Sérgio de Almeida Correia Manchete VozesIncompreensões [dropcap style≠‘circle’]1.[/dropcap] No exacto momento que o Secretário para a Segurança do Governo da RAEM se afadiga a justificar a necessidade de regulamentação complementar do artigo 23.º da Lei Básica, referindo a necessidade da criação de uma entidade autónoma com vista à aplicação da lei relativa à segurança do Estado, o Governo da Província de Hainão anuncia o levantamento de restrições à entrada de estrangeiros a partir de 1 de Maio, permitindo que os nacionais de 59 países passem a entrar na ilha sem necessidade de visto, deixando igualmente de ser necessário que o façam obrigatoriamente integrados em grupos. Quererá isto dizer que os dirigentes do Partido Comunista Chinês, em Hainão, estão menos preocupados com a segurança interna do país do que em Macau? Os de Hainão não têm “responsabilidades nos esforços de defesa da segurança nacional”? Ou os governantes de Macau ao quererem reforçar os mecanismos de segurança são mais patriotas do que os de Hainão? O Chefe do Executivo esteve há dias na Assembleia Legislativa a ler as respostas às perguntas que conhecia de antemão, num exercício que deve ter tanto de doloroso para ele como para quem faz as perguntas e depois tem de ficar à espera que as respostas sejam lidas. Das perguntas colocadas houve uma que fugiu ao pacote e dizia respeito ao reconhecimento das cartas de condução do interior da China em Macau. A resposta foi ambígua, meteu tropeção, e a associação cívica do deputado Sulu Sou já veio pedir uma consulta pública sobre o assunto. Por mim, dispenso a consulta. Entra pelos olhos de quem conduz na RAEM, de acordo com o Código da Estrada, como se conduz mal. Dos polícias que mudam de direcção sem usar o pisca-pisca, dos que conduzem pelo lado mais à direita da via em vez de se encostarem à esquerda, sem esquecer os motoristas de táxi e de carrinhas de empresas ligadas aos promotores de jogo, que fazem inversão de marcha em qualquer lado, mudam de direcção como quem boceja, param onde lhes dá jeito – esquinas, passadeiras, linhas amarelas –, e não avisam antes quem segue atrás, sem esquecer os condutores dos autocarros e pesados, profissionais e amadores, e que são peritos em provocar acidentes, não abrandar nos cruzamentos e rotundas, circulando invariavelmente pela via central nos arruamentos do Cotai e não encostando os veículos à berma e nas reentrâncias dos passeios existentes para o efeito quando necessitam de tomar e largar passageiros, podemos ter a certeza de que vai fazer pouca diferença ter mais uns milhares a conduzir em Macau sem saberem fazê-lo. O caos está aí para quem queira vê-lo. A minha dúvida é apenas a de se esclarecer se estará em causa aperfeiçoá-lo. Todos queremos ver a RAEM com mais razões para entrar no Guiness Book of Records. Por falar em caos. O Chefe do Executivo esclareceu-me, via TDM Rádio, que a nova ponte HK/Zhuhai/Macau vai trazer mais turistas. Não sei onde a senhora Directora dos Serviços de Turismo irá enfiá-los, nem quantos serão. De qualquer modo, como para minha casa não irão, e o esclarecimento ficou incompleto, gostaria de saber se foi feito algum “estudo científico”– não é só o socialismo que é científico – que nos elucide sobre se há uma previsão de quanto mais “turistas” serão recebidos por cima destes que já cá temos sentados e de cócoras nos corredores do Venetian, com as malas e os sacos ao lado, à espera das mulheres que se empurram nas perfumarias? Se as casas dos membros do Governo de Macau estivessem inscritas no AirBnb a RAEM sempre ganharia alguma coisa. Como não estão, e se não for perguntar demais, gostaria também de saber se os quartos e jardins do palacete de Santa Sancha poderão ser graciosamente disponibilizados pelo Senhor Chefe do Executivo para permitir que pelos menos uma pequena parte desses turistas aí possa pernoitar ou acampar (o campismo selvagem ainda não é permitido em Coloane, mas tenhamos esperança)? Em 27/10/2015, a edição do Macau Daily Times referia que a qualidade do ar em Macau habitualmente ficava aquém dos objectivos definidos pelo Governo da RAEM. Em 18/04/2017 a TDM informava que a qualidade do ar piorara em 2016, tendo havido “menos 25 dias de ar “bom” na Rua do Campo, uma das avenidas mais poluídas da cidade, e mais dias (19) de ar “insalubre” na zona norte“. Esta semana ficámos também a saber que a situação voltou a agravar-se e em que as coisas em 2017 pioraram face a 2016: “estações de monitorização de Macau registaram, ao longo do ano passado, aumentos do número de dias com qualidade do ar considerada “insalubre”, face a 2016. A Taipa foi a mais atingida: registando 28 dias “insalubres”, a somar a um “muito insalubre”, ocorrido no mês de Setembro, revelam dados divulgados ontem pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC)“(fonte: HojeMacau, Diana do Mar, 19/04/2018). Se não for demasiado incómodo, haverá alguma alma caridosa que me possa explicar sobre o que se fez para atalhar a esta situação nos últimos 3 anos? Por fim, para não cansar os leitores, mais duas incompreensões: a) A primeira é atinente Terminal Marítimo da Taipa. Gostaria de perceber (i) por que motivo uma série de lugares, por sinal os mais convenientes no acesso ao terminal, passaram a estar vedados ao público, embora estejam às moscas e reservados para entidades que, daquilo que percebi, nem sequer pagam estacionamento?; (ii) há alguma razão para as máquinas de pagamento automático dos bilhetes estarem em regra indisponíveis; (iii) por que razão há falta de lâmpadas nas escadas de acesso; e (iv) por que continua a haver longas filas nos táxis?; b) A segunda é também respeitante aos táxis, mas desta vez no Aeroporto Internacional. No dia 8 de Abril pp., entre as 19h e as 20h, quando regressei à RAEM, havia umas 40 pessoas na fila dos táxis. Esta situação é compatível com o estatuto de cidade internacional e de turismo que o Governo da RAEM publicita?
Tiago Bonucci Pereira VozesInvestimento Chinês em África [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]este texto traça-se um panorama geral das relações comerciais entre a China e África, bem como da natureza dos investimentos chineses. O assunto é complexo, mas pretende-se aqui identificar as principais variáveis, aspectos problemáticos, “mitos” propagados, bem como perspectivas futuras. As exportações chinesas para África têm se mantido relativamente estáveis nos últimos anos. No entanto, entre 2014 e 2015, as exportações de África para a China caíram 66 por cento em valor, fundamentalmente devido à queda do preço do petróleo, a principal importação chinesa. Recursos naturais constituem o grande bolo das importações chinesas, pelo que as flutuações do mercado encontram correspondência imediata nos valores de exportação para a China que, de 2014 para 2015, regrediram para valores de 2007, tendo-se mantido estáveis de 2015 para 2016. Em termos de investimento directo estrangeiro (IDE), entre 2003 e 2016 regista-se um aumento contínuo de fluxo agregado de IDE da China em África, de 500 milhões de dólares americanos (USD) em 2003, para 39.9 mil milhões de USD em 2016. Neste capítulo, embora os Estados Unidos da América (EUA) continue a liderar as estatísticas, os anteriores valores representam, em termos relativos, respectivamente 2 por cento e 70 por cento do stock de IDE dos EUA em África, o que reflecte também a estagnação de investimento americano no continente no período pós crise económico-financeira do final da década passada. A queda de valor de bens primários nos últimos anos resultou num novo padrão no direccionamento do IDE chinês em África. Países ricos em recursos naturais como Angola e a Nigéria viram acentuadas quedas no IDE chinês, enquanto que países como o Quénia, Etiópia e Tanzânia sairam beneficiados. O IDE chinês incide principalmente nos sectores mineiro, construção e indústria transformadora, sector este que ganhou proeminência nos últimos anos com a tranferência de operações de empresas chinesas para África, fruto do aumento dos custos laborais na China. No que concerne empréstimos da China a governos e empresas estatais de países africanos, é de referir que valores por vezes divulgados na imprensa são manifestamente exagerados. A publicação The Economist Corporate Network, por exemplo, reportava em 2015 que os bancos estatais chineses (China Eximbank, China Development Bank, CDB) tinham-se comprometido com financiamentos num total de cerca de 1 bilião de USD durante a década seguinte, valor exagerado em pelo menos uma ordem de grandeza. Um olhar crítico sobre reportagens como a citada permite desvendar a origem destes exageros. Para que empresas chinesas, e governos africanos, possam requisitar financiamento a bancos chineses, precisam de ter à partida um contrato assinado. Por vezes são anunciados projectos na sequência da assinatura de memorandos de entendimento, que raramente têm resultados prácticos. O padrão identificado anteriormente para o comércio e investimento directo estrangeiro é observado também na análise de financiamento chinês para África: crescimento acentuado até 2013, seguido de ligeiro decréscimo. Entre 2000 e 2015 a China providenciou um total de 95 mil milhões de USD em empréstimos e linhas de crédito para governos e empresas estatais africanas. O maior beneficiário destes empréstimos foi Angola (20 por cento), seguido da Etiópia (14 por cento) e o Quénia e o Sudão (7 por cento). Os empréstimos são dirigidos maioritáriamente (63 por cento) para os sectores de transportes (construção e manutenção de estradas; caminhos-de-ferro), energia (projectos hidroeléctricos; linhas de transmissão de energia; gasodutos; centrais eléctricas a carvão e gás) e telecomunicações. O sector mineiro absorve 10 por cento dos empréstimos, sendo que estes consistem maioritariamente (mais de 80 por cento) em linhas de crédito para a empresa estatal angolana Sonangol. Apenas um terço dos empréstimos são garantidos com bens primários, prática usual para investimentos em países considerados de alto risco, mas que possuem bens que investidores consideram que ajudam a cobrir os riscos associados a investimentos nesses países, nomeadamente o risco de incumprimento. Trata-se de resto de uma prática da qual a própria China usufruiu no início do seu processo de reforma e abertura. Estima-se que linhas de crédito (garantidas com petróleo) providenciadas pelo China Eximbank ao governo angolano tenham financiado a construção de 127 obras públicas. É esta, portanto, a principal razão para a utilização deste modelo de financiamento, e não tanto a tentativa de garantir acesso a recursos naturais. O exemplo de Angola é ilustrativo: a China importa cerca de metade do petróleo produzido por Angola, mas companhias petrolíferas chinesas apenas possuem cerca de 10 por cento da produção de petróleo angolano, mercado que é dominado por empresas ocidentais como a ExxonMobil e a Total. Os termos contratuais associados aos empréstimos dos bancos estatais chineses impõem sempre a preferência pela utilização de bens e serviços da China. A controvérsia associada a esta relação entre financiamento chinês e fornecedores chineses tem origem sobretudo na ideia errada que financiamento chinês em países em vias de desenvolvimento corresponde a ajuda ao desenvolvimento, quando a função de todos os bancos exportação-importação, como o China Eximbank ou o US Eximbank, é precisamente o de providenciar acesso ao crédito para compradores de bens do país. Ou seja, muito do que é dito sobre a abordagem chinesa em matéria de investimentos em África não corresponde à verdade. A abordagem é fundada em princípios comerciais, e busca a expansão comercial chinesa, estando integrada no Going Out Policy. Recursos naturais constituem um aspecto fundamental nesta relação entre a China e África (tal como na relação entre África e os EUA e a União Europeia), constituindo a larga maioria das importações chinesas. Todavia, é importante lembrar que a própria China foi até 1993 um exportador líquido de petróleo, e que na fase inicial do seu processo de reforma celebrou vários acordos de compensação comercial em termos semelhantes aos que propõe a países africanos. A volatilidade do mercado de bens primários pôs a nu fragilidades associadas à dependência excessiva de alguns países em recursos naturais, incluindo dificuldades ao nível de pagamento de dívidas. A situação actual deve, portanto, funcionar como um incentivo para diversificar a economia e promover a boa governança (países como o Quénia e a Etiópia têm feito progressos significativos neste capítulo). No fim de contas, é a melhor forma de conquistar a confiança de investidores. A China é, hoje em dia, um player incontornável em África. Mas existem aqui também desafios importantes para o lado chinês. Como referia em 2007 o antigo Presidente Moçambicano Joaquim Chissano numa conferência em Oxford dedicada ao tema de perspectivas futuras para ajudas ao desenvolvimento “devemos procurar formas de aliar ajuda à atracção de recursos para o sector privado, por forma a apoiar a emergência de uma classe empresarial robusta com uma participação forte nas economias nacionais”. Ajuda externa representa uma fracção minoritária do financiamento chinês, mas a lógica é aplicável ao discurso de “benefício mútuo”. O sucesso em África serviria como exemplo noutras faixas e noutras rotas.
