Nos Entretantos

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ui passar o último fim-de-semana aqui ao lado, em Hong Kong, para espairecer. Na manhã de Domingo, perto da pensão onde fiquei em Yau Ma Tei, deparei com este sinal à porta de um parque público, indicando que ali se podia fumar.

Não era parque situado no fundo de um beco perdido, ou de um descampado afastado dos comuns mortais. Era junto ao sumptuoso templo de Tin Hau, um dos muitos eregidos em devoção à deusa Kun Yam. Um espaço amplo, arejado, cheio de verde e mesas de pedra onde se pode jogar mahjong, e mesmo em frente a um interessante motivo turístico. Sendo eu de Macau, fiquei tão aparvalhado com aquilo que precisei de tirar uma foto, não fosse contar isto a alguém e pensarem que alucinei.

Com a introdução do novo regime anti-tabágico, que entrou em vigor no início deste ano, a proibição estendeu-se a passeios onde existem paragens de autocarro, e mais não sei aonde, e a multa pela infração triplicou. Deste lado do Rio das Pérolas pratica-se à caça ao cigarrinho, e o divertido e didático “Adivinha onde podes fumar?”

Outro episódio, na mesma manhã e ainda antes disso. Acordei cedo, e mesmo que não se coma nada, preciso pelo menos de “uma mudança de óleo” antes do “motor arrancar”, que é como quem diz, uma bica. Ou “expresso coffee”, como por aqui se chama. Dei com um 7/11 logo à saída do meu alojamentei, entrei, deparei com uma máquina de café e, meio a medo, perguntei à senhora que se podia beber um expresso. Meio minuto e 9 dólares de Hong Kong depois, estava ali com uma bica dupla digna desse nome, ideal para começar o dia em beleza, e tirada com uma prontidão e simpatia irrepreensíveis. A única vez que entrei num 7/11 em Macau com a esperança de beber uma bica, foi-me negado, com um ar de caso e a gesticular que não, que horror, que coisa diabólica é essa que está aí a pedir! Diferenças que dizem muito.

Não estou a querer comparar Macau com Hong Kong no sentido de qual deles é o melhor. Nada disso e, com o bairrismo que existe entre os dois lados, ainda me mandavam ir viver para Hong Kong. Não quero ir viver para lá, mas se há algo que ainda não entendi é como se pode ser tão passivo e provinciano, e não se querer pedir um pouco das coisas boas que eles lá têm. É que o respeito pela liberdade de todos, incluindo fumadores ou cafeínomanos como eu, e muitas outras pequenas coisas como estas são parte do conjunto daquilo que se chama “ter qualidade de vida”. Pois é, vão-me dizer que Hong Kong “é muito maior, não se pode comparar”, mas isto não se trata aqui de uma questão de tamanho, gosto ou cultura – são duas cidades da China separadas por um braço de mar.

São muitas as teorias que podem explicar as diferenças entre os dois lados, mas a mais evidente e que salta à vista de quem tem uma visão imparcial é que a população de Hong Kong parece mais abnegada aos valores da cidadania e exige que as coisas funcionem e que haja lugar para todos.

Deste lado parece que ficámos presos de movimentos com as duas obras tornadas faraónicas, e de quem toda a gente espera: o metro ligeiro e o hospital das Ilhas. Parece que não há lugar a mais progresso sem estes projectos engracianos estejam concluídos ou enquanto ficamos a fazer figas à espera da hora em que o Canídromo feche as portas (ouvi dizer que é em Junho, mas… deste ano?) Nos entretantos, ficamos parados à espera. E é nesse ponto que estamos, nos entretantos, a olhar ali para o lado.

11 Jan 2018

Ano Novo, Sexo Novo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] novo ano traz novos desejos e novos planos – 2018 vai ser o melhor ano de sempre! Ou pode ser um ano exactamente igual ao anterior. Desta vez será diferente, sabem porquê? Porque vou pensar na mudança do ano e do sexo com optimismo – registo que não me é nada natural – só porque fiz o optimismo uma resolução para este ano.

Querem-se desejos e sonhos sexuais cobertos de esperança e de possibilidades infinitas. Os desejos serão os mesmos para qualquer causa social nesta viragem do ano. Mais tolerância, mais liberdade e mais amor, e porque não gosto de soar a uma hippie inconsequente – estou a tentar ser optimista, e não uma idealista! – eis o que isto quer dizer: já que muitas das estruturas sociais vivem do ódio, do medo e da vergonha do sexo e da expressão de género, que 2018 traga actos individuais (colectivos ainda melhor) de tolerância. Coisas simples que cada um de nós pode fazer pela nossa própria sexualidade e a dos outros.

Quando às vezes penso em tempos antigos, quando as mulheres morriam de abortos mal efectuados, para fugir do estigma da gravidez enquanto solteiras, sem recursos e sem apoios – sim, eu ando uma devoradora de literatura da Margaret Atwood – quando penso na coragem necessária para lidar com as dificuldades das condições menos heterossexuais, menos sexistas, menos sexualmente libertadoras. Outros tempos em que a imagem da bruxa era a de uma mulher com garra, com conhecimento sexual, com a sabedoria que lhe merecia, e, porque assim era, morria queimada na fogueira. O meu pessimismo não existiu estes anos todos sem justificação, alimenta-se da consciência de que muitas destas situações ainda são realidades diárias e contemporâneas. 2018 que soa a um ano futurista – ainda não há muito tempo – vive realidades ainda precárias. A luta continua porque se quer mais e melhor sexo, e porque muito já se conseguiu entretanto.

Querido 2018, peço-te um ano novo com sexo novo – daquele mais simples, mais solto e leve. Daqueles que emanam tranquilidade quando pensamos na liberdade de expressão sexual como uma procura dos sentidos. Da transcendência do sexo à simplicidade diária que poderá ser real ou que poderá ser imaginada. Momentos em que o sexo deixa de ser o bicho papão da censura e da vergonha para se tornar num momento de relaxamento de corpo e mente.

Posso pedir mais, 2018? Não quero abusar no peditório nem no entusiasmo. Também gostava de ver melhor discutido em praça pública, não só acerca das coisas boas do sexo, mas das coisas más – que nem por isso deverão ser pintadas como terríveis, como habitualmente se faz. Era porreiro que 2018 ajudasse na consciencialização das doenças sexualmente transmissíveis – que são muitas, variadas e de perigos/taxas de infecção diversas. Mais e melhor educação sexual, mas também mais e melhor apoio médico e bem informado a acerca das formas como podemos ter uma vida sexual saudável.

Oh 2018, poderias ajudar a formalizar direitos humanos sexuais? Reforçar que a dignidade humana está bem prescrita em papel e na teoria, mas a prática ainda precisa de se esforçar mais? Bem sei que já percorrermos um longo caminho, mas temos um ainda mais longo por percorrer! Pelo direito ao prazer, ao orgasmo, à nudez desproblematizada, à saúde da vagina e do pénis, pelo bem-estar emocional e a liberdade de expressão sexual. Ir contra as persistentes tradições judaico-cristãs que às vezes ainda se mostram nas formas como directa ou indirectamente se julga o sexo neste novo 2018. Um ano cheio de amor e calor. 2018 e todos os anos vindouros serão pela evolução positiva do sexo, sempre.

10 Jan 2018

Tarifas de autocarros: Da moral (ou da falta dela)

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]azer os trabalhadores não residentes (TNR) pagar tarifas mais altas nos autocarros que os residentes é, no mínimo, imoral. O facto parece-me tão óbvio, tão constitutivo de uma normal formação ética, que me custa argumentar contra ele. É algo que me surge como profundamente estranho, inesperado, quase indizível. Imagino que, se isto for contado à minha frente noutro país qualquer, corarei de vergonha de ser residente de uma cidade com este tipo de práticas.

Os TNR, portadores de blue card, são a energia que mantém esta região limpa, movente, eficaz e internacional. Sem eles, este mundo, que vai das Portas do Cerco a Coloane, pararia. Por outro lado, tratam-se das pessoas que pior ganham nesta terra. Como é que pode passar na cabeça de alguém sobrecarregá-los com mais uma despesa, ainda por cima desnecessária aos cofres da RAEM?

Sinceramente, acho isto tudo muito estranho, de uma desumanidade atroz. Já nem se trata aqui de existirem cidadãos de primeira e de segunda categoria. Estamos, muito simplesmente, na área da benevolência (仁 Ren) e da caridade cristã, ou da falta delas. Como podem os nossos políticos querer ser lembrados por medidas tão ultrajantes da dignidade humana? Sobretudo da deles…

10 Jan 2018

Partilha aduaneira II

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] semana passada falámos sobre a instalação de postos aduaneiros da China continental e de Hong Kong, – responsáveis pelo controlo alfandegário, de imigração e pelos procedimentos de quarentena -, na West Kowloon Station (WKS). Estes postos estarão situados no terminal do troço ferroviário que liga Guangzhou e Shenzhen a Hong Kong e que faz parte da Hong Kong Express Rail Link (XRL). O acordo de partilha aduaneira tem dado muito que falar em Hong Kong.

Ficámos a par dos argumentos apresentados por Li Fei, Sub-Secretário Geral do Comité para a Lei de Bases e Presidente do Comité Permanente do Congresso Nacional Popular (CPCNP). Também acompanhámos as opiniões de Ronny Tong, Conselheiro Sénior e membro do Conselho Executivo, de Eric Cheung Tat-ming responsável pela cadeira de Direito da Universidade de Hong Kong e membro da Ordem dos Advogados e, finalmente, ouvimos Elsie Leung Oi-sie, a primeira Secretária da Justiça após a reunificação de Hong Kong. Hoje continuaremos a analisar este assunto.

O Governo da RAEHK tinha declarado, há algum tempo atrás, que o acordo de partilha aduaneira seria implementado em três fases. A primeira fase passaria pela assinatura por ambas as partes das condições estabelecidas. A segunda fase passaria pela aprovação do Congresso Nacional Popular e, finalmente, a legislatura de Hong Kong criaria por decreto a legislação adequada para implementar a decisão.

A primeira fase concluiu-se dia 18 de Novembro. A segunda a 27 do mesmo mês, dia em que o Congresso Nacional Popular aprovou o acordo. A terceira fase – tornar a decisão parte da lei de Hong Kong – deverá estar concluída ainda este ano. Para essa altura espera-se que haja mais burburinho em redor desta questão.

Maria Tam, membro do Comité da Lei de Bases de Hong Kong (LBHK), afirmou: “A jurisdição de Hong Kong não se deve sobrepor às decisões do Congresso Nacional.”

Estas declarações indicam claramente que o Tribunal de Hong Kong não irá contra as decisões do Congresso.

Maria Tam adianta: “Não podemos ler ou esperar que (a decisão do CPCNP respeitante ao acordo de partilha aduaneira) esteja escrita como as deliberações do Tribunais de Hong Kong.”

Quem tiver acesso ao assento de um julgamento de um dos Tribunais de Hong Kong, pode verificar que são elencadas muitas razões, são referidas muitas leis e são citados muitos precedentes, de forma a apoiar a decisão tomada pelo juiz.

O Professor Johannes Chan Man-mun, antigo Reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong, afirma que as interpretações da Lei de Bases feitas pelo Congresso Nacional Popular prevalecem sobre os Tribunais locais (ver artigo 158 da LBHK), mas o mesmo não se aplica às decisões tomadas por aquele órgão.

“O CPCNP toma muitas decisões … o princípio ‘um País dois sistemas’ define que as políticas do continente não se aplicam directamente a Hong Kong. Continua a ser uma questão sobre a natureza das decisões do Congresso Nacional.”

Johannes Chan continua: “Num estado de direito, as pessoas ficam desiludidas se as autoridades não conseguirem explicar claramente as bases legais de um projecto que está em curso há oito anos.”

A 30 de Dezembro último, enquanto o debate prosseguia, foi vista pela manhã, na encosta da Kowloon Lion Rock, uma faixa amarela com 30 m de comprimento onde se podia ler “defendamos Hong Kong”. Não se sabe porquê nem quem a colocou. A faixa foi retirada as 11h da manhã do mesmo dia.

O antigo Presidente do Conselho Legislativo de Hong Kong, Jasper Tsang Yok-sing, escreveu na sua coluna, publicada num jornal de língua chinesa, que o acordo de partilha aduaneira não está em conflito com o princípio “um País, dois sistemas”. Mas, se pessoas de responsabilidade continuarem a insistir que este acordo vai contra a Lei de Bases de Hong Kong, só conseguirão fazer diminuir a confiança da população na Lei Básica da cidade.

“A administração irá permitir que os funcionários continentais apliquem as leis nacionais no terminal ferroviário.”

“A Lei Básica não deixa espaço para a implementação do acordo de ‘partilha aduaneira’, o Governo não deve tentar encontrar justificações nas cláusulas da lei, deve sim admitir que esta situação não podia ter sido prevista pelos legisladores há 20 anos atrás. A manter esta posição, vai criar nas pessoas o medo de não continuarem a estar protegidas pela Lei Básica de Hong Kong.”

“O Governo deverá admitir que este acordo é especial e excepcional. As disposições do acordo não contradizem o modelo “um País, dois sistemas” ao abrigo do qual é garantido por Pequim a Hong Kong um alto grau de autonomia.”

Mas, é possível que esta frase de Li Fei elimine de vez as preocupações da sociedade de Hong Kong: “Se está preocupado com a aplicação da lei chinesa na WKS, não apanhe o comboio da Express Rail Link em Hong Kong.”

9 Jan 2018

O estudo

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre o mundo existe um pesado véu de desconhecimento que dá abrigo morno ao misticismo, à arbitrariedade e à injustiça. Eu sou a candeia luminosa na noite do obscurantismo, trago esclarecimento e soluções para os problemas que envenenam os dias de iniquidade. Sou o judicioso estudo, o labor da ciência, o método de atingir o conhecimento. Pelo menos, esse é o meu original intento.

Em tempos em que o desvirtuamento e a perfídia fazem gato sapato da honestidade, sou a credibilização científica das vontades feitas. O poder procura uma solução, uma hipótese conveniente, e eu vendo-lhe validação mascarada de técnica obedecendo à decisão tomada previamente. Sou o epílogo de cálculo no decadente teatro do calculismo, a corroboração pré-definida que antecipa a concretização, a vitória esmagadora da hipótese sobre tese, antítese, sou a proposta que passa por verdade absoluta e que pega o empirismo pelos colarinhos, proferindo violentas ameaças.

Sempre que a plebe pede resolução, mesmo que seja para as coisas mais mundanas da vida, eu coloco no caminho o entrave da suposta ponderação. Seja um remendo no passeio, uma solução para a lentidão da Internet, a construção de um edifício para habitação social, ou qualquer outro problema prático, eu sou a protelação, a dilação, o estudioso banho-maria que coloca a vida em suspenso.

A quantidade de estudos encomendados nesta cidade daria para encher a Biblioteca de Alexandria, para eliminar de vez qualquer vestígio de irracionalidade e compreender os mistérios da física e as razões escondidas pelos astros. Em vez disso, sirvo para revestir discricionariedade e velhacaria com a ilusão da sapiência, dou tempo para que as coisas apodreçam para além da paciência de todos.

Tenho uma amiga do coração, a consulta pública. Juntos formamos uma coligação burocrática que suplanta qualquer vontade de resolução, que torna o tempo numa massa espessa que escorre lentamente. Transformo relógios em lesmas mecânicas que rastejam ao longo de um rasto de gosma que brilha como galáxias no empedrado. Acrescento anos à data prevista para a abertura de coisas, para o início de algo importante para a entediante necessidade das pessoas, esse empecilho prático à cumulação sabedoria.

Sou a negação do método científico, declaro guerra à forma desapaixonada como o empirismo se alicerça na experiência sensorial. Matemática, estatística e toda as formas de cálculo são obstáculos contornáveis. Escolho-os para as minhas conclusões como quem apanha cerejas, seleccionando apenas aquelas que parecem mais maduras.

Tenho um desprezo contido, sub-reptício, aos legados de Newton, Curie, Darwin, Faraday e Copérnico. A ciência que se torna universal serve apenas os pobres. À vista dos meus intentos, Pasteur e Freud não passam de um par de tarados com fixações lactantes e um ego que em muito extravasa a magnificência do dinheiro.

Tenho uma aversão conceptual a teorias e teoremas. O meu universo de actuação é a folha de Excel, essa é a minha excelência. Enquadro a realidade em grelhas numeradas, as células que verdadeiramente interessam. Estás a ouvir-me Robert Hooke? Esse mundo novo de microbiologia não tem qualquer validade na minha galáxia de anexos e intuições oficiais.

Sou compilações de dados sem relação, a fonte de onde brotam milhões de páginas que jamais alguém vai ler ou ter em conta, palha científica que tem como fim a inutilidade e a morte da cognição. Quero ter uma relação extraconjugal com causa e levar a que esta se divorcie do efeito, quero minar essa relação com a sedução de um espectáculo de PowerPoint. Quero ser conveniência, concórdia, estabilidade. Irrita-me a forma como o conhecimento pode ser revolucionariamente impertinente e é aí que consigo a minha validade.

