Da Política “Going Out” à Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” (OBOR ou BRI) pode em certa medida ser encarada como a evolução natural da política “Going Out” promovida por Jiang Zemin em 1999, política essa centrada na internacionalização da economia chinesa, traduzida pela transição da República Popular da China (RPC) de país receptor para país promotor de investimento directo estrangeiro (IDE).

A estratégia foi progressivamente consolidada em 2001 com a admissão da China na Organização Mundial do Comércio e o anúncio, em 2004, pela Comissão Nacional para Reformas e Desenvolvimento da RPC (NDRC) e pelo China Eximbank de medidas de apoio ao investimento em 4 sectores específicos:  (i) recursos naturais e bens primários relativamente aos quais a China é deficitária; (ii) investimento em sectores exportadores ou que envolvam novas tecnologias e equipamentos; (iii) colaborações com entidades estrangeiras em projectos de investigação e desenvolvimento (I&D) e novas tecnologias, gestão e formação de quadros; (iv) fusões e aquisições com vista ao aumento progressivo da competitividade internacional de firmas nacionais e à expansão dos mercados de produção e vendas.

O plano conjuga, portanto, a transformação progressiva do tecido económico e industrial Chinês para sectores de valor acrescentado com a internacionalização de empresas e sectores cujo mercado interno caminha para a saturação. Com efeito, a China apresenta actualmente excesso de capacidade em sectores críticos, como a construção e indústrias associadas, bem como no sector energético. Como tal, a sustentabilidade dessas empresas exige uma política expansionista em busca de mercados em território estrangeiro. Os dois sectores acima referidos são porventura os que têm maior visibilidade. A produção de energia a carvão constitui um exemplo de conjugação de várias políticas: Pequim, a partir de 2014, reintroduziu taxas sobre a importação de diversas qualidades de carvão e proibiu a compra de carvão de baixa qualidade. Medidas estas que surgem na sequência da implementação de políticas de combate à poluição, bem como de protecção dos produtores chineses. Por outro lado, e já antes do anúncio da iniciativa BRI, têm-se multiplicado a construção de centrais térmicas a carvão por empresas chinesas no estrangeiro.

No que respeita ao IDE, foi feita uma descrição, num artigo anterior, do crescente investimento chinês em África, num padrão onde se constata a progressiva transferência de indústria transformadora para regiões com menores custos laborais, funcionando em simultâneo como uma forma de criação de emprego e de desenvolvimento económico e social. Padrão similar observa-se nos países do Sul da Ásia.

Mas o cenário muda radicalmente quando olhamos para o continente europeu. A Europa é a principal destinatária do IDE chinês (29 por cento do total), estando a aposta centrada nos sectores de energia, finança, tecnologia e infraestruturas. O sector imobiliário perdeu importância nos últimos anos em virtude de um maior controlo administrativo chinês sobre certos tipos de transacções, como forma de travar a fuga de capital. No entanto, o incentivo à diversificação para firmas chinesas é inegável. As restrições sobre o investimento em imobiliário, de resto, resultaram num redireccionamento do investimento chinês para outros sectores, também em face da desaceleração do mercado doméstico.

Conhecemos bem os exemplos portugueses, como o investimento da China Three Gorges na EDP e a aquisição pela Fosun da Caixa Seguros. Todavia, Portugal, com um total de investimentos entre 2000 e 2017 de 6 mil milhões de euros, é o sétimo destinatário europeu do IDE chinês. O pódio pertence ao Reino Unido (42 mil milhões de euros), Alemanha (20.6 mil milhões de euros) e Itália (13.7 mil milhões de euros). Exemplos recentes de investimentos são a aquisição pela Midea da empresa alemã de robótica KUKA e a compra por um consórcio chinês de 49 por cento da operadora de centro de dados do Reino Unido Global Switch.

A aposta chinesa em sectores de valor acrescentado poderá ser associada ao plano “Made in China 2025”, um masterplan anunciado em 2015 e que tem em vista a transformação da China nas próximas décadas numa superpotência industrial com base em tecnologias inovadoras. Contudo, esta aposta era já visível a partir de 2004. Os números assim o demonstram: investimento chinês no estrangeiro disparou a partir sensivelmente de 2005, tendo o IDE na década seguinte tido uma média anual de crescimento de 30 por cento. O investimento chinês em Investigação & Desenvolvimento aumentou exponencialmente a partir da mesma data, correspondendo actualmente a 20 por cento do investimento mundial nesta área. Circunstâncias mais recentes (desaceleração económica; desenvolvimento económico e social; saturação de certos sectores) poderão ter ditado uma aceleração mais acentuada. Mas é nítido que esta aposta estava já na mente dos governantes chineses.

Constata-se agora um crescente nervosismo na classe política europeia com as aquisições chinesas em sectores chave da sua economia, argumentando falta de reciprocidade na medida em que muitos investimentos são em sectores nos quais as empresas estrangeiras continuam a encontrar barreiras no acesso ao mercado chinês. Acresce que problemas políticos no seio da União Europeia, como os diferendos com os países do leste, são encarados como sendo agravados por acções como a iniciativa “16+1” entre a China e países da Europa Central de Leste, iniciativa esta que tem em vista a realização de projectos no âmbito do BRI.

Que a liderança europeia esteja preocupada com o crescimento chinês e o impacto económico e político na Europa é normal. Estranha-se, no entanto, é que esta preocupação surja de forma tardia. Por outro lado, as preocupações têm mais a haver com problemas europeus do que propriamente com a China. A reciprocidade é possível através de negociações. E as deficiências institucionais europeias são um problema exclusivamente europeu.

Percebe-se que existe uma sequência lógica na evolução do investimento externo chinês, num processo contínuo de aprendizagem e delineado com rigor e pragmatismo. Perante isto, como podemos interpretar a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”? Será tentador encará-la de forma cínica como nada mais do que um processo de etiquetagem e exercício de retórica sobre um projecto já em marcha, mas essa interpretação não corresponderia à verdade. Este tópico, porém, merece um artigo em separado.

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