Leocardo VozesAqui ao lado, mas tão longe [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] ssisti no serão do último Sábado na TDM ao programa “Portugueses no estrangeiro”, que desta vez foi dedicado à comunidade portuguesa residente em Hong Kong. Veio mesmo a calhar, uma vez que nesse mesmo dia eu próprio tinha voltado do território vizinho, e fiquei com curioso em saber o que pensavam os meus compatriotas ali residentes daquela cidade tão fantástica, cosmopolita e multicultural. Não posso dizer que fiquei desiludido; a palavra adequada seria “perplexo”. Aqueles portugueses em Hong Kong são muito diferentes de nós daqui, deste lado do Rio das Pérolas. Não quero generalizar, uma vez que o programa incidiu apenas sobre o dia a dia de meia dúzia de entrevistados, mas que em comum tinham todos assim uma espécie de desprendimento ao local para onde foram residir. Pode-se mesmo dizer que estão em Hong Kong, sim, mas não com os dois pés. Não ao sei ao certo quantos portugueses vivem em Hong Kong, mas os últimos dados a que tive acesso davam conta de “cerca de cinco mil” – mais do que em Macau, mas é preciso ter em conta que Hong Kong tem 7 milhões de habitantes. Estes portugueses são sobretudo pessoas que trabalham para empresas multinacionais, e foram colocados a trabalhar no sul da China, e é possível que existam outros que foram para ali à aventura, mas devem ser poucos, pois na apreciação que estes camaradas lusitanos fazem de Hong Kong, nota-se que é um lugar “longe demais” para o seu gosto. Dois deles foram bem claros nesse aspecto. Uma senhora diz que “gosta de Hong Kong”, mas “gostaria de ser colocada em Portugal, ou pelo menos na Europa, perto de Portugal”, terminando contudo por recordar “está bem em Hong Kong”. E melhor estaria, não fosse a enorme vontade que tem de desopilar dali para fora. Em relação à questão da adaptação à cidade, à cultura e tudo mais, houve um testemunho em particular que me deixou siderado. Uma senhora que trabalha para uma empresa de estampagens (coisa que segundo ela tem imensa saída, pois os jovens de Hong Kong “são muito infantis”) descreve os honconguenses de uma forma que não estando de todo errada, é certamente bastante redutora. Em termos de aparência, “preferem o branco”, e as mulheres “colocam pó branco no rosto, nas sobrancelhas, e há um cosmético que serve para prender as pestanas e fazer os olhos parecem maiores”. Quanto ao vestuário “muito diversificado”, e em Hong Kong “podem andar na rua de pijama, se quiserem, que as pessoas aqui não olham uma para as outras”. E é isto. Repito, nada do que está ali é mentira, mas já li relatórios da Pide onde detectei mais calor humano. Não se pedia que fosse demonstrado entusiasmo, ou deslumbramento (e por um lado ainda bem que assim foi), mas um pouco mais de sensibilidade, quiçá? Tentar entender melhor as pessoas e o meio que as rodeia? Digo eu, e se calhar estou completamente equivocado. Finalmente, aprendi ainda que há portugueses em Hong Kong que “recebem amigos de Macau” ao fim-de-semana, e num dos casos descritos, recebem-nos “semana sim, semana sim”. Sem dúvida, e aqui não há nada a apontar. Pudesse eu fazer o mesmo, e me desse vontade, também passava todos os fins-de-semana e feriados aqui ao lado. Em Hong Kong há aquele bichinho das grandes cidades que atrai as pessoas que, como eu, são apreciadores desse estilo de vida. Macau foi assim um bocadinho, em tempos, com as devidas distâncias, lógico. Cheguei a ficar com a sensação que podia ter continuado a ser, durante um instante, pouco depois da transferência de soberania. Entretanto fez-se uma limpeza, chegaram os casineiros do oeste, e passamos a ter uma cidade onde o entretenimento é pasteurizado, empacotado e esterilizado. Não trocaria Macau por Hong Kong para viver, nada disso, mas é bom saber que existe aqui este gigante ao lado. Para as pequenas grandes coisas.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO progresso da China [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] colossal progresso da China nas últimas décadas apanhou muitos analistas ocidentais de surpresa. Os que previam um futuro pessimista para o país acabaram por estar errados. A China é a maior economia do mundo em termos de “Paridade de Poder de Compra (PPC) ” (método para se calcular o poder de compra de dois países), com a maior classe média do mundo, reservas cambiais, classe proprietária e número de turistas que passeiam pelo exterior. A China também é o líder mundial em energia renovável em termos de investimento e produção, e do multilateralismo e globalização. A China tem a sua parcela de problemas, alguns dos quais são sérios e exigem soluções cuidadosas, mas o sucesso geral do país ao longo destes anos é incontestável. A que se deve este sucesso? Alguns estudiosos afirmam que é devido ao “Investimento Estrangeiro Directo (IDE)”. O “Relatório dos Investimentos Mundiais de 2017”, publicado pela “Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), classifica a China como sendo o segundo maior recebedor de IDE do mundo, ultrapassado apenas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. A recepção de IDE é parte da política de abertura da China ao mundo, e em 2016 foi de cento e trinta e três mil milhões de dólares, enquanto os fluxos de IDE da China para o exterior foram de cento e oitenta e três mil milhões de dólares. É de realçar que a Europa Oriental recebeu muito mais IDE em termos per capita; outros analistas afirmam que é devido a uma abundância de mão-de-obra barata, mas a Índia e a África fornecem ofertas menos dispendiosas; alguns afirmam que é devido a um estilo de governo autoritário, mas governos denominados de autoritários abundam na Ásia, na África, na América Latina e no mundo árabe sem o mesmo nível de sucesso que a China. Se essas explicações por si só se revelarem insuficientes para explicar como a China alcançou o seu êxito, deve-se procurar em outros lugares as respostas. Em essência, tem a ver com a natureza fundamental da China como Estado e o seu modelo de desenvolvimento. A China não é uma Alemanha Oriental alargada, nem é qualquer outro estado socialista comum. É um Estado civilizatório, indubitavelmente talvez o mais singular, uma vez que é o único país do mundo com uma história de Estado unificado por mais de dois mil anos. É também a única civilização do mundo a durar continuamente por mais de cinco mil anos, reunida em uma grande nação moderna. Qualquer país deste tipo é obrigado a ser exclusivo. A China é uma amálgama de quatro factores, ou seja, uma população enorme, um território super dimensionado, tradições longas e uma cultura extremamente rica. A China possui uma população maior que as populações totais da União Europeia, Estados Unidos, Rússia e Japão. O “Festival da Primavera da China” que se realiza anualmente, tem uma média de mais de três mil milhões de viagens nas vastas redes de transporte do país, o que equivale a mover as populações das Américas, Europa, Rússia, Japão e África de um lugar para outro em menos de um mês, o que serve de alguma forma para descrever a grandeza do país, bem como os desafios e oportunidades que se esperam. Os mais importantes líderes da China moldaram em grande parte o progresso do país, bem como o seu modelo único de desenvolvimento, do qual alguns remédios podem ser inspiradores. A filosofia orientadora do país é a de procurar a verdade a partir dos factos. Esse antigo conceito chinês foi revivido por Deng Xiaoping, o arquitecto do programa de reforma da China, após a revolução cultural de 1966 a 1976. Deng acreditava que os factos, emanados do Oriente ou do Ocidente, deveriam servir como critério último para estabelecer a verdade. Ao examinar os factos contemporâneos, a China concluiu que nem o modelo soviético de comunismo, nem o sistema ocidental de democracia liberal poderiam realmente habilitar um país em desenvolvimento a alcançar a modernização. A China decidiu explorar o seu caminho de desenvolvimento e, em 1978, adoptou uma abordagem pragmática de tentativa e erro para o seu programa maciço de desenvolvimento. Tal decisão constitui o fundamento filosófico do modelo da China que é o de colocar os meios de subsistência das pessoas em primeiro lugar, como conceito tradicional na governança política chinesa. Deng deu prioridade à erradicação da pobreza como principal objectivo nacional e prosseguiu uma estratégia realista. A reforma da China começou no campo, dado que a maioria dos chineses eram habitantes rurais. O sucesso dessas reformas iniciais colocou a economia chinesa em movimento e provocou uma reacção em cadeia, levando ao surgimento de milhões de pequenas e médias empresas, que imediatamente representaram mais de metade da produção industrial da China, preparando o caminho para a rápida expansão de indústrias manufactureiras e comércio exterior. A atenção da China para colocar os meios de subsistência das pessoas em primeiro lugar pode ter implicações positivas a longo prazo de forma a ampliar e melhorar os direitos económicos, sociais e culturais do povo. A natureza gradual da reforma é outro aspecto crucial do desenvolvimento do país, pois dado o seu tamanho e complexidade, Deng estabeleceu uma estratégia prudente descrita como “Atravessar o rio sentindo as pedras”, o que significa que mesmo que a China estivesse a avançar em novas direcções, precisava de permanecer com os pés assentes no chão, melhorar, sentir o caminho a seguir, mesmo no meio da incerteza e dessa forma incentivar a experiência em todas as grandes iniciativas de reforma, uma abordagem exemplificada pelas zonas económicas especiais da China, nas quais as novas ideias, como a venda de terrenos, empreendimentos conjuntos de alta tecnologia e uma economia orientada para a exportação foram testadas. Apenas quando as novas iniciativas estão provadas como aptas a funcionar, devem ser alargadas a todo o país. A China rejeitou a terapia de choque e trabalhou através das suas instituições, imperfeitas, gradualmente reformando-as para melhor servir o desenvolvimento e a modernização do país. A China tentou combinar a força da mão invisível do mercado com a mão visível da intervenção estatal para corrigir as falhas do mercado no que se tornou conhecido como a economia de mercado socialista. À medida que as forças do mercado foram libertadas pela mudança económica tremenda da China, o estado chinês garantiu a macro estabilidade política e económica, afastando o país das catástrofes financeiras em 1997 e 2008. O governo, actualmente, está a procurar uma estratégia para promover as energias renováveis e abraçar a nova revolução industrial e científica. O modelo de economia mista não é perfeito, mas desde a sua criação em 1992, a China é a única grande economia mundial que não sofreu crises financeiras ou económicas, enquanto o padrão de vida das pessoas está a aumentar de forma mais rápida que em qualquer outro lugar do mundo e a sua contribuição para o crescimento da economia mundial é maior que a dos Estados Unidos, Europa e Japão, em conjunto. O modelo não é perfeito, mas está a melhorar mais que outros modelos, quiçá inclusive que o do Ocidente. A transformação da China foi liderada por um Estado visionário e orientado para o desenvolvimento. O Estado chinês é capaz de moldar o consenso nacional sobre a necessidade de reformas e modernização e garantir a estabilidade política e macroeconómica global, bem como procurar objectivos estratégicos difíceis, como a aplicação da reforma das empresas estatais e do sector financeiro e estimular a economia contra a desaceleração global e que tem origem em uma tradição confuciana de um Estado forte e benevolente apoiado pela meritocracia a todos os níveis. É de considerar que apesar das suas fraquezas, ao longo das últimas quatro décadas, o Estado chinês presidiu ao crescimento económico mais rápido e à melhoria dos padrões de vida na história humana, e os principais inquéritos independentes, incluindo os da “Pew Research Center (PEW)”, que é uma organização não partidária que informa o público sobre as questões, atitudes e tendências que moldam o mundo, realizando pesquisas de opinião pública, demográfica, análise de conteúdo e outras no âmbito das ciências sociais orientadas a dados e que não tomam posições políticas e da “Ipsos”, que é uma organização que realiza estudos sobre pessoas, mercados, marcas e sociedade, fornecendo informações e análises que tornam o mundo complexo mais fácil e rápido para navegar e inspira os destinatários a tomar decisões mais inteligentes assim revelam. Ambas as organizações mostraram um padrão consistente no qual as autoridades chinesas tiveram um alto grau de respeito e apoio no país. A pesquisa da “Ipsos”, em 2016, mostra que 90 por cento dos chineses ficaram satisfeitos com o rumo que o país estava a levar, enquanto apenas 37 por cento dos americanos e 11 por cento dos franceses disseram o mesmo para os seus respectivos países. Segundo a pesquisa as pegadas dos turistas chineses foram encontradas em todos os cantos do mundo entre 2014 e 2016. As cidades asiáticas ainda eram os destinos mais escolhidos pelos turistas chineses (77,67 por cento), seguidos das cidades europeias (32,07 por cento) e das cidades americanas (20,29 por cento). A Coreia do Sul e o Japão eram os destinos mais populares na Ásia, seguidos por cidades no sudeste da Ásia. Na Europa, a França, Grã-Bretanha e Itália foram os mais visitados e, na América, os Estados Unidos. As cidades com voos directos foram mais visitadas pelos turistas chineses. A reputação dos voos também teve um impacto directo em excursões para esses destinos. A Ásia é a escolha preferida dos turistas chineses, mas à medida que o seu rendimento aumentava, tendiam a escolher viagens de média e longa distância, primeiro para a Europa, depois para a América, Oceânia e África. A pesquisa mostrou que, embora o número absoluto de turistas chineses para a África fosse pequeno, o crescimento era proeminente. As dez cidades que os turistas chineses escolheram para viagens de curta distância, em 2016, foram Seul, Bangkok, Tóquio, Osaka, Nagoya, Ilha de Jeju, Singapura, Incheon, Kobe e Nara e as dez cidades que os turistas chineses escolheram para viagens de longa distância foram Paris, Londres, Sydney, Los Angeles, Roma, Nova Iorque, Washington, São Francisco, Melbourne e Veneza. Descrever a política da China como falta de legitimidade ou mesmo à beira do colapso, como por vezes aparece nos meios de comunicação social, é estar fora de contacto com a realidade da China. A experiência chinesa, desde 1978, mostra que o teste final de um bom sistema é até que ponto pode garantir a boa governança julgada pelas pessoas. A dicotomia sagrada da democracia versus a autocracia é por vezes vazia no mundo complexo que vivemos, dado o grande número de democracias mal governadas em todo o mundo. A experiência da China pode, eventualmente, criar uma mudança paradigmática no discurso político internacional longe dessa dicotomia antiga para uma nova, de boa versus má governança, na qual a boa governança pode parecer um sistema político ocidental ou um não -ocidental. De igual forma, a má governança pode assumir a forma do sistema político ocidental ou não. Em resposta ao politólogo americano, Francis Fukuyama, autor do livro “The End of History e Last Man”, actualmente não se vive o fim da história, mas o fim do fim da história, não sendo apenas bom para a China, mas beneficiando o Ocidente e o mundo, dado que se pode explorar conjuntamente novas formas e melhor governança e desenvolvimento no interesse da humanidade.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA intimidade nas redes sociais [dropcap style=’circle’] J [/dropcap] á em outras alturas me debrucei acerca das novas tendências tecnológicas e dos desafios para as relações da nova era. As redes sociais vieram revolucionar a forma como socializamos e como comunicamos com os outros – com o mundo. Com os nossos amigos, com os nossos conhecidos e com os nossos desconhecidos, também. Ultimamente até responsabilizamos estas novas formas de interacção, e de quem está à frente delas, das crises mundiais. A intimidade também já não se pode definir da mesma forma, afinal o que é que é verdadeiramente íntimo? Como é que o mostramos? Ou, como é que decidimos não mostrar? Muita gente anda a pensar nestas questões porque a interacção humana tal como a conhecemos sofre contínuas transformações. No sexo e no amor vemos aparecer outras formas (inesperadas?) de manter a chama acesa da paixão – novas formas de conhecer parceiros românticos, novas formas de manter relacionamentos à distância, novas formas de nos mostrarmos (de nos escondermos?) ao criar um perfil de usuário, com certas fotos, com certas informações, com certos pontos de vista. Tanta inovação que é levada até certos limites, porque os clichés de género continuam lá, nas mesmas e antigas expectativas do aceitável e do não aceitável. Tudo depende se tiveres uma vagina ou um pénis, ou te identifiques como homem ou como mulher. Num estudo realizado por Cristina Miguel, sobre o tema de intimidade nas redes sociais, a investigadora explora os significados da intimidade relacional e sexual no Facebook, no Badoo e no Couchsurfing. Os participantes deste estudo consideraram que fotografias sexy, orientação sexual e o estado da relação amorosa eram tópicos, ditos, ‘íntimos’, e por isso a sua expressão nas redes sociais era mediada por certas expectativas – i.e. se fores mulher com fotos de biquíni, és uma atiradiça; se fores um homem de fato de banho, és… normal, não há nada de errado com isso. As fotografias sensuais são íntimas na medida em que queremos que só certas pessoas tenham acesso a elas, mas não deixam de ser uma criação: uma tentativa de ser a máscara na criação conjunta do que eu acho sexy e o que eu acho que os outros acham sexy, dentro dos limites que ditam a minha possível auto-determinação sexual. A gestão dos relacionamentos e das imagens, ou mensagens, de amor e de carinho que queremos ver publicadas também são preocupações do foro íntimo. Aliás, se calhar podemos dividir o mundo em dois grupos, os que querem mostrar bem claro que a sua intimidade está a ser bem preenchida com a intimidade do outro, e os outros que preferem manter o íntimo em privado, até certo ponto. Esta visibilidade que queremos ou não dar aos relacionamentos provavelmente vem da mesma discussão que os nossos antepassados tiveram sobre, os anéis de noivado, por exemplo. Quanto maior o diamante, maior o amor? Maior a prova de amor aos outros? As redes sociais vieram trazer outra camada de complicação nestas coisas da intimidade e da visibilidade. Quando um namoro termina, já ninguém rasga com raiva as fotografias de quem outrora fora o seu mais que tudo. Agora apagam-se os vestígios dos beijos, dos abraços e das mãos dadas nas redes sociais e desamiga-se ciberneticamente quem já foi muito próximo. A visibilidade das intimidades nas redes sociais não deixa de ser antagónica. Na minha visão simplista das coisas, os nossos diferentes ‘eus’ nascem da necessidade de nos apresentarmos em relação a certas coisas. Quando estamos numa entrevista de emprego apresentamo-nos de uma forma, quando estamos com a família apresentamo-nos de outra, quando estamos num primeiro encontro tentamos apresentarmo-nos ainda de outra forma – sempre fantásticos, poderosos e incríveis. As redes sociais só trazem mais uma oportunidade para nos recriarmos face aos outros, mas a nossa intimidade que tem tudo que ver connosco próprios (mediada por conteúdos sociais, claro), é daqueles universos que tentamos que seja o mais honesto. Vou ser pessimista e dizer que as redes sociais podem ajudar pouco à criação, manutenção e reinvenção da intimidade – aquela que eu julgo que nos leva para os prazeres do sexo e de estar com outro(s) de uma forma inteira e sensualmente honesta. A intimidade nas redes sociais, poderá ser pouco íntima?