Encomendem-me e serei conclusão do vosso inteiro agrado, pronto para vos servir sempre que necessário. Consultem-me e serei o vosso sapiente amigo.

8 Jan 2018

A medicina personalizada

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] medicina moderna, para além de todas as suas maravilhas, apresenta uma grande nódoa. Ainda que, os avanços científicos e os novos tratamentos milagrosos sejam anunciados diariamente, os médicos sabem que mesmo as drogas mais eficazes do seu arsenal não funcionam para grandes sectores da população. As drogas comummente prescritas, por exemplo, para tratar transtornos como a depressão, asma e diabetes são ineficazes para cerca de 30 a 40 por cento das pessoas a quem são prescritas e a doenças difíceis de tratar, como a artrite, a doença de Alzheimer e o cancro. A proporção da população que não vê benefício de um tratamento específico aumenta de 50 a 75 por cento.

O problema decorre de como os tratamentos são desenvolvidos. Tradicionalmente, uma droga é aprovada para uso se funcionar para um bom número de pessoas com sintomas semelhantes em um teste de drogas, e não são feitas perguntas nem dadas respostas sobre as pessoas no teste, e que não responderam positivamente ao tratamento. Quando a droga é então autorizada e prescrita massivamente à população, sem qualquer surpresa, existem muitas pessoas, como as do teste, que descobrem que a mais recente cura milagrosa não lhes resolve a situação. Este sistema de descoberta de drogas que abarca todos, embora tenha ajudado a descobrir os medicamentos mais importantes do século XX, é cada vez mais sentido como ineficaz, desactualizado e perigoso.

Tal significa que os medicamentos são desenvolvidos para fazerem efeito na pessoa média, quando de facto todos, incluindo as nossas doenças e respostas às drogas são únicos. Muitas drogas são ineficazes para grandes sectores da população, mas tem de se considerar que também podem causar reacções adversas graves a outras pessoas. Felizmente, uma abordagem completamente nova da medicina está a ganhar cada vez mais adesões. À medida que se aprende mais sobre como as pessoas diferem geneticamente, os médicos estão a adaptar conselhos de saúde e tratamentos para pessoas individualizadas ao invés de ser massivamente para populações.

A medicina personalizada, também conhecida como medicina de precisão usa os dados genéticos de um paciente, e outros dados sobre a sua saúde a nível molecular, para obter o melhor tratamento para as pessoas com um perfil genético similar. Somos tentados a pensar que os nossos genes determinam a nossa altura, cor dos olhos ou se temos um distúrbio genético. A combinação dos nossos genes aquando do nascimento afecta segundo as revelações científicas, o nosso desenvolvimento e saúde de muitas formas subtis, ao longo das nossas vidas. A probabilidade de termos recebido certas doenças à medida que envelhecemos, a forma como metabolizamos os alimentos e a nossa reacção a certos medicamentos, são influenciados pelos genes que temos. Tendo em conta o que se sabe sobre os genes, tomar tal questionamento, pode parecer um pouco óbvio, mas só foi possível na última década, graças ao incrível progresso que foi feito na tecnologia de sequenciação de ADN.

Quando o genoma humano foi primeiro descodificado em 2003, foi necessário uma década de esforços de cooperação internacional e custou cerca de três triliões de dólares. Após quinze anos, o sequenciamento do genoma de uma pessoa pode ser conhecido em menos de cinquenta horas, ao invés de anos, e pode custar menos de mil dólares. Tal significa que informações genéticas, estão mais disponíveis aos médicos e pesquisadores que desenvolvem tratamentos do que alguma vez se imaginou. A área onde a nova abordagem personalizada à medicina tem tido o maior impacto, é a oncologia, ou o tratamento do cancro. O tratamento do cancro do pulmão, especialmente, é visto como uma grande história de sucesso da medicina de precisão.

Os médicos, durante anos, ficaram intrigados com o motivo de apenas cerca de 10 por cento dos pacientes com cancro do pulmão responderem a uma droga comum ao tratamento, conhecida como “TKIs (inibidores da tirosina-quinase)” que interrompe o crescimento de um tumor. No final da primeira década do nosso século, quando os pesquisadores conseguiram analisar o ADN de tumores de pacientes, descobriram que a droga só funcionava em pessoas cujas células cancerosas tinham uma mutação particular em um gene conhecido como “Receptor do Factor de Crescimento Epidérmico (EGFR na sigla inglesa).”

A mutação faz que as células cresçam de forma incontrolável e os TKIs bloqueiam esse efeito, diminuindo o tumor. Mas, em pacientes cujos tumores têm origens genéticas diferentes, o tratamento com TKIs resultará em uma barreira com efeitos colaterais prejudiciais sem possibilidades de sucesso. Eventualmente, os diferentes genes no centro de diferentes cancros do pulmão foram revelados, e todo o processo para diagnosticar o cancro do pulmão mudou. Os cancros segundo os cientistas não são simplesmente classificados por onde e como crescem e o que parecem ao exame do microscópio. Em vez disso, são testados por mutações genéticas, e as opções de tratamento são escolhidas em conformidade.

Mesmo quando os tumores mutam durante o tratamento e desenvolvem resistência a medicamentos específicos de genes, os médicos podem acompanhar a mudança genética e escolher outro alvo. Os tratamentos de cancro personalizados ainda mais sofisticados estão no horizonte, como a imunoterapia, que toma as células imunes do paciente e as reprograma para atacar as células cancerosas. As células imunes, conhecidas como células T CAR, são extraídas do paciente e geneticamente modificadas no laboratório, para que reconheçam os marcadores moleculares exactos que crescem nas células cancerosas do paciente e, em seguida, são injectadas de volta ao corpo para atacar o tumor.

A “Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA na sigla inglesa)”, aprovou uma forma desse tratamento, em Agosto de 2017, após resultados impressionantes em ensaios clínicos. A medicina personalizada também está a contribuir de forma importante para a segurança das drogas. A possibilidade de uma reacção adversa grave a um medicamento pode parecer raro, mas é, incrivelmente, a quarta principal causa de morte nos Estados Unidos e representa cerca de 7 por cento de todas as admissões hospitalares. Mais uma vez, o problema é causado pela tendência de tentar tratar grandes grupos de pessoas muito distintas entre si, da mesma forma. Um teste genético simples pode mostrar os genes-chave que tornam algumas pessoas hipersensíveis a certos medicamentos, ou se alguém metaboliza medicamentos tão rapidamente que necessitam de uma dose mais elevada.

A abordagem, conhecida como farmacogenómica, ainda está longe de ser comum em hospitais e cirurgias de clínica geral, mas um novo suporte lógico está em desenvolvimento, que ajudará os médicos a tomar decisões de prescrição e dosagem com base no perfil genético específico de um paciente. É possível um dia ver os farmacêuticos verificarem os genes na farmácia antes de entregar os medicamentos. A medicina personalizada não é apenas sobre genética. O medicamento do futuro será dirigido pela geração e interpretação de muitos tipos de dados de nível molecular sobre indivíduos, capturados com um nível de precisão nunca antes possível.

Existe tecnologia que pode descrever o genoma, análise proteómica (níveis de proteína), perfil metabólico e o microbioma de cada pessoa, em detalhes, a um custo cada vez mais acessível. A análise de genes é informativa, mas os genes não mudam ao longo do tempo e, portanto, não podem dizer se a pessoa realmente possui uma determinada doença ou se o seu tratamento está a funcionar. As proteínas ou metabólitos no sangue proporcionam uma imagem em tempo real de que o corpo está a lutar, ou se as drogas que recebeu estão a fazer o que deveriam.

A partir de uma simples amostra de sangue, os cientistas podem detectar as primeiras pistas químicas de uma enorme variedade de doenças comuns, conhecidas como biomarcadores, muito antes de se tornarem evidentes quaisquer sintomas físicos. No cancro do pâncreas, por exemplo, muitos pacientes só são diagnosticados quando os sintomas começam a mostrar-se e a doença se encontra em estado avançado. O cancro pode, de facto, ter crescido de forma assintomática até há quinze anos, libertando biomarcadores reveladores que poderiam ser detectados com testes moleculares.

A combinação de computação poderosa, vasta base de dados de dados genéticos e biomédicos e um maior número de geneticistas qualificados que trabalham em ambientes de saúde, tem o poder de revolucionar verdadeiramente a medicina. A prevenção de precisão é passar dos cuidados de saúde baseados em doença para medidas preventivas, estudando as doenças antes de acontecerem ou enquanto se encontram em um estado inicial. Trata-se de uma monitorização e triagem mais regulares, para pessoas com alta susceptibilidade para certas doenças. Em casos extremos, descobriram-se que as pessoas apresentam distúrbios que aumentam a taxa de mutação do ADN, ou causam mecanismos defeituosos de reparação do ADN, tornando-os susceptíveis de desenvolver múltiplos tipos de cancro ao longo da vida, e são colocados em uma terapia que pode impedir o aparecimento do cancro.

Os tratamentos similares conhecidos como vacinas contra o cancro, terapias feitas sob medida que ajudam as pessoas a desenvolver imunidade específica ao cancro, estão actualmente em progresso para um conjunto de diferentes doenças, incluindo o cancro do rim, oral e dos ovários, demonstrando ser a oncologia de precisão no seu melhor desempenho. A medicina personalizada começa a ter um impacto em muitas outras áreas das doenças. Os cientistas revelaram em 2017, que a forma mais comum e perigosa de leucemia, são onze doenças distintas que respondem de forma muito diferente ao tratamento. Nos pacientes com HIV e hepatite C, os dados genómicos retirados do doente e dos seus vírus, podem ajudar os médicos a decidir sobre uma combinação de medicamentos que atinja a raiz específica da doença e é menos provável que cause efeitos colaterais na pessoa, tornando-se importante, porque os efeitos colaterais prejudiciais podem levar alguns pacientes a parar a toma dos medicamentos.

A abordagem das duas vertentes reduziu as taxas de mortalidade do HIV, em até 90 por cento no Canadá, e na doença de Alzheimer, que é notoriamente difícil de tratar, a análise genética é um subtipo revelador de que é mais provável que responda a certos tratamentos. Além disso, os médicos podem iniciar o tratamento mais cedo, graças às subtis pistas químicas que confirmam a doença antes que os sintomas sejam evidentes. Mas, apesar de toda essa pesquisa emocionante e alguns sucessos notáveis, o facto é que poucos pacientes que entram nos sistemas de saúde dos países desenvolvidos terão acesso à análise biomolecular especializada necessária para personalizar o seu tratamento. Afora dos departamentos de oncologia, os grandes sistemas de saúde não estão configurados para colectar e analisar ainda, dados biomoleculares para cada paciente.

A medicina personalizada é frequentemente usada como último recurso, ou para as poucas pessoas com sorte seleccionadas para ensaios clínicos. A proporção da população que teve o seu genoma sequenciado é pequena, mas está a começar a mudar. É significativo no Reino Unido, o “Projecto dos 100.000 Genomas”. O projecto começou a sequenciar genomas de cerca de setenta mil pessoas com cancro ou uma doença rara, além das suas famílias, e em 2017, o “Sistema Nacional de Saúde” inglês, publicou a “Estratégia de Medicina Personalizada” para ajudar a impulsionar a adopção de abordagens de precisão em mais áreas do serviço de saúde. Nos Estados Unidos a maior unidade de dados de medicina de precisão do mundo foi anunciada pelo ex-presidente Americano, Barack Obama, em 2015, e que pretende inscrever e sequenciar dados genéticos de um milhão de voluntários até 2020.

É de considerar que cerca de 40 por cento das drogas aprovadas em 2002, os Estados Unidos, personalizaram de alguma forma, em 2017, o que significa que o tratamento vem com um teste genético complementar para garantir que seja precisamente orientado. No cancro, a mudança está a acontecer, pois as empresas irão sequenciar o genoma de um tumor e decidir o melhor tratamento. No entanto, a adopção de medicamentos personalizados em todas as áreas dos cuidados de saúde, exigirá grandes reformas na forma como os serviços são contratados e estruturados. A grande ênfase na medicina personalizada é a medicina preventiva e o tratamento, tendo em conta que os sistemas de saúde nunca custearam essa área antes. Será uma grande mudança e exigirá muitas pessoas que não são apenas médicos, mas treinadas em análises biomoleculares. Os usuários iniciais, serão pessoas que terão de pagar as despesas.

É de prever que nas próximas décadas as visitas ao médico possam ser substituídas por actualizações frequentes de conselheiros moleculares, que acompanham os níveis de saúde através de análises periódicas dos biomarcadores no sangue, sugerindo tratamentos adequados aos genes, com os pacientes a enviar as suas amostras de sangue pela internet para análise (como acontece com o Hilab no Brasil) e consulta pelo “Skype”. “A análise molecular será tão perturbadora para os médicos, pois assumirá o processo de diagnóstico e prescrição. O médico será o treinador de saúde, uma pessoa cujo trabalho é manter as pessoas saudáveis e procurar sinais do que necessita para caminhar com mais frequência ou mudar a dieta.

As infra-estruturas nos sistemas de saúde centram-se em torno da bioinformática e da medicina genética, mas parece inevitável que o remédio do futuro se baseie em torno dos genes. O sequenciamento do genoma está a ficar cada vez mais barato e só é necessário fazer uma vez. Quando os sistemas estiverem a funcionar, fornecerão informações importantes sempre que as pessoas tiverem de visitar o médico e para o resto da vida.

5 Jan 2018

Um Bigo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi operado a uma hérnia umbilical na última semana de 2017. A figura que provavelmente reune mais consenso em Portugal (tarefa hercúlea, esta) ficou internado alguns dias no Hospital Curry Cabral, de onde nos foram chegando notícias, desde a situação relativa ao trânsito intestinal do Chefe de Estado, até ao momento em que evacuou pela primeira vez. Se isto interessa? Claro que sim – quem é quer ter um presidente obstipado? Assim que teve alta, Marcelo vetou a proposta lei do financiamento dos partidos políticos, o que lhe valeu mais uma ronda de aplausos.

Entretanto as redes sociais, esse grande amplificador do que o Portugal inteiro (literalmente) pensa e sente, não perdoou. A forma como a situação clínica do PR foi seguida de perto, ao detalhe, estimulou a costela humorista lusitana. Não faltaram sequer “cartoons” de Marcelo em pleno acto final da digestão. É um povo muito divertido, este. E sofrido, também. É melodramático, por assim dizer. Isto à distância é interessante de se observar; é matéria para um “case study”, e caso fosse partilhar esta mesma ideia nas tais redes sociais, certamente que haveria quem concordasse comigo. E também quem discordasse, ou me considerasse arrogante, e não me surpreendia de todo que dos mais emotivos (para ser simpático), viesse um ou outro insulto mais colorido, ou ainda uma leitura nas entrelinhas de algo que eu não disse, ou sequer dei a entender. Sabendo da distância de onde estou a emitir esta opinião, é ainda possível que saísse um “fica aí onde estás que não fazes cá falta nenhuma”. Mas não é que teriam mesmo razão? Eu próprio já cheguei a essa conclusão vai para um quarto de século.

A “pica” que dá isto das redes sociais explica-se em poucas palavras. No fundo trata-se de poder esgrimir argumentos com pessoas que não conhecemos de lado nenhum, e exercitar um pouco a nossa “razão” – e nós temos sempre razão. Criámos uma ocupação nacional que rivaliza com o futebol, e às vezes até combinamos os dois; esta noite tivemos um Benfica – Sporting, e independentemente do resultado do clássico, já tivemos uma animada semana fora das quatro linhas, com acusações de uma e outra parte, “lampião” para aqui, “lagarto” para acolá. Nesse particular, todos ganharam, e vão felizes para casa.

A tecnologia avançou à brava no último século e mais uns pózinhos, mas não somos muito diferentes da forma como Eça, Almada, ou até Bordalo Pinheiro nos pintaram em tempos mais remotos. Somos o mesmo boneco, enfim, e continuamos a pensar que as críticas são sempre dirigidas aos outros, e que aquilo não é nada connosco. Todos rimos de nós próprios, no fundo. Visto aqui de Macau, a uma distância segura, a ganhar melhor e a chegar a casa meia hora depois do trabalho tem uma certa piada. Aqui não temos os mesmos problemas, e caso existisse uma secção local no PNR, certamente que não teria qualquer problema com a quantidade de trabalhadores não-residentes no território – e até eram capazes de dar um pulinho à “mesquita” do D3 aos fins-de-semana. Mas não posso deixar de seguir passo a passo as alegrias e as angústias do meu povo. Quem não sente não é filho de boa gente, e isto afinal trata-se mesmo de uma relação umbilical. Sem hérnia, pelo menos por enquanto.

Despeço-me desejando um feliz 2018 aos leitores do Hoje Macau, onde quer que estejam. Um abraço do tamanho do mundo.

