Em linguagem legal o delito de incitamento verifica-se quando alguém impele outrem a cometer um crime.

Alguns habitantes de Hong Kong pediram que a polícia investigasse este caso. A resposta das autoridades não deixou margem para dúvidas. Ho limitou-se a proferir declarações ao abrigo da liberdade de expressão e, tanto quanto sabemos, não haverá qualquer investigação criminal.

Estas declarações chamaram a atenção do Secretário da Justiça Yuen kwok–kuen. Afirmou que é necessário analisar o contexto em que foram proferidas, para decidir se houve ou não transgressão da lei. Ou seja, não se pode chegar a qualquer conclusão a partir de uma declaração isolada.

Este caso pede aos habitantes de Hong Kong alguma reflexão. Se as incentivas “morte” e “sem piedade” pudessem acabar com os conflitos sociais, tudo bem. Mas obviamente, este tipo de declarações só servem para aumentar a confusão no seio da sociedade e os opositores de Ho vão ficar irados. Nem a cidade, nem os seus habitantes tiram qualquer benefício deste tipo de afirmações.

É possível que a Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, esteja à altura dos acontecimentos. Antes de dar entrada na reunião do Conselho Executivo, declarou aos jornalistas,

“Independentemente da postura política de cada um, comentários rudes, insultuosos ou intimidatórios, nunca são aceitáveis.”

Acrescentou ainda que a comunidade de Hong Kong deve permanecer calma e que a “polarização” deve ser evitada.

As sugestões de Carrie Lam não solucionam os conflitos sociais de Hong Kong, mas são uma boa forma de prevenir conflitos futuros. Se toda a gente conseguir manter a boca fechada e evitar protestos, Hong Kong ficará em paz. Sem este ambiente, como é que os membros do Conselho Legislativo podem debater de forma razoável as questões sociais? É verdade que “o compromisso facilita a resolução dos conflitos”. Esperemos que todos consigam lá chegar.

26 Set 2017

Trabalhador de construção

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uero subir um andaime até às estrelas e refazer a abóbada celeste com cimento e cristal, evadir, ascender, seguir a verticalidade de todos os edifícios que construo e sair desta cidade que me despreza. Viver a história do alpinista João Pé de Feijão. Esculpi Macau com escopro e martelo, moldei esta cidade com a força dos meus ossos. Sem mim, os sonhos e projectos dos arquitectos não passariam de ficheiros de computador, gravuras em papel, ideias desprovidas de materialidade. Eu dou forma às coisas, torno-as possíveis, sou o agente da criação, da génese urbana. Sou o estabelecimento, a forja, a realização.

Esta cidade foi feita com o meu suor e sangue, sou a concretização, o cumprimento objectivo como na canção do Chico. Nos dias livres amei e beijei todas as mulheres que pude como se fossem as derradeiras, trepei andaimes como se fosse máquina, tornei a multiplicidade de tijolos na singular parede mágica e estatelei-me no chão como um vazo rachado, caco de matéria, estilhaço. Morri por todos vós para ser esquecido, substituído por outra insignificante formiga, mais um número na estatística, polpa esmagada debaixo da assassina viga.

Sou um imigrante, um dos peões desta engenhosa tragédia, mal pago, sem representação, de olhos vidrados na sucessão de tsingtaos, inabalável na missão que tenho que cumprir para levar algum conforto à família, a minha fundação, os meus caboucos de afecto. Sou transitoriedade deixando solidificação definitiva para trás. Vendi a minha alma num contrato de sub-empreitada. Morro no anonimato, esquecido, enquanto a obra prossegue, porque a obra sempre prossegue, a construção não tem fim.

Sou maestro de orquestras de pneumáticos e berbequins, da percussão martelada em ferro e pedra. Fiz pirâmides e túneis, Babel e Eifell, Muralha da China e Muro de Berlim, Taj Mahal e Coliseu. Deixo no meu encalço palácios e barracões, enquanto morro por um punhado de tostões.

Sou joguete no xadrez menor das politiquices. Querem que eu seja local, legalizado e imortal, a derradeira manifestação de um operariado em vias de extinção, o último dos que sujam as mãos. Querem que eu seja em número estável, mesmo que haja menos obras, que se edifique menos.

Nos meus sonhos fantasio com bolas de demolição, com supernovas de dinamite a transformar tijolo, ferro e pedra em farinha. Imagino rios de lava a derreter fundações, a fundir as entranhas da cidade. Projecto tufões e natureza exterminadora que terraplene a cidade de regresso à virginal superfície plana. Tabula Rasa, o retorno à origem antes da intervenção do Homem, virgindade urbana estendida um horizonte longíquo. Quero aplanar e envernizar, tornar suave todas as arestas da cidade, limpar tudo, eliminar o ensurdecedor ruído físico.

Anseio desmontagem, decomposição de elementos, fugir da tirania da estrutura e focar-me no mais ínfimo átomo, analisá-lo e amar a sua singularidade. Sonho compreender Derrida e a psicanálise, quero deitar todos os edifícios num divã e escalpelizá-los com minúcia. Depois de tudo isso, quero dinamitar toda esta cidade, retornar ao zero, reduzir a escombros as réplicas de outras construções que existem espalhadas por Macau.

Olhem para mim, vejam como estão as minhas mãos, os meus olhos cheios de pó. Apesar de construir posteridade, não tenho futuro. Vivo de empreitada em empreitada, na esperança que da mesa do poder caia uma migalha que me sustente. Quero viver mais, ter carne de cimento, artérias de viga e sangue de ferro. Sou uma estrutura inabalável que conquista metros ao céu, um deus de bambu que une terra e ar, criador de estruturas onde habitam as outras criações. Sou  casa, igreja, cárcere, escola, hospital, sou o cemitério onde vou descansar. Exijo que parem de me usar como arma de arremesso político e que reconheçam o meu papel, quem eu sou e o que trago a Macau. Respeitem-me! A minha vida pode ser descartável como o bambu, mas de mim emana a eternidade.

25 Set 2017

Os Estados Unidos e a saúde mundial

“Global Health Governance must be understood broadly. Health is made in all policy and political areas-from agricultural through education policy. Without adequate nutrition, education and hygienic standards, mechanisms to fight global pandemics will remain a drop in an ocean.”
“Coordinating Global Health Policy Responses: From HIV/AIDS to Ebola and Beyond” – Annamarie Bindenagel Sehovic

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] governo dos Estados Unidos tem permanecido na vanguarda do estabelecimento de políticas internacionais, o que até à eleição do Presidente Donald Trump trouxe maior segurança para os cidadãos americanos e de outros países, através da melhoria da saúde e ajudando a criar sociedades mais estáveis em outros países e um mundo mais humano para milhões de pessoas que enfrentam sérias e graves doenças.Os Estados Unidos trabalham com outros países para criar a “Aliança das Vacinas (GAVI na sigla inglesa)” que é uma organização internacional, constituída em 2000, para melhorar o acesso a novas e subutilizadas vacinas para crianças que vivem nos países mais pobres do mundo. Tem sede em Genebra e reúne os sectores públicos e privados, com o objectivo comum de criar acesso igual a vacinas para crianças, onde quer que vivam.

A GAVI tem desempenhado um importante papel na redução da mortalidade por doença evitável por vacinação, sendo um contribuinte importante para se atingirem os “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM)”. Os Estados Unidos a trabalhar com Oganizações Não Governamentais (ONG`s) apoiaram a criação da “Iniciativa Global de Erradicação da Pólio (GPEI na sigla inglesa)” que é uma parceria público-privada liderada por governos nacionais, com cinco parceiros, a “Organização Mundial da Saúde (OMS)”, o “Rotary International”, os “Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC na sigla inglesa)” dos Estados Unidos, o “Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF na sigla inglesa)” e a “Fundação Bill & Melinda Gates”.

O seu objectivo é erradicar a pólio em todo o mundo e conta com vinte milhões de voluntários, catorze mil milhões de dólares de investimento internacional, duzentos países envolvidos e mais de dois mil e quinhentos milhões de crianças vacinadas, o que levou o mundo à beira da permanente vitória sobre o vírus da pólio. A indústria dos Estados Unidos e as ONG`s têm estado na linha da frente  para dar resposta a emergências sanitárias globais, e ao avanço da pesquisa e inovação que ajudou a reduzir os patógenos mais perigosos do mundo. Os esforços de colaboração internacional, especialmente o fortalecimento da capacidade dos sistemas nacionais de saúde, são essenciais para prevenir e se preparar para um variedade de ameaças, de pandemias de doenças infecciosas aos assassinos silenciosos de doenças não transmissíveis crónicas.