David Chan Macau Visto de Hong KongDe olhos postos no futuro (I) [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Fundo de Segurança Social de Macau (FSS) é um dos ramos do sistema de previdência social de Macau. O FSS é um sistema que funciona a dois níveis. O primeiro nível assegura as pensões de reforma. A partir dos 65 anos o cidadão de Macau passará a receber 3.450 patacas por mês, incluindo 13º mês. Este valor funciona com o um subsídio de apoio. O Regime de Previdência Central Não Obrigatório representa o segundo nível do FSS. Este regime foi implementado dia 1 de Janeiro do corrente ano e tem por base legal o sistema 7/2017. Ao abrigo deste sistema, os residentes de Macau que: tenham atingido os 18 anos de idade; ou que tendo menos de 18 anos, já estejam inscritos no sistema de segurança social, de acordo com o Artigo 10(1)(a) da Lei No. 4/2010 Têm direito a ser titulares de uma conta individual do Regime de Previdência Central Não Obrigatório (CIRPCNO). Estas contas são compostas por três sub-contas; a subconta de gestão governamental, a subconta de contribuições e a subconta de conservação. Estas contas são usadas para gestão do Fundo de Investimento dos Residentes de Macau, no âmbito Regime de Previdência Central Não Obrigatório (RPCNO). O RPCNO tem dois planos, o plano de contribuição conjunta e o plano de contribuição individual. O plano de contribuição conjunta engloba a entidade patronal e os trabalhadores. A contribução mensal de ambas as partes é de 5 por cento cada, do salário do trabalhador. Se o salário mensal for inferior a 6.569 patacas, o trabalhador fica isento da contribuição, mas o empregador não fica. Se o salário mensal for superior a 31.200 patacas, quer o trabalhador quer o empregado terão de contribuir apenas com 5 por cento deste valor. As 31.200 patacas são um tecto que não será ultrapassado em termos de percentagem contributiva. Estas contas do Regime de Previdência Central são permutáveis. Quando um contrato de trabalho termina, o saldo contributivo é transferido para a subconta de conservação. Em circunstâncias normais, o titular da subconta de conservação só pode fazer levantamentos depois dos 65 anos. No entanto, se a pessoa se reformar aos 60, ou tiver uma necessidade urgente, pode ser autorizada a fazer alguns levantamentos. Os planos de contribuição individual, são usados para trabalhadores por conta própria. Nestes casos, a contribuição mínima é de 500 patacas mensais. Estas disposições levantam algumas questões que merecem ser discutidas. Em primeiro lugar, o fundo de Segurança Social garante uma protecção mais alargada aos residentes de Macau. Este sistema funciona a dois níveis. No primeiro nível, a entidade patronal e o trabalhador contribuem em conjunto. Cada parte contribui com 30 patacas mensais. O segundo nível é bastante semelhante ao primeiro. A diferença é que em vez de existir um valor fixo, cada parte contribui com 5 por cento do salário do trabalhador. Esta contribuição gera uma segunda fonte de rendimento que vai beneficiar os trabalhadores depois da reforma. Desta forma, a protecção à reforma aumenta. Em segundo lugar, embora os residentes de Macau possuam, actualmente, duas fontes rendimento, que asseguram as suas reformas, permanece uma questão. Será que este valor é suficiente para garantir uma reforma digna? Algumas pessoas pensarão que sim. Contudo, outras dirão que estas verbas só asseguram um “dinheirinho de bolso”. As pessoas têm planos diferentes para a altura da reforma e a protecção necessária varia de pessoa para pessoa, por isso não devemos generalizar. Não podemos adoptar um padrão único. Se tivermos mais dinheiro, estamos naturalmente mais bem precavidos para essa fase da vida. Mas como é que vamos contabilizar se a pessoa tem muito dinheiro, pouco ou o suficiente? Esta é uma pergunta sem resposta. O exemplo de Hong Kong demonstra que os 5 por cento de contribuição de patrões e empregados apenas cobre uns poucos anos do período da reforma. Este facto é determinado por uma inflação muito alta. Desta forma, é preferível a pessoa fazer o seu próprio plano de reforma. O dinheiro disponibilizado por este primeiro nível serve apenas para garantir os mínimos. Em terceiro lugar, as contribuições para as contas do Regime de Previdência Central não podem ser movimentadas. Esta é sem dúvida mais uma medida de protecção. Mas há quem ache que uma das melhores formas de garantir uma boa reforma é fazer um seguro. O seguro é propriedade do comprador. Na medida em que é propriedade do comprador, pode ser retido em casos legais, ou perdido para sempre, em caso de falência. Como as contribuições para este Fundo não podem ser confiscadas em circunstância alguma, garantem uma protecção muito maior. Estas garantias serão sem dúvida um incentivo para todos participarem no Regime de Previdência Central Não Obrigatório.
Manuel de Almeida VozesManifesto d’Educação I [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] os jovens uma palavra de confiança: “tenho em mim todos os sonhos do mundo”, o pensar de Fernando Pessoa. Sejam inconformistas, iconoclastas, perfeccionistas, cosmopolitas, exigentes, esclarecidos e mostrem, sobretudo, uma grande inquietação intelectual, sem abolir valores. Criam-se chefias mas não há liderança, nem sequer enterrem vivos os princípios. Cultivem a inteligência não deixem morrer nem a utopia nem a revolta,democrática, evidentemente. É preciso lembrar que o sucesso precisa de trabalho, tempo e talento. Em pleno século XXI se queremos «Crescer», temos forçosamente de exigir “mais educação, melhor educação e maior equidade social”. Criar uma Escola diferente, como instituição, fazer a sua reconfiguração. Com projectos pedagógicos inovadores, que aqui se possam desenvolver, com audácia criativa, sem esquecer o modelo de organização e gestão, a competência dos professores (além da mera reprodução de conhecimentos) e o nível de exigência, com empenho, dedicação e disciplina. Até porque o fosso em relação a «outros» modelos de ensino é enorme. Estimular a curiosidade científica, os gostos e hábitos de leitura e as capacidades artísticas. Uma Escola que leve os jovens a assumir novos gostos, atracções ou tendências, para fomentar e valorizar «novos» hábitos de trabalho. Escola não só como local de instrução (pais ausentes), mas como território crucial para a socialização e educação (de forma a elevar o bem-estar). Escola organizada numa perspectiva de abertura à sociedade e à aprendizagem ao longo da vida. Deveríamos tentar construir uma Escola assente na “progressão individual e na transformação colectiva” e não um “disfarce humanista”. Já que temos o dever de lutar pela sobrevivência das futuras gerações. Ou aos nossos jovens não se poderá dar já o poder de sonhar? Pensar? Reflectir? Estamos a assistir a um suicídio geracional e, ninguém intelectualmente honesto pode fingir que o problema não existe e que caminhamos para um desastre de consequências graves. É urgente criar uma “Escola que volte a ser exigente, não sendo nem discriminadora nem uma fábrica de igualitarismo”, só assim se poderá manter a “frescura criadora da criança no estudo” – para citar Calvet de Magalhães (1913 – 1974). Os grandes processos de escolarização aconteceram já em muitos países na primeira metade do século XX, ou mesmo no séc. XIX – como o caso inglês e francês – , mas em Macau infelizmente tal só veio a acontecer e ainda assim com graves deficiências nos finais do século passado. A Universidade de Macau, por exemplo, «só» nasceu em 1991, havia a Universidade da Ásia Oriental, mas isso era outro negócio – privada e com poucas ligações ao Território. Apesar de todo um passado, o ensino em Macau foi inconsequente, inconsistente, incongruente – frágil. Em França, já havia ensino obrigatório desde o século XVI, ainda que não universal. Em Portugal, por exemplo, a lei da escolaridade obrigatória de quatro anos só surgiu em 1956 e somente para crianças de sexo masculino. Em 1960 para ambos os géneros. Nessa altura a taxa de analfabetismo era de 33 por cento. A obrigatoriedade de nove anos de frequência só em 1986 se tornou uma realidade. Portugal entrou no século XX com uma taxa de analfabetismo próximo dos 75por cento. A lei da escolaridade gratuita surge a 7 de Setembro de 1835 de forma insípida e pouco consistente. A população de Macau – independentemente da etnia, credo ou cultura – do século XXI deve aprender a viver sobre o lema “Iniciativa, Inovação, Irreverência”. Não é só através de uma mudança geracional que se conseguem atingir os objectivos, mas também através de uma mudança de atitude, com um pensamento estratégico e com trabalho de equipa. É o triângulo formado pela educação/ciência/cultura, que propícia o conhecimento, estímula a criatividade e aumenta a produtividade. «Educar» – aqui no sentido dado pelo educador brasileiro Rubem Alves (1933/2014) – “criar curiosidadede pensar”. Só com serviços escolares empenhados, disciplinados e longos – os nossos serão (?) – é que se constrói o Saber/Humanidade. Os jovens (deixem a resignação) exigem estímulos, confiança e autonomia, para poderem ganhar determinção, coragem e força – capacidade crítica e comportamento ético. A verdade e a honra não são coisas do passado – a honestidade não é uma mercadoria – e por isso mente-se, ilude-se e enriquece-se. Falta-nos espírito crítico, daí o oportunismo. Os jovens hoje em dia – talvez fruto do excesso de consumo das novas tecnologias (?) -, vivem uma vida de forma ficcionada – “ é mais fácil, menos intrínseco, mais diáfano, menos doloroso”. Será ? Porquê? Os jovens precisam urgentemente de orientações e horizontes futuros – temos de saber abrir a porta do conhecimento -, mas infelizmente não temos porteiro. O berço pode ser o sonho da realidade … ou da resistência…vamos sonhando! “O progresso é impossível sem mudança. Aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada”, na opinião do escritor George Bernard Shaw. Gostaria – quando (?) não sei – que me dessem razões para não ter razão de ter de escrever, até porque e passo a citar, Jack Kerouac “todos os seres humanos são sonhadores e o sonho une a humanidade”. “Por vezes cabe a uma geração ser grande. Esta pode ser essa geração.Deixem a vossa grandeza florescer.” Nelson Mandela (1918 – 2013) líder rebelde, presidente da África do Sul
Paul Chan Wai Chi Um Grito no DesertoPeço desculpa à população de Macau [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ste ano assinala-se o 25º aniversário da promulgação da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau. É mesmo necessário envidar sérios esforços para estudar esta lei aprofundadamente. Recentemente, devido à discussão na Assembleia Legislativa da proposta de lei sobre a criação do “Instituto para os Assuntos Municipais”, voltei a debruçar-me detalhadamente sobre a Lei Básica. Consultei também a versão chinesa desta lei, escrita em caracteres simplificados, pelo Professor Xiao Weiyun, que integrou a Comissão da Redacção da Lei Básica de Macau. Quando comparei a versão do Professor Xiao com a versão oficial do Governo de Macau, percebi que existe um problema na escrita (dos caracteres) da versão oficial. Nunca me tinha apercebido desta questão e aposto que na versão portuguesa não existe qualquer problema. Na escrita chinesa cada palavra é representada por um caracter, e cada caracter tem a sua origem e o seu uso devido. Mas devido à utilização dos caracteres simplificados na China, os habitantes de Macau podem por vezes confundi-los com os tradicionais. A diferença de uma palavra (caracter) pode resultar numa mudança de sentido. Duas palavras diferentes (dois caracteres diferentes), não podem ser usadas indiferenciadamente na Lei Básica, pois pode dar azo a uma confusão grave, sobretudo se considerarmos o rigor que deve existir a este nível. Sinto que tenho de pedir desculpas à população de Macau por esta falha, porque não a detectei quando estudei a Lei pela primeira vez, numa época em que era mais jovem e muito naïve. O problema a que me tenho vindo a referir pode ser encontrado no Artigo 95 da versão chinesa da Lei Básica. Os caracteres problemáticos são o “托” e o termo “委托”, situados na segunda frase do Artigo. De facto, a palavra correcta é “託” é não “托”. O radical da palavra chinesa (caracter) deverá ser “言” em vez de “手”. Assim, o termo correcto será “委託” e não “委托”, porque “委託” significa ser depositário de confiança ou estar autorizado, ao passo que “委托” quer dizer usar a mão para erguer alguém. Hoje em dia, os chineses, onde me incluo, usam com frequência os caracteres simplificados, fazendo várias confusões entre caracteres semelhantes ou usando caracteres parecidos indiferenciadamente, algo que não deveria acontecer. O Professor Xiao viveu na China e para ele era normal escrever com caracteres simplificados. No livro “Discussão sobre a Lei Básica de Macau” (論澳門基本法) publicado pela Universidade de Pequim na versão simplificada, é natural aparecer o caracter “委托”. Mas já não é natural que, na versão em chinês tradicional, da “Revista de Administração Pública de Macau” publicada pela SAFP, em Janeiro de 1993, apareça o caracter “委托” grafado nos seus conteúdos. Este caracter incorrecto conseguiu abrir caminho até à versão oficial da Lei Básica de Macau. Acredito que, ao longo destes 25 anos, pessoas mais eruditas em chinês do que eu, devem ter dado pelo erro, mas não se manifestaram. Além disso, no ensaio “A estrutura política da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau”, escrito pelo Professor Xiao, quando são referidos os “órgãos municipais” (sem poder político e estes são incumbidos pelo Governo…), mencionados no Artigo 95 da Lei Básica, o autor defende que “os órgãos municipais respondem pelo trabalho desenvolvido pelas duas câmara municipais existentes e que são outorgados/autorizados (委託) para desenvolver as tarefas designadas e dar pareceres de carácter consultivo ao Governo, mas não têm poder politico”. No seu ensaio, o Professor Xiao afirma claramente que a competência dos “órgãos municipais” assenta nas câmaras municipais existentes, mas não menciona que os membros da direcção dos “órgãos municipais” não podem ser eleitos directamente. Antigamente, os membros da direcção das câmaras municipais podiam ser eleitos directamente. Enquanto assistia ao debate da Assembleia Legislativa na televisão, ao ouvir algumas interpretações da Lei Básica, percebi que é difícil encontrar quem realmente entenda e defenda o verdadeiro intuito desta lei. O Professor Xiao já faleceu, mas deixou-nos muitos documentos e ensaios valiosos para nos servirem de referência. É uma pena que ninguém lhes dê o devido uso.