4 Jan 2018

Sonhos eróticos

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s sonhos eróticos, parte fundamental da nossa sexualidade, já foram alvo de escrutínio durante vários séculos. Diz-me o que achas que os sonhos são, e dir-te-ei todos os complexos sexuais que possas ter. As explicações do que acontece no nosso cérebro quando estamos em REM caía no espectro onde de um lado teríamos a saudável recriação e expressão sexual inconsciente, e do outro teríamos a forma como reprimimos (conceito Freudiano tão citado!), ou reinterpretarmos os nossos instintos. Muito se poderia dizer sobre os sonhos, e muito se poderia estudar, mas a verdade é que as comunidades científicas deixaram de estudar o sonho de forma sistemática, i.e., ninguém anda esforçar-se para escrever um novo manual de interpretação.

Isto porque os sonhos caem no domínio da subjectividade individual e quiçá, cultural, de símbolos e conteúdos diversos. O que não quer dizer que não valha a pena escrutiná-los ao tutano para perceber o seu significado. Se quisermos olhar para uma história longínqua dos sonhos, estes sempre estiveram envoltos em mistérios proféticos. Os sonhos eróticos também não seriam excepção, ou porque prometiam uma caça bem sucedida ou um controlo parlamentar pleno. Sim, sim- os políticos da democracia grega antiga consideravam que um sonho erótico com a mãe simbolizava poder, o controlo sexual sobre o que seria a ‘nação’-mãe.

Para outros contextos culturais menos proféticos o primeiro sonho erótico/ ejaculação nocturna é considerado um rito de passagem masculino da mesma forma como a menarca é sinalizada como o início da sexualização feminina. E por isso, os rapazes e homens têm mais fama de sonharem com conteúdos sexuais. Não é por acaso que os poucos estudos que existem sobre o tema tendem a concentrar-se na recolha de uma amostra maioritariamente masculina quando se quer perceber a relação entre o sonho erótico e a vida real erótica. Há estudos que mostram alguma relação entre o consumo de pornografia e a frequência de sonhos.

Quanto mais se vê sexo na vida vivida, mais se sonha com ele. E aqui é importante enfatizar a diferença entre ver/imaginar sexo e fazê-lo, porque quando se pratica sexo com muita regularidade, o inconsciente sonhador já não utiliza esses conteúdos da mesma forma. Os nossos sonhos alimentam-se, com maior regularidade, de fantasias que acontecem única e exclusivamente nas nossas cabeças – do que fica na nossa imaginação. Há também quem tenha tentado mapear os conteúdos destes sonhos masculinos e parece que são tendencialmente egoístas, i.e., o prazer é só deles e de mais de ninguém. Aliás, a a companhia copulatória no sonho nem costuma ser a sua parceira na vida real, mas será uma mulher conhecida ou desconhecida. Há-de ser outra pessoa qualquer.

Apesar do sonho já não receber tanta atenção pela psicologia dita mainstream, o Freud talvez tivesse razão ao achar que o sonho é o caminho real para o inconsciente. Não deixa de ser fascinante pensarmos na nossa capacidade de criar cenários e histórias quando estamos de olhos fechados. Quando sonhamos acordados talvez tenhamos uma melhor percepção daquilo que somos e queremos, porque são fantasias do sexo enraizadas na nossa vivência real. Tudo o que se passa no sonho não deixa de ser um exercício de exploração individual inconsciente – que raramente deve ser tomado literalmente. Contudo, são poucos os que ocupam em perceber, afinal, para que nos serve o sonho erótico? Amadurece-nos sexualmente? Ajudam-nos a resolver os nossos conflitos ou vergonhas? Serão conteúdos artísticos ou desprovidos de nada? Sonhando eroticamente, torna o nosso sexo mais feliz?

4 Jan 2018

Partilha aduaneira (Parte I)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] acordo de partilha aduaneira que permitirá a instalação dos serviços de alfândega, imigração e quarentena, tanto da China continental como de Hong Kong, na West Kowloon Station (WKS), no terminal da linha que une Guangzhou e Shenzhen a Hong Kong (XRL), foi anunciado a 25 de Julho do ano passado. Desde então, este assunto tem dado muito que falar na cidade.

O portal do Governo da RAEHK salienta que “a principal razão que conduziu a este acordo foi a possibilidade de os passageiros fazerem o controlo de entrada e saída no mesmo local, sem mais transtornos. O troço de 26 km da Secção de Hong Kong da XRL, une a cidade à imensa linha nacional chinesa, reduzindo substancialmente o tempo de viagem entre Hong Kong e as principais cidades da China.”. Quem parte, passa logo pelos dois postos fronteiriços na zona de trânsito da West Kowloon Station e, por isso, à entrada na China continental não vai ser submetido a mais nenhum controlo. Por seu lado, quem vem, pode embarcar livremente em qualquer ponto da linha e à chegada faz o controlo de saída e de entrada no mesmo local. Além disso, quem visita Hong Kong não precisa de se preocupar se existe ou não posto fronteiriço na sua estação de embarque.”

Sem o acordo de partilha aduaneira, “os passageiros só podiam embarcar ou sair em estações com serviços de fronteira.” Os inconvenientes eram óbvios.

O Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo aprovou o acordo de partilha aduaneira a 27 de Dezembro de 2017. Li Fei, Vice-Secretário Geral do Congresso e Secretário Geral do Comité para a Lei de Bases, deu uma conferência de imprensa para responder aos críticos que acusam este acordo de infringir o artigo 18 da Lei de Bases de Hong Kong. Li declarou,

“O Artigo 18 aplica-se a residentes de Hong Kong, ao passo que a aplicação das leis nacionais, na secção continental da WKS, é válida para os passageiros dessa zona.”

“É uma situação diferente da que é descrita no artigo 18 sobre a implementação nacional das leis da RAEHK. Aqui não está em causa qualquer infracção ao artigo.”

“A secção fronteiriça continental da WKS está sob a jurisdição do Governo chinês. Os direitos e liberdades conferidos aos residentes de Hong Kong não serão afectados pelo acordo de partilha aduaneira.”

“As decisões do Congresso Nacional do Povo sobre a definição de competências legislativas estão tomadas. Não podem ser questionadas.”

Para além disso, diversos artigos da Lei de Bases de Hong Kong, foram citados para apoiar a legalidade do acordo de partilha aduaneira. Foi o caso do artigo 2, sobre a importância do elevado grau de autonomia; do artigo 7, sobre a importância de administrar o próprio território; dos artigos 22 e 154, sobre a importância de gerir o controlo fronteiriço; e, finalmente, dos artigos 118 e119, sobre a relevância do desenvolvimento, etc.

No entanto, a Hong Kong Bar Association publicou um manifesto a 28 de Dezembro onde declara a ilegalidade deste acordo. A Associação refere que o acordo de partilha aduaneira não é sustentado por nenhuma das disposições da Lei Básica da cidade. Adianta ainda que o Congresso Nacional do Povo aprovou o acordo e declarou-o em conformidade com a lei, sem qualquer base legal. Uma verdade auto-proclamada pelo Congresso.

Ronny Tong, membro da Hong Kong Bar Association, Conselheiro Sénior, e membro do Conselho Executivo, sugeriu que a decisão tomada pelo Congresso Nacional deve ser considerada razão suficiente. Ronny salientou que a lei nacional chinesa deve ser aplicada em todo o território de Hong Kong, e não só em parte dele, como por exemplo em Wanchai. Ronny Tong referiu ainda que os direitos e liberdades dos cidadãos da RAEHK, consagrados no capítulo três da Lei de Bases, não serão infringidos. Tong considera, pois, que a Lei não está a ser posta em causa.

Elsie Leung Oi-sie, a primeira Secretária da Justiça após a reunificação, declarou que, segundo o artigo 67 da Constituição chinesa, o Congresso Nacional tem poder para fazer lei. As suas decisões são lei.

O professor responsável pela cadeira de Direito da Universidade de Hong Kong, Eric Cheung Tat-ming, afirmou que os artigos 118 e 119 estabelecem que o Governo da RAEHK deve proporcionar um enquadramento jurídico e económico que encoraje o investimento, o progresso tecnológico, bem como o desenvolvimento de novas indústrias, e criar políticas que promovam e coordenem o desenvolvimento dos diversos sectores comerciais. Mas,

“Não estamos a discutir o que é preciso fazer para incrementar o desenvolvimento económico de Hong Kong – não é isso que está em causa. A questão é saber se as leis nacionais devem ser implementadas em Hong Kong,”

Eric Cheung adiantou que as bases legais do acordo de partilha aduaneira não estão ainda definitivamente estabelecidas.

Que desenvolvimentos podemos esperar? Continuaremos a analisar esta situação na próxima semana. Até lá, Feliz Ano Novo.

3 Jan 2018

Um Natal muito diferente

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]urante a época natalícia a cidade ficou apinhada de turistas, muitos dos quais chegaram de propósito para assistir ao “Festival de Luz de Macau”. Outros vieram atraídos pelo ambiente particularmente festivo que se vive em Macau nesta altura, muitos deles oriundos da China continental. Será que isto quer dizer que na China não se celebra o Natal?

Os leitores que estão mais atentos às notícias saberão certamente que existe no país uma atitude de boicote a todas as “festividades ocidentais”, especialmente depois do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, que colocou um maior enfase na ideologia. No entanto, o Natal, que é uma “festividade ocidental”, não consta da lista negra dos dirigentes.

Embora um dos valores mais importantes dos chineses sempre tenha sido a “confiança cultural”, a cultura tradicional foi severamente atingida pela “Campanha Anti-Direitista” (1957) e pela “Revolução Cultural” (1966). A campanha “Esmagar os Quatro Velhos e Cultivar os Quatro Novos” colocou Confúcio e os seus ensinamentos sob fogo cerrado. Quando o tempo de vida de uma cultura está quase a chegar ao fim, a confiança passa a ser apenas um slogan. Como as autoridades chinesas estão perfeitamente cientes da situação, desenvolvem inúmeras iniciativas para levar a pessoas a interessar-se de novo pelos valores da cultura tradicional. São disso exemplo o trabalho do Instituto Confúcio e a promoção do estudo dos clássicos da literatura. A par destas manifestações, surgiu na China nos últimos anos uma espécie de moda que leva as pessoas a interessar-se pelo Cristianismo.

O aumento de importância da “cultura cristã” na China demonstra falta de auto-confiança. Hoje em dia, a informação e as tecnologias de comunicação estão muito avançadas, as pessoas deslocam-se para estudar no estrangeiro e as viagens de negócio são muito frequentes. Como a cortina de ferro já “subiu” `há muito tempo, é contraproducente suprimir à força o que passou a ser moda. Abraçar o que é novo é um dos traços que caracteriza a cultura chinesa erudita, que permitiu à Nação absorver a novidade e a diversidade e tornar-se sistematicamente mais forte. O Budismo, uma religião estrangeira, faz desde há muito parte da vida do povo chinês. Por seu lado, as ideologias comunistas de “ocidentais”, como Marx, Engels, Lenine e Estaline, tornaram-se a estrela guia do Partido Comunista Chinês desde algumas décadas a esta parte. Aparentemente as necessidades políticas suplantam as necessidades sociais!

A menos que surja uma segunda Revolução Cultural na China, as reformas e as políticas de abertura irão sofrer sérios retrocessos. O Natal, à semelhança de outras festividades religiosas, vai tornar-se parte da cultura chinesa.

O Natal é a época de celebrar o nascimento de Jesus Cristo. Os cristãos, para além de observarem os Seus ensinamentos, são nesta época obrigados a cumprir diversos deveres sociais.

Assisti à última sessão pública de consulta da Proposta de Lei sobre o “salário mínimo” organizada pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, no dia 23 de Dezembro. No documento posto a consulta, o Governo de Macau proponha o salário mínimo de 30 patacas/hora, bastante menos que os 34.50HKD/hora de Hong Kong. Como o nível de vida de Macau é superior ao de Hong Kong, esta quantia é manifestamente insuficiente para suprir as necessidades básicas. Durante a sessão de consulta, um dos oradores, representante dos trabalhadores, defendeu que só 2.800, dos 44.200 empregados que ganham menos de 30 patacas hora, são residentes locais. Assim, não existe necessidade de fixar um salário mínimo, estes trabalhadores “não residentes” estão dispostos a aceitar valores inferiores pelo seu trabalho.

Macau importa trabalhadores não residentes desde o tempo da administração portuguesa, sob o pretexto de colmatar a deficiente oferta de serviçais domésticos. Mas é suposto importarmos “trabalhadores não residentes” ou “escravos não residentes”? Seguindo este raciocínio, a questão do salário mínimo não se aplica a trabalhadores domésticos nem a trabalhadores com deficiência. Mas os trabalhadores não residentes, de acordo com a lei de Macau, desfrutam de alguns dos direitos dos residentes. Logo, não existe qualquer motivo para não contemplar os “trabalhadores não residentes” com o salário mínimo.

No séc. XXI Macau vai estar apenas focado na eficiência dos mercados e na economia, em detrimento das questões laborais. Deve prestar-se mais atenção à defesa da dignidade do trabalho. Jesus escolheu nascer num estábulo para se identificar com os pobres. Mas hoje em dia as pessoas esqueceram esta mensagem, embriagadas pela procura do prazer imediato.

29 Dez 2017

O homem chamado Jesus

“Jesus wanted them to know that if they intended to live by the law, they couldn’t just pick and choose the parts they liked in order to feel good about themselves. They had to follow all the law or they might as well not follow any of it.”
“Jesus Is: Find a New Way to Be Human” – Judah Smith and Bubba Watso
Anónimo, Ecce Hommo, século XVI

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] tempo que vivemos – e que se prolonga na tradição católica surgida no século VIII, até ao dia de veneração dos “Reis Magos”, Belchior, Gaspar e Baltazar a 6 de Janeiro de 2018 – é considerado como a quadra natalícia, tornando interessante recuperar a autêntica pessoa do homenageado Jesus, que presumivelmente nasceu a 25 de Dezembro, o essencial da sua mensagem e o melhor do seu impacto histórico, porque apesar de não ter deixado nem uma só palavra escrita, nenhuma figura histórica exerceu uma influência maior ou igual na história da humanidade. Muitas vezes se tem apresentado Jesus como um personagem intemporal, uma alma pacata sem retiro, alegrias, desejos e paixões, como uma peça de museu, como um cordeiro manso que cumpria cabalmente com as suas obrigações, como alguém que nunca desfrutou da ousadia de um jovem, porque sempre encarnou os sonhos da velhice, quase um fetiche.

A pessoa de Jesus é mais conhecida todos os dias graças à história, arqueologia e antropologia cultural e social que o colocam em determinada circunstância, numa sociedade de tradição oral que cultivava a memória. É de presumir que tenha aprendido o ofício do seu pai, carpinteiro, mas tudo indica que depressa tomou outro rumo, deixando a família, indo de encontro ao chamado do profeta João Baptista que desencadeou um movimento de conversão, tendo em vista uma rápida e definitiva vinda de Deus, facto que liga a vida de Jesus com a tradição profética do seu tempo.

O seu relacionamento com João Baptista, seu primo, foi decisivo para a sua experiência religiosa. Tendo-se separado do seu primo, percorreu os caminhos da Galileia à procura de pessoas para anunciar a proximidade do “Reino dos Céus”. Fazendo a eliminação de todos os aspectos escatológicos e futuristas da sua pregação, alguns autores apresentaram erroneamente, Jesus como um sábio anti-sistema e contra-cultural. Todavia, não é um apocalíptico iluminado que vive debaixo da urgente e eminente catástrofe, como pretenderam demonstrar alguns outros autores.

O judeu fiel que foi Jesus cumpriu as leis e radicalizou alguns dos seus aspectos embora, ao mesmo tempo, relativizasse alguns preceitos rituais, especificamente os que se referem ao Sábado, ao afirmar que “o homem é mais importante que o Sábado” e as normas da pureza. O amor ao próximo é a regra de todos os rituais (Marcos 12, 28-31). Sem escapar da sociedade, quem aceita as normas do “Reino de Deus” caminha sempre no fio da navalha. “Os últimos serão os primeiros”; “o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir”. O dinheiro não é mais um sinal de bênção divina, como a teologia rabínica considerou, mas pelo contrário, será o maior impedimento para entrar no “Reino dos Céus”. Alguns autores defendem que os milagres narrados nos Evangelhos seriam fruto e invenção da imaginação popular, e outros ampliados e engrandecidos, o que não é de aceitar pelos cristãos, nos quais me incluo.

É evidente que uma das características de Jesus, que ajuda a explicar a irresistível atracção que exerceu sobre os que o conheciam era o de curar e apaziguar o povo das suas maleitas físicas, psíquicas e sociais. “Uma grande multidão ao ouvir o que fazia, veio até ele “ (Marcos 3, 10). Muitos estudiosos interpretaram como um desafio para a ordem social estabelecida, a libertação de muitos dos seus concidadãos dos espíritos imundos que conseguia com o seu amor e a sua capacidade de acolhimento.