O “Comité de Saúde Global e Futuro Papel dos Estados Unidos” tem lutado pelo bom equilíbrio no cumprimento do seu mandato para examinar o papel dos Estados Unidos no futuro da saúde global, ao mesmo tempo que reflecte como membro da comunidade global de estados, que tem desafios e lições comuns para aprender com outros para influenciar o nosso futuro. O Comité deu prioridade aos desafios globais da saúde com o potencial de perda catastrófica da vida e impacto na sociedade e na economia, como pandemias, doenças transmissíveis persistentes, como a SIDA, tuberculose e malária e doenças não transmissíveis, como a saúde cardiovascular e diversos tipos de cancro, bem como áreas onde os investimentos significativos dos Estados Unidos criaram ganhos que devem ser consolidados e sustentados, como promover a saúde das mulheres e das crianças, aumentar a capacidade,  inovar e implementar a saúde global.

O Comité concluiu que o governo deve manter a sua posição de liderança na saúde global como um interesse nacional urgente e como um benefício público global, que melhore a posição internacional da América. Embora seja necessário um investimento adicional, pois o dinheiro por si só não é a única resposta. O Comité elaborou um relatório qur contém catorze recomendações, significativas, para fortalecer os programas de saúde globais dos Estados Unidos, reconhecendo que muitas outras áreas merecem atenção. A fim de maximizar o trabalho em direção aos desafios de saúde globais priorizados, o Comité concentrou-se em como aproveitar os recursos, fazendo negócios de forma diferente, especialmente através do uso de processos de pesquisa e desenvolvimento aperfeiçoados, e mecanismos de financiamento de saúde digital para maximizar o retorno dos investimentos, e demonstrar a liderança dentro da arquitectura e governança da saúde global.

Ao investir na saúde global nos próximos vinte anos, existe a possibilidade de salvar a vida de milhões de crianças e adultos. Além desses benefícios de saúde para os indivíduos, a saúde global está directamente ligada à produtividade e ao crescimento económico em todo o mundo. Assim, e de acordo com a “Comissão Lancet sobre Investir na Saúde”, o retorno dos investimentos em saúde global pode ser substancial, pois os benefícios podem exceder os custos, nos países de baixo rendimento e países de baixo rendimento médio. Trata-se de a nível mundial, investir em capacidades básicas para prevenir, detectar e responder a surtos de doenças infecciosas através do desenvolvimento de sistemas multidisciplinares.

O “One Health” focado na interacção da saúde humana e animal pode resultar em uma economia estimada em quinze mil milhões de dólares anuais contra a prevenção de surtos isolados. À luz desses benefícios, bem como o surgimento contínuo e ressurgimento de doenças infecciosas e a crescente ameaça de resistência antimicrobiana, um compromisso sustentável com a segurança sanitária global é um imperativo para todos os países. É de recordar que “One Health” é um esforço de colaboração de múltiplas disciplinas, a trabalharem a nível  local, nacional e global para alcançar a saúde ideal para pessoas, animais e meio ambiente.  O “One Health” é uma nova frase, mas o conceito  remonta aos tempos antigos.

O reconhecimento de que os factores ambientais podem afectar a saúde humana, foi defendida pelo médico grego Hipócrates no seu texto “On Airs, Waters e Places”, em que promove o conceito de que a saúde pública dependia de um ambiente limpo. Os Estados Unidos têm sido um líder na saúde global, inclusive através de programas de alto desempenho como o “Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos Para Alívio do Sida, (PEPFAR na sigla inglesa)”; a “Iniciativa Presidencial Contra a Malária (PMI na sigla inglesa” que foi criada em 2005; o “Fundo Mundiall de Combate à Sida, Tuberculose e Malária (GFATM na sigla inglesa).”

O GFATM é uma associação criada em 2002, entre governos, sociedade civil, o sector privado e as pessoas afectadas pelas doenças e concebida para acelerar o fim das epidemias de SIDA, tuberculose e malária, recolhendo e investindo quatro mil milhões de dólares anualmente, para financiar programas dirigidos por especialistas locais nos países e comunidades mais necessitados, tendo salvo mais de vinte e dois milhões de vidas, e recentemente a “Agenda Global de Segurança da Saúde (GHSA na sigla inglesa)” que foi criada em 2014, e é uma parceria crescente de mais de cinquenta países, organizações internacionais e partes interessadas não governamentais para ajudar a construir a capacidade dos países a criar um mundo seguro e protegido contra ameaças de doenças infecciosas, e elevar a segurança sanitária global como uma prioridade nacional e global.

A GHSA prossegue uma abordagem multilateral e multissectorial para fortalecer tanto a capacidade global, quanto a capacidade dos países de prevenir, detectar e responder a ameaças de doenças infecciosas humanas e animais, que ocorrem naturalmente, acidentalmente ou deliberadamente. Todavia, os recursos não são ilimitados, e o compromisso contínuo deve ser realizado.  A nova administração americana no contexto do legado influente dos Estados Unidos no desenvolvimento da saúde global, enfrenta a escolha de garantir ou não os ganhos na saúde global, tendo em conta os beneficios de milhares de milhões de dólares, anos de dedicação e programas fortes que são sustentados e preparados para um maior crescimento.

O enorme crescimento das viagens e do comércio internacional que ocorreu nas últimas décadas, aumenta a urgência de investimentos contínuos na saúde global. A crescente interconexão do mundo e a interdependência entre os países, economias e culturas trouxeram melhor acesso a bens e serviços, mas também a uma variedade de ameaças para a saúde. A assistência externa é muitas vezes considerada um tipo de caridade, ou suporte para os menos afortunados. Ainda que,  possa ser verdade para as populações mais pobres e vulneráveis, a maioria desses auxílios, especialmente,  quando direccionado para a saúde, são um investimento na saúde do país receptor, bem como dos Estados Unidos e do mundo em geral.

Tal motivação de investimento para os Estados Unidos tem duas vertentes, a de proteger contra ameaças globais à saúde e promover a produtividade e o crescimento económico em outros países. Embora o ónus das doenças infecciosas recaia predominantemente em países de baixo rendimento, essas doenças representam ameaças globais, que podem ter consequências terríveis para qualquer país, incluindo os Estados Unidos, em termos de custos humanos e económicos. Aproximadamente duzentas e oitenta e quatro mil mortes foram atribuídas ao surto gripe  H1N1 em 2009, por exemplo, e dois milhões de mortes são previstas em caso de surto de uma pandemia de gripe moderada futura. Em apenas alguns meses, de 2003, o surto do “Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS na sigla inglesa) custou ao mundo entre quarenta e cinquenta e quatro mil milhões de dólares, enquanto em 2014 os Estados Unidos dispenderam 5,4 mil milhões de dólares como  resposta ao surto Ebola, dos quais cento e dezanove milhões foram gastos em monitorização doméstica e acompanhamento dos passageiros das companhias aéreas.

A crescente prevalência de doenças não-transmissíveis (DNTs) também afectou negativamente as economias globais, ameaçando ganhos societários na expectativa de vida, produtividade e qualidade de vida global. As perdas de produtividade associadas à incapacidade, ausências não planeadas ao trabalho e aumento dos acidentes incidem em custos até 400 por cento superiores aos custos de tratamento. As pesquisas também mostram que os investidores são menos propensos a entrar em mercados onde a força de trabalho sofre uma pesada carga de doenças. Assim, populações saudáveis são importantes em vários níveis. Investir no capital humano contribui significativamente para o crescimento económico, prosperidade e estabilidade nos países e cria parceiros mais confiáveis e duradouros no mundo. Tal estratégia mostrou-se bem-sucedida, como é evidenciado pelo facto de onze dos quinze principais parceiros comerciais dos Estados Unidos serem ex-receptores de assistência estrangeira.