Hoje Macau VozesNota da redacção Na sequência da polémica sobre o acompanhamento das queixas que a Inspecção-Geral da Educação e Ciência está a dar aos casos noticiados sobre a Escola Portuguesa de Macau (EPM), vimos por este meio esclarecer o leitor quanto à verdade dos factos. Na edição de 3 de Abril fizemos capa e publicámos na página seis um artigo que dava conta da análise e tramitação das queixas recebidas pela Inspecção-Geral da Educação e Ciência sobre os casos de violência, alegadamente, ocorridos na EPM. Utilizámos a expressão “investigação” no sentido lato, não no sentido técnico-jurídico do termo e citámos a fonte afecta ao Ministério da Educação correctamente, respeitando escrupulosamente os nossos deveres deontológicos e éticos. Como se pode confirmar no email que publicamos nesta página, foi-nos, de facto, facultada a informação de que a Inspecção-Geral da Educação e Ciência estava a seguir os casos. Não mencionámos a fase em que o processo se encontrava e, como se pode comprovar na imagem em anexo, com a data de ontem, estão “já em curso as notificações necessárias, [e] diligenciar-se-á com vista ao apuramento do participado”. Não fazemos jornalismo movido pela emoção, animosidade ou simpatia. Não fazemos o cálculo se uma notícia é agradável, ou desagradável, esse não é o nosso trabalho, nem a nossa vocação. Se o Estado português está, oficialmente, a averiguar factos ocorridos numa das maiores instituições portuguesas em Macau isso é, naturalmente, notícia.
Andreia Sofia Silva VozesDo Individualismo e do Prazer [dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]efinirei o individualismo como uma forma de ser e de estar na vida, um constructo mental que considera os nossos desejos como os mais importantes. Esta formatação cultural afectará, como devem calcular, a forma como nos relacionamos com os outros. Se eu sou o mais importante deste mundo, como e de que forma posso lidar com os apetites ou as vontades dos outros à minha volta? É tramado. O ocidente está cheio de individualismos – as individualidades que se individualizam – que devem produzir algum tipo de consequência. O sexo, o amor romântico, a parentalidade, a amizade, que exige a constante negociação do outro poderão que ser repensadas à luz da vigente perspectiva do ser. Querem-se pessoas livres de fazerem as suas escolhas, e até aí, tudo bem. A negociação das nossas necessidades e desejos que nos obrigam muitas vezes a ceder e a re-avaliar as nossas prioridades poderá ser considerada irrelevante se levarmos a nossa individualidade demasiado a sério. Por exemplo, no sexo, essa mediação entre o meu prazer e o teu prazer tem que ser muito bem feita. Se estivermos só a pensar na nossa única e exclusiva necessidade de prazer o outro torna-se redundante. O propósito de troca de fluídos, sem a cooperação e negociação que estou aqui a tentar expressar, perde… propósito. Quando nos envolvemos com alguém, desta forma tão nua, importa que tenhamos a coragem de nos entregarmos ao cuidado do outro. Mesmo que isso pareça mostrarmo-nos vulneráveis e mais susceptíveis – ou mais disponíveis – a sermos magoados. É um risco que se corre na dinâmica de exposição dos corpos e dos prazeres, tudo tem um risco associado. A doutrina do individualismo cria a expectativa que a partilha é possível até certo ponto, até certos limites do que queremos, do que nos for confortável. A mulher solteira que quer ter um filho e que já não precisa de um homem para fazê-lo, é um exemplo de verdadeira emancipação. História verídica: encomenda esperma pela net, do perfil de pessoa que lhe agrada; espera-se pelo dia mágico da ovulação; insere-se o esperma dentro da vagina para surtir o efeito maternal esperado. Não deixa de ser impressionante a nossa capacidade de ter o que queremos. O prazer, seja esse prazer qual for, que pode e deve existir da individualidade, conseguirá existir em total autonomia? Às vezes tenho a sensação que para lá tentamos caminhar. Desde sempre que cada um de nós é ensinado a ser independente, preferencialmente, a não depender de ninguém. Ambicionamos ser totalmente autónomos na nossa gestão mental e física para nunca mostrar um sinal de fraqueza. Chegamos a momentos em que as liberdades (todas) são importantes. Mas não estaremos nós a correr o risco de criar uma sociedade de umbigos gigantes, gigantes demais para coexistir? O que outrora nos tornou humanos na loucura evolutiva dos tempos – a cooperação, a atenção pelo o outros para a sobrevivência da espécie – poderá ser tida, não como uma virtude, mas um defeito de quem não é capaz de se desenvencilhar sozinho? Faço uso das caricaturas para exagerar fenómenos que não são assim tão simples – consigo reconhecer o defeito da minha linha argumentativa. Estar com os outros de uma maneira saudável é o desafios de todos os tempos, e tanto quanto sei, não há formas societais perfeitas, simplesmente reflexões. Mas será que caminhamos para uma realidade em que os outros se tornam cada vez menos necessários? Voltando ao prazer, será que o prazer consegue ser prazer sem a gestão de algo exterior a nós? Seremos nós mais tendencialmente hedonistas e, com medo e dificuldade, estaremos nós a evitar a complicada dinâmica de sermos dependentes e autónomos ao mesmo tempo?
David Chan VozesOs malefícios do café [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] dia 31 de Março deve ter sido certamente um dia bem negro para a Starbucks. O Tribunal de Los Angeles declarou esta cadeia de cafés culpada por não afixar etiquetas a avisar que o café contém uma substância cancerígena – a Acrylamide. Esta sentença tem dado muito que falar. A American Coffee Association declarou que a indústria do café não considera apelar da decisão. Mas de onde vem esta substância? Segundo as notícias, este químico provém da torragem do café a alta temperaturas. Aparentemente esta substância também pode ser encontrada em alguns alimentos. A Organização Mundial de Saúde assinala que a presença da Acrylamide na comida não é novidade. A Agência Internacional de Pesquisa do Cancro (AIPC) classificou esta substância como a segunda mais cancerígena, embora não existam provas conclusivas de que pode efectivamente provocar o cancro. No depoimento escrito, o juiz alega que a Starbucks não cumpriu a lei, ao abster-se de avisar os clientes que o café contém químicos potencialmente cancerígenos. O AIPC defende que a Acrylamide é a segunda substância mais cancerígena, e que quem a ingerir pode vir a desenvolver esta doença. No entanto, estas conclusões foram tiradas apenas a partir de experiências com animais; ou seja, não existe uma prova conclusiva de que, após o consumo de qualquer alimento onde a Acrylamide esteja presente, um ser humano venha a sofrer de cancro. O AIPC assinala ainda que, um estudo epidemiológico de 2016, demonstra que beber café não provoca cancro do pancreas, nem cancro da mama, ou da próstata. Além disso, beber café diminui o risco de cancro do fígado. De qualquer forma é preferível não discutirmos para já se a Acrylamide pode ou não provocar o cancro. Esta decisão choca muita gente, até porque é mais do que sabido que milhões de pessoas em todo o mundo bebem café diariamente. O leitor gosta de café? Quantos bebe por dia? O mais certo é ninguém vir a ligar a este aviso. Há pouco tempo a Starbucks de Taiwan tomou uma posição em relação à decisão do Tribunal de Los Angeles. Anunciou que, pura e simplesmente, não a respeitaria. Salientaram ainda que importam grãos de café de marcas da maior confiança, e que todos os regulamentos são respeitados. A venda do café em Taiwan faz-se de acordo com as leis e os regulamentos locais. Os consumidores não precisam de se preocupar. A cadeia 7-11 também proferiu comentários idênticos. Reiterou que esta decisão fora emitida por um Tribunal de Los Angeles e que o que interessa é a lei local. Até ao momento, não se registaram quaisquer declarações da Starbucks de Hong Kong e de Macau, mas podemos estar certos que estas duas regiões possuem legislação adequada para regular a venda de produtos. Em Macau, o artigo 85(1) do Código Comercial estipula que os fabricantes deverão ser responsabilizados se produzirem produtos defeituosos que causem danos a terceiros. No entanto, o artigo 88(e) providencia uma sólida defesa estatutária dos fabricantes, ao estipular que, se o defeito do produto não puder ser detectado pelos meios científicos existentes, à data da sua colocação no mercado, e se tal puder ser provado, o fabricante não será responsabilizado pela falha. Em Hong Kong, a secção 16 (2) da Ordenança da Venda de Bens assegura a qualidade dos produtos comercializados. A qualidade dos bens de consumo deverá atingir os padrões considerados razoáveis. E finalmente, mas não menos importante, se os produtos causarem danos a alguém, a vítima pode processar o vendedor, ou o fabricante, e ser indemnizada. Será que existem mesmo substâncias cancerígenas no café? Não temos ainda certezas absolutas. Por isso, não nos devemos preocupar demasiado com a decisão do Tribunal de Los Angeles. O café faz parte das nossas vidas. O meu caro leitor até pode beber apenas uma ou duas chávenas por dia, mas algumas pessoas bebem quatro ou cinco. Se nos preocuparmos demasiado com polémicas que não assentam em provas sólidas, não será bom para ninguém.
João Luz VozesTrol h5> <[dropcap style='circle'] O [/dropcap] meu habitat é a caixa de comentários de uma qualquer rede social. Aí floresço como uma trepadeira argumentativa sustentada por um emaranhado de memes e enfurecedores desafios ao conhecimento adquirido. Sou o assassino a soldo que veio matar o diálogo através de verborreia inflamável. Quero que tudo arda, principalmente a paciência dos meus incautos interlocutores que pensam ingenuamente que estão a ter uma conversa. O comentário que responde ao que escrevi é o meu sustento, alimento-me da reacção que consigo despoletar face ao arrazoado de bombas verbais que despejo indiscriminadamente tanto em cima de assuntos sérios, como da mais banais trivialidades. Este é o ambiente onde prospero. Se me vir na circunstância menor de discutir um assunto à mesa de um café tenho de conceder a minha intransigência à concórdia e render alguns dos meus inquinados trunfos. Frente a frente tenho, de rosto descoberto, sinto-me nu e exposto. A remanescente humanidade que ainda possuo tende a ceder pontos num debate deste tipo. Perco capacidades de litígio e a minha indignação esmorece, verga-se perante os argumentos do lado oposto. Mas ao menos vinco essa oposição, o mínimo que posso fazer. Irrita-me o compromisso, a cedência que em presença tenho de fazer quando me apresentam um pedaço de informação desconhecido acompanhado de um rosto que pode, não ou, sorrir-me. Frente-a-frente não consigo responder com a bomba de fumo da comunicação cibernética que é o meme, ou a exclamação espasmódica de “fake news”. As outras armas que não convém usar numa conversa em presença é o desvio de conversa para o “então e...”, ou a velha, mas sempre útil, ofensa pessoal. Outra das chatices do falatório presencial é a ausência de caps lock na vida real, até porque não quero dar muito nas vistas e GRITAR NUMA ESPLANADA. A minha voz não se fez para os decibéis elevados, apenas o meu teclado. Como sou um ser que floresce na treva, vivo entrincheirado na minha própria cabeça, preso naquilo que considero ser a minha verdade, que deixou de ser algo universal para passar a ser do domínio pessoal. A minha verdade é uma arma de arremesso argumentativo e uma armadura que protege a minha identidade. Para além do músculo, o meu coração é a minha identidade. Eu sou aquilo que penso ser a minha verdade. As minha opiniões fazem parte da estrutura que me compõe. Não tenho opiniões a favor ou contra, eu sou contra ou a favor. Preto e branco. Nuance é o nome que deram às fraquezas dos que se irritam comigo nos comentários de um grupo de Facebook. As minhas posições definem-me, constituem aquilo que sou. Discordar do que digo é invalidar a minha existência. Vivo, respiro e concebo-me nas minhas opiniões. Este foi o resultado de um isolamento a que me votei, é o somatório da distância que ganhei com os outros através de uma ferramenta que deveria servir para aproximar pessoas e facilitar a comunicação. Eu sou a pedra na engrenagem, a misantropia na rede social, a salada de palavras que não pretende ter legibilidade. Quero marés altas de spam a inundar todos os cantos da Internet e extravasar para o mundo palpável. Quero um mundo a arder, nervos em franja daqueles que me respondem ou leem, quero atenção, visibilidade neste campo de batalha virtual. Quero tumultos na rede, cascas de banana no chão, pedras nos sapatos. Quero ser lido e validado por aquilo que sou, e aquilo que sou é aquilo que penso. Sou a materialização rasteira da máxima descartiana. “Troglodytarum, ergo sum”. Alimentem-me, por favor. Procuro em vós a autenticação, ratifiquem-me com a vossa ira, legitimem-me com a vossa atenção. Odeiem-me que eu adoro.