Os estudos antropológicos, actualmente, sobre xamãs e curandeiros podem ajudar os mais duvidosos a entender a literatura sobre os milagres de Jesus. Ainda que, entre as multidões, o conceito do “Reino de Deus” criasse resistência, assim como a esperança, Jesus teve um enorme grupo de seguidores e crentes na Galileia e depois em Jerusalém. As multidões foram atraídas pela sua personalidade extraordinária e pela autoridade de tipo carismático das suas pregações. Entre todos os seguidores e fazendo eco da restauração das doze tribos de Israel mencionadas no Antigo Testamento, um dos elementos mais constantes da escatologia judaica, escolheu doze discípulos e mais tarde enviou-os a pregar por todo mundo a suas “Boas Novas”.

A coerência da sua vida e a nobreza dos seus ensinamentos fazem todos os pesquisadores, crentes ou ateus, excluir a possibilidade de fraude. O cristão deve ser o promotor de uma cultura de caridade, igualdade e dignidade das pessoas. Todas as outras formas de entender Jesus, reforçadas pela cultura pop dos nossos dias, são envenenadas pela condição e expiração efémeras. Muitas dessas imagens de Jesus não são o resultado de estudos conscienciosos, mas de uma fábrica de sonhos como o cinema. Jesus faz parte do universo transbordante de filmes, revistas, vitrinas e exposições, meios com uma enorme capacidade de adaptar-se aos tempos.

Quase todos tentam apresentá-lo como um personagem não convencional que veio transformar as condições de vida e mentalidades ao serviço do novo homem. O mundo dos nossos dias, que sente o fascínio com o mágico, teatral e o festivo, multiplica as imagens de Jesus, como de qualquer bem destinado ao consumo comercial e emocional. Para muitas pessoas, Jesus é um sistema estelar mais que o céu das celebridades mais famosas da história. Nesta cultura fragmentada e líquida, multiplicam-se as mestiçagens mais variadas que afectam também a imagem de Jesus, que muda a um ritmo vertiginoso para responder às procuras que chegam de diferentes locais geográficos e culturais.

Existem grupos viciados às mudanças que forjam uma imagem de Jesus para diferentes situações e necessidades. Muitos estão preocupados com a estetização da mensagem de Jesus, como um produto da ética estética hipermoderna que tem pouco a ver com a mensagem de austeridade e pobreza do Nazareno. Trata-se da comercialização por grosso da figura de Jesus. O Jesus, familiar para milhares de pessoas, é um produto da hibridação estética, da moda e da mercadologia. O culto da expressão nova e subjectiva substituiu a revelação antológica. A quadra natalícia, para muitos, é um momento de tristeza porque lembra e faz viver mais intensamente as ausências presentes dos seus entes queridos. O homem que não assimila as ausências dos entes queridos que o tempo lavra será sempre um ser infantil, que está longe de ser uma criança.

A ausência é um vazio que só pode preencher a memória. O Natal é um memorial, uma referência temporária que converte em “Kairós”, tempo significativo, o “Kronos”, tempo normal. Além de ser social e lúdico, o ser humano é ritual. Os presentes da quadra natalícia, originalmente, significam a gratuidade do presente que recebemos do céu. Algumas pessoas aborrecem-se pelo facto de outras desejarem felicidade, paz, amor e prosperidade. Mesmo que fosse o único dia do ano em que tal acontecesse, seria melhor do que nada. As crianças vivem esse tempo sem problemas ou falsos pensamentos.

É infeliz o que não se permite manifestar, expressar-se à criança que tem dentro. Jesus provoca uma série de perguntas que o antropólogo não pode responder a partir da antropologia ou da história simples, embora ambas possam ver sinais de que, por trás dessa pessoa, há algo mais do que um homem simples. Tal está escondido por trás dessa fascinante humanidade? Para muitas marcas, multinacionais, e instituições, a estrela do Natal não é Jesus, mas as ídolos sociais que transmitem os seus interesses. Os cristãos confessam uma realidade que transcende a História.

A teologia moderna diz que a fé é acreditar numa pessoa que se torna o modelo da vida em que os valores artísticos, sociais e filosóficos se fundem mais que uma moral. Tradicionalmente, a fé em Jesus-Homem-Deus estava ligada a uma categoria hereditária, uma herança familiar e comunitária; modernamente é mais o fruto de uma decisão pessoal, da fé individual. A fé em Jesus, segundo os cristãos, deve ser traduzida em um modo de vida. O cristão deve ser o promotor de uma cultura de caridade, justiça e solidariedade, de igualdade e dignidade das pessoas.

Os que acreditam na mensagem original da quadra natalícia não se resignam a fugir e a deixar campo livre aos que querem esquecer a origem e o significado do tempo que vivemos. Iremos continuar a comemorar esta quadra do Natal, um memorial do nascimento de Jesus, sem esquecer que o mundo muda e que a maneira de actualizar eventos também deve ser alterada.

29 Dez 2017

Sex-Talk

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]nvestigar a sexualidade humana não é tarefa fácil. Como escrevo sobre sexo todas as semanas quase que me esqueço que o à vontade para falar sobre o sexo não será o mesmo do que qualquer outro tópico de conversa. E isso depois reflecte-se na dificuldade em estudá-lo, ou de produzir respostas de ajuda eficazes. Os serviços que providenciam algum tipo de apoio mais especializado ao sexo, vêem-se obrigados a arranjar estratégias criativas de atrair utentes.

No mundo ocidental em que vivemos há um paradoxo interessante entre não falar sobre sexo, mas usá-lo como produto de consumo. O sexo vende, e por isso o marketing usa clichés da atracção sexual que continuam a funcionar, mas falar sobre o sexo de forma aberta e saudável é que está quieto. Aliás, sempre que vejo movimentos de pais contra a educação sexual nas escolas, pergunto-me se eles não têm noção que os seus filhos pré-adolescentes são bombardeados com vídeoclipes com mulheres semi-nuas e altamente sexualizadas a toda a hora. Mas isso é uma circunstância da vida, falar sobre o sexo é que não pode ser, não se expõe assim a ‘perversão’- ainda a atraem com mais força. Por estas e muitas mais tontices, é que falar sobre o sexo é difícil e limitado pelo tabu – o que torna a investigação socio-biológica do sexo das mais desafiantes.

Ao menos temos séries e filmes, O Sexo e a Cidade seria uma delas, ou o Girls, se pensarmos na televisão mais americanizada. Estes são dos poucos momentos televisivos em que o sexo é apresentado de uma forma mais natural, mais realista. Tudo o resto são exageros hiper-sexualizados e hiper-românticos que ajudam a perpetuar mitos já nossos conhecidos. Por isso, quando queremos entrar nestas construções sociais do sexo – que a televisão, a música, o consumo, a nossa experiência individual ajuda a criar – o expectável seria entrevistar pessoas sobre o sexo, pô-las a falar para melhor compreender as suas cabeças. Mas imaginem o horror que poderá ser, pôr uma sala cheia de estranhos a conversarem acerca de, por exemplo, satisfação sexual? Nós, que somos seres sociais a trabalhar um equilibrio saudável entre o individual e o social, precisamos de comunicar. É preciso comunicar sexo seja isso de forma mais informativa, mais pessoal e íntima, melhor ou menos problematizada.

Não basta sexar, é preciso conversar. E isto serve como dica para toda uma vida, não só uma queixa dos que estudam o sexo e vêm dificuldades acrescidas simplesmente porque é um tópico difícil. Conversem com o parceiro, com as amigas e com os amigos. Há certos mitos e crenças de roda do sexo que são contraproducentes, que perturbam o bem-estar individual e de casal. O remédio? Uma boa conversa com um copo de vinho com a melhor amiga para desconstruir alguma tolice – que os homens não têm que vir-se na cara da rapariga, por exemplo, só para reforçar que os mitos vêm de toda a parte, até da pornografia.

Costumo pregar o direito universal do sexo, pela nossa identidade sexual, prática e fantasia. Mas frequentemente esqueço-me que o maior desafio não é ter sexo, mas falar sobre ele. Num estudo que tenta perceber de que forma a satisfação sexual é conceptualizada, a comunicação sexual apareceu como parte do processo para chegarmos à satisfação plena. A natureza da relação amorosa, e de forma que ela é comunicada também faz parte integrante do desafio a dois, a três ou de toda uma sociedade ou planeta. O sexo vem dos corpos, da mente e da linguagem que cria as relações, as partilhas e os mundos por descobrir. Para uma sexualidade saudável é preciso conversar sobre sexo, demais, e nunca de menos.

26 Dez 2017

Megacidades, urbanização e desenvolvimento sustentável

“For better or worse, megacities – by virtue of their resources, their size and their impact – are at the leading edge of change in many countries. Reading the social science literature seems to tell us that this is for the worse. A very broad current in urban sociology has associated economic globalisation with the creation of a wider spectrum of jobs and with a challenge to traditional social ties, leading to more segregated societies. Many urban scientists and urban geographers continue to condemn gigantism”
“Governing Megacities in Emerging Countries” – Dominique Lorrain

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] “Conferência Internacional sobre a Água, Megacidades e Mudança Global” da “Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO na sigla inglesa)” foi um evento que fez parte da programação da “21.ª sessão anual da Conferência das Partes (COP 21, na sigla inglesa)” da “Convenção – Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (CQNUAC ou UNFCCC, na sigla inglesa)” e da “11.ª sessão da Conferência das Partes enquanto Reunião das Partes no Protocolo de Quioto (CMP 11, na sigla inglesa)”, que se realizou em Paris, entre 30 de Novembro e 12 de Dezembro de 2015.

A “COP 21” reuniu cento e cinquenta chefes de estado e de governo de todo o mundo. que aprovaram o “Acordo de Paris” sobre redução de emissões com vista a travar as alterações climáticas, e que entrou em vigor a 4 de Novembro de 2016. A “Conferência”, mostrou o papel fundamental que as cidades desempenham na prossecução dos “Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”, especialmente o “Objectivo 6” da “Agenda de 2030”, que é o direito humano e fundamental de acesso à água e saneamento.

A visão geral da ONU, de quinze megacidades emblemáticas, como são Buenos Aires, Cidade do México, Chicago, Ho Chi Minh, Istambul, Lagos, Londres, Los Angeles, Manila, Mumbai, Nova Iorque, Paris, Pequim, Seul e Tóquio é simultaneamente o resultado de apresentações científicas concretas e um apelo à mobilização geral, para elaborar as políticas urbanas sustentáveis de que carece o mundo. Todos esses centros urbanos partilham um conjunto de características comuns, como o tamanho colossal, disparidades entre zonas ricas e pobres, procura ambiental e industrial que afecta os recursos naturais de uma região inteira, sem mencionar o peso económico do país, como um todo, e uma ampla gama de recursos culturais, científicos e educacionais.

A ONU designou Nova Iorque e Tóquio como as duas primeiras megacidades, tendo em 1975 acrescentado a Cidade do México, passando em 2000, a ser dezoito, em 2005, vinte e em 2015, vinte e duas megacidades, todas com populações de dez milhões de habitantes ou superiores. As previsões indicam que existirão quarenta e uma megacidades até 2030, muitas delas localizadas nos países menos desenvolvidos do mundo. Ao longo da história constatou-se, que a essas cidades muitas vezes faltam quer o tempo como os meios para desenvolver os imprescindíveis serviços urbanos, inclusive os relacionados com o acesso à água, saneamento e drenagem de águas pluviais como direitos humanos e fundamentais. Tal situação cria vulnerabilidades profundas e desafios complexos.

É crucial que as megacidades compartam as suas experiências, de modo a desenvolver serviços capazes de atender às expectativas dos seus habitantes. A gestão inclusiva dos recursos hídricos, também é solução para uma variedade de desafios sociais, em particular, as desigualdades de género, dado que as mulheres são frequentemente mais atingidas por dificuldades de acesso à água, e estão na linha de frente quando se trata de uma melhor gestão dos recursos. As áreas urbanas, globalmente consideradas, crescem rapidamente, sendo de esperar que mais de dois terços da população mundial viva em cidades até 2050.

A urbanização influencia o meio ambiente e pode contribuir, por exemplo, para as alterações climáticas, degradação do solo e redução da biodiversidade. Ao mesmo tempo, os ecossistemas urbanos são muito sensíveis às mudanças globais, e a sua adaptação é necessária para sustentar a funcionalidade e os importantes serviços dos ecossistemas. A urbanização, historicamente, foi estudada principalmente, como uma potencial ameaça ambiental, resultando na degradação do solo, água, atmosfera, floresta e perda de biodiversidade. O estado ecológico desfavorável dos ambientes urbanos, foi documentado no início do século XXI, e um ecossistema urbano estabelecido difere fortemente de um ecossistema natural ou agrícola.

Os ecossistemas urbanos são caracterizados pelas paisagens humanas modificadas e muitas vezes artificiais com distúrbios antropogénicos consideráveis como, por exemplo, a poluição ambiental, selagem do solo e eliminação de resíduos. As cidades geralmente consomem muito mais energia do que fornecem, resultando em emissões de calor, poluentes do ar, água e gases de efeito estufa. O aumento contínuo da população urbana global fez surgir novos conceitos como as cidades sustentáveis. O conceito de sustentabilidade urbana resultou no projecto de cidades modelo ou ideais como, por exemplo, cidades livres de emissões e cidades adaptadas ao clima que consideram as áreas urbanas como fonte de recursos únicos naturais e urbanos específicos e não como uma ameaça ambiental.

A “Conferência” teve assim como objectivo encontrar soluções para problemas ambientais das megalópoles modernas, tendo introduzido ecossistemas urbanos, considerando a sua variabilidade espacial, dinâmica temporal, riscos ambientais e que fossem potenciais para fornecer funções importantes e serviços ecossistémicos. O conceito geral de megacidades como ecossistemas diversos e complexos foi apresentado e defendido. Manter a qualidade do ar, sequestro do carbono e mitigação do aquecimento global e as alterações climáticas por meio de emissões reduzidas de gases com efeito de estufa, são os principais serviços prestados pelos ecossistemas urbanos.

Os solos urbanos são fundamentais para regular os ecossistemas urbanos saudáveis. Os serviços e funções dos ecossistemas fornecidos pelos solos urbanos afectam o meio ambiente, a saúde humana e o bem-estar. Os solos urbanos que formam condições e características diferem principalmente, dos solos naturais e agrícolas, mas as suas funções e serviços permanecem pouco quantificados. A atenção e o interesse em entender a capacidade dos solos urbanos para suportar funções e serviços específicos, tem aumentado. Actualmente, os solos urbanos enfrentam um paradoxo onde, por um lado, é o valor mais alto para o desenvolvimento da propriedade e, por outro, é quase totalmente ignorado no que diz respeito ao ecossistema que podem fornecer.

É importante considerar os diferentes aspectos da monitorização e avaliação de solos urbanos em escalas múltiplas, desde o nível local até a escala regional e global, bem como os problemas semelhantes, como por exemplo, a poluição com metais pesados que foram apresentados para solos urbanos localizados em diferentes climas e zonas de vegetação, proporcionando uma oportunidade única para avaliações comparativas. As infra-estruturas verdes são as principais ferramentas para integrar soluções baseadas na natureza do desenho e gestão urbana, bem como promover um conjunto de tecnologias para monitorizar e gerir ecossistemas urbanos, incluindo biotestes, sistemas de apoio à decisão e engenharia ecológica.

A “Conferência” recebeu comentários de uma audiência ampla e multidisciplinar, incluindo a comunidade científica, os serviços municipais, os serviços de protecção ambiental e outras partes interessadas dos países e que trabalham na gestão urbana e flora. A discussão multidisciplinar é um passo essencial para o desenvolvimento urbano sustentável, porque a implementação de tecnologias inovadoras e soluções baseadas na natureza, depende de uma colaboração de todas as partes interessadas, tendo como objectivo a gestão urbana inteligente. Ainda que, os pesquisadores tentem encontrar soluções para os problemas enfrentados pela humanidade, durante as últimas décadas do século XX, o tratamento dessas situações continuam a existir, bem como as respectivas perguntas e respostas.

Apesar de não ter aparecido um novo paradigma, o empresário italiano Aurelio Peccei que, conjuntamente com o cientistas escocês Alexander King, fundou em 1966 o “Clube de Roma” que é constituído por um grupo de pessoas ilustres, que se reúnem para debater um vasto conjunto de assuntos relacionados com a política, economia internacional e, sobretudo, o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, e que foi igualmente, fundador do “Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados (IIASA na sigla inglesa)”, que é uma organização internacional de investigação científica multidisciplinar, localizada no Luxemburgo e na Áustria, e considerado um dos melhores laboratório de ideias do mundo. Aurelio Peccei, a propósito do tema, afirmou que seriam necessários argumentos convincentes para prever uma potencial catástrofe nas próximas décadas e que existe a necessidade de uma grande mudança da direcção das actividades humanas

As predições não foram aceitas. A ciência moderna não pode prever mudanças evolutivas na biosfera, que garantirão a segurança da população humana. É necessário precisar o significado social, científico e profissional das cidades sustentáveis. O conceito de “EcoPólis” como estratégia de urbanização e experiência, iniciou-se em 1980 na União Soviética, desenvolvendo comunidades que são coerentes com a capacidade de transporte de ecossistemas regionais. A ciência começou com a determinação de metas e termos e tenta monitorizar e modelar a dinâmica, enquanto os filósofos e outros pensadores tentam entender as tendências para definir os limites da urbanização.