O Comité foi encarregado de realizar um estudo de consenso para identificar prioridades globais de saúde à luz das ameaças e desafios actuais e emergentes para a saúde global e fornecer recomendações ao governo dos Estados Unidos, e outras partes interessadas, para aumentar a capacidade de resposta, coordenação e a eficiência para enfrentar essas ameaças e desafios, estabelecendo prioridades e mobilização de recursos. Tendo o apoio de um conjunto amplo de agências federais, fundações e parceiros privados, foi nomeado um Comité ad hoc composto de catorze membros para realizar esta tarefa ao longo de seis meses e com base em um processo de consenso rigoroso e fundado em evidências. Os membros do Comité formularam um conjunto de catorze recomendações que implementadas, oferecerão uma forte estratégia global de saúde e permitirão aos Estados Unidos manter o seu papel como líder mundial em saúde.

As recomendação passam por melhorar a coordenação internacional de resposta às  emergência, combater a resistência antimicrobiana, construir a capacidade de saúde pública em países de baixo e médio rendimento, observar o próxima actuação do PEPFAR, confrontar a ameaça da tuberculose, sustentar o desenvolvimento na eliminação da malária, melhorar a sobrevivência de mulheres e crianças, assegurar uma vida saudável e produtiva para mulheres e crianças, promover a saúde cardiovascular e prevenir o cancro, acelerar o desenvolvimento de produtos médicos, melhorar a infra-estrutura digital da saúde, realizar investimentos de transição para bens públicos globais, optimizar recursos através de financiamento inteligente e comprometer-se a liderar continuamente a saúde global. A paisagem da saúde global é vasta, e com prioridades novas e por vezes díspares em todo o sector da saúde, pelo que considerar cada questão ou doença no seu local próprio pode ser contraproducente. Uma perspectiva tão estreita, dificulta a capacidade de incentivar investimentos em outros programas e adaptar recursos de programas existentes quando surge uma nova ameaça.

Assim, embora a prioridade para os recursos seja necessária, também é essencial adoptar conceitos holísticos e centrados no sistema de integração, capacitação e parceria para obter resultados de forma mais abrangente e com esse entendimento, o Comité identificou quatro áreas prioritárias para acções de saúde global que, se abordadas, terão um maior efeito positivo na saúde, sendo a primeira alcançar a segurança da saúde global, pois nos últimos dez anos, os surtos de pandemia de gripe,  no  Médio Orienteo, o síndrome respiratório  coronavírus (MERS-CoV), Ebola e, mais recentemente, o Zika ameaçaram populações em todo o mundo. A segunda, será manter uma resposta sustentada às ameaças contínuas de doenças transmissíveis. Os esforços dedicados dos governos nacionais, das fundações e da comunidade global resultaram em milhões de vidas salvas da SIDA, tuberculose e malária, mas as três doenças continuam a apresentar ameaças imediatas e de longo prazo para a saúde das populações em todo o mundo. Mais de trinta e seis milhões de pessoas vivem com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV na sigla inglesa), com dois milhões de novas infecções em cada ano.

A terceira área, será economizar e melhorar a vida das mulheres e das crianças. Os esforços para salvar a vida de mulheres e crianças em todo o mundo, historicamente foram um múcleo importante para o governo dos Estados Unidos, embora as taxas de mortalidade infantil e materna tenham diminuído a partir de 2000, em cada ano cerca de seis milhões de crianças morrem antes de fazerem cinco anos de vida e mais de trezentas mil mulheres morrem por causas relacionadas com a gravidez e o parto. A quarta área, será promover a saúde cardiovascular e prevenir o cancro, pois as doenças infecciosas muitas vezes atraem os meios de comunicação, mas uma preocupação igualmente importante é o aumento das taxas de doenças não transmissíveis, em todos os países, independentemente do seu  nível de rendimento. Os custos para gerir essas doenças está a aumentar. As doenças cardiovasculares deverão custar ao mundo um trilião de dólares por ano em custos de tratamento e perdas de produtividade até 2030.

22 Set 2017

Baralhar e voltar a dar

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ealizaram-se no passado domingo as eleições para a Assembleia Legislativa da RAEM, e pela quinta vez desde a transferência de soberania, a população foi chamada a escolher parte dos deputados que vão compor o hemiciclo na próxima legislatura. Das análises que foram feitas nestes últimos dias, concordo basicamente com o essencial: todos ficaram a ganhar. Os sectores tradicionais mantiveram ou reforçaram a sua presença, bem como o sector tido como “anti-establishment”. Foi um progresso significativo em relação ao sufrágio de há quatro anos, onde o eleitorado preferiu votar em massa nos sectores que representam mais os interesses económicos e associativos.

Se há algo com que não concordo é com a possível influência do tufão Hato nos resultados eleitorais, que assim serviriam para mostrar um “cartão amarelo” ao Governo. Pode ser que os danos provocados pela tempestade, e a resposta pouco adequada que foi dada à mesma estivesse na mente de uma pequena parte do eleitorado, mas não era o poder Executivo que ia aqui a votos, mas sim o Legislativo. Uma das funções deste é a de “fiscalizar a actuação do poder Executivo”, e nesse particular os resultados forma positivos. Existe pelo menos alguma esperança em relação a 2013, no que toca a esse particular.

Portanto, estabelecido de que aqui não se pode falar de quem “ganhou” ou “perdeu”, falemos de quem teve mais votos, que foi a Associação do Novo Macau (NM), que no somatório das três listas com que se apresentou ao sufrágio, obteve mais de 30 mil votos. Dizer que a lista única da União-Macau Guangdong foi a grande vencedora porque obteve mais votos que as 23 restantes é fazer “contas de merceeiro”. Aqui não se trata de uma maratona, ou de uma corrida de fórmula 1, onde ganha quem atravessa a meta em primeiro lugar – por essa lógica o PSD seria Governo em Portugal, nesta altura.

Nem se pode falar de um grande sucesso da parte das democratas nestas eleições, mas antes de um regresso à normalidade. Era a força que vinha obtendo mais votos desde 2001, e há quatro anos sofreram um revés, quando optaram por se dividir em três listas, perdendo eleitores, bem como um lugar na AL. A receita agora foi a mesma, mas com outro ingrediente. Em 2013 a terceira lista foi encabeçada por Jason Chao, que vinha sofrendo de um exposição negativa da sua imagem e era tido como um “radical”, e este optaram por Sulu Sou, uma figura mais carismática, com um discurso mais próximo do eleitorado de base da ANM. Sou conseguiu triplicar o número de votos do seu camarada e ser eleito, provando ter sido uma aposta sensata.

A grande surpresa da noite eleitoral foi a eleição de Agnes Lam, que concorreu pela terceira vez à frente do Observatório Cívico, duplicando o número de votos de há quatro anos. Atendendo ao facto de que o seu eleitorado não veio do sector democrata, nem de Pereira Coutinho, que reforçou a sua votação, apesar de ter perdido o seu companheiro de bancada, pode-se dizer que Agnes Lam foi a mais beneficiada com os novos 20 mil eleitores que participaram deste sufrágio. O papel que desempenhará na AL é ainda um mistério, mas pelo menos servirá para elevar o debate em termos de retórica. E sabemos como isso é necessário.

Em última análise, pode-se considerar que existem dois grandes blocos do eleitorado. Uma maioria com ligação aos sectores tradicionais e às associações, que desta forma garantem praticamente a sua representatividade com os votos vindos da sua base eleitoral, e cerca de 50 e poucos mil votos ditos “independentes”  (podiam ser mais caso a participação fosse maior), e que desta vez foram bem distribuídos.

21 Set 2017

Notas pós-eleitorais

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]umprida que está a primeira fase do ciclo eleitoral da RAEM, visto que a segunda só se concluirá com a indicação dos 7 deputados nomeados pelo Chefe do Executivo, a ocorrer no prazo de 15 dias após a recepção da acta de apuramento geral, dessa forma se respeitando os art.ºs 50.º n.º 7 da Lei Básica e 2.º da Lei 3/2001 (Lei Eleitoral), importa neste ínterim tecer algumas considerações sobre os resultados do sufrágio directo – o indirecto, por demasiado comprometido e dependente, falta de competitividade e reduzida legitimidade democrática, dispensa considerações nesta sede – e o que aí vem.