Tiago Bonucci Pereira VozesAjuda Externa Chinesa – (Breve) História e Desmistificação [dropcap style=’circle’] F[/dropcap] oi este mês aprovada a criação da Agência para a Cooperação e Desenvolvimento Internacional pelo Congresso Nacional Popular da República Popular da China (RPC). Esta agência governamental, directamente sob a égide do Conselho de Estado, passará a concentrar funções previamente sob a responsabilidade do Ministério do Comércio e do Ministério de Negócios Estrangeiros – um passo óbvio, tendo em conta o aumento progressivo da ajuda externa chinesa. Nesta circunstância, e tendo como pano de fundo a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e as relações comerciais entre a China e os Países de Língua Oficial Portuguesa, interessa aqui fazer uma síntese histórica da ajuda externa chinesa, contextualizando-a na realidade actual. A ajuda externa chinesa conheceu diferentes etapas ao longo da sua história. Neste texto consideram-se três. Uma primeira fase, com início em meados da década de 50 e que se extendeu até ao final da década de 70, uma segunda que durou até 1995, e a fase actual. Estas etapas não foram propriamente homogéneas, mas caracterizaram-se por um processo gradual de evolução com diferentes filosofias subjacentes às mesmas. Até finais da década de 70, a ajuda externa chinesa caracterizou-se por ter uma forte conotação ideológica, sendo no entanto também necessário encará-la à luz do contexto político da altura, nomeadamente a “batalha” diplomática entre a RPC e Taiwan, a Guerra Fria, e a ruptura Sino-Soviética. Num mundo bipolar, e em virtude do clima de hostilidade entre a RPC e os dois antagonistas (no caso dos Estados Unidos da América até ao início da década de 70, e com a ex-URSS a partir de finais da década de 50), a afirmação internacional da RPC impunha a definição de uma área de influência alargada, assente na visão do Partido Comunista Chinês (PCC) como uma referência alternativa à ortodoxia soviética. Esse esforço culminou, em 1971,na Resolução nº 2758 da Assembleia Geral das Nações Unidas, com o reconhecimento da RPC, apoiada por vários países recipientes de ajuda externa Chinesa. “Esforço” é a palavra apropriada para descrever esta acção da RPC, na medida em que a ajuda externa que a China providenciava tinha uma dimensão desproporcional à situação económica que vivia. Em 1980 a RPC figurava entre os 20 países mais pobres do mundo, enquanto que entre 1971 e 1975 a ajuda externa chinesa correspondeu a 5.88% do seu PIB. Até então, a ajuda externa era concedida sem especiais condições com vários projectos a serem financiados sem uma avaliação criteriosa. Por outro lado, as infraestruturas que eram construídas através desses projectos caíam posteriormente em desuso devido à falta ou deficiente manutenção, e, em geral, por uma má gestão das mesmas. Se a princípio a ideia era a de que a RPC apoiava esses países com fundos e meios técnicos para entregar os projectos quando finalizados, a realidade exigiu que os técnicos chineses voltassem aos países recipientes para recuperar e gerir as infraestruturas. Foi uma situação considerada insustentável pela liderança de Deng Xiaoping e que exigia mudanças profundas. A segunda fase da história da ajuda externa Chinesa tem, assim, início em finais da década de 70, numa altura em que a RPC iniciava o seu processo de abertura e de modernização, processo com o qual o modelo anterior de ajuda externa era incompatível. Esta etapa caracteriza-se, pois, por um processo evolutivo em que a RPC procurou recuperar anteriores investimentos e alterar o modelo de ajuda externa, tendo como referência a sua própria experiência. A China era, afinal de contas, também um país recipiente de ajuda externa, e a partir de 1978, com o início do seu processo de abertura e de modernização, atraiu investimentos de países desenvolvidos. O primeiro a entrar no mercado chinês foi o Japão. Na sequência da primeira crise do petróleo, em 1973 o Japão começou a importar petróleo da China. Em 1978, os dois países assinam um contrato de longa duração em que o Japão financiava 10000 milhões de dólares em tecnologia e materiais que a China compensava com pagamentos diferidos exportando petróleo e carvão. O Ocidente seguiu o mesmo caminho, com base em acordos de compensação comercial (que permitiam a importação de equipamentos e máquinas com pagamentos diferidos com bens produzidos) e acordos de financiamento com vista a abrir as portas do mercado chinês para empresas desses países. Importante é sublinhar que a China encarou estes métodos como positivos, na medida em que permitiram a modernização do seu tecido produtivo num cenário de escassez de divisas, transferência tecnológica, e formação de quadros. Os países que investiam na China não o faziam com sentimento puramente altruísta, mas em benefício próprio (egoismo altruísta). Isto, conjugado com a experiência anterior chinesa e os muitos problemas identificados, permite enquadrar melhor o modelo actual de ajuda externa chinesa. Na década de 90 a RPC implementou reformas que tiveram um profundo impacto no seu programa de ajuda externa, com destaque para a separação de empresas de comércio e corporações de cooperação económica de ministérios aos quais estavam previamente afectas, e a criação, em 1994, de três bancos: China Development Bank, China Export Import Bank (Eximbank), e o China Agricultural Development Bank. O corolário destas reformas ocorreu em 1995 com o lançamento de um novo sistema de empréstimos preferenciais financiados pelo Eximbank. No mesmo ano, Zhang Chixin, director-adjunto do Departamento de Ajuda Externa do Ministério do Comércio, lança a ideia base da nova estratégia: combinar ajuda a África, cooperação mútua, e comércio. A ajuda externa seria utilizada para investimentos em joint-ventures, estabelecimento, por empresas Chinesas, de fábricas em solo africano e exploração de recursos naturais. O discurso “win-win” reflecte claramente que a filosofia que está na base da ajuda externa Chinesa actual impõe benefícios mútuos e sustentabilidade. E premeia, para mais, a boa governança de países recipientes. Entre 2000 e 2015 os países africanos que receberam mais empréstimos do Eximbank foram a Etiópia e Angola, seguidos do Quénia, um país sem grandes recursos energéticos fósseis ou minerais, mas que figura entre os melhores classificados de África em matéria de governança. O que se deduz é que, ao contrário do que muitas vezes é dito e escrito no Ocidente, a ajuda externa chinesa não se centra apenas em países ricos em recursos naturais, nem é feita ignorando as necessidades dos países recipientes. É indiscutível que recursos naturais são um factor importante na canalização de investimento Chinês, mas a verdade é que a estratégia Chinesa tem um âmbito mais alargado. O desenvolvimento dos países recipientes é encarado como um objectivo com o qual a China também irá beneficiar, tanto de um ponto de vista moral como material. A China procura ganhar mercado, e os projectos que acompanham a ajuda externa permitem o estabelecimento de empresas chinesas nesses países. A prosperidade dos mesmos representa também a prosperidade dessas empresas. Percebe-se aqui o eco do discurso inaugural de Harry Truman em 1949: “Todos os países, incluindo o nosso, irão beneficiar de um programa construtivo para o melhor uso dos recursos humanos e naturais do mundo. A experiência demonstra que o nosso comércio com outros países expande-se com o progresso industrial e económico dos mesmos”.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO amor não existe, faz-se [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão tenho os créditos desta expressão maravilhosa, os créditos vão para o anúncio de um hotel com propósito de receber casais calorosamente e sexualmente envolvidos. Faz-se amor porque ele não existe realmente. Digamos que num mundo de materialismo pouco poderá tornar o amor mais real do que fazê-lo. Manuseando as formas mais naturais dos corpos, tal e qual como viemos ao mundo, permitindo o rubor de certas partes mais propícias ao prazer. Assim acontece o amor, o sexo, pronto. Mas o amor, apesar de se poder fazer de forma tão (aparentemente) simples não se mantém só porque sim. O amor será como construir uma bela casa, que precisa de estrutura, tijolos, pintura e decoração adequada. Há elementos mais importantes que outros, e diria que há alguns mais universais e outros mais particulares aos casais em causa. A terapia de casal tenta explorar algumas destas dinâmicas amorosas de forma a reestruturar o amor – que pode estar simplesmente perdido, à espera de ser reencontrado. Em certos contextos de tradição judaico-cristã o amor deveria ser para sempre, mas já ninguém acredita nisso. O amor que ‘seja infinito enquanto dure’ já dizia o Vinicius de Moraes. A prova viva é de muitos recém-casados se divorciarem em menos de um ano. Afinal, como é que se garante um final feliz se o amor não existe? Trabalhar o amor como uma figura de barro, com alguma delicadeza e cuidado. Quem é que está para isso? Talvez os mais tradicionais e antigos ainda consigam imaginar vidas românticas com um só protagonista. O primeiro namorado torna-se no primeiro e último marido. Ainda que seja uma ideia que tenha funcionado e ainda funcione para alguns, nunca funcionará para todos. O mundo está tão cheio de tentações e de pecados, para manter o tom da semana santa que ainda agora passou, que os desafios ao amor romântico são muitos. Um casal amoroso é amoroso até certo ponto. A violência pode estar presente, a infidelidade, o desentendimento, a opressão e o medo. Quando a união poderia representar a mais pura forma de confiança e de entendimento mútuo das almas e dos corpos, nem sempre é isso que acontece. Conhecer o outro de uma forma mais profunda tem muito que se lhe diga. Atrever-me-ei a dizer que o amor é a arte do conhecimento e da compreensão, na medida porém, o conhecimento total do outro é inatingível Alguma coisa se vai descobrindo ao longo do tempo e dos tempos, nunca sem medo da inevitável transformação que faz com que a total desmistificação do outro seja improvável. O amor é como encontrar o equilíbrio entre o que conhecemos do outro e nos faz confortável e daquilo que nunca seremos capazes de alcançar. O tesão dá uma ajudinha ao amor e à paixão. Excluindo os assexuais, outras orientações e identidades concordarão com a estreita relação entre o amor e o sexo, ou o desejo. Alguns dar-lhe-ão mais importância do que os outros – porque eu acho que cada um tem a liberdade de expressar-se sexual e amorosamente como bem entender– mas a exploração do corpo faz parte do pacote de conhecimento. Conhecer o outro é saber quando ele está rabugento e respeitar o seu espaço, mas também é conhecer-lhe o cheiro, saber como consegue atingir o orgasmo ou saber onde é que ele prefere ejacular. Na minha humilde opinião, fazer amor não se limita ao sexo. Essa seria uma visão simplista demais. Pretendo incentivar o poder ‘agêntico’ dos seres – o que nos faz ter controlo das situações – pelas questões amorosas, porque o amor faz-se. O amor não é uma coisa que acontece zás-trás, plim-plim. O amor faz-se acontecer.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesA aposentação de Ka-Shing Li [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a última reunião geral da Cheung Kong Holdings, que teve lugar no dia 16 do mês passado, Ka-Shing Li anunciou que se iria aposentar no próximo dia 10 de Maio. Passou a ser, desde a data do anúncio, consultor sénior da multinacional. O seu filho, Victor Li, passa a ocupar o cargo de Presidente do Conselho de Direcção. Li já fez saber que irá dar ao seu filho mais novo, Richard Li, uma avultada quantia para investir em negócios. Ka-Shing Li afirmou que, depois da reforma, não vai “despir a farda”, mas sim dedicar-se a tempo inteiro à Fundação de Solidariedade Li Ka Shing, que actua ao nível da saúde e da educação. Se o leitor tem seguido a actividade das empresas Cheung Kong sob a liderança de Ka-Shing Li, saberá dizer-me que lucro tiveram os accionistas minoritários ao longo destes 46 anos? Pois a resposta é impressionante. Aumentaram 5.000 vezes o seu investimento. E a que se devem estes números astronómicos? Possivelmente ao facto de Li receber apenas uma remuneração simbólica pelo seu cargo de Director, ou seja 5.000 HK dólares por ano. Ka-Shing Li começou a trabalhar com 12 anos, e labutou arduamente durante 78. No entanto, é um homem feliz, pois embora de idade avançada, ainda mantém o corpo saudável e a mente lúcida. A sua aposentação está marcada para o dia do seu aniversário, quando completar 90 anos. Este self-made man, teve apenas a educação básica, mas tornou-se no homem mais rico de Hong Kong, devido ao seu trabalho árduo. Foi sempre uma pessoa muito motivada. Muitos dos habitantes de Hong Kong veem nele um herói. Talvez alguns deles se inspirem neste homem para abrir o seu próprio negócio. Quem tiver 40 anos, ou mais, é certo que sente por ele o maior dos respeitos. Ele é o orgulho das pessoas desta região. No entanto, quem nasceu nos anos 90, ou depois, não partilha possivelmente do mesmo sentimento. Podem ver nele apenas o rei dos negócios imobiliários. Mas ele também detém a hegemonia do vestuário, dos bens alimentares e da habitação. Li foi criticado por querer ter tudo. Porque é que as pessoas têm de comprar no supermercado PARKn SHOP quando vivem numa casa construída pela empresa que é dona desta loja? Porque é que as pequenas lojas e mercados não sobrevivem nas propriedades de Ka-Shing Li? Se o complexo habitacional foi construído por Li, porque é que a sua empresa de telecomunicações se vai aí sediar? Os grandes feitos da carreira de Li estiveram sempre alinhados com o desenvolvimento económico de Hong Kong, durante o ultimo meio século. Quando a economia da região começou a desenvolver-se, Li era apenas proprietário de uma fábrica de plásticos, mas, com o inicialmente tímido florescimento económico, passou a deter um negócio imobiliário. Entretanto a economia de Hong Kong continuou a crescer e a fortuna de Li também. Tornou-se no homem mais rico da região e num dos homens mais ricos do mundo e, indubitavelmente, num símbolo desta cidade. Antigamente se um jovem afirmasse querer vir a tornar-se num “Li” quando crescesse, era aplaudido pela sua ambição. Contudo, hoje em dia, tal afirmação despertaria sentimentos contraditórios. A alteração dos valores sociais está na base desta mudança. Antigamente a sociedade de Hong Kong respeitava as conquistas ao nível da carreira e a elite do negócio. Mas agora as pessoas passaram a valorizar conceitos como, igualdade, justiça, equidade e direitos civis. Depois da aposentação do “Superman Li”, Hong Kong dificilmente voltará a ter uma lenda similar. Li é conhecido pelas suas “máximas”. Certa vez, falava com jovens que comentavam que as namoradas tinham dito: “Se eles não têm casa, não se podem casar”. Li riu-se e respondeu: “Penso que os jovens, que ainda não terminaram os seus cursos na Universidade, fazem mal se pensarem comprar casa.” Noutra ocasião, em que se discutia a possibilidade de dividir apartamentos em quartos para alugar a pessoas pobres, Li comentou: “Os quartos são muito pequenos, sinto-me muito desconfortável.” Numa discussão durante a eleição de 2017 para o Chefe do Executivo, afirmou: “Não vou citar nomes, porque não quero ofender ninguém. Vocês não vão ficar a saber em quem vou votar, porque eu não vos vou dizer.” Em determinada altura, Li exprimiu assim o seu amor por Hong Kong: “Vivo em Hong Kong desde 1940. Acho que vou aqui ficar até ao fim dos meus dias. Adoro Hong Kong. O website “kknews.cc” escreveu em Julho passado que “Li não dá um passo sem o seu advogado. Sem uma opinião especializada, Li não assina nenhum contrato.” Esta foi a única referência jurídica que encontrei sobre Li. Espero que esta afirmação augure um futuro brilhante a todos os peritos em leis.