Após o projecto urbano de Leonardo da Vinci e da sua “Cidade Ideal”, elaborado em 1488, vários projectos utópicos foram realizados e desenvolvidos. A “Cidade Jardim”, que é um modelo de cidade elaborado no século XIX, abriu uma nova área para os seres humanos, o eco-retorno para um meio natural razoável. A industrialização, desde o século XIX, levou à expansão populacional, enorme densidade urbana, engolindo florestas e áreas agrícolas no interior dos países, o que trouxe impactos na biosfera que não foram previstos. A nova profissão de “Eco-urbanista” surgiu através do projecto de pesquisa e prática de projectos ecológicos. Durante as últimas décadas na Rússia, por exemplo, foi eliminado o planeamento e a estratégia de longo prazo na política de assentamentos humanos.

A direcção da urbanização em geral não foi clara e actualmente é necessário revisitar os valores a longo prazo e apoiar a estratégia dos países nos projectos de urbanização. Os modelos devem ser seguidos pelo desenvolvimento de cenários de baixo risco na capacidade de ecossistemas regionais e no contexto etnocultural local. Assim, surgiram importantes projectos como bio-regionalismo, “EcoPólis” e “Ecocidades”, como assentamentos auto-sustentados. Na Rússia, por exemplo, vários projectos em larga escala, foram realizados a partir do início do século XX nas proximidades de Moscovo. A aproximação “EcoPólis”, foi testada em uma antiga estação de metro de Moscovo e numa outra cidade vizinha.

As megacidades, como outro tipo de assentamento humano, sugerem um certo metabolismo social, onde a matéria e a energia fluem. O problema da ecologia humana não está numa pequena lista do progresso moderno. Devido a alguns cenários de crescimento populacional, podem ser esperados novos limites de gestão centralizada, dado que os sistemas desenvolverão um nível muito complexo com riscos de desastres imprevistos e acidentes normais. A estratégia de urbanização global está lentamente a dirigir-se para uma nova política integrada que é influenciada pelas alterações climáticas, mudança para a energia alternativa, aumento do nível do mar, diminuição do solo per capita no planeta, abastecimento limitado de água potável para os cidadãos a nível mundial e “stress” ambiental.

Os diferentes riscos exigiram a integração de um sistema com menores riscos integrativos por meio do novo modo de urbanização, a “EcoPólis”, que é uma unidade multifuncional no planeamento e que produz parcialmente recursos vitais, como água potável, alimentos como peixe, produtos de caça, gado, legumes, trigo e frutas, bagas naturais, cogumelos e plantações adicionais de espécies de plantas locais. O serviço ecológico da cidade é realizado através da monitorização ambiental e de assentamentos, restauração de ecossistemas, conexão da rede ecológica entre ecossistemas regionais e a “EcoPólis”. A “EcoPólis” como um projecto começou com a “Cidade da Ciência” da capital russa, na era da União Soviética e que seria de alguma forma a cidade do futuro, pois não havia impacto industrial, apenas recreativo.

O impacto foi cuidadosamente estudado em todas as áreas e mostrou que as necessidades recreativas como por exemplo, andar, pescar, caçar e correr usam uma superfície seiscentas vezes maior que a superfície da cidade. O treino e a educação dos líderes locais podem melhorar a visão oficial do planeamento e, possivelmente, expandi-lo para a escala de tempo geológico. Apenas e após a participação em experiências de criação de modelos de longo prazo e projectos participantes como por exemplo, com voluntários, políticos e cientistas locais, é que foi possível serem motivados e preparados para pensar e discutir futuras mudanças da paisagem, cidade e hábitos humanos, e modelar a visão comum do futuro desejado.

Os valores do desenvolvimento sustentável devem começar pela mente humana e as reservas naturais da cidade devem ser planeadas e a força de trabalho deve ser dedicada a cuidar delas. A experiência da “Ecopólis” deve estabelecer um vínculo entre a filosofia académica e a prática humana diária para que se possa perceber os primeiros passos do desenvolvimento coerente dos ecossistemas regionais e do meio urbano. Esse será o novo significado das cidades modernas, a recuperação da biodiversidade e dos ecossistemas deve tornar-se o centro da criação de modelos da dinâmica do sistema urbano no caminho da satisfação sustentável das necessidades humanas.

20 Dez 2017

Automatização taxada

[dropcap style≠‘circle’]R[/dropcap]ecentemente, o canal noticioso HKTVB difundiu uma notícia algo peculiar. É possível que futuramente o trabalho robotizado venha a ser taxado.

Realmente a questão coloca-se; se os robots substituírem os trabalhadores quem vai pagar os impostos ao Governo? Por enquanto, esta pergunta continua sem resposta.

Mas, é provável, que de futuro a utilização de robots venha a ser taxada. Este imposto servirá para contrabalançar os custos sociais derivados da automatização. Já que os robots não pagam impostos salariais, os seus proprietários deverão suportar uma taxa pela substituição de trabalhadores por andróides. O “Imposto de automatização” pode vir a ser uma nova fonte de rendimento para o Governo.

A CNBC anunciou que numa entrevista recente à Quartz, Bill Gates, co-fundador da Microsoft, afirmou defender a aplicação de taxas sobre o uso de robots na produção. A afirmação de Bill Gates surgiu na sequência das declarações de Jane Kim, membro da Câmara de Supervisores de São Francisco. Jane Kim tinha-se declarado a favor da automatização. Mas esta evolução tem obviamente um senão; a dispensa do trabalho humano.

Jane Kim prevê a multiplicação do trabalho robotizado e para tal criou o “Fundo para o Trabalho do Futuro”. As empresas deverão contribuir para este fundo, que se destina à reeducação dos trabalhadores. Será uma forma de suavizar a transição para o futuro e para a automatização que se adivinha.

Kim afirmou que este fundo pode apoiar a formação de trabalhadores para funções difíceis de automatizar, como por exemplo tomar conta de crianças.

Neste contexto, Bill Gates advoga que a criação de uma taxa sobre o trabalho robotizado obrigará os patrões a pagar a restruturação da força de trabalho, actualmente empregue em funções que estão a ficar obsoletas.

Mas esta ideia foi objectada pelo Comissário da UE, Andrus Ansip, que defende a entrada da Europa na era digital. O Comissário adiantou que, a criação de uma taxa de automatização irá deixar a Europa para trás em termos competitivos. Para resumir, parece ser ridículo desincentivar o esforço de empresas que adoptam tecnologias de ponta na produção.

O website “telegraph .co.uk” já tinha anunciado, em Agosto último, que a Coreia do Sul vai ser o primeiro país a implementar a taxa de automatização. A nova proposta de lei sul-coreana prevê a limitação dos incentivos fiscais para empresas com trabalho automatizado. Estas políticas pretendem compensar a perda do retorno contributivo decorrente da automatização. Na altura, era esperado que a lei entrasse em vigor no final deste ano.

O trabalho automatizado tem consequências e pode criar mais desigualdade entre os seres humanos. Potencialmente gera mais desemprego porque, em certas funções menos especializadas, dispensa a acção do Homem. O fosso entre os rendimentos de quem tem uma especialização e de quem não tem, deve vir a aumentar exponencialmente devido à automatização da produção.

É óbvio que a grande desigualdade de rendimentos será consequência do desemprego. A automatização reduz os custos de produção. O Homem não pode competir com a máquina.

De momento, o uso de andróides na produção ainda está a dar os primeiros passos e alguns economistas propõem a criação de impostos sobre a aquisição destes equipamentos. Ao mesmo tempo o Governo terá de aumentar as taxas sobre os salários mais elevados. Estas políticas fiscais poderão reduzir a introdução de andróides nas cadeias de produção. Podem também vir a minimizar as diferenças entre aqueles que ganham mais e os que ganham menos.

A automatização irá mudar para sempre a natureza do trabalho. Num futuro próximo, parte do trabalho de rotina será desempenhado por robots. Os empresários e os políticos devem unir esforços para suavizar esta transição. Mutos trabalhadores não especializados vão perder o emprego. De futuro, as pessoas devem preparar-se para posições que envolvam a tomada de decisões. É a melhor forma de evitar o desemprego.

19 Dez 2017

Uma má decisão política

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] comentador de Hong Kong, Johnny Lau, afirmou que um político deve possuir três qualidades: ética, coragem e discernimento políticos. Os deputados da Assembleia Legislativa não têm necessariamente de ser especialistas em leis, existem conselheiros jurídicos na Assembleia que se ocupam dessas matérias. Quando os deputados discutem as propostas de lei e as colocam à votação, estão a lidar com questões de ordem política. Estas decisões derivam dos antecedentes pessoais de cada um, do estrato social que representa e do interesse geral, que deve sempre ser tido em consideração. Mas, acima de tudo, é uma decisão que devem tomar com discernimento, conscientes das suas repercussões em termos sociais.

Em termos históricos não existem “ses” e a História é irreversível. Quando acontecem infortúnios a única possibilidade é tentar remediá-los. Mas se as “terapias” falham, todos os envolvidos são apontados como responsáveis. Portanto, a melhor forma de lidar com o infortúnio é fazer tudo para o evitar. O resultado da votação pela suspensão do mandato do deputado Sulu Sou foi bem claro: 28 votos a favor e 4 contra. Esta decisão, quer em termos pessoais, quer em termos colectivos, é uma má decisão política.

Em qualquer lugar deste planeta, para manter a estabilidade política é necessário disponibilizar aos opositores os canais apropriados para expressarem os seus pontos de vista, e não empurrá-los para um beco sem saída. Encorajar os jovens a juntarem-se ao sistema vigente, permite-lhes expressar as suas opiniões dentro desse sistema e chegar a um consenso social por via do debate. Mesmo as pessoas comuns, se se sentirem inseridas, escusam de inventar inimigos que não existem. E já que o Conselho Legislativo de Hong Kong se tornou um campo de batalha onde se digladiam os opositores políticos, não há qualquer necessidade de a Assembleia Legislativa de Macau se vir a tornar num “barril de pólvora”.

O parecer submetido pela Comissão de Regimento e Mandatos sobre a suspensão do mandato do deputado Sulu Sou não era tendencioso e a análise dos conselheiros jurídicos da Assembleia lembrava a todos os deputados que o propósito da imunidade parlamentar é proporcionar a todos os representantes a possibilidade de cumprirem em pleno os seus mandatos. A imunidade dos deputados deve ser defendida a todo o custo, pois destina-se a evitar julgamentos de parlamentares. Quando um deputado estiver numa situação em que pode vir a ser julgado, a situação deverá ser muito bem analisada para apurar se existem provas muito consistentes que apoiem a acusação. Também é necessário analisar se essas provas substanciais entram ou não em contradição com os princípios fundamentais do direito à imunidade dos deputados. A questão é que uma suspensão do mandato transcende o deputado em causa e passa a envolver a Assembleia como um todo, especialmente no que respeita à manutenção da estabilidade e da dignidade do Parlamento.

É lamentável que os deputados que votaram a favor da suspensão do mandato de Sulu Sou não tenham tido em consideração a dignidade da Assembleia Legislativa. Esta atitude vai enfraquecer inquestionavelmente o desenvolvimento político de Macau no futuro. As lutas não terão de existir se não houver opressão. Quando a luta substitui a discussão e a comunicação, cria-se um cenário em que, ao fim e ao cabo, todos ficam a perder. Não nos esqueçamos das sábias palavras de Mohandas Karamchand Gandhi, “Olho por olho e o mundo fica todo cego”.

Antes da Assembleia Legislativa ter decidido pôr a suspensão do mandato do deputado Sulu Sou à votação, o cenário ainda parecia promissor porque qualquer pessoa sensata não iria optar por “vencer a batalha, mas perder a guerra”. Desejaria sim pôr fim à discussão o mais rapidamente possível e, após o termo do mandato de Sulu Sou, tomar as medidas que fossem necessárias, o que teria sido a decisão certa. A Assembleia Legislativa decidiu efectuar a votação a 4 de Novembro, e não nos dias 5 e 6 dedicados ao debate das Linhas de Acção Governativa da área dos Transportes e Obras Públicas. Parece-me ter sido uma resolução acertada, caso contrário Sulu Sou teria sido privado da última possibilidade de se defender.

Infelizmente, as melhores expectativas não se vieram a concretizar. Actualmente Sulu Sou está sob suspensão do mandato e terá de enfrentar um julgamento. Não se sabe se irá ser condenado ou apenas sentenciado a uma prisão de 30 dias, essa decisão competirá ao juiz. As duas partes envolvidas poderão vir a apelar da sentença, se assim o desejarem. Mas o que sabemos é que a Assembleia Legislativa perdeu um deputado e que este caso político vai alimentar o falatório da cidade. Se a situação tivesse ido mais além e, em vez da suspensão estivéssemos a falar de cancelamento do mandato e de uma re-eleição para substituição do cargo, Macau ia enfrentar o caos. Quando atiramos uma pedra a um lago criamos uma ondulação momentânea mas, não tarda, o lago volta a serenar. Mas se continuarmos a atirar pedras para o lago, acabamos por nos molhar. Macau tem talentos, mas falta-lhe pessoas com discernimento político.

 

15 Dez 2017

Efeito retroactivo e consulta pública

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo aprovou, a 4 de Novembro último, uma resolução para integrar a Lei Chinesa do Hino Nacional no Anexo III da Lei de Bases de Hong Kong. De acordo com o Artigo 18 desta Lei Básica, a Lei do Hino Nacional será aplicável à Região Administrativa Especial de Hong (RAEHK). A RAEHK tem o dever estatutário de implementar a legislação local adequada, ou seja, uma versão local da Lei do Hino. Este dever está de acordo com a Constituição chinesa e com a legislação local.

Na mesma data, o Congresso Nacional aprovou a introdução de uma Emenda à Lei Criminal Chinesa no Artigo 299. Para além das estipulações originais relativas à utilização da bandeira e do hino nacionais, foram agora identificadas situações em que está interditada a transmissão do hino. A saber:

  1. Alteração maliciosa da música ou da letra
  2. Interpretação do hino de forma distorcida ou depreciativa
  3. Qualquer outra forma de insulto

Se alguma destas situações se verificar, o transgressor será condenado até três anos de prisão efectiva e fica sujeito a controlo ou privação dos seus direitos políticos.

O Gabinete para os Assuntos Constitucionais e do Continente do Governo da RAEHK declarou que durante o processo legislativo, o Governo iria tomar em linha de conta as opiniões dos legisladores e da população.

O projecto de lei é o primeiro passo a dar em qualquer processo legislativo. O projecto começa por ser debatido no Conselho Executivo e, se passar, subirá para discussão à Assembleia Legislativa. Cabe ao Departamento de Justiça a redacção do projecto de lei. O projecto para a criação da versão local da lei do Hino Nacional, deverá estar em consonância com a Lei Nacional.

Este assunto tem dado origem a muitos debates no seio da sociedade de Hong Kong. Um dos temas debatidos tem sido o “efeito retroactivo” desta lei. Se este efeito se verificar, as transgressões ocorridas no período anterior à implementação da lei ficam também sujeitas a sanção.

Por exemplo, toda a gente sabe que em Macau a Lei de protecção dos animais entrou em vigor a 1 de Setembro de 2016. O Artigo 25 estipula que, infligir sofrimento a animais pode implicar uma pena de prisão durante um ano. Esta lei só é aplicável a acções praticadas a partir da data da sua entrada em vigor. Não tem efeitos retroactivos. Desta forma, se alguém tiver incorrido num crime desta natureza, digamos, a 1 de Outubro de 2015, não poderá ser condenado, porque nessa data a lei ainda não existia. Por uma questão de justiça para todos, é habitual as leis não terem efeito retroactivo.

No passado dia 11 de Novembro, Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, declarou que, de acordo com a prática da RAEHK, as leis não têm por norma efeitos retroactivos, sobretudo no que à lei criminal diz respeito. Estas declarações parecem indicar que em Hong Kong a versão local da Lei do Hino não terá efeitos retroactivos. Espera-se pois que a lei só venha a ter efeito a partir da data da sua implementação.

Mas Carrie Lam também apelou ao respeito pelo hino nacional e condenou qualquer forma de insolência. As suas palavras foram obviamente razoáveis, justas e necessárias.

Outra polémica que envolve esta lei prende-se com a consulta pública. Rita Fan, antiga Presidente do Conselho Legislativo, afirmou que não haveria necessidade de consulta pública porque hoje em dia alguns legisladores discordam sempre dos projectos de lei apresentados pelo Governo. Mesmo que o Governo fizesse uma consulta pública, este tipo de legisladores ia manifestar-se contra a versão local da Lei do Hino.