1. À cabeça é de referir que o sufrágio directo trouxe consigo um reforço da componente mais popular da Assembleia Legislativa (AL), por oposição a uma presença mais lobista, mais corporativa e empresarial, por um lado, mas também de cariz regionalista. Disto constituem exemplos os resultados alcançados por Ella Lei (Operários), Agnes Lam (Cívico), Sulu Sou (ANPM)e Wong Kit Cheng (Mulheres) por oposição aos resultados alcançados por Mak Soi Kun (Macau-Guangdong), Chan Meng Kam, via Si Ka Lon (ACUM) e Song Pek Kei (ACDM), Ho Ion Sang (UPP), Angela Leong (NUMD), Lam U Tou (SINERGIA) e, em especial, por Melinda Chan (APM).

2. Esta alteração do equilíbrio de forças dentro dos blocos saídos do sufrágio directo irá trazer consigo uma outra atitude dentro da AL. A leitura daquelas que têm sido as bandeiras das associações de Agnes Lam e Sulu Sou indicia que o chamado “campo pró-democrático” – entendendo-se como tal um grupo que pugna por uma maior participação e intervenção cívica dos cidadãos, maior transparência, rigor na fiscalização dos actos governativos e alargamento progressivo do sufrágio universal à escolha de todos os deputados à AL – vai passar a ter maior exposição pública, tempo de antena acrescido na comunicação social e possibilidade de fazer chegar mais longe a sua mensagem, penetrando em franjas do eleitorado onde até agora não entrava por dificuldade de acesso a essa tribuna.

3. Isto conduzirá a um escrutínio público reforçado dos actos de Governo, também potenciado pelo acesso desses grupos a mais informação, colocando maior pressão sobre a actuação do CE, dos secretários, da Administração Pública e dos concessionários.

4. A AL poderá também vir a beneficiar destas mudanças por via da introdução de uma maior transparência na sua acção. Algumas das iniciativas de Pereira Coutinho, nomeadamente quanto ao funcionamento e divulgação da actividade das comissões especializadas, são susceptíveis de ganhar novos apoios e adeptos mercê do equilíbrio e sensatez de Agnes Lam e das acções que esta empreenda no sentido de obter consensos alargados, bem como da moderação e inteligência de Sulu Sou, evitando radicalismos excessivos e despropositados que possam fazer perigar ou reduzir a eficácia da sua acção e os resultados a que aspira.

5. É previsível uma maior atenção às causas sociais, isto é, às preocupações que nos últimos anos se têm feito sentir por parte das comunidades de Macau, de modo mais ou menos difuso, mas que correspondem à necessidade de resolução de alguns problemas vistos como os mais urgentes para a qualidade de vida dos residentes, mormente habitação, transportes, qualidade do ar e das águas, mas ainda em relação às obras públicas, respectivos processos concursais e concessões de serviço público, colocando uma maior ênfase nas vertentes do controlo, eficiência, qualidade da resposta e prestação de contas.

6. Depois, num momento em que se aproxima o termo das concessões e sub-concessões de jogo que estão em curso, a redução dentro da AL do peso dos grupos associados aos “casineiros”, fortemente penalizados pelos resultados das listas próximas de Chan Meng Kan, Angela Leong e Melinda Chan, é um excelente sinal. Não só a AL estará um pouco mais liberta dessas influências que trazem conflitos de interesses e uma excessiva proximidade entre o trabalho parlamentar e o mundo dos negócios, como quando se tratar de apreciar eventuais alterações à lei do jogo e ao regime das concessões permitirão um olhar mais desligado e mais próximo da comunidade, capaz de ajudar a uma aproximação entre os interesses do jogo e as verdadeiras necessidades da comunidade, de maneira a que não sejam sempre os mesmos a ganhar e toda a sociedade a perder.

7.  Deverá por tudo isso, o Chefe do Executivo usar o seu poder de nomeação dos deputados com inteligência, aproveitando o resultado do sufrágio directo, o único que tem indiscutível legitimidade democrática e goza da autoridade popular, para nomear pessoas qualificadas, que honrando a função e a nomeação possuam sensibilidade para compreender as preocupações sociais, as necessidades da boa governança e tenham capacidade para colaborar na construção de pontes dentro da AL – em vez de se dedicarem a fazer comentários disparatados e intervenções ofensivas da comunidade e reveladoras de grande ignorância – que permitam uma articulação equilibrada das aspirações de todos e dos interesses que importa defender, os quais não são, como bem se compreende, os dos empresários e famílias que se têm comportado como rémoras do tecido social e do trabalho de todos, monopolizando riqueza e influência em detrimento dos verdadeiros interesses de Macau e das suas gentes.    

8. Por último, dever-se-á aproveitar o resultado destas eleições para se trabalhar no sentido de uma melhoria dos (i) instrumentos de participação, (ii) da acção da futura Comissão Eleitoral, (iii) avançando-se para uma mais do que desejável reforma do anacrónico sistema eleitoral, de onde resulte mais justiça, compreensibilidade sistémica para os cidadãos e se coloque um (iv) ponto final nos mecanismos de engenharia eleitoral que, a coberto da lei, incentivam a reprodução fraudulenta de listas e tendências para obviar aos resultados indesejáveis que o actual e perverso sistema de conversão de votos em mandatos a todos os títulos propícia.

21 Set 2017

Jogo demasiado real

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or ocasião do 40º aniversário, o Ocean Park de Hong Kong organizou uma série de eventos em grande escala. Os visitantes tinham à sua disposição 11 atracções fantasmagóricas e podiam experienciar 12 situações totalmente inéditas. Numa destas situações, inspirada no jogo Buried Alive, os visitantes são transportados à Europa Medieval. É o primeiro parque temático de terror da Ásia.

O website do Ocean Park descreve esta experiência nos seguintes termos:

“Os visitantes de Buried Alive iniciam a sua jornada de terror sendo “enterrados vivos” em caixões de madeira. Depois de conseguirem escapar a este pesadelo, a visita solitária prossegue ao encontro de criaturas horríveis. Vão cruzar-se com aranhas, bichos assustadores e fantasmas. Os afortunados que conseguem aqui chegar, reúnem-se aos amigos num trilho comum, ou então têm de enfrentar mais uma fuga a solo, passando por esqueletos arrepiantes, caixões, labirintos, por uma câmara de ossadas e, finalmente, pelo horror da magia negra.”

O Parque é uma novidade em Hong Kong e, como tal, é bastante atractivo. No entanto o Ocean Park encerrou o cenário Buried Alive, depois da morte de um jovem de 21 anos no passado dia 16.

O homem foi encontrado morto cinco minutos depois de ter entrado na Casa Assombrada. Foi dar a uma zona de manutenção reservada aos funcionários, segundo Eva Au Yeung Yee-wah, directora de animação e eventos do Ocean Park.

O Ocean Park encerrou esta atracção e reportou o incidente ao “Departamento dos Serviços Eléctricos e Mecânicos” de Hong Kong. Todas as instalações do Parque, incluindo as do Buried Alive, tinham sido aprovadas nas inspecções oficiais.

Este caso pode não ser exactamente uma novidade, mas merece alguma atenção. Todos sabemos que quando chegam as celebrações do Halloween, muitos jovens vão a Hong Kong à procura de divertimentos. A altas horas da madrugada formam filas enormes no Terminal do Ferry Hong Kong-Macau, para comprar o bilhete de regresso a Macau. Felizmente os noticiários alertam com frequência estes jovens para os perigos que correm, apelando para que tenham muito cuidado nestas saídas.

Até ao momento não foi possível determinar se houve algum erro humano por trás deste incidente. O relatório preliminar do “Departamento dos Serviços Eléctricos e Mecânicos” apontava para a ausência de falhas mecânicas. Este departamento foi chamado à investigação no âmbito da Ordenança para a Segurança das Diversões Mecanizadas, que regula os parques de diversões em Hong Kong. O departamento é responsável pela aplicação da Ordenança.

O Ocean Park tem um seguro que cobre eventuais acidentes que vitimem os visitantes. Desta forma os familiares do falecido serão indemnizados.

Independentemente das causas do acidente, o Ocean Park irá sempre ressentir-se e com certeza irá baixar as receitas nos tempos mais próximos.