Leocardo VozesBacalhau [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ecidi no outro dia dispensar uma hora e meia do meu tempo para assistir ao filme “A Gaiola Dourada”, um retrato mais ou menos actual da emigração portuguesa em França. O filme não é recente, tem quase cinco anos, mas na altura passou-me ao lado – estando aqui no extremo oriente, é perfeitamente normal. Contudo, e desde que o filme estreou, não tenho parado de ler os maiores encómios a seu respeito. Pessoas que dizem ter visto “quatro ou cinco vezes”, outras que, e passo a citar, “se mijaram a rir”, enfim, pensei que estava ali o “Citizen Kane” do cinema português, e eu arriscava-me a morrer estúpido se não visse “A Gaiola Dourada”. E assim, através do milagre do “streaming”, fui inteirar-me do que se tratava. O filme é sofrível, e isto é o melhor que posso dizer dele. Não é um filme português; é uma produção francesa – 99% dos diálogos são na língua de Dumas – que conta com um elenco de actores portugueses e franceses. Está muito longe de ser uma comédia; não me ri, nem sequer me deu vontade de sorrir, e muito menos me comoveu. Em causa não estão as (excelentes) interpretações dos seus actores principais, Joaquim D’Almeida e Rita Blanco (outra coisa não seria de esperar), ou sequer a realização do jovem Ruben Alves, ele próprio um luso-descendente. O problema é do próprio argumento, previsível e redutor. Todos temos mais ou menos uma ideia de que como é a vida da comunidade portuguesa em França, e o filme não nos traz nada de novo, ou de surpreendente. O José trabalha na construção civil, a Maria é empregada de limpeza, sonham voltar a Portugal de vez depois de mais de 30 anos emigrados em França, os filhos estão relutantes, uma vez que já ali nasceram, sentem-se mais franceses que portugueses, etc. etc. etc.. Há uma cena perto do fim do filme, onde a patroa francesa de Maria chega a casa acompanhada de um painel de juízes de um concurso de jardinagem em que participa, e o casal português está em pleno jardim, no meio das rosas, a fazer uma sardinhada e a escutar o tema “Bacalhau à Portuguesa” de Quim Barreiros. Aliás, o “bacalhau” é um tema recorrente em todo o filme. Isto não só não tem graça, como chega a ser ofensivo; eu sou português, gosto do fiel amigo, mas não é por isso que sou um “comedor de bacalhau”. Talvez eu não tenha a sensibilidade necessária para apreciar “A Gaiola Dourada”, para ver o filme repetidas vezes e rir-me até ficar à beira da apoplexia. Vivo em Macau há 25 anos, mas nunca me considerei um emigrante. Tal como muitos dos leitores que chegaram ainda durante o tempo da administração portuguesa, adquiri a residência poucos meses depois de chegar, não tive quaisquer problemas de adaptação, nem sequer ao idioma, sendo o português ainda hoje uma das línguas oficiais da RAEM. Não deixo no entanto de ter simpatia pela comunidade portuguesa em países europeus como a França, a Bélgica ou a Suíça, e que ultimamente os portugueses nativos resolveram apelidar (depreciativamente) de “avecs”. Se eles têm uma vivenda na terrinha, são proprietários de terrenos no Douro vinhateiro, ou conduzem BMWs e Mercedes, certamente que foi à custa de muito esforço e sacrifício, fruto do seu trabalho, e mais nada. Fico a aprender muito mais a respeito da actual diáspora portuguesa em programas como “Portugueses no mundo”, transmitido assiduamente pela RTPi, onde damos conta de compatriotas nossos que são empresários ou que exercem profissões liberais um pouco pelos quatro cantos do globo. Longe vão os tempos em que a emigração era apenas uma forma de fugir à pobreza. Actualmente, temos uma massa de gente inteligente, qualificada e empreendedora que dignifica o nome de Portugal por esse mundo fora. Uma realidade que vai muito além daquilo que nos mostra “A Gaiola Dourada”, que repito, não é um mau filme, mas que deixa muito a desejar neste aspecto em particular. Não me faz sentir de todo representado.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Grande Baía de Guangdong – Hong Kong – Macau “China will continue to explore new mechanisms and pathways for achieving coordinated development among regions, and “build world-class city clusters and foster new sources of growth.” 2017 APEC CEO Summit – President Xi Jinping [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o longo da última década, a China tem trabalhado para mudar o modelo de crescimento dirigido pela produção, alimentado por mão-de-obra de baixo custo, para um modelo de maior valor acrescentado, liderado pela inovação e sustentado por fortes ganhos de produtividade. A urbanização é fundamental para facilitar essa mudança, inclusive através de economias de escala. Ainda que a China seja o país mais populoso do mundo e a segunda maior economia, a taxa de urbanização do país permanece muito abaixo da média global. Apenas metade da população vive em áreas urbanas e menos de 10 por cento são residentes permanentes nas suas megacidades. É nas megacidades da China que se encontra o maior potencial para impulsionar o progresso futuro da produtividade e, logo, do crescimento do PIB. A China tem quatro principais cidades em termos de população e desenvolvimento que são Pequim, Xangai, Guangzhou e Shenzhen e, dado o tamanho da população e da sua economia, pode-se considerar muito pouco e, de facto, não existem motivos para acreditar que essas megacidades tenham atingido a sua capacidade, em termos de população ou contribuição para o crescimento económico. A China tem muitas cidades dinâmicas de segundo nível, como Chengdu, Tianjin, Hangzhou, Wuhan e Suzhou, que são capazes de atingir o estatuto de primeiro nível se tiverem oportunidade. Mas, para maximizar o potencial das cidades da China, o governo terá que ser muito mais adaptável e flexível, especialmente no que se refere ao controlo rigoroso dos rácios de desenvolvimento da área urbana, caso contrário, a urbanização continuará a fazer subir os custos de habitação que já são altos, mas não eficientes para impulsionar o desenvolvimento sustentado. A boa notícia é que os governos locais estão a trabalhar para aliviar, ou mesmo eliminar, as restrições administrativas existentes e estão a introduzir as chamadas conversões das cidades e vilas, para expandir os distritos urbanos para as jurisdições rurais. Tais esforços podem permitir maior construção de habitações e expansão industrial e comercial. A outra estratégia electiva para promover a transição da China para um modelo de crescimento liderado pela cidade, é expandir o papel desempenhado pelos aglomerados urbanos que incentivam a força das cidades de primeiro nível para impulsionar o crescimento em áreas menos desenvolvidas. O rio Yangtzé e o “Delta do Rio das Pérolas” são do ponto de vista económico, as áreas mais importantes. O primeiro-ministro, em Março de 2017, anunciou um plano para o “Desenvolvimento de um Cluster da Cidade (CCD na sigla em língua inglesa)”, que é uma abordagem de desenvolvimento liderada por cidades, que melhoram as suas capacidades de promover o crescimento económico em uma zona urbana alargada, que é definida por esferas espaciais de influência económica e não jurisdições administrativas. O CCD foi adoptado pelo “Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB na sigla em língua inglesa)” como uma nova estratégia a longo prazo (Estratégia 2020) para reduzir a pobreza nos países membros em progresso, através do desenvolvimento inclusivo e das actividades de promoção do crescimento, que oferece uma excelente oportunidade para atingir um crescimento económico e social sustentável. O desenvolvimento assente em “clusters” converteu-se em um tema cada vez mais atractivo durante a última década no campo da competitividade empresarial e desenvolvimento económico. O CCD é uma visão conduzida pelas cidades que melhoram o potencial de desenvolvimento de urbes e pessoas dentro de uma região urbana ao vincular estrategicamente os seus campos de desenvolvimento, através da provisão eficiente de infra-estruturas, serviços urbanos e financiamento inovador. O termo “cluster” ligado às indústrias foi introduzido pelo economista americano, Michel Porter, em 1990, no seu livro “Competitive Advantages of Nation”. O CCD na “Área da Grande Baía de Guangdong – Hong Kong – Macau” abrange onze cidades, sendo Dongguan, Foshan, Guangzhou, Huizhou, Jiangmen, Shenzhen, Zhaoqing, Zhongshan e Zhuhai da província de Guangdong, Hong Kong e Macau. É de considerar que entre 2010 e 2016, o PIB anual da “Área da Grande Baía (AGB)” subiu de oitocentos e vinte mil milhões de dólares para quase o dobro, tornando-se a terceira maior economia urbana do mundo, depois de Tóquio e Nova Iorque. Todavia, a população da AGB está a crescer rapidamente, e o seu PIB per capita é menos de metade de Tóquio, indicando que o seu potencial está longe de se esgotar. Os líderes chineses estudam uma segunda AGB, centrada na Baía de Hangzhou, que, por sobrepor-se ao “Delta do Rio Yangtze”, poderia percorrer um longo caminho para integrar a região já próspera. Esse CCD poderia cobrir a megacidade do litoral de Xangai, bem como cerca de dez cidades mais importantes nas províncias vizinhas de Zhejiang e Jiangsu, que incluiu portos de categoria mundial, como o Porto de Ningbo – Zhoushan, que é o mais movimentado do mundo em termos de tonelagem de carga e abarcaria duas das onze zonas de comércio livre da China. O ritmo do crescimento económico da China nas últimas quatro décadas não tem antecedentes. A China ainda não completou a sua elevação ao estatuto de país rico e à medida que moderniza a sua economia para se tornar mais assente no conhecimento e orientada para a tecnologia, é novamente impulsionada nos seus pontos fortes e não existe melhor exemplo do esforço em curso para aproveitar o potencial das megacidades. O novo plano de desenvolvimento e integração regional consubstanciado no projecto da AGB foi concebido como parte da estratégia nacional da “Iniciativa Cinturão e Rota (Iniciativa)”, que é o maior plano de desenvolvimento do país. É de esperar que o projecto da AGB tenha um apoio mais forte do governo central do que a cidade de Shenzhen tem desfrutado no seu caminho para o sucesso. Ainda que se encontre no seu estádio inicial, a fase de planeamento, ainda é caracterizada pela falta de detalhes, pois o projecto de desenvolvimento regional e de integração, atraiu muitos cépticos, que se tiverem a preocupação em observar a história do sucesso de Shenzhen e possuírem uma visão a longo prazo, poderão quiçá, visualizar o sucesso final do projecto da AGB, bem como as enormes oportunidades que oferecerá a todas as cidades participantes. O apoio total do governo central faz antever que a região de Guangdong, Hong Kong e Macau tem todas as condições necessárias para que um CCD de super cidade se desenvolva com sucesso e que incluem excelentes portos de águas profundas, centros de inovação possantes, mercados financeiros sofisticados, centros de transporte, bem como um enorme agrupamento de talentos. O plano preliminar para converter a AGB no maior contribuinte mundial em termos de Produto Interno Bruto (PIB) até 2030, foi apresentado à “Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China (CNDR)” de onde consta o desenvolvimento de um grupo de cidades na área, que abrange a maioria das regiões da China, onde o cantonense é falado. O “Centro Internacional de Intercâmbios Económicos e Técnicos de China (CIIETCH)”, estabelece os objectivo, gestão, desenvolvimento e as principais tarefas do plano para a área. É de esperar que a AGB até 2020, se torne uma das principais áreas de baía do mundo e forme o quadro básico para um agrupamento de cidades de categoria mundial. É de esperar que também, em 2030, a AGB tenha o PIB mais alto de todas as áreas de baía do mundo e seja um centro de produção avançado, bem como um importante elo global para a inovação, finanças, transportes e comércio. A AGB registará melhorias substanciais no seu dinamismo, em termos de cooperação e competitividade globais, e elevar-se-á à frente dos grupos de cidades de renome mundial no mesmo ano. As estimativas sugerem que o PIB da AGB chegará a quatro triliões e sessenta e dois mil milhões de dólares até 2030, acima do das áreas da baía