Antes de um projecto de lei subir ao Conselho Legislativo dá-se conhecimento da sua natureza através de uma consulta pública. Este procedimento está intimamente ligado ao espírito do Estado de Direito. Tem como objectivo notificar a população sobre as matérias legislativas a discutir no plenário. O Hino Nacional é um assunto da maior importância para a sociedade de Hong Kong. Todos os residentes, sem excepção, terão de obedecer à versão local da lei que regula a sua utilização. Como os conteúdos da versão local ainda não foram definidos, a consulta pública chamaria a atenção das pessoas e permitiria que deixassem as suas sugestões. Quanto mais sugestões forem feitas, mais claros serão os conteúdos da lei. Se o primeiro passo da legislação for omitido, estar-se-á a dar uma boa desculpa a alguns legisladores para vetarem a proposta de lei ou para pedirem uma revisão judicial nos Tribunais, alegando procedimentos legislativos incorrectos. Quanto mais tempo demorar a elaboração da versão local da lei, maior será a polémica à sua volta.

A Chefe do Executivo afirmou que em Hong Kong as leis não têm por norma efeito retroactivo. Como tal, esperamos que a versão local desta lei não venha a ser excepção. A consulta pública poderá evitar uma revisão judicial nos Tribunais por procedimento legislativo inadequado.

 

12 Dez 2017

O Segundo Renascimento

[dropcap]T[/dropcap]alvez esta reflexão pudesse começar com “era uma vez”. Porém, a história da China é demasiado longa e neste caso interessa-me revisitar o seu passado recente, quando por volta de 1977 Deng Xiaoping tornou ao poder, consolidando-o desta vez. O ex-estudante em França, agora solidamente sentado na cadeira do poder, trazia em si um olhar pragmático para a sua China. Para trás ficavam os dogmas e excessos da Revolução Cultural.

Deng queria uma China moderna, passo a passo. Primeiro permitiu que os camponeses viessem vender os seus produtos nas cidades. Com o crédito alcançado por esse sucesso, o pragmatismo desenvolve-se. Uns anos mais, diria que “o socialismo não significa pobreza”. Isso recorda-me quando, ainda nos finais do anos 70, para chegar a Guangzhou, tive de atravessar de jangada quatro ou cinco braços de rio. Hoje a viagem faz-se de comboio rápido.

Deng, fazendo uso de máximas chinesas, definiu as primeiras medidas de abertura interna que conduziriam à emergência de uma economia socialista de mercado. Nesse pragmatismo, em que o socialismo fica salvaguardado, afirmou que não lhe importava que um gato fosse branco ou preto, mas sim que caçasse ratos.

Citam-se frases deste líder da abertura da R.P. da China. Premonitoriamente afirmou:”quando os nossos milhares de estudantes regressarem a casa, irão assistir à transformação do País”. Crítico, comentou que “os jovens quadros sobem de helicóptero. Precisam de subir passo a passo”. Afirmaria também “procura a verdade nos factos”.

A China do século XIX trazia a todos os patriotas más recordações. Era preciso consolidar uma política de firmeza quanto ao território chinês. Deng Xiaoping formula a sua máxima de “Um País, dois Sistemas” com o intuito de, pacificamente e através de acordos, retomar os territórios de Hong Kong e de Macau, recebendo estes a classificação de “Segundo Sistema”. O intuito era de que, através de um fenómeno de capilaridade, e no período de meio século, o desenvolvimento das Regiões Administrativas Especiais pudesse contaminar o continente.

Não foi porém preciso, porque o pragmatismo de Deng virou-se para o interior onde aos poucos nascia um mercado produtor e consumidor interno.

Nas últimas décadas a prosperidade bateu à porta de muitos. Em 2002 a classe média era de apenas 3 por cento, mas uma década depois, em 2012, já correspondia a 31 por cento, ou seja, 420 milhões!!!

Se as assimetrias ainda existem, não estarão esquecidas e a solução vem com a emergência dos novos heróis, os milionários e bilionários chineses, homens como Wang Jianlin (31.3 mil milhões USD), Jack Ma (28.3 mil milhões USD) no topo de uma lista dos vinte mais ricos cuja mais baixa fortuna é de 6.3 mil milhões de USD.

É assim que, com visão a longo prazo, uma característica do Primeiro Sistema, os milionários se tornam também nos motores de desenvolvimento do País, em sintonia com o Estado.

Deng é já uma memória reverenciada. As novas lideranças seguem o trajecto. A afirmação política como potência internacional é importante. Em 2008 as Olimpíadas são o cenário ideal para uma dessas afirmações.

Zhang Yimou encena um espectáculo belíssimo de abertura que ficou na minha e terá ficado na memória de muitos.

Os tempos de Li Ning já vão longe. A afirmação da R.P. da China é total. 51 medalhas de ouro, 21 de prata e 28 de bronze.

A velocidade de transformação da China é enorme. A economia, nos anos 1990, tinha chegado a um crescimento inaudito de dois dígitos. O mundo assustava-se.

Aliás, a China actual tem mostrado, à semelhança do Renascimento dos Tang (618-904), uma ampla abertura ao exterior.

É assim que, tal como Deng regressou de França, milhares de quadros foram estudar na Europa Ocidental, municiando-se, bebendo do Ocidente, imperativo para a globalização, muito provavelmente inteiramente apoiados pelo Estado Chinês.

Mas se a excelência da apresentação e dos resultados olímpicos foram uma incontornável afirmação política que já vinha sendo preparada desde os tempos de Li Ning, cada vez com maior excelência, é fundamental que Macau aprenda não apenas com a China mas com o mundo, sem medo, sem preconceitos, porque os quadros locais estão longe de terem capacidades e abertura ao mundo, que só poderão adquirir lá fora. Mas, mais do que isso, é importante que o Governo de Macau lhes suporte por inteiro estudos de especialização e de línguas estrangeiras no exterior, e que estes se integrem , sem se acolherem na companhia de colegas, o que seria refúgio indesejável.

Os grandes projectos internos de arquitectura na China decorrem de concursos ou convites internacionais sem que se tenha de concessionar a arquitectos chineses, só porque sim.

Que o digam Siza Vieira, arquitecto Português prémio Pritzker, com o seu edifício sobre a água na cidade de Huai’an, província de Jinan.

Nunca a excelência, venha de onde vier, constitui um erro. Os líderes chineses sabem-no.

O desenvolvimento da China está em todo o lado e faz empalidecer as R.A.Especiais.

Com efeito, em Guangzhou, o Guangzhou Evergrande Taobao, verdadeiro gigante do futebol, assinou há anos com o Real Madrid um protocolo para se criar a maior academia de futebol do mundo, desporto tanto do agrado de Xi Jingping. E eis que, assim, em mais de 75 campos, se planeiam desde já as estrelas de amanhã, enquanto a importação de técnicos se faz descomplexadamente, porque um dos paradigmas do conhecimento é o reconhecimento das próprias limitações. A busca da excelência é total, e a Evergrande aliada à Tao Bao são um colosso financeiro. Trabalha-se, como se imagina, para o médio prazo.

No campo das Artes, há uma cidade que me tocou profundamente. Trata-se da histórica cidade de Hangzhou, próxima de Xangai, mas possuidora de uma Academia de Arte que mostra bem o nível de abertura cultural, cultura que se estende ao modus vivendi.

E desta Academia, sediada numa cidade conhecida pelo seu lago ocidental, o Shi Wu, pela sua placidez, pela proibição das buzinas dos automóveis, respira-se um ambiente propício a tudo o que é reflexão, estudo, criação. Tê-la visitado, constituiu para mim uma experiência enriquecedora da existência de outros mundos que não precisam da nossa circunstância, e que produzem coisas brilhantes.

E a cidadania é tudo isto, é a busca permanente da excelência que só existe com a abertura das mentes, com o recurso a quem sabe em alternativa à ignorância – esse não saber que não se sabe – independentemente da sua situação ou origem, para que se possam formular projectos credíveis para que a R.A.E.M. possa corresponder às expectativas que a Mãe Pátria tem, quando fala de diversificação, que não se fará nunca sem um suporte cultural, que urge ser dado aos quadros locais.

E porque a expressão cultural e artística são o espelho da vida de uma sociedade, aqui se deixam alguns exemplos provenientes de Hangzhou.

UM OUTRO RENASCIMENTO

Sendo o homem uma circunstância, perceber-se-á que o ambiente envolvente é de extrema importância, condicionador ou potenciador do desenvolvimento humano.

Mas para que tudo isto se realize com o nível de excelência que a R.P. da China nos habituou é preciso que se insira também no movimento integrador da Grande Baía traçado pelo Presidente Xi Jingping. Agora que o crescimento interno é uma realidade em contínua consolidação, Xi Jingping volta-se para o exterior, formulando pela política da Faixa e da Rota – a Faixa económica da Rota da Seda do século XXI – que propõe ao mundo em geral e aos países emergentes em particular, o usufruto da cooperação e do usufruto das vantagens da conectividade.

Curiosamente Portugal, país dito periférico, mas o mais antigo da Europa, tem vindo a erguer-se através de grandes personalidades, desde António Damásio, neurocientista autor do “Erro de Descartes” e director do Brain and Creative Institute da Universidade da Califórnia até Horta Osório, o salvador do Lloyds Bank, ou o recém-falecido Belmiro de Azevedo, que estimulava os seus subordinados a terem as suas próprias empresas. Do primeiro Secretário-Geral das Nações Unidas unânimemente eleito, António Guterres, até ao Presidente da República Portuguesa que está em todo o lado, conferindo com a sua presença a atenção aos mais necessitados, enquanto o Ministro das Finanças Mário Centeno, recém-eleito Presidente do Eurogrupo por unanimidade à segunda volta. Há ainda Cristiano Ronaldo, cinco vezes o melhor jogador do mundo e José Mourinho, o treinador especial e tantos outros que brilham por vários continentes, e diversos campeões mundiais, além de artistas, de Júlio Pomar a Paula Rego, provenientes de um país pequeno que é o primeiro destino turístico da Europa.

Por causa da memória portuguesa, Macau foi designado, como Plataforma para os países Lusófonos. A grande China não tem complexos com a história de Macau. Os grandes líderes caracterizam-se pela visão ampla e assim, o legado da portugalidade em Macau, os seus elementos conjugadores deveriam ser ainda mais valorizados pela sua inimitável singularidade.

É e será sempre através das capacidades de conjugação e articulação cultural que se procederá à transformação das mentalidades, sobretudo para quem precisa de substituír certezas por dúvidas. E a partir delas procurar a exigência em desfavor da ignorância, a excelência em alternativa à mediocridade.

Todo o desenvolvimento requer um trajecto. E todo o trajecto um ideário, uma linha de pensamento coerente, fundamentada, a curto e médio-prazo, expressa com os pés bem assentes na terra.

Numa cidade multi-milionária como a R.A.E.M., super-excedentária, apenas a excelência faz sentido, não a má tradução, por exemplo, para o termo “talentos”. É que qualquer tradutor (universalmente tradutore-traditore)precisa de vivenciar a cultura da língua que procura interpretar, porque é na interpretação que a tradução se clarifica. E sem verdadeira interpretação não há comunicação fiel.

É assim que em todo este contexto, emerge a consciência de que a fantástica biblioteca do distrito cultural de Binhai, em Tianjin ameaça tornar-se uma vulgaridade na China, à medida que o País progride cultural e civilizacionalmente neste novo Renascimento.

O meu receio porém é que, em certos lugares, a vulgaridade seja a pouca importância que certos protagonistas dão a bibliotecas, quanto mais à cultura ou a distritos culturais…

11 Dez 2017

Laki sa layaw

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s filipinos são há muito um ingrediente da massa humana que compõe a região do delta do Rio das Pérolas, ou seja, Macau e Hong Kong. As ex-colónias do sul da província de Cantão são destinos de eleição para a massiva vaga migratória das Filipinas, pois a adaptação é mais fácil do que a outras paragens, como o Japão ou os países da peninsula arábica, onde existe também uma grande diáspora. Se considerarmos os chineses, tanto os de Macau como os do continente uma comunidade apenas, os filipinos serão a segunda maior comunidade da RAEM, com mais de dez mil elementos. Mas é difícil avançar com um número exacto, pois assim como as ilhas do seu arquipélago, que são mais quando a maré está baixa, é possível que habite no território uma quantidade significativa de filipinos em situação ilegal.

Tenho e sempre tive amigos filipinos praticamente desde que cheguei vai para mais de vinte anos. No entanto por alguns que tive sorte em conhecer, há outros que desejava nunca ter conhecido. Quer dizer, compreendo que estejam cá numa situação de inferioridade, e que precisem de se defender com as poucas armas que têm, mas podiam ser mais criativos nos “truques” que usam, e já agora menos descarados nas mentiras que contam. As empregadas domésticas, por exemplo “matam” a mãe e o pai uma ou duas vezes por ano para justificar ausências prolongadas ao trabalho, e se deixam alguém no seu lugar quando vão de férias, garantem ser “uma prima”, e “da máxima confiança”, mas na verdade é alguém que conheceram há quinze dias no Largo do Senado.

Espero que nas entrelinhas entendam que não estou a generalizar, de todo. Aliás os “maus” Filipinos são uma minoria, e de um modo geral são um povo simpático, acessível e trabalhador, contando que tenham o mínimo de motivação. A maioria só quer saber da sua vida, trabalha, manda o dinheiro para casa, vai à igreja no dia de folga e não chateia ninguém. As “más sementes” são por vezes indivíduos que até chegaram a Macau com as melhores das intenções, mas entretanto a vida correu-lhes mal, foram também eles enganados por outros, envolveram-se com más companhias, caíram nas malhas do jogo ou da droga, ou por outra razão qualquer, e infelizmente há um vasto leque de razões. Apesar de tudo não se portam assim tão mal.

É natural que tenham desenvolvido um mecanismo de defesa próprio, mesmo que por vezes vá para além dos limites do razoável. Imaginem que deixavam o vosso país em busca de uma vida melhor, e uma vez num país estranho eram explorados, enganados, maltratados e discriminados. Imaginem ainda que tinham que suportar estas humilhações e outras, pois lá na vossa terra natal há pessoas que dependem do dinheiro que mandam todos os meses. Compreende-se que tenham criado uma “rede” que os permita sobreviver, uma vez que o estatuto de trabalhador não-residente confere-lhes poucos ou nenhuns direitos. Mesmo que os métodos estejam já ultrapassados, têm que se desenrascar de algum jeito.

Mas nem só de TNRs é feita a comunidade filipina; existe ainda um número considerável de residentes permanentes naturais das Filipinas ou de etnia filipina. Não sei o número ao certo, mas penso serem por volta de dois mil, e o número tem aumentado, pois há quem se tenha fixado há muitos anos e produzido uma nova geração de filipinos.

E é ao falar desta segunda geração de filipinos com BIR que passo a explicar o título deste artigo, e se tiveram a paciência para ler até agora, devem estar com curiosidade. “Laki sa layaw” quer dizer em tagalog “mimado”, ou “menino/a mimado/a”. E de facto é mesmo assim. Não me canso de repetir que não quero generalizar, mas muitos destes jovens filipinos e Filipinas que conheci não fazem a minima ideia do que é a vida. A maioria nasceu em Macau, e outros vieram para cá ainda novos, e não imaginam sequer o que é emigrar, ganhar a vida, lutar pela próxima refeição, sujeitar-se a privações várias, como os seus compatriotas que aqui chegam numa condição muito pior do que a deles. Sentem-se filipinos, claro, e vão à terra dos pais de férias uma vez por ano. Gostam daquilo, acham piada, e têm resmas de parentes, primos, tios e tias, que olham para eles de baixo, sentindo uma ponta de inveja.

Não existindo em Macau escolas filipinas, estudam nas escolas chinesas ou nas internacionais, os que podem. Muitos falam cantonense, outros falam português (os que têm um pai ou mãe português, e nem todos), mas todos dominam o inglês. A maior parte deles fala tagalog, mas outros nem por isso, ou falam pouco, o que não deixa de ser lamentável. São uma juventude descontente, uma geração X. Nasceram cá mas não são chineses, e como não beneficiam do mesmo desconto que é dado aos portugueses, os chineses olham para eles como sendo “filipinos”, e pouco importa que tenham ou não BIR. O seu papel na RAEM do futuro é uma grande incerteza.

Aquele personagem na imagem em cima é Juan Dela Cruz, a personificação do espírito e da unidade do povo “pinoy”, o equivalente do Tio Sam para os americanos, ou do nosso Zé Povinho. O folclore filipino tem ainda um contraponto a este símbolo, um tal Juan Tamad, que era tão preguiçoso (“tamad” quer dizer “preguiçoso”) que se sentava debaixo da árvore à espera que a fruta lhe caísse na mão. Não considero que os filipinos sejam preguiçosos, antes pelo contrário – têm muito mais de Juan Dela Cruz do que de Juan Tamad. O que os leva a ser por vezes rejeitados pelo mundo “globalizado” é o facto de serem um povo singular, com uma cultura e uma identidade muito próprios, em suma, são especiais. Agora só precisam de decidir de que forma desejam ser considerados especiais. Tinham tudo a ganhar se fosse no bom sentido. Fazem-nos falta.