Têm aparecido comentários no website a apelar à não participação nos jogos durante o Festival dos Fantasmas Famintos. Também conhecido como “Zhongyuan Festival” ou “Yulan Festival, esta comemoração ocorre a 14 de Julho no calendário chinês, Setembro no calendário ocidental. É uma festa tradicional Budista e Taoista celebrada em vários países asiáticos. Por esta ocasião, os fantasmas e os espíritos, incluindo os dos antepassados, emergem das profundezas e vêm visitar os vivos. Durante o Festival fazem-se ofertas rituais de alimentos, queima-se incenso, joss paper e objectos em papel-mâché representando diversos bens materiais, em homenagem aos espíritos dos antepassados.

Como se acredita na China que neste período os Espíritos estão mais “activos”, os mais velhos lembram os jovens que devem recolher cedo para evitar maus encontros. Ficar em casa é sempre o mais seguro.

Não que eu recomende a crença em espíritos. Mas a tradição desempenha um papel muito importante em qualquer sociedade. Se estivermos na China é bom que sigamos os costumes chineses.

Sabe-se que o jovem que faleceu ia ingressar na Universidade este mês. Será que os pais vão ser reembolsados do dinheiro das propinas? Tudo vai depender do tipo de contrato que foi feito. Claro que do ponto de vista humanitário a decisão correcta será o reembolso.

Professor Associado do IPM

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

19 Set 2017

Lentamente

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara quem é um ávido consumidor de pornografia vai-se deparar com sexo muito rápido e insistente. Imaginamos ‘coelhinhos/as’ a saltar uns em cima dos outros/as, violenta e prazerosamente. A lentidão parece que não se encaixa na representação do sexo per se, somente nos controversos momentos de preliminares é que parece que lentamente se tira proveito dos momentos de prazer – mas que a penetração não tem como aproveitar da lentidão – o slow motion.

Parece que o sexo lento é o segredo melhor guardado dos senhores-mestres-deuses do sexo. Nem sequer é contra-intuitivo, é simplesmente romântico. Mas sejamos honestos,  quantos de nós foge do romance? Daqueles momentos em que os corpos se entrelaçam em trocas de almas, em trocas do mais íntimo de ser? Tantos! E assim o segredo se mantém segredo, sem grande razão de ser. O prazer continua a ser negado e negociado por representações populares-pornográficas e a lentidão continua a estar na prateleira, em lista de espera.

Não fosse o sexo lento muito bom! Para todos, para ele e para ela, para eles e elas. Porque estas manias não são tendencialmente femininas – apesar de ser um catalisador de prazer feminino. A vantagem é a sensação e sensibilidade de milímetros de consciência. Porque aqui também se aplica a história da lebre e da tartaruga… a lentidão não é de perdedores mas de vencedores audazes, na corrida orgásmica do sexo. Digamos que o bom sexo pode ser um sprint, mas é certamente uma maratona.

Mas ninguém consegue inteirar-se da lentidão porque vivemos em tempos muito rápidos. Não se deve andar devagar, conduzir devagar, trabalhar devagar. Vai contra os princípios da produtividade – apesar da sabedoria popular sugerir que  ‘devagar é  que se vai ao longe’, ‘depressa e bem, não há quem’, etc. O sexo é assim mesmo, bom sexo exige tempo, despreocupação e lentidão para acordar os sentidos sensuais que possam estar perdidos e esquecidos.

E sim, a lentidão favorece o orgasmo feminino. Mas qual é o parceiro/a que não quer privilegiar o orgasmo mais intenso todos, o de quem desejamos? Nem que seja momentaneamente. Ora pensemos heterossexualmente: se um homem em média ejacula em 7 minutos e as mulheres atingem o clímax em 45 minutos, o sexo lento parece uma óptima solução para resolver este desequilíbrio. Assim o coito é prolongado em minutos, ou em horas para os mais corajosos, e o culminar orgásmico é intensificado. Podem até não se deixar levar à primeira vinda do orgasmo, mas controlar (torturar) o êxtase leva a um acumular de desejo que resulta em orgasmos mais intensos e prazerosos. Não acreditam? Pois este é outro segredo dos senhores-mestres-deuses do sexo: adiem o prazer por mais que puderem. Não sejam consumistas em quantidade mas em qualidade, vão ver que triplicam (ou quadruplicam) o vosso bem-estar sexual.

Uma abordagem estritamente capitalista ao sexo, i.e., de consumismo rápido, priorizando a quantidade (muitas vezes descurando a qualidade), pensado que o sexo é uma perda de tempo – e o tempo é dinheiro! – é uma injustiça pela nossa vida sexual. Claro que não quero aqui insinuar que o sexo rápido à coelhinho não valha a pena, nada disso. Mas o sexo não pode ser só isso. Dar o tempo necessário à nossa vida sexual, com a lentidão desejada, com o prazer  que daí advém é um direito universal. Pronto, não é mas devia ser. Porque já dizia o Freud que a nossa saúde mental e física é afectada por uma vida sexual decrépita. Mais vale apostar na prevenção e tentar um sexo bem lento de vez em quando – pela nossa saúde.

19 Set 2017

Eleitor

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] somatório de todo o raciocínio, indiferença e sofrimento vertido na ponta de um carimbo. Com um simples gesto sepultam-se quatro anos de desfasamento na urna eleitoral. Já repararam na conotação fúnebre de tudo isto? O ciclo político encerra-se e reabre com um velório democrático. Um ritual mortuário mascarado de cidadania levando cortejos de eleitores enlutados e as suas lamúrias à cova das fracas opções. Um ciclo de vida afastado dos tronos da decisão onde se enterra a defunta liberdade. Tudo isto para chegarmos onde estamos, ou seja, exactamente onde estávamos antes. À terra regressamos.

Hoje voltámos a ser o que éramos antes da campanha eleitoral, uma massa disforme, por definir, nas antípodas do poder, perfeitamente camuflados por uma perfusão de estudos e consultas públicas fantasmagóricas. Sinto-me aliviado por não ter de testemunhar mais a charada dos bilionários a tentarem meter-se na minha pele, a fingir que conhecem as minhas dores. Tenham decência e deixem-me em paz, regressem às vossas torres de marfim, às vossas mulheres esculpidas a bisturi, às vidas onde não existe o medo de ficar sem tecto, onde não cabe a matemática da mercearia. O vosso único medo sou eu, somos nós, é um povo desperto e raivoso a reagir ao vosso despudor.

Este é o momento em que quase podemos tocar o Olimpo, roçar ombros com quem faz as leis da terra. Há um conceito que me desce da cabeça para onde se forma a bílis: Elite! A palavra tem origem no latim, eligere exlegere, uma cruel ironia para estes dias de retorno ao fosso incomensurável entre governadores e governados. Elegemos a elite, temos uma quota-parte de responsabilidade nisto tudo.

De certa forma, este exercício de intoxicante livre arbítrio é o que nos traz a este dia, ao rescaldo do concurso de popularidades que terminou na urna. Alimentaram-me com aspirações colossais face ao liliputiano gesto de eleger, venderam-me a ideia de acto essencial como a respiração e saiu-me na rifa uma acção onde não há qualquer tipo de processo cognitivo, nem análise, intuição, nada. Resta-me o vazio de utilidade depois do direito/dever cumprido, uma flor que teimo plantar em alcatrão fresco a cada quatro anos, sempre com uma réstia de esperança de que floresça além das limitações biológicas.

Mas pensemos no procedimento que me caracteriza, o voto. Como é que algo pode ser simultaneamente um direito e um dever? Este conceito tem na sua génese um enorme paradoxo que dificilmente poderá ter eficácia prática. É uma aberração lógica à qual não declino, talvez seja precisamente devido a esta inconsistência racional que não resisto, a todos os quatro anos, a carimbar um simulacro de escolha. Mas faço por eleger, presto-me ao sacrificial desígnio de sepultar o pequeno corpo democrático em caixão branco.

Fica toda a realidade citadina reduzida ao gesto aniquilador do voto, ao último golpe de teatro antes do regresso à normalidade e regressamos à cidade estrangulada pelas tenazes dos múltiplos interesses e à invisibilidade das suas gentes.

Agora instala-se a ressaca da inevitabilidade, mais quatro anos sem solicitações de cima. Volto a ser o cidadão, o residente, o mais elevado na hierarquia dos esquecidos, impertinente acorde na corda mais gorda do violoncelo, impetuoso na minha massificação, um fantasma andrajoso na cidade do super pib. Onde estão os milhões que as médias estatísticas me devem?