de Tóquio, Nova Iorque e São Francisco e tornar-se-á líder entre as suas congéneres. O plano inclui importantes projectos de infra-estruturas, plataformas de desenvolvimento e cooperação económica e comercial que terão um impacto muito para além da AGB. A ideia de criar este plano surgiu em 2009, em um relatório de pesquisa para o desenvolvimento coordenado do grupo de cidades na grande região do “Delta do Rio das Pérolas”, publicado em conjunto pelos governos locais das três regiões. A iniciativa proposta é uma prova do significativo desenvolvimento económico da região. O PIB combinado das onze cidades da área atingiu um trilião e quatrocentos mil milhões de dólares em 2016, ou seja, 12 por cento da economia nacional, ainda que represente apenas 5 por cento da população do país. À medida que a área se desenvolve, a sua influência provavelmente estender-se-á para além dos limites geográficos do “cluster” da cidade, para desempenhar um papel fundamental na Iniciativa, servindo como um vínculo fundamental, que ligará os países da “Rota Marítima da Seda” ao longo do século XXI. O objectivo da iniciativa da AGB é ambicioso, pois combina Hong Kong, Macau e as cidades do “Delta do Rio das Pérolas” da província de Guangdong para criar uma região com o peso económico que é comparável às “Áreas da Baía de S. Francisco e de Nova Iorque” e à “Grande Área de Tóquio”, e para ter sucesso, as relevantes infra-estruturas, políticas e regulamentos terão que estar funcionáveis para garantir que pessoas, bens e serviços possam fluir livremente dentro da região. A transformação da China de uma economia agrícola em uma poderosa fonte de produção nas últimas décadas tem sido admirável. O país encontra-se a meio de outra mudança importante, para um serviço impulsionado pela economia e em nenhuma outra parte do mundo é mais verdadeiro que no “Delta do Rio das Pérolas”, onde Shenzhen, por exemplo, é um dos principais centros de inovação de alta tecnologia do mundo. A região também está no centro de uma rede de cadeias de fornecimento que ligam Guangdong ao resto do mundo, e é capaz de recorrer a uma forte base de produção. A região também é apoiada por indústrias de serviços financeiros e profissionais dos melhores do mundo. O crescimento futuro da região exige maior coordenação de recursos financeiros, materiais e humanos, daí a pressão da China para o estabelecimento da AGB. Esta iniciativa visa reunir as principais cidades da região do “Delta do Rio das Pérolas”, para construir uma nova potência, comparável a outros “clusters” da cidade como a “Grande Área de Tóquio”, a “Área da Baía de S. Francisco” e a “Grande Nova Iorque” . As onze cidades da AGB têm uma população total de quase sessenta e sete milhões de habitantes, sendo maior que a área metropolitana de Tóquio, que é o maior conjunto de cidades do mundo, com uma população de quarenta e quatro milhões de pessoas. A AGB possui um PIB combinado de um trilião e trezentos e quarenta mil milhões de dólares, que é inferior ao da “Grande Nova Iorque”, com um trilião e seiscentos e dez mil milhões de dólares e ao da “Grande Tóquio” com um trilião e setecentos e oitenta mil milhões de dólares, em 2016. Hong Kong continua a ser a maior economia da AGB. O seu PIB de trezentos e dezanove mil milhões de dólares, em 2016, será provavelmente ultrapassado no futuro previsível por Guangzhou com duzentos e oitenta e cinco mil milhões de dólares e Shenzhen com duzentos e oitenta e três mil milhões de dólares. Macau com um PIB de quarenta e quatro mil milhões e setecentos milhões de dólares, apenas está à frente das cidades de Jiangmen e Zhuhai. O conceito detalhado da AGB remonta a 2011, com um estudo chamado de ” Plano de Acção para a Zona da Baía do Estuário do Rio das Pérolas”, elaborado em conjunto por funcionários de Hong Kong, Macau, Shenzhen, Dongguan, Guangzhou, Zhuhai e Zhongshan. A ideia de uma cidade “cluster” no sul da China foi reforçada pelo “Décimo Terceiro Plano Quinquenal” para o período de 2016 a 2020 que foi aprovado na “Quinta Sessão Plenária do Décimo Oitavo Comité Central do Partido Comunista da China”, celebrada em Pequim, de 26 a 29 de Outubro de 2015, que levou à celebração de um acordo – quadro, em Julho de 2017, que foi assinado pelo principal órgão de formulação de políticas da China, a “Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC na sigla em língua inglesa) ” e os governos de Guangdong, Hong Kong e Macau. Um dos principais objectivos da AGB é melhorar o nível de cooperação dentro da região, que inclui a identificação das principais vantagens competitivas das cidades e explora formas para que se complementem como por exemplo, construir sobre a conjuntura forte de recursos financeiros e profissionais dos sectores de serviços de Hong Kong, a fabricação de alta tecnologia e capacidades de inovação de Shenzhen, e as forças de produção de Dongguan e Guangzhou. A AGB, tem o potencial de estender o seu alcance para além do “Delta do Rio das Pérolas”, para as províncias próximas de Fujian, Jiangxi, Hunan, Guangxi, Hainan, Guizhou e Yunnan, e tem como objectivo alcançar mercados no Sudeste e Sul da Ásia. O desenvolvimento da AGB, também deve actuar como um catalisador para a Iniciativa, que é uma estratégia ambiciosa que visa ligar as economias ao longo do “Cinturão Económico da Rota da Seda” (Ásia Central para a Europa) e a “Rota da Seda Marítima” (Sul da Ásia para a África e Médio Oriente), conjuntamente. As cidades da região oferecem uma ampla gama de competências e serviços e devem desenvolver-se de acordo com as suas vantagens comparativas. A possível abordagem prevê que a R&D deverá ser realizada em Shenzhen, Hong Kong ou Guangzhou e a produção em Dongguan e outras cidades do “Delta do Rio das Pérolas”. As empresas podem tirar proveito de Hong Kong com base no princípio “um país, dois sistemas “, que faz parte da China, mas com seus próprios regimes legais e financeiros, e também podem aproveitar o seu estatuto de Região Administrativa Especial, como porta de entrada entre a China e o mundo e como um centro financeiro internacional para angariação de fundos, gestão de activos, passivos e riscos, serviços de tesouraria corporativa, seguros e re-seguros e, mais recentemente serviços de renminbi no mercado offshore. A região possui algumas das cadeias de fornecimentos mais eficientes do mundo, bem como um grupo de talentos bem desenvolvido e bilingues. Os maiores movimentos transfronteiriços de capital, pessoas, bens e serviços dentro da AGB são essenciais para o desenvolvimento bem sucedido da região. As cidades da AGB enquadram-se em diferentes zonas alfandegárias, bem como em sistemas administrativos, pelo que as melhorias nos movimentos transfronteiriços dependem da cooperação e esforços das instituições e organismos interinstitucionais. A questão mais urgente é para os governos locais dentro da região colaborarem em uma ampla gama de temas, que incluem as políticas económicas, meio ambiente, transporte e as questões de harmonização regulatória. A conclusão da ponte Macau – Zhuhai – Hong Kong e a ligação ferroviária de alta velocidade vão melhorar a ligação terrestre e induzir maior cooperação entre as cidades da AGB, pelo que este tipo projectos somados a muitas outras iniciativas fará da região um contribuinte chave para a maior abertura da economia chinesa.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAcordo de extradição [dropcap style=’circle’] N [/dropcap] o dia 17 Fevereiro, a jovem Poon Hiu-wing, de 20 anos de idade, foi assassinada em Taiwan. O suspeito do homicídio é o namorado, Chan Tong-kai, de 19 anos, antigo estudante do Community College de Hong Kong, pertencente à Universidade Politécnica. Os jornais anunciaram que o casal tinha viajado para Taiwan no dia 8 de Fevereiro, mas que Chan tinha regressado sozinho a Hong Kong no dia 17. Os procuradores de Taiwan afirmaram que Poon foi estrangulada no Hotel Purple Garden, na sequência de uma discussão com o namorado. Suspeita-se que Chan tenha colocado o corpo dentro de uma mala e que o tenha feito sair do hotel. No registo das câmaras de vigilância, pode ver-se o jovem a sair do hotel no dia 17, transportando uma mala pesada. A polícia de Taiwan acredita que o cadáver de Poon estava dentro da mala. Até ao momento ainda não foi possível apurar o motivo do crime, no entanto correm rumores de que a jovem estaria grávida de um outro homem. O cadáver de Poon foi descoberto em Taipei, perto da estação de Zhuwei. Esta descoberta deu-se no mesmo dia em que Chan foi preso em Hong Kong por furto. Chan tinha sido acusado de furto e de posse de bens roubados. Foi acusado de ter subtraído o cartão bancário de Poon, uma câmara, o telemóvel e 20.000 Taiwan dólares. Foi ainda acusado de ter feito dois levantamentos da conta de Poon nos finais de Fevereiro, em caixas automáticas de Hong Kong. Este caso levanta um problema legal. Como o homicídio aconteceu em Taiwan, estará sob a alçada da jurisdição local e é lá que o julgamento deverá ter lugar. No entanto, o suspeito está em Hong Kong. Como Hong Kong e Taiwan não celebraram um acordo de extradição, não parece provável que venha a sair. Desta forma, poderá nunca vir a ser julgado por este crime. Hong Kong assinou com diversos países e regiões 29 tratados de assistência legal mutua e 19 acordos de detenção de fugitivos. Taiwan não faz parte desta lista. Sem acordo de extradição, o suspeito pode escapar ao castigo. Como o crime aconteceu em Taiwan, os Tribunais de Hong Kong não têm competência para o julgar. No entanto, o caso seria tratado de forma diferente se parte dos actos criminosos tivessem ocorrido em Hong Kong. Se, por exemplo, se tivesse tratado de um crime premeditado, e o suspeito tivesse comprado em Hong Kong instrumentos para o cometer, estaríamos perante outro cenário. Pela Lei dos Procedimentos Criminais, o Tribunal local só pode actuar se parte do acto criminoso tiver ocorrido na região. Desta forma, a menos que a polícia de Hong Kong encontre provas de que o suspeito cometeu parte do acto criminoso em Hong Kong, o Tribunal local nada poderá fazer. Se o suspeito não voltar a Taiwan, nunca mais poderá ser responsabilizado pelo seu crime. Sabe-se pelos jornais que a polícia de Taiwan pediu aos colegas de Hong Kong mais provas para o processo. Entre elas encontra-se a gravação do depoimento feito na esquadra local. Espera-se que estes elementos possam ajudar a polícia de Taiwan a determinar mais factos relevantes. A gravação dos depoimentos é uma forma de provar que as declarações foram obtidas de forma legal, sem recurso a métodos coercivos. No entanto, deste depoimento não é suficiente para acusar o suspeito de homicídio em Hong Kong. Por seu lado a polícia de Taiwan está impotente devido à não comparência do suspeito. Mas talvez possa existir uma solução para o problema. Mesmo sem o acordo de extradição, o Governo de Taiwan pode emitir uma carta de solicitação. Quando a solicitação der entrada, o Governo de Hong Kong pode preparar uma proposta de lei excepcional e pedir a aprovação do Conselho Legislativo. Se a proposta for aprovada passa a lei. Nessa altura, poderá ser emitido um mandato de captura e a polícia poderá prendê-lo e entregá-lo ao Governo de Taiwan. Mas este tipo de acordo só será válido para esta situação específica. Se vier a acontecer, será a primeira vez que o Governo de Hong Kong opta por esta solução. Assim, a longo prazo, é vital que se considere o acordo de extradição. Como já mencionámos, desconhecem-se os motivos que levaram ao homicídio. Mas, pelo que já sabemos, o suspeito parece ter agido com bastante sangue frio. Após estrangular a vítima, colocou o cadáver numa mala, saiu do hotel, apanhou o comboio e largou o corpo no campo. Fez tudo sozinho, aparentemente sem medo e sem remorsos. Será que desconhece a importância da vida? Será que ainda um dia se virá a arrepender? É importante saber a resposta a estas perguntas para compreender os seus motivos e a sua forma de pensar e poder julgá-lo de forma justa. À semelhança de Hong Kong, também Macau não tem acordo de extradição com Taiwan. Se acontecer algo de género em Macau, o que deveremos fazer? A experiência de Hong Kong é um bom exemplo para nos prepararmos para o pior.