7 Dez 2017

Disfunção sexual

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre o corpo e a mente do que a disfunção sexual pode ser, há uma panóplia de tratamentos para curar este mal que pode assolar qualquer pessoa. De todas as gentes, todas as orientações, todos os géneros ou órgãos sexuais associados. Podem ter um pénis ou uma vagina, ou os dois, que a disfunção sexual pode afectar o nosso apetite e performance para o sexo.

A definição está no tão conhecido manual da doença mental, sendo a categoria guarda-chuva que acolhe por exemplo, a disfunção eréctil, formas de hipoactividade sexual, a, mais comummente designada por, ‘frigidez’ nas mulheres e ‘impotência’ nos homens. Curiosas descrições, não são? porque as mulheres devem ser calorosas ou ‘amorosas’ e os homens potentes, pujantes e energéticos – só para referir, uma vez mais, que estas assumpções de género estão por toda a parte, e no nosso dia-a-dia.

Voltando à categoria de disfunção que não é fácil de compreender – ou de aceitar, porque reforça a ideia da patologia em nós –, esta pode estar associada a factores físicos, psicológicos e sociais. Quando identificada com uma etiologia física, a disfunção é tratada através de, quiçá, uma cirurgia e facilmente resolvível. Quando as causas são psicológicas e/ou sociais (permitam-me considerar que o psicológico e o social não são facilmente dissociáveis, e por isso os tomarei como causas ‘semelhantes’) é que a porca torce o rabo, o burro não levanta o pau, ou qualquer outra metáfora que ajude a imagem de que os possíveis tratamentos não são tão fáceis de delinear. Aqui é que o conceito de ‘disfunção’ parece ser contra-producente, porque dificuldades de cariz psicológico são mais difíceis de ser levadas a sério na população em geral. Pensemos na disfunção eréctil, por exemplo, em que existe um tratamento medicamentoso, mas que não é eficaz a longo-prazo. A investigação parece mostrar que, em combinação, a psicoterapia tem efeitos mais positivos e persistentes no tempo. Aliás, o primeiro grupo de investigação sobre sexualidade humana em Portugal (Sexlab, na FPCE da Universidade do Porto) tem-se debruçado sobre isso mesmo, de como a psicoterapia pode curar a disfunção eréctil.

Entre vários exemplos, isto prova que o sexo apesar de se apresentar como puramente físico – e muitas vezes fala-se no sexo como uma necessidade física… – envolve-se em dimensões cognitivas, emocionais e mentais que são vulgarmente ignoradas. Qualquer doença mental sofre do mal do estigma também, porque julga-se que a mente, muito rápida e facilmente, consegue resolver o que quer que seja: depressão, esquizofrenia ou distúrbio bipolar. Mas o sexo consegue complexificar aquilo que julgávamos simplesmente biológico e físico. O sexo, só é sexo, porque temos órgãos sexuais e porque temos uma cabeça que dá sentido a aquilo que sentimos.

Talvez pensar que a nossa sexualidade reside na nossa mente não seja uma ideia fácil de digerir. Mas é tal e qual um atleta de alta competição, que mesmo que esteja muito envolvido na performance e no treino das suas competências físicas, precisa de disponibilidade mental. Na mente é que se jogam os medos, anseios, culpas ou a vergonha e a disfunção sexual alimenta-se demasiado destas valências que precisam de ser, acima de tudo, reconhecidas e pensadas. Talvez a função do sexo não seja o coito puro e duro, talvez seja um redescobrir emocional que envolve outras gentes, ou que nem envolve ninguém. A disfunção é assim um sintoma de muitas das nossas dificuldades integradas em várias dinâmicas e que precisam de tratamentos que possam acolher a complexidade do físico com o emocional.

6 Dez 2017

As agruras do negócio

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] publicação “Doing Business do Banco Mundial para 2018” (WB report) foi lançada a 30 de Outubro pelo Grupo Banco Mundial. É o 15º ano consecutivo em que o Banco Mundial publica uma análise periódica sobre a capacidade negocial dos diversos países e regiões.” Este estudo “avalia todos os aspectos das 11 áreas relacionadas com a criação de um negócio etc.”

A comunicação social de Hong Kong divulgou o acontecimento e revelou que o estudo inclui uma classificação das zonas económicas quanto “à facilidade de criar negócio”. Hong Kong aparece classificado em quinto lugar, com uma pontuação de 83.44. Para iniciar um negócio em Hong Kong é necessário possuir um Registo Comercial (Business Registration). Como o Governo não prescindiu da sua taxa sobre este registo as custas vão subir em 2018 enfraquecendo a competitividade da região.

O Secretário das Finanças, Paul Chan Mo-po, defendeu a necessidade da aplicação da taxa e afirmou que as custas anuais do Registo Comercial montam apenas a 2.250 HKD, uma quantia razoável para criar um negócio. O Secretário das Finanças adiantou: “Penso que existem aqui alguns mal-entendidos que é preciso esclarecer.”

O Registo Comercial é um documento obrigatório para quem quer abrir actividade na área de negócios, que terá de ser obtido junto do Departamento de Receitas Territorial, de Hong Kong. O empresário pode criar o registo em nome individual, em sociedade ou em Companhia £da. Sem este documento qualquer transacção comercial é ilícita. O Registo Comercial deve ser renovado todos os anos mediante o pagamento de uma anuidade. Se a empresa encerrar, deve notificar o Departamento de Receitas Territorial para que os serviços dêem baixa do documento.

Como foi dito, a anuidade deste registo é de 2.250 HKD. Este valor divide-se em duas partes, 2.000 HKD são direccionados para os cofres do Governo e os restantes 250 HKD são encaminhados para O Fundo de Insolvência e Protecção Salarial. Este Fundo foi criado para apoiar trabalhadores em situação de insolvência ou de falência.

Quando um trabalhador entra em situação de insolvência (por falta de pagamento dos salários), deve reportá-lo ao Departamento do Trabalho e apresentar uma petição de falência contra o empregador. Nessa altura pode ser reembolsado de salários em atraso e de outros benefícios em falta. No entanto não receberá a totalidade do que lhe é devido. Este reembolso tem um limite.

Mesmo quando o Governo da RAEHK prescindia da aplicação da taxa, o montante de 250 HKD para Fundo de Insolvência e Protecção Salarial sempre existiu.

O valor de 2.250 HKD não é efectivamente excessivo para uma empresa. No entanto, abrir um negócio em Hong Kong custa muito caro, a taxa do Registo Comercial constitui apenas uma de muitas despesas. Imagine-se que íamos abrir uma empresa na forma de Companhia £da. De acordo com o Regulamento Empresarial, a empresa deverá ter uma morada registada. A empresa terá de estar necessariamente sediada em Hong Kong e não no estrangeiro. É uma forma de confirmar que a actividade é exercida na na cidade. Como sabemos, o valor dos alugueres em Hong Kong é extremamente elevado, sem dúvida excessivo para uma empresa acabada de criar. Para reduzir esta despesa, é costume estas jovens firmas adquirirem, em sistema de leasing, um endereço comercial numa empresa de contabilidade ou num centro de negócios. Através de um pagamento anual entre 2.000 e 5.000 HKD, a Companhia £da. pode dar cumprimento aos requisitos estatutários.

Mas o Regulamento Empresarial não se fica por aqui. É ainda obrigatório que a empresa seja “auditada”. As auditorias terão de ser efectuadas anualmente. Todas as facturas, recibos, livros-razão, etc. devem ser apresentados ao auditor. Após a auditoria, as contas serão apresentadas ao Departamento de Receitas Territorial para serem apurados os impostos a cobrar. A taxa de auditoria varia de auditor para auditor, mas representará sempre outra soma que a empresa terá de despender.

A taxa de auditoria, o aluguer do espaço comercial e as taxas do Registo Comercial são despesas a que um jovem empresário não pode fugir.

Somando todas estas despesas compreende-se facilmente que representam um encargo considerável e que ultrapassam em muito os “suportáveis” 2.500 HKD.

Na comunicação de Ms. Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, por altura da apresentação do programa político para 2018, foi sugerida uma redução de impostos para as pequenas e médias empresas. Propõe-se que o imposto sobre as receitas desça dos actuais 16,5% para 8,25%, para os primeiros 2 milhões de lucro realizado. A implementação de uma série de novos benefícios para os residentes de Hong Kon, vai aumentar as despesas do Governo. Com a redução de impostos e o aumento das despesas, parece improvável que venha a haver redução da taxa do Registo Comercial e esta taxa continua a ser elevada para quem quer começar um negócio.

5 Dez 2017

O direito de não ser

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]asta nascer. E o que deveria ser um acto natural surge imediatamente carregado de significados. Somos filhos, cidadãos, temos um nome e milhares de expectativas à nossa espera. Depois tornamo-nos alunos, eventualmente soldados e, finalmente, namorados, nubentes, casados, progenitores, empregados nisto ou patrões daquilo, entre outras possibilidades. Temos é de ser qualquer coisa. Sempre, em todos os momentos, vemo-nos constrangidos a ser algo como se isso fosse realmente parte integrante do que somos.

E quantas vezes não sentimos, inapelavelmente, que não somos aquilo que somos? Quantas vezes estranhamos os papéis que desempenhamos, bem ou mal, nas nossas relações com os outros? E quantas vezes não nos sentimos o maior dos hipócritas por representarmos um personagem que, bem o sabemos, pouco ou nada tem a ver connosco?

O problema é não termos direito de não ser. Obrigatoriamente, somos qualquer coisa, uma dessas categorias que não inventámos mas às quais temos de nos sujeitar. A penalidade é bem forte e passa logo por sermos ou não reconhecidos pelos outros. Quem não é nada de reconhecível exila-se numa terrível solidão.

É só experimentar e dizer a alguém desconhecido que não se é nada. O espanto, eventualmente, o medo, toma conta do interlocutor. Pois se não é possível catalogar e arrumar em gavetas, como posso ter confiança, ainda que mínima, nesta pessoa? Será que ela é, realmente, uma pessoa? Ou será apenas pessoa alguém a quem forem atribuíveis as características “normais” e as óbvias pertenças? É na distância a esta “normalidade” que se joga parte do fascínio que resta a esta época…

No entanto, tudo se tornaria fluído se não fossemos. Por vezes, a ânsia classificativa, analítica, a grelha sobre o real, apresenta-se como um constructo desesperado, um mecanismo fruste de atribuição de sentidos, incapaz de domar a realidade, senhor da falta e origem do remorso. Mas a sua ausência levaria à criação de um mundo no qual não nos reconheceríamos e obrigaria a uma aprendizagem radicalmente quântica, em que as oposições deixariam de ser a base do pensamento e o universo passaria a ser interpretado como um bailado, onde se estava mas não se era. Aparentemente impossível, portanto.

Logo, para dar sossego ao mundo, temos de ser qualquer coisa. Seja ela o que for, pois tudo parece fazer falta: os juízes e os criminosos, os médicos e os doentes, os políticos e os cidadãos, e por aí adiante… Tem é de se ser qualquer coisa, ainda que não nos apeteça ser nada ou entendermos que ser é contrário ao curso da física ou que, politicamente, a ideia de Ser descamba no fascismo. Não! Nada , rien, niente, nulla di nulla! Há que ser, existir não chega.

Como deixar de ser sem se ser outra coisa qualquer? E será essa uma meta desejável? Quererei eu perder as qualidades que me tornam no que sou e pelas quais os outros me reconhecem, para deixar de ser e simplesmente existir?

A condição é simples: exige um longo, prolongado, disciplinado, afastamento de seres que são e um mergulho nas águas do mundo; obriga a uma participação plena no aparente fluir e a travessia do rio Letes, um compulsivo esquecimento. Não a morte física mas um despojamento total do passado, na ânsia de uma vida no instante.

Claro: ninguém tem direito a não ser. Como diria Shakespeare, todo o mundo é um palco cada um de nós representa o seu papel, cada um de nós é qualquer coisa. E, sobretudo, cada um de nós tem uma dívida imensa por pagar, o que nos impede de deixar de ser, mesmo quando queremos simplesmente ser outra coisa.

És e pronto! Nada a fazer! Mas… se o pensei é como se já tivesse não sido. E este pensamento, tão português, fez emergir um sorriso que não atribuo ao que sou mas a esse universo de possibilidades outras que o não ser, discretamente, acumula.

 

4 Dez 2017

Suspensão ou expulsão?

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Agosto, os jornais publicaram o relatório da “Sondagem sobre o nível de interesse na eleição para a Assembleia Legislativa”, organizada pela Associação de Desenvolvimento e Pesquisa da Inteligência Criativa de Macau e pelo Instituto de Investigação Social e Cultural da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau. A sondagem foi realizada através de um questionário online. Os 456 questionários preenchidos registaram uma pontuação média de 46.2%, abaixo dos 60% considerados positivos. Um dos organizadores desta sondagem foi o Prof. Pang Chuan, um dos deputados nomeados pelo chefe do Executivo da actual Assembleia Legislativa.

A 6ª. Assembleia Legislativa assumiu oficialmente funções há menos de dois meses, durante os quais muitas sessões já tiveram lugar. Tirando a área de Transportes e Obras Públicas, que ainda não foi totalmente debatida no âmbito do Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018, as quatro áreas restantes já foram objecto de debate. O público tem estado mais ou menos a par do que se passa na Assembleia através das transmissões televisivas e dos jornais. Dos diversos temas levados a debate, destacamos aquele que se tornou assunto de conversa em toda a cidade, ou seja, a “impossibilidade de contratar um camionista, mesmo que se lhe pague 40.000 patacas”. Se o desempenho da actual Assembleia Legislativa também vier a ser avaliado, pergunto-me qual será a classificação do Prof. Pang Chuan, já que também é deputado.

Aposto que estão todos de acordo que Sulu Sou Ka Hou é o deputado da actual Assembleia Legislativa que mais se destaca do geral. Numa altura em que os mandatários nomeados pelo chefe do Executivo estavam a ser criticados pelos participantes de um fórum público, pensaram que as criticas que lhes eram dirigidas tinham partido dos “apoiantes de Sulu Sou”. Mas por que é que o deputado mais jovem se tornou o centro das atenções na Assembleia? Porque pode vir a ser o primeiro representante a ver o seu mandato suspenso, ou mesmo cancelado, pelo plenário.

No que diz respeito ao alegado envolvimento de Sulu Sou em reuniões ilegais, que terão tido lugar antes da sua candidatura a deputado, a Acusação está completamente a par da situação, mas eu também estou, já que fui mandatário da lista do “Novo Progresso de Macau” , que concorreu às eleições para a Assembleia Legislativa. As outras listas que difamaram o “Novo Progresso de Macau” durante o período eleitoral, também estão certamente bem informadas. De facto, os membros da lista do “Novo Progresso de Macau” analisaram os possíveis impactos que as acções desenvolvidas pelas forças policiais no âmbito do caso da “Doação de 100 milhões de yuans feita pela Fundação de Macau à Universidade de Jinan, em Guangzhou”, teriam, a curto prazo, no processo de Sulu Sou. Os membros da associação fizeram uma análise detalhada e uma avaliação dos riscos deste caso, e foram de opinião que as acções de Sulu Sou são absolutamente sustentáveis em termos legais.

A acusação é uma coisa e o julgamento é outra. Esta polémica não teve um efeito significativo nas eleições. Mas o que interessava era utilizar as acções de Sulu Sou como trunfo para atacar a oposição durante o processo eleitoral. No entanto, nessa altura, não existiram críticas directas aos seus comportamentos, apenas alguns rumores caluniosos e sem fundamento. E porque é que este assunto não foi trazido à baila de forma frontal? Será que não lhe deram importância? Os opositores de Sulu Sou não mencionaram este tema intencionalmente, porque, se o tivessem feito teriam também de falar do caso da doação da Fundação de Macau à Universidade de Jinan, no qual Sulu Sou monitorizou as acções do Governo da RAEM, e isso apenas abonaria a favor do jovem deputado. Por isso, os opositores na sua “esperteza”, evitaram o assunto.

Quando a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa reconheceu que Sulu Sou tinha sido eleito e submeteu este reconhecimento à aprovação do Tribunal, a equipa do “Novo Progresso de Macau” não ousou ter um segundo de descanso. Por agora, as audições e o julgamento de Sulu Sou são meros procedimentos rotineiros. A existir problemas, talvez passem antes do mais pela razoabilidade, ou falta dela, da acusação feita pela polícia. Depois disso, compete à Assembleia Legislativa decidir a forma como vai resolver a situação deste jovem deputado que desempenha o seu dever no hemiciclo sob o lema “Reformar a Assembleia Legislativa rumo ao Desenvolvimento Sustentável”.

Já que se costuma dizer que a ausência de notícias é bom sinal, eu reformulo e passo a dizer, a ausência de opiniões é bom sinal. O parecer da Comissão de Regimento de Mandatos sobre Sulu Sou não é de todo tendencioso, o que quer dizer que os membros da Comissão foram incapazes de encontrar razões válidas para apoiar o termo do seu mandato. Se um deputado poder ser suspenso ou expulso sem provas substanciais, estar-se-á a ir contra a vontade dos eleitores e a prejudicar a própria Assembleia Legislativa.