Hoje desperta um novo dia, mais um daqueles sem história depois de todo o rebuliço deste pedaço de Verão escaldante. A treva fica para trás e o sol irrompe num horizonte de normalidade. Um sentimento de paz apodera-se das coisas, entranha-se nos passeios, como se entre os objectos se instalasse um narcótico armistício.

Também entre as pessoas reina a reconciliação. Os eleitores voltam a ser quem eram, os trabalhadores residentes continuam a não ser ninguém e os políticos continuam a reinar acima de todos os outros. Como na relação entre astro e rotação celeste, Macau entra no “polistício”, a altura do ano em que a legislatura está no seu pináculo, iniciando, imediatamente, o seu declínio. A vida prossegue para mais um ciclo.

18 Set 2017

O último acto

[dropcap style≠’circle’]1.[/dropcap] Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Devia ser um texto de análise, profundo e revelador de algum conhecimento sobre a matéria, um texto acerca das diferentes opções ao dispor do eleitor. Não é. Não sei se sei e, mesmo se soubesse, não me apetece. Também não é um texto baseado em teorias da semiótica das artes visuais, uma abordagem à estética eleitoral, ao modo como se pretende passar as mensagens políticas do momento.

Este texto devia ser sobre o momento político mais importante do território, mas não é. O momento não se dá à importância, não se dá ao respeito. Não se dignifica, nem dignifica os outros, os cidadãos comuns pelos quais deveria ter consideração. O que temos visto por aí é um pequeno circo ao ar livre, por entre os escombros do vento, as árvores e as tabuletas que continuam pacificamente derrubadas. Sendo certo que, independentemente da geografia, as campanhas eleitorais tendem a ser excessivamente burlescas, as da terra estão cada vez mais trágico-cómicas. Cómicas porque são arlequinescas; trágicas porque tudo isto é sério. Demasiado sério.

O que guardarei desta campanha eleitoral. Um candidato que acha que Che Guevara reencarnou junto ao Mar do Sul da China. Uma candidata que acha bonito andar por aí, na televisão, a falar dos filhos dos outros. Uma polícia que gosta de demonstrar o quão musculada é. Um IACM que diz que respeita os tribunais, como se tivesse outra opção. Umas carrinhas podres com uns cartazes fraquinhos. Uma Comissão de Assuntos Eleitorais que precisa de amadurecer. Promessas dirigidas única e exclusivamente a determinados sectores profissionais, como se andássemos todos a baralhar cartas em casinos. O que guardarei desta campanha eleitoral. A conversa vaga e vã do costume.

O que resultará destas eleições. Uma Assembleia Legislativa mais pobre, mais fraca, menos interessante. Ainda menos interessante. Não sabendo o que vai acontecer no próximo domingo, aposto um avo em como sairão vencedores aqueles que mais arroz distribuem, mais ajudam os necessitados e mais palmadinhas nas costas dão a velhinhos e crianças, como se política e beneficência se misturassem, como se melhor político fosse aquele que mais dinheiro tem.

Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Não é. É sobre aquilo que eu não gostaria que Macau passasse a ser.

Ainda assim. Quando o próximo domingo chegar, vote, senhor eleitor, vote em consciência, coisa que falta à grande maioria dos candidatos. Mas vote, vote sempre. Ponha o carimbo no quadrado que a alma lhe indicar. Se não houver caminho para nenhum dos quadrados, vote na mesma, não escolha nenhum. Compreendo a indecisão, mas vá lá e vote, faça tudo como vem nos livros.

2. Há precisamente 20 anos, em Setembro de 1997, entrei numa redacção e nunca mais de lá saí, apesar de ter vindo para o outro lado do mundo e de ter conhecido algumas redacções, das quais também nunca mais saí. Muitas voltas dadas, este jornal. Casa de portas abertas onde cheguei uma e outra vez, sempre de maneiras diferentes. Que me ensinou o que é pensar nos outros, que me pôs a discutir, a perguntar, a perguntar muito, no desassossego constante sem o qual não é possível ser-se jornalista. Que me ensinou que tudo isto vale a pena, mesmo que amanhã já não tenha qualquer importância e estas páginas sirvam para embrulhar os copos em mais uma mudança de casa, para limpar vidros ou embrulhar peixe, funções todas elas nobres dos matutinos e vespertinos deste mundo.

Não sei como vim aqui parar, a esta redacção e às outras todas. Aconteceu e nem sequer consigo precisar o momento. Talvez tenha acontecido por gostar das palavras, do acto da escrita, e depois a vida e as pessoas que se atravessaram nela fizeram o resto. Ensinaram-me o resto. E ensinaram-me que, nisto dos jornais e do jornalismo, não se é, nem se está pela metade.

Quando as palavras nos custam, nos doem, mesmo que nos escorram pelos dedos às centenas, aos milhares, é porque só já somos metade de nós. E eu não sei ser só meia-eu.

Este é o meu último texto. Obrigada aos que me ensinaram a ser em contramão.

17 Set 2017

O planeta Eaarth

“If we don’t go back, we will go down. Whoever denies it has to go to the scientists and ask them. They speak very clearly, scientists are precise. Then they decide and history will judge those decisions. Man is a stupid and hard-headed being (a stern warning to climate change deniers).”
Pope Francis

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s implicações políticas, económicas e sociais a longo prazo da desestabilização climática são preocupantes. O tempo indicará se o “Acordo de Paris” aprovado a 12 de Dezembro de 2015, e negociado durante a 21.ª sessão anual da “Conferência das Partes (COP 21 na sigla inglesa) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (CQNUAC)” e “11.ª sessão da Conferência das Partes”, enquanto, “Reunião das Partes no Protocolo de Quioto (CMP 11 na sigla inglesa)” é o início de um sério esforço global para evitar o pior que poderá acontecer ao planeta e à humanidade.

O nosso clima e outros sistemas terrestres não alcançarão um novo equilíbrio durante muito tempo e a Terra pode tornar-se um planeta diferente, que o ambientalista americano Bill McKibben chama de “Eaarth”, com um clima mais quente e incerto. Os números são assustadores. A concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, em Março de 2016, passou o limite de 402 partes por milhão (ppm), o que significa um aumento de 42 por cento em relação ao nível pré-industrial.

O total de outros gases de captura de calor medidos em unidades equivalentes de dióxido de carbono é talvez superior entre 50 a 70 ppm. A temperatura da Terra, como resultado, é maior em um grau Celsius, com talvez outro meio grau de aquecimento no percurso, devido ao atraso entre o que sai dos nossos tubos de escape e das chaminés e os efeitos climáticos resultantes das alterações climáticas que experimentamos. É possível ter sorte de cobrir os níveis de CO2 em 450 ppm, para manter o aquecimento de dois graus Celsius, e andar nos bicos dos pés com sucesso, à volta do retorno do ciclo de carbono, que poderia desencadear alterações catastróficas. Todavia, temos todos os motivos para agirmos com prudência, moralidade e instinto de sobrevivência para atingir e superar esses alvos o mais rápido possível.

A humanidade está a aprender que o sistema climático é complexo e não-linear, isto é, imprevisível e totalmente implacável do erro humano e do atraso diário. Foram geradas mudanças muito grandes na atmosfera da Terra com uma duração medida em séculos e milénios, mas as nossas instituições, organizações, sistemas de governança, economias e pensamento estão voltados para o curto prazo, medido em anos e algumas décadas. O outro lado da equação está a capacidade tecnológica em rápido crescimento para impulsionar as economias americana e globais por uma combinação de maior eficiência energética e energia renovável em várias formas. Existem aqui boas razões para um optimismo sóbrio, mas o caminho pela frente não será fácil.

A física da energia e as leis da termodinâmica são inamovíveis, assim como os factos obscuros do retorno energético do investimento e da densidade da energia. O base da energia do mundo moderno foi construída sobre combustíveis fósseis altamente concentrados, transportáveis e relativamente baratos. A energia renovável nas suas diversas formas é difusa, mais difícil de se concentrar, dispendiosa, com menor densidade e retorno no investimento. A demografia e o comportamento humano também agravam as dificuldades colocadas pela física.

A população mundial era de sete mil e quinhentos milhões de pessoas em Abril de 2017, a caminho de um apogeu de talvez onze mil milhões de pessoas. As nossas expectativas materiais e necessidades de mobilidade são maiores do que nunca e continuam a crescer. Existem boas razões para acreditar que superamos a capacidade de suporte da Terra e contra este cenário, as possibilidades de conseguir travar as piores situações resultantes das alterações climáticas são de 50 por cento. Existe sempre a perspectiva de que nenhuma pessoa sã entrará em um carro com a possibilidade de ocorrer um acidente fatal. É de considerar que algumas das mudanças ocorrerão, para que o mundo sinta o que podem ser os perigosos anos do caos climático.

O principal olhar não é sobre a transformação tecnológica, mas sobre as mudanças mais profundas de governança, economia, educação e outras que estão subjacentes à presente situação e sua solução. As mudanças de “hardware” e “software” são necessárias, mas nenhuma é suficiente e ambas devem ser recalibradas para um horizonte mais largo. Os nossos problemas são compostos, porque as alterações climáticas são apenas uma das várias ameaças inter-relacionadas ao nosso futuro comum. É de considerar que cada uma dessas ameaças é global, permanente e sintomática de falhas mais profundas, incorporadas nos nossos sistemas de governança, política, economia, ciências, dados demográficos e culturais, e que juntas representam uma crise do sistema que se prolongará por séculos.

O Papa Francisco na sua Enciclica “Laudato Si”, afirma que não somos confrontados com crises separadas, mas sim com uma crise complexa que é social e ambiental. Será dificil acreditar que estamos destinados a destruir a Terra pelo fogo, calor, ou tecnologia usada de forma incontrolável e disruptiva. Mas, se existir um futuro mais feliz, o que certamente acontecerá, devemos agir com generosidade, prudência, energia e entender de forma inteligente que somos apenas uma parte de um sistema global inter-relacionado. Será necessário actuar de forma eficaz e justa, pelo que devemos ser governados por instituições democráticas responsáveis, transparentes e robustas; e para agir de forma sustentável, devemos viver e trabalhar dentro dos limites dos sistemas naturais a longo prazo, ou seja, devemos aprender e encontrar um modelo que inclua estruturas humanas de economia, governança, educação, tecnologia, sociedade, cultura e comportamentos incorporados na ecosfera do ar, terra, águas, outras espécies e ciclos biogeoquímicos complexos.

O problema é que não somos muito bons na solução de problemas de sistemas que são grandes ou podem durar por um período largo. Primeiro negamos o problema e colocamos de lado; e, quando finalmente somos forçados a agir, tendemos a ignorar as causas estruturais subjacentes e mover pequenas peças marginais que muitas vezes têm efeitos imprevisíveis e contra-intuitivos. Por estes e outros motivos, as mudanças necessárias provavelmente começarão em bairros, cidades, estados, regiões e redes de cidadãos globais, devendo iniciar em uma escala capaz de ser gerida eficazmente e de forma compreensível por um processo de tentativa e erro, devendo paralelamente em catadupa mudar os sistemas maiores de governança e economia. É de aceitar que na actual conjuntura mudará tudo, como diz a jornalista, escritora e activista canadense, Naomi Klein, incluindo a nossa economia, hábitos de consumo, expectativas, governança, distribuição de riqueza e a prática da democracia.

O cientista de ciências da computação e escritor inglês, James Martin, no seu livro “The Meaning of the 21st Century “, expressa a crença de que precisamos de outra revolução, que implemente a gestão desejável, leis, controlos, protocolos, metodologias e governança de meios. O economista ecológico americano, Herman Daly, acredita que as mudanças necessárias exigirão algo como o arrependimento e a conversão. É de acreditar que ambas e muito mais serão necessárias para navegar nos perigosos anos do futuro e uma sociedade sustentável, decente, equitativa e de densidade real não pode existir por muito tempo, como uma ilha em um sistema global governado por ameaças, violência e a perspectiva de guerra nuclear. Algum dia acontecerá algo de horrivelmente errado. Enquanto isso, o sistema de conflitos poderá sugar e destruir tudo, desperdiçar pessoas e recursos valiosos, secar a prática da democracia, corromper os serviços de comunicações e obscurecerá a nossa consciência acerca de melhores possibilidades.

O hábito da violência predispõe-nos a pensar na natureza como algo meramente a ser conquistada. É de entender que não pode haver economia e harmonia lentas e justas entre humanos e sistemas naturais em uma sociedade governada pelo medo, ameaças, violência e guerra. Uma casa tão dividida não subsistirá. O movimento ambiental, desde o inicio, esteve ocupado a lutar contra a poluição, preservando o deserto e os rios férteis e que ofereciam paisagens deslumbrantes, travando todo o tipo de situações más ou prejudiciais. Era em grande medida um movimento agrário. As cidades eram principalmente negligenciadas ou tratadas como uma reflexão tardia. Todavia, o herói americano, David Crockett, sabia que um futuro humano decente seria essencialmente urbano. Mais de metade da população mundial vive em cidades e continua a crescer essa percentagem. As cidades geram 70 por cento das emissões de CO2 em todo o mundo, bem como a maioria de outros impactos ambientais e políticas de inovação, revelando o quanto as cidades são importantes.

Onde a maioria dos outros viu apenas apenas o feio, crime, poluição e o alargamento desordenado, David Crockett e os primeiros pioneiros do urbanismo verde viram possibilidades e oportunidades. As cidades podem ser educativas com aquários, museus, centros naturais e universidades, e abranger uma vida cívica robusta que inclua espaços ao ar livre para debates públicos, leituras de poesia e arte. Os municipios podem promover a convivência autorizando cafés e arte de rua, teatros e locais de música, incluir jardins urbanos e terraços verdes, misturar o urbano com o rural, às vezes com um toque de região selvagem, introduzir pistas de bicicleta, trilhas para caminhadas e trânsito ferroviário ligeiro, que proporcione mobilidade sem poluição e congestionamento automóvel.

As cidades podem ser limpas, verdes, seguras, educativas, emocionantes e excitantes incubadoras de conquistas e criatividade humanas e com políticas bem orientadas e incentivos adequados, podem reduzir uma grande parte as emissões de CO2 do mundo. Os primeiros urbanistas verdes que rapidamente entenderam a cultura de massas, deram-se conta que criar cidades verdes requer uma estrutura intelectual e política diferente. As cidades são as mais complicadas e complexas criações humanas. As suas patologias, incluindo o crime, poluição, expansão e congestionamento de trânsito têm muitas causas, entre elas a fragmentação das funções por zona e a falha em contar com a totalidade do organismo que deve ser alimentado, regado, servido de esgotos, informado, entretido, transportado e empregue, em particular, o seu enorme volume de resíduos aéreos sob forma de partículas, sólidos e lodo, que deve ser descartado, limpo e reciclado, permitindo o movimento de um grande número de pessoas e quantidades maciças de alimentos e bens diariamente.

As cidades, dada toda a sua vitalidade e potencial dependem de cadeias de suprimentos longas e vulneráveis. Qualquer falha no sistema de suprimento de alimentos, água e electricidade causaria o caos em questão de horas e a falha total em apenas alguns dias. Existem outrass ameaças e muitas cidades costeiras enfrentam a certeza do aumento dos níveis das águas dos oceanos e furiosas e enormes tempestades como foi o caso do tufão Hato, que assolou o Sul da China, entre 23 e 24 de Agosto de 2017 e o furacão Irma as Caraíbas e a costa leste dos Estados Unidos, entre 6 e 10 de Setembro de 2017, como fruto das alterações climáticas e consequente aquecimento global, cuja tendência é de piorar, apesar da existência do “Acordo de Paris”, que entrou em vigor a 4 de Novembro de 2016, mas que muitos dos países signatários não cumprirão por falta de meios ou vontade política.

As cidades continentais médias serão expostas a secas prolongadas e maiores e mais tempestades e tornados. As cidades também são alvos fáceis para os detentores de qualquer tipo de fraqueza e sempre serão vulneráveis a grupos de ódio, seitas religiosas, terroristas e perturbadoras, o que não é algo pequeno em um mundo onde o meio tecnológico para causar estragos letais tem sido amplamente disperso. As cidades são sistemas complexos e dispersos.