Recentemente, alguns jovens de Hong Kong saíram da prisão sob fiança após apresentação de recurso. Todos eles agradeceram a Rimsky Yuen, “Secretário da Justiça,” por ter permitido que os apoiantes da desobediência civil aprendessem uma lição valiosa e por ter ajudado a população a tomar consciência do valor do “estado de direito” em Hong Kong.

Se o mesmo se passar em Macau, pergunto-me se os interessados irão “agradecer a Wong Sio Chak, o Secretário para a Segurança”.

 

1 Dez 2017

A emergência da China (II)

“New China’s was not a capitalist economy on the basis of private ownership, as in European and American countries, nor was it a socialist economy on the basis of public ownership, as in the Soviet Union and Eastern Bloc countries. It was something altogether novel: a new-democratic economy, with both a capitalist sector and a socialist element. The regime of the new democracy was a system of democratic centralism designed by the National People’s Congress. It was totally different from the parliamentary system of the former democracy, and belonged to the classification of the representatives’ conference of the socialist Soviet Union. However, it was also completely different from the Soviet system, because it eradicated class, while the Chinese system was based on an alliance of all revolutionary classes.”
“Characteristics of the Common Programme Draft by the Chinese People’s Political Consultative Conference, September 22, 1949” – Zhou Enlai

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, apesar do seu motivado discurso em Bandung, e das suas negociações com Kissinger, não era visto pelo Ocidente como um diplomata. A sua visita a África, em 1963, deixou-o muito desiludido quando os africanos rejeitaram o seu pensamento sobre a revolução, pois era o última ideia que os recém independentes países africanos procuravam. Tais países desejavam estabilidade. A China talvez tenha cometido erros com a África, assim como esta cometeu muitos erros consigo mesma, dado que o continente ficou dividido em cinquenta e cinco países e com duas mil subdivisões históricas, culturais e linguísticas. A China aprendeu como ser um estado o mais rápido possível, especialmente com os poderes coloniais que foram enfraquecidos pela II Guerra Mundial e que começaram a sair com mais avareza sem preparar as estruturas governativas e a administração pública dos estados que rapidamente se tornaram independentes.

A Nigéria teve a sua sangrenta guerra civil no final da década de 1960. O Congo desmoronou-se desde o início da década de 1960. Nos países onde as potências coloniais se recusaram a sair, e ressalve-se a situação de Portugal que se recusou a descolonizar Angola, guerras sangrentas de libertação entraram em erupção, traduzidos em conflitos originados por movimentos competitivos de libertação. A China, em Angola, apoiou o movimento errado, ou seja, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) no poder desde a independência, em 1975, foi apoiado pelos soviéticos e cubanos.

A China apoiou no Zimbábue a luta armada de Robert Mugabe contra o governo da minoria branca conservadora que, em 1965, declarou unilateralmente a independência como Rodésia, e liderado por Ian Smith. Robert Mugabe tornou-se primeiro-ministro, em 1980, ao ganhar as primeiras eleições democráticas. Em Abril desse ano, é declarada a independência, passando o país ter o nome que actualmente ostenta, e a partir de 1982 Mugabe começa a liderar o país como ditador, até 21 de novembro de 2017, quando renuncia a favor de Emmerson Mnangagwa que tomou posse como presidente, a 24 de Novembro de 2017. O apoio da China a Robert Mugabe significou não só amizade duradoura, como o Zimbábue sempre manteve com a China desde a independência em 1980, um rápido e ardiloso trabalho diplomático para reparar as relações com os países que não tiveram a ajuda chinesa, como foi o caso de Angola.

Ainda que a China tenha começado a fornecer assistência ao desenvolvimento de África pouco depois de Bandung, é facto que iniciou uma nova fase dessa ajuda de forma mais aguerrida, muito ligada a futuras parcerias comerciais e exploração de recursos, após a era da libertação da maioria negra na década de 1990, quando a África do Sul finalmente alcançou o domínio da maioria negra sob a liderança de Nelson Mandela (prémio Nobel da Paz de 1993) e líder do Congresso Nacional Africano (CNA na sigla inglesa), fundado em 1940. Nelson Mandela foi presidente do país de 1994 a 1999.

As parcerias comerciais e a exploração de recursos começaram em boa verdade, dez anos após a enunciação formal de Deng Xiaoping sobre as “quatro modernizações”, em 1978, de forma a que sua máquina industrial funcionasse e pudesse fabricar mercadorias para o comércio, que exigiam recursos minerais e petrolíferos em grande escala e que a África poderia fornecer. A remoção das tensões políticas com os Estados Unidos, juntamente com a plenitude de todas as liberdades diplomáticas, foram igualmente importantes para o sentido chinês de globalização que, desde esse período, começou a alarmar o mundo ocidental, e com o assento no Conselho de Segurança da ONU, percebeu o seu significado, o que aplacou todos os seus presentimentos sobre ser o “império do meio”, apesar do longo período de marginalização.

Apesar da caducidade da “Teoria dos Três Mundos”, a aspiração a um papel de liderança nunca desapareceu completamente da China, que entendeu que devia ser realizado pela diplomacia económica e não pela diplomacia política. Mesmo assim, a enunciação da teoria, conjuntamente com o reconhecimento diplomático da China pelos Estados Unidos, que conduziram a ter o referido assento no Conselho de Segurança da ONU, e ao sucesso das “Quatro Modernizações”, estabeleceu uma era de prosperidade e uma forma peculiar de globalização chinesa, pois o seu poder começou a estender-se a todos os cantos do planeta.

O papel da África foi crucial, embora seja de enfatizar que o alarme ocidental sobre a compra chinesa de tanta influência económica no continente nasce de análises muito fracas. Em primeiro lugar, a influência foi literalmente adquirida. A China não forçou a colonização da África, como a Europa o tinha feito. A China não apoiou o racismo por causa da expropriação mineral, como os Estados Unidos o fizeram e acima de tudo, a África não é um continente negro tolo e inocente que não podia fazer escolhas por si e em seu benefício.

A China sempre teve que negociar as portas de entrada para a África e apareceu com um novo modelo económico, que poderia ser chamado de “modelo de Xangai”, em oposição a um “modelo de Washington” baseado nos imperativos políticos e na condicionalidade económica do Ocidente. O “modelo de Xangai”, era a condição leve, com um generoso carregamento de liquidez, projectos de desenvolvimento e fundos, que precederam a exploração de recursos minerais e petrolíferos. Se os africanos muitas vezes conduziram negócios difíceis, apesar dos medos ocidentais de inocência e da ingenuidade africana, os chineses geralmente, configuravam a África de forma condescendente e superior, e que foi especialmente real para as empresas privadas chinesas que poderiam ser terrivelmente ingénuas e racistas nas suas ideias acerca da forma de operar em um contexto africano.

A difícil gestão chinesa das minas da Zâmbia, por exemplo, levou a muitas mortes de trabalhadores locais sem condições adequadas de saúde e segurança, no quase inexistente sistema nacional de saúde do país.  Tal situação alargou-se a um sistema de valores que sustentava o modelo oficial chinês. A experiência e os ganhos de trabalhar na África ajudaram os chineses nos seus planos para o futuro. A África trouxe um novo amanhecer para a China. O Ocidente sempre desfilou, ao lado da sua generosidade, às vezes como condição para receber benefícios, valores de democracia, pluralidade e transparência. A generosidade chinesa foi retratada como suborno e sem valor.

O que provavelmente está no trabalho realizado é a ética confucionista de “guanxi”, que descreve a dinâmica básica de redes de contactos e influências pessoais, e que constitui um conceito central da sociedade chinesa. No entanto, é uma reciprocidade em uma cadeia de hierarquias verticais. Enquanto os valores ocidentais na sua forma mais pura são horizontais, como em uma democracia, os valores confucionistas não o são. O respeito e a obediência fluem, desde a pessoa ao imperador.  Todavia, a provisão e cuidados devem fluir para baixo, caso contrário, o imperador perderia o mandato do Céu. Além disso, a personagem superior não deve apenas causar um fluxo de valor, deve fazê-lo primeiro e, se o destinatário abaixo for particularmente fraco (ou subdesenvolvido), o fluxo para baixo deve ser generoso, o que revela a visão chinesa do destinatário africano, que é (talvez inconscientemente) de uma entidade mais fraca e comprovadamente menos desenvolvido.

O provimento chinês de acordos com adoçantes abundantes, pode ser visto como parte da responsabilidade chinesa em um arranjo hierárquico, mesmo quando toda a retórica é sobre parcerias iguais.  Tal, como na “Teoria dos Três Mundos”, o ethos subjacente era uma liderança chinesa e, implicitamente, de superioridade. Tal senso de liderança era, em um sentido mais verdadeiro, uma expressão do realismo chinês como uma abordagem das relações internacionais. A China considerou que era impotente e foi um grande choque psicológico, após milénios de poderio. Actualmente considera-se livre para voltar a ser novamente uma super potência, mas por causa da era de humilhação, teve um genuíno e confucionista senso de solidariedade com os outros que emergiam da mesma condição. Era um idealismo empático com realismo, o mesmo sentimento de afastamento cultural que levou a China a um perigoso estádio um século antes.

É de considerar que desta vez, com grande parte dos recursos do mundo em seu poder, está certa de que ganhará em parte a batalha da globalização. O caso chinês sugere que a apreciação cultural se torna importante para a compreensão da política externa, de forma que o “stress” da escola inglesa sobre a história e o “stress” da escola de Copenhaga sobre as formações discursivas, devemos acrescentar o “stress” nas formações culturais. No que concerne à China, o “stress” seria confucionista,  mas também no sentido preconizado pela escola inglesa, totalmente histórico, dada a memória íntima e a recordação do século de humilhação pelos poderes imperiais. O comportamento dos Estados Unidos após a II Guerra Mundial em relação à China não teria sido mais que um eco contínuo dessa situação.

O avanço nas relações com os Estados Unidos, ocasionado em grande parte pelos esforços de Kissinger e Zhou, foi intuitivo e, na medida em que um actor intuitivo pode ser racional, lideraram sem a panóplia de ambos os lados do aparelho de formulação governamental de política externa, com toda a sua organização burocrática, e sem as respostas de repertório. Simplesmente não havia um repertório nesta situação. Há um outro exemplo em África, no qual o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, entrou em negociações com Frederik Klerk (presidente da África do Sul de 1989-1994 e vice-presidente de 1994 a 1996, sendo no último período presidente, Nelson Mandela) acerca do racismo sul-africano em 1989, sem qualquer preparação racional, resumos de políticas ou biográficos.

O presidente Kaunda, desconsiderou o seu Ministério dos Negócios Estrangeiros e o seu pessoal da Casa do Civil, entendendo que era uma racionalidade formada inteiramente pela intuição e fé na força moral da igualdade e no desejo pela paz. A China, no caso da África, estabeleceu um longo namoro, e está a receber o retorno à medida que os acordos de longo prazo de exploração de recursos naturais se concretizam. O sentimento nasceu de uma empatia chinesa pela humilhação de África nas mãos dos poderes coloniais e Zhou Enlai, em 1956, criou como marco da política chinesa, o princípio da não-intervenção nos assuntos internos dos outros países.

Esta foi simultaneamente uma observação do princípio fundamental do vestfalianismo, e também um compromisso com a África, de que a China não seria como as grandes potências que foram ao continente nos séculos XVIII e XIX.  A reforma da Organização da Unidade Africana (OUA), em 2000, viu a adopção do princípio da não-indiferença. É um princípio que tem sido irregular e selectivo, talvez simplesmente convenientemente observado, diante da turbulência e das matanças que continuam em certas partes da África até ao presente.

Os chineses, associados com uma posição do século XX, nada têm a dizer à formal posição africana do século XXI. Talvez, e uma vez mais, olhando para trás se poderia negar à China a possibilidade de olhar o futuro que lhe pertence. Todavia, deve haver a consideração sobre a formulação da política externa chinesa que está a ser sujeita ao impulso e à tracção, nos termos que Graham Tillett Allison, Jr. descreve no seu livro “Reaking Foreign Policy: The Organizational Connection”, de diferentes organizações na ordem ideológica, económica e política chinesa, em que todos procuram adquirir posições em matéria de relações externas. Existem as estruturas organizadas do governo, como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Gabinete do Primeiro-ministro do Conselho do Estado. Podemos dizer que as estruturas de pesquisa, particularmente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, têm sido até agora menos fortes, pois há os órgãos de política externa do Exército de Libertação do Povo Chinês, e acima os comités de política externa do Partido Comunista Chinês.

As instituições financeiras chinesas, cada vez mais, têm uma grande palavra a dizer em toda a conjuntura. Todavia, os órgãos do partido são os mais importantes em matéria de tomada de decisões e ninguém sabe como funcionam. Na ausência de uma figura como Zhou Enlai, que foi correctamente e propositadamente impenetrável, pela sua sobrevivência política, poucos líderes existem com carácter ou personalidade, que se possa dizer terem carregado um poderoso ethos pessoal para o domínio global, como foram os casos de Zhou Enlai e Kissinger.

1 Dez 2017

Cannabis Sodomis

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]i ontem num desses sítios nas redes sociais de notícias “a la minuta” que o Canadá se prepara para legalizar o uso da “cannabis” (vulgo “erva”) para fins recreativos. O gémeo bonzinho dos Estados Unidos da América já tinha passado uma lei que permitia o uso da “cannabis” para fins medicinais e terapêuticos, mas agora prepara-se para dar um passo que, do ponto de vista neutral, se pode considerar “progressista”. E digo neutral porque já abordei aqui este assunto, e dependendo das opiniões mais ou menos conservadoras, podia-se tornar numa discussão interminável.

Contudo, na secção de comentários desta notícia exercia-se o contraditório a todo o vapor e, entre os argumentos de “progressistas” e “conservadores”, não pude deixar de reparar na entrada de um cavalheiro, onde se lia: “quem não consome droga e leva no traseiro é do tempo das cavernas… vocês é que são os evoluídos” (não era “traseiro” que estava lá escrito, mas entendem a ideia). Desde quando é que dar na passa se tornou sinónimo de homossexualidade? Será que o autor deste fabuloso raciocínio mete-se nos copos e dá porrada na mulher, como um tipo “às direitas”? Desconheço se o faz, mas por esta ordem de ideias, suponho que sim. Vem com o “pacote” completo.

É um facto que hoje em dia as redes sociais estão ao alcance de qualquer um, incluindo – e sem querer estar aqui a estratificar ninguém – pessoas que nunca pegaram num livro em toda a sua vida, ou que concluíram o ensino básico há mais de 30 anos, e nunca tiveram muitas oportunidade de se expressar pela escrita. Daí as centenas de usuários que escrevem “passas-te na prova?”, “hades ver”, ou “muinto jiro”, ou ainda os que debitam aquilo que antes só ouvíamos de alguns motoristas de táxi, daqueles que gostam de paleio. Não é grave, nem sequer justifica o chorrilho de inanidades que se lêem um pouco pela rede. Para mim isto faz parte de um problema muito maior, a que eu chamo “politização das coisas” ou “politização de tudo”.

Explicando isto resumidamente, existem comportamentos considerados “liberais”, ou ainda “de esquerda”, que são rejeitados por quem acha que talvez o mundo se torne muito melhor se ficar parado ou até se voltar um bocadinho para trás. Assim suponho que coisas como a dialéctica cannabis/sodomia, apresentada ali em cima, se incluam no mesmo grupos de outras como o aborto, a eutanásia, a ideologia de género, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aquecimento global, a imigração, o acolhimento de refugiados ou o orgulho negro. A bipolaridade que existe nesta “politização de tudo” faz com que a alternativa a isto esteja pejada de conceitos abstractos, como o patriotismo, a etnia, a cultura (?), mas acima de tudo uma forte rejeição de todos os outros mencionados anteriormente. Montado o circo e com os gladiadores de um e outro e lado, muito se vai agredindo verbalmente, esta gente. Estes compatriotas, vá lá.

Mas as redes sociais são o que são – e ainda bem. Felizmente existe uma maioria silenciosa que pensa pela própria cabeça, vota mais e barafusta menos e, no máximo, vamos apanhando uns ataques de azia, provocados por quem acha no direito de afirmar que quem gosta de fumar “cannabis” é necessariamente um sodomita passivo. Tempos difíceis estes pelos que estamos a passar agora, com tanto conflito, tanta injustiça, tanta incerteza quanto ao futuro, enfim, o mesmo caminho de sempre que a humanidade vem a tomar, a caminho do inevitável abismo.

A solução não é simples e por cada buraco que se tapa abrem-se outros dois, mas existem sempre paliativos que nos ajudam a suportar melhor o tempo que nos resta neste mundo. É tudo uma questão de como encarar este fatalismo; ou aceitar a mudança, e que atrás de tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir, ou estrebuchar, agarrado ao que já passou, e a ficar cada vez mais velho. De idade, e de espírito, também.

 

30 Nov 2017