O seu futuro depende em larga medida do nosso entendimento de como trabalha o complexo sistema, como torná-las mais resilientes em uma multitude de situações e como desenhar as novas políticas, leis e incentivos económicos para torná-las mais limpas, verdes e seguras. O estudo do comportamento de sistemas complexos tem uma longa história. As décadas do pós-guerra entre 1950 e 1980, foi a grande era para a teoria dos sistemas, pois tendo como fundamento os avanços nas comunicações, pesquisa operacional e cibernética da II Guerra Mundial vários cientistas escreveram persuasivamente sobre o poder da análise de sistemas. Os benefícios eram muitos. O pensamento sistémico permitia erceber os padrões que se conectam de formas diferentes e detectar a lógica contra-intuitiva e uma importante realidade enganosa, criando análises, planos e políticas mais coerentes e efectivas.

Os benefícios reais da teoria dos sistemas, no entanto, foram evidentes em computadores e tecnologias de comunicação, que, por sua vez, foram baseados em avanços na teoria da informação e na cibernética durante a II Guerra Mundial. As actividades, em muitas latitudes com confiança caminharam sem perturbações. Apesar da lógica inerente ao pensamento sistémico, os governos, bem como as fundações, universidades e organizações sem fins lucrativos, ainda funcionam, principalmente, decompondo os problemas nas suas partes e trabalhando cada uma isoladamente. A separação de instituições, departamentos e organizações especializadas em energia, solos, alimentos, ar, água, vida selvagem, economia, finanças, regulamentos de construção, política urbana, tecnologia, saúde e transportes existe como se cada uma não estivesse relacionado às demais.

Os resultados, não são surpreendentes, pois muitas das vezes são contraproducentes, excessivamente caros, arriscados, desastrosos e irónicos. A modelagem de sistemas, por exemplo, ajuda a entender as causas das mudanças climáticas rápidas, os casos de falhas sistémicas do governo, a formulação de políticas e a economia evitando um vazio no muito que poderá ser feito e os consequentes prejuízos. A teoria dos sistemas, em suma, ainda não teve o seu momento copernicano e as razões estão ironicamente incorporadas na revolução científica. O atraso no seu estudo e implementação só vêm causar graves prejuízos, em particular, na compreensão, prevenção e minimização dos graves fenómenos naturais resultantes das alterações climáticas.

14 Set 2017

Macau, último Hato

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ive a sorte de não ter estado por Macau por altura do tufão Hato, no último dia 23 de Agosto, mas segui atenciosamente as notícias que vinham chegando, principalmente através da partilha dos (muitos) amigos do território nas redes sociais. Este não foi um tufão qualquer, quer em termos de intensidade, quer no que diz respeito às consequências, que em ambos os casos foram devastadoras. É – ou seria – impensável que numa cidade como esta tenham havido vítimas mortais a lamentar, cortes prolongados de energia eléctrica e no fornecimento de água potável, lixo espalhado pelas ruas, e cidadãos que acabaram a lamentar perdas materiais significativas. Chegamos à conclusão que Macau é uma cidade com dinheiro, mas está longe de ser uma cidade rica. O Hato não veio mais do que evidenciar as carências, mostrar que afinal estava tudo preso por fios, e de regresso das abençoadas férias que me fizeram escapar a este suplício, encontrei não só placares caídos e palmeiras desnudas. Dei também com uma população desencantada, desiludida, mas quem sabe com uma lição aprendida. Dos habituais predadores da desgraça alheia, que não se inibiram em inflacionar os bens de primeira necessidade, notaram-se rasgos de solidariedade, de auto-ajuda e de comunhão, próprios da dor que sente uma família unida em situações de desespero e impotência. Vamos ficar a desejar que renasça agora das ruínas do Hato uma nova Macau, que se não ficar consciente de mais nada, que seja apenas das suas fragilidades.

II

Pouco mais de uma semana depois da tragédia, e com a população ainda mal recomposta, arrancou a campanha eleitoral para as eleições que vão eleger 14 deputados para a Assembleia Legislativa pela via directa, através do voto popular. São 14 lugares de um total de 33, o que ao contrário de outras juridisções dão a estas legislativas um ar de somenos importância. Mas nem por isso a luta é menos feroz, e assim temos 24 listas, entre as habituais e as novidades, algumas bem coloridas, a batalharem durante 15 dias para convencer o eleitorado a confiar-lhes um lugar no hemiciclo. Não têm faltado os habituais golpes baixos, truques de manga, rumores de conveniência, e este ano tivemos inclusivamente um conhecido deputado a “ser atacado por uma vaca” (imagem deliciosa esta, muito bem esgalhada, e parabéns ao autor). Não faltam ainda as habituações acusações da prática de irregularidades por parte de algumas listas, com a Comissão Eleitoral a voltar a não demonstrar um critério uniforme quanto à actuação em alguns casos, e como não podia deixar de ser, paira no ar o fantasma da corrupção eleitoral, vulgo “compra de votos”. Aqui não entendo a razão de não se informar melhor o eleitorado em relação a um aspecto: o voto é secreto, e não existe forma alguma de saber em quem se votou. Por incrível que pareça, há quem ainda acredite que existe uma forma, mesmo que indirecta, de se saber aquilo que se colocou dentro da urna. Para a semana cá estarei para fazer a análise dos resultados.

14 Set 2017

Glossário do Sexo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s palavras usadas para descrever a verdadeira diversidade sexual são mais que muitas. No dia-a-dia mundano estes significados podem passar-nos ao lado porque vivemos uma realidade tendencialmente binária, e perdemos a noção do pluralismo sexual. Isto é, estamos mais atentos à dinâmica feminina-masculina heterossexual e esquecemo-nos do que se encontra entre uma coisa e a outra. Não há nada como um lembrete da nomenclatura que pode ser estranha a muitos. Para além de que é útil percebermos que a normalidade tem de ser alargada para uma total liberdade sexual de ser e de estar.

Ora vamos por partes, a biologia do sexo não tem nada que saber: existem vaginas, pénis e outros formatos anatómicos que não são nem uma coisa nem outra. Imaginem um espectro de biologias que desafiam  o normal desenho do órgão sexual e dos cromossomas a ele associados. A perfeição do sexo é coisa que não existe, mas há agora um espaço designado por interssexualidade para anatomias menos típicas – menos prototípicas. Mas para além destes factores biológicos, que não ditam experiências subjectivas de género, encontramos combinações de biologias, identidades e de preferências que vestem constelações e vivências sexuais únicas e particulares a cada um de nós. Imaginem-me uma mulher transsexual lésbica, ou como andrógena bissexual. Também posso ter um género fluído e ser assexual, posso ser agénero e demissexual ou identificar-me como mulher e ser pansexual. Este vocabulário não nasceu por acaso, nasceu da necessidade de reconhecimento e denominação. Isto porque frequentemente as minorias sexuais carecem de redes sociais directas que ajudem a esta identificação – porque vivemos num mundo onde ‘sair do armário’ continua a não ser um processo simples. Aqui vai uma lista com alguns termos que ainda possam ser desconhecidos.

Agénero (adj.) – alguém com pouca identificação com o sistema de género mais comuns, não se identifica com os conceitos feminino/masculino.

Andrógeno (adj.) – alguém  que expressa elementos tanto do género feminino como o masculino, também pode ser usado para quem possua anatomia feminina e masculina.

Demissexual (adj.) – um indivíduo que normalmente não sente atracção sexual, à excepção quando se cria uma forte ligação emocional com alguém, normalmente numa relação romântica.

Fluidez de género/sexual (adj.) – descreve um identidade que não é fixa, que é capaz de se transformar ao longo do tempo.

Pansexual (adj.) – uma pessoa que sente atracção romântica e sexual com todas as identidades e expressões sexuais (cisgénero/transgénero/agénero).

E pronto, este é apenas um pequeno auxiliador para dar o nome certo a algumas identidades, práticas e desejos (atenção que existem muitas mais!). A semântica é importante porque espelha a diversidade sexual: fá-la real. Porque afinal, às vezes sentimos coisas que não podemos explicar e as pessoas à nossa volta também falham em explicar-se. No que toca ao sexo, toda esta pluralidade semântica veio facilitar a liberdade de sermos o que quisermos – o importante é que ninguém se intrometa a achar o que quer que seja. Porque se há quem ache que existem palavras a mais, há quem continue a manifestar-se porque as palavras ainda são de menos, e que uma semântica de liberdade  é um requisito para a liberdade do sexo.

13 Set 2017