João Luz VozesO cosmopolita [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] epicentro sou eu. Tudo em meu redor é suburbano e menor. Nasci e fui criado no campo e hoje, olhando para trás, sinto-me a milhas das minhas origens, renascido das cinzas da pessoas que fui. Se há coisa que me põe mal disposto são manifestações de provincianismo, principalmente aquelas que reflectem o meu passado, aquelas nas quais me revejo a grande custo. Na realidade, tremo de terror só de pensar na minha antiga vida, na pessoa que fui, nas parcelas do somatório que resultaram em mim. Tão ingénuo que eu era, simplório como uma galinha, longe de saber o que é uma vernissage, incapaz de distinguir entre uma instalação e um amontoado de tralha, entre um monocasta e uma pomada de tasca. Este belo edifício de erudição tem alicerces rudimentares, rebocos simplórios, chãos alcatifados e sofás forrados a plástico. Fui acrescentando, pouco a pouco, andares à barraca inicial que deu tecto ao meu nascimento e hoje sou um frondoso arranha-céus, um colosso que desafia a gravidade das mais aprumadas convenções sociais. Abri todas as minhas janelas às aragens do cosmos e é aí que fundo a minha cidadania e identidade. Confesso que ao princípio até tinha algum orgulho em ser sufocado pela asfixia do stress. Gostava de descrever o reboliço, em tom de lamento, aos meus conterrâneos nas minhas primeiras visitas depois do meu sofisticadíssimo renascimento. Sentia-me grande como um continente ao ver os olhos esbugalhados dos meus antigos amigos. Coitados, pobres trogloditas, para sempre abençoados pela Santa Ignorância. Na realidade, a proximidade e o confronto com aquele provincianismo que me fundou agiganta o meu cosmopolitismo, faz de mim quem sou e sempre quis ser. Sou o protótipo do novo Homem Moderno, essa raça que se reinventa a cada início de século, como uma aplicação biológica em constante actualização. Exibo a minha mulher-troféu, obviamente de outra etnia, pelos palcos da sociedade bem pensante. Pavoneio-me pela multiculturalidade que serve de álibi aos meus mil preconceitos, raízes últimas do meu passado primário. O meu corpo é o meu templo, preservado com cuidado extremo e cremes hidratantes, dietas da estação e as melhores vestimentas que o dinheiro pode comprar. Tudo o que sirva para ocultar o perfume a terra que ainda se sente debaixo das minhas unhas e a pele precocemente curtida pelo sol do labor campestre. Ironicamente, este cosmopolitismo que orgulhosamente professo impõe que me retire para o campo, para fugir da cidade, que transforme aquilo que é natural em conceitos hediondos como “rústico”, ou “autêntico”. Um dia destes regresso, um estrangeiro na minha própria terra, orgulhosamente inapto perante a crueza da vida agrária. Minhas mãos suaves como as de uma criança mimada da cidade. Sem os sulcos que cicatrizam o labor campesino, esse mapa de calos e gretas onde se inscrevem os ciclos de colheitas e a alimentação das bestas nas mãos dos homens de barba rija. A minha é suave e cuidada com cera especial. O mundo é a minha ostra, pronta para ser sorvida com champanhe gelado. Sou um pregador da indiferença perante a cultura nos ciclos onde gosto de projectar a voz. Fronteiras e soberanias nacionais são conceitos obsoletos, quando o universo é a nossa casa. Apenas uma delimitação terrestre subsiste como um quisto geográfico no meu peito: a aldeia, esse trauma irreconciliável com a minha posição. Pelo-me de medo perante a possibilidade de dar de caras com um conterrâneo na minha metrópole. Como lhe poderei explicar que sou outro, que evolui para outro patamar de existência? Impossível. Sou um Homem-Estado, tenho a minha própria constituição e rejo-me pelas leis do meu corpo. Esta é a unidade de soberania a que todos devem almejar para que se destrua, de uma vez por todas, a fantasia gregária das sociedades ancestrais. Curiosamente, apesar desta holística mundividência, quis o destino que viesse viver para Macau, essa representação exótica da minha aldeia, emparedada por fronteiras por todos os lados. Mas a minha alma não precisa de visto para viajar pela derradeira pátria universal. Haverá coisa mais cosmopolita que esta.
Sérgio de Almeida Correia Manchete VozesMacau Jockey Club | Apurar responsabilidades no deboche “No organization or individual is privileged to act beyond the Constitution or the law. All acts in violation of the Consitution or the law must be investigated. (…) We must ensure that all citizens enjoy extensive rights in accordance with the law, that their right of the person and property and basic political rights are inviolable, and that their economic, cultural and social rights are exercised. We must safeguard the fundamental interests of the overwhelming majority of the people, and fulfill their aspirations for and pursuit of a better life. We should address public demands impartially and in accordance with the law, enable the people to feel that justice is served in everyt case before the courts, and eradicate elements that hurt their sentiments or damage their interests.”, Xi Jinping, 4/12/2012, Commemorate the 30th Anniversary of the Promulgation and Implementation of the Current Constitution As condições em que ocorreu a renovação da concessão da Companhia de Corridas de Cavalo de Macau, mais conhecida como Macau Jockey Club (MJC), pela falta de transparência de todo o processo que conduziu à situação actual, permitindo uma renovação por mais 24 anos e 6 meses de um negócio altamente deficitário e do qual se comprova agora que a comunidade não retira os benefícios devidos, assume foros de escândalo. E os dados que estavam em cima da mesa e que aos poucos vão sendo conhecidos da população vêm confirmar aquilo que há muito se suspeitava: na RAEM a aplicação da lei é obscenamente selectiva e o grau de exigência do seu cumprimento não é igual para todos. Oportunamente já o economista Albano Martins havia chamado a atenção para o tratamento que essa empresa concessionária estava a receber do Governo da RAEM. As declarações ontem proferidas pelo Secretário para a Economia e Finanças que revelam a existência de uma dívida acumulada de mais de 150 milhões de patacas aos cofres da RAEM e um comportamento recorrentemente relapso que se prolonga há vários anos e que inclusivamente levou há alguns anos à introdução de alterações e revogação de cláusulas do contrato de concessão, constituem, pois, motivo de forte preocupação para todos os cidadãos cumpridores da lei. Que a aplicação da lei estava a ser selectiva, dessa forma se violando em termos inequívocos a Lei Básica e a própria Constituição da República Popular da China, há muito que se desconfiava. Em especial depois do Secretário para a Segurança ter publicamente admitido que as autoridades tinham utilizado uma medida para com um adversário político do Governo, numa questão de lana caprina, diferente daquela que fora usada em relação aos desacatos provocados pelos enganados promitentes-compradores do “Pearl Horizon”. A bizarra decisão de renovação da concessão do MJC coloca também em xeque decisões anteriores do Executivo da RAEM, muito em particular todas as que dizem respeito à rescisão e declaração de caducidade de contratos de concessão de terras que tiveram por fundamento incumprimentos contratuais por parte dos concessionários. Quem aplaudiu, como eu, a decisão do Governo de resgatar os terrenos aos concessionários relapsos não pode ficar calado perante este deboche que constitui a renovação da concessão do MJC. Na verdade, não se percebe por que razão o Governo da RAEM foi, e bem, tão exigente para com os concessionários dos terrenos que não cumpriram as suas obrigações contratuais e é agora tão tolerante para com quem durante anos seguidos não cumpre. Repare-se que a cláusula 29.º do Contrato de Concessão (1995) referia, sob a epígrafe “Rescisão do Contrato”, o seguinte: “Um. Além do caso especial previsto no número quatro da cláusula anterior [suspensão da concessão por iniciativa do concedente], a concessionária fica ainda sujeita à rescisão deste contrato nos casos seguintes: (…) c) Quando deixar de pagar à entidade concedente, nos prazos e pela forma estipulados, a renda, as percentagens e outras quantias previstas no presente contrato; (…) Dois. A falta de pagamento da renda contratual e adicionais previstos neste contrato, bem como dos respectivos acréscimos percentuais, importa, sem prejuízo da rescisão da concessão, relaxe das respectivas dividas nos termos do Código das Execuções Fiscais. Três. No caso da rescisão reverterão para o Território, sem direito a qualquer indemnização, o imóvel destinado à exploração do exclusivo e todos os móveis a ele afectos, as benfeitorias introduzidas no terreno arrendado e, bem assim a caução. Quatro. A rescisão deste contrato implicará, também, a rescisão do contrato de arrendamento do terreno, sem direito a qualquer indemnização.” A decisão tomada pelo Governo da RAEM de renovar a concessão do MJC, pela sua opacidade e irracionalidade económica, traz problemas acrescidos em relação a outras situações que envolvam o respeito pelos princípios da igualdade e da legalidade, designadamente em matéria de concursos públicos. Porque se um concessionário incumpridor pode ver a concessão renovada tendo violado em termos tão gravosos as suas obrigações para com o Governo da RAEM, então nada impede que uma empresa com dívidas ao fisco, porque é disto mesmo que se trata, se possa apresentar nesses concursos em condições de igualdade com as empresas que cumprem as suas obrigações fiscais. Para que servem a prestação de cauções e de garantias nas empreitadas? Pior do que tudo isso é que essa perversa decisão também desvirtua a livre concorrência entre empresas, permitindo que haja umas mais iguais do que outras a operar no mercado, com isso transmitindo um péssimo sinal à sociedade e aos jovens: na RAEM é possível deixar alegremente de cumprir contratos com o Governo, não havendo qualquer inconveniente nisso e sendo merecedor de um tratamento de favor, porque a simples promessa de se vir a cumprir, mesmo que não haja qualquer garantia, justifica uma extensão pornográfica do prazo da concessão, e ainda que daí não resulte benefício visível para o interesse público. Espera-se pois que o Comissário Contra a Corrupção analise este processo de fio a pavio e seja tão rigoroso quanto o foi noutras situações para se perceber quem e em que medida falhou tão escandalosamente na defesa dos interesses da RAEM e da RPC. E para que o MP possa exercer as suas competências com o mesmo zelo com que acusou o deputado Sulu Sou, de maneira a que os senhores do Grupo de Ligação tenham alguma coisa decente com que se preocuparem. Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesLiderança colectiva ou oligárquica Pelo que consta, Xi Jinping voltou a ser eleito para o cargo de Presidente da China no 13º Congresso Nacional do Povo (CNP), tendo sido Wang Qishan designado para Vice-Presidente, Li Zhanshu para Presidente do Comité Permanente do CNP, Wang Yang para Presidente do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, e Li Keqiang terá sido reeleito como Primeiro Ministro. A nova liderança da China, com Xi Jinping no centro do poder, está finalmente definida. Os resultados foram conhecidos antes da votação dos delegados do CNP, o que quer dizer que a votação é uma mera formalidade. A situação é semelhante à que ocorreu aquando da eleição do Chefe do Executivo de Macau. Se prestarmos atenção à História do povo chinês, compreendemos que a sua noção de democracia e de liberdade é débil, este povo sempre se acostumou a viver sob o autoritarismo. Mesmo quando o sistema imperial foi derrubado na China, há cem anos atrás, e Yuan Shikai foi eleito como o primeiro Presidente da República, pouco tempo depois declarou-se Imperador. A ideologia de Sun Yat-sen, que incluía uma série de pensamentos políticos ocidentais, não passou de um conjunto de teorias. Combatia a ideologia imperial que tinha vigorado por muitos séculos, alicerçada no sistema feudal, e não se revia no comunismo que defendia a ditadura do proletariado. Os “Três Princípios do Povo” e os “Cinco Poderes da Constituição” implementados por Sun Yat-sen, inspirados no pensamento político ocidental, não passaram de teorias que não conseguiram combater de forma eficaz o sistema imperial enraizado numa sociedade feudal, nem o comunismo que defendia a ditadura do proletariado. Chiang Kai-shek em Taiwan e Mao Tsé Tung na China, permaneceram no poder até ao fim das suas vidas. No fim de contas, do que é que a China precisa, de uma liderança colectiva ou de uma liderança oligárquica? Depois de Deng Xiaoping ter passado pela Revolução Cultural, formulou um novo conjunto de regras para o jogo do poder. Embora nunca tenha assumido o título de líder supremo da Nação chinesa, tendo sido sim o arquitecto da reforma e das políticas de abertura, para não falar da influência significativa que exerceu sobre as Forças Armadas, não lhe foi difícil mudar o Secretário Geral do Comité Central do Partido Comunista. Mas para a China, é difícil compreender o significado da verdadeira democracia, da liberdade e o conceito do estado de direito. Durante a ascensão e a queda das Dinastias na História da China, o papel desempenhado pelo povo e pelas instituições foi importante, embora sujeito à influência de condicionalismos internos e externos. No entanto, qualquer medida produz uma panóplia de efeitos e o seu sucesso depende da capacidade de se adaptar à situação existente. Após o incidente de 4 de Junho de 1989, as reformas do sistema político estagnaram. Mas as reformas económicas geraram lucros gigantescos, enquanto o poder se transformava num ninho de corrupção. A liderança colectiva foi gerando problemas institucionais e, gradualmente, foram-se formando grupos de interesses. Através de jogos de poder, os interesses individuais foram vingando. Em resultado dessas manobras, foram surgindo diversas questões no seio do Partido Comunista e da própria sociedade. Quando a crise se instalou, o autoritarismo oligárquico deu entrada na cena política. A emenda constitucional revogou a restrição para a reeleição do Presidente da Nação e a indigitação de responsáveis vai contra a prática habitual, até aqui conhecida como “até aos sete fica, aos oito vai-se” (os responsáveis de topo deveriam ficar no poder até aos 67 anos e reformar-se aos 68). Tudo isto demonstra que a China precisa de um poder central forte de forma a enfrentar a incertezas que se avizinham. A duração desta situação vai depender das mudanças sociais. Durante 13º Congresso Nacional do Povo, a única coisa que me agradou foi a manutenção da cerimónia do “juramento de lealdade”. É um acto simbólico do estado de direito. É a promessa de que o País será governado de acordo com a lei. Existem relações circunstanciais entre as pessoas, a sociedade e o sistema e estes elementos estão na origem da liderança colectiva e da liderança oligárquica. A prevalência de qualquer uma delas está nas mãos das pessoas envolvidas. Leocardo China / Ásia VozesDa Rússia, com ardor [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ivemos eleições na Rússia no passado fim-de-semana, e como seria de esperar, o actual presidente e oligarca Vladimir Putin obteve uma vitória esmagadora. O sufrágio não foi o que pode propriamente chamar de um hino à democracia, tendo ficado marcado por inúmeras irregularidades, desde a captura de imagens dos boletins de voto, até à oferta de bilhetes para concertos aos eleitores, entre outros episódios que dariam água pela barba aqui ao nosso CCAC, em Macau. Diria mais: que os faria corar de vergonha. É indiscutível que o povo russo está do lado de Putin, o seu novo homem forte depois de José Estaline, o único que cumpriu um mandato (?) mais longo que o actual presidente. Se em termos de popularidade não há nada a apontar, o mesmo não se pode dizer quanto à sua legitimidade; os rivais do presidente russo dignos desse nome foram sistematicamente eliminados, e ora estão detidos, ora no exílio, ora mortos. A consolidação do poder da parte de Vladimir Putin na Rússia, e igualmente de Xi Jinping na China colocam-nos perante um novo paradigma, ao que não é alheia a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, há um ano e meio. As maiores potências do planeta voltam-se para dentro, procurando fazer valer os seus interesses num contexto internacional problemático, agravado pela guerra na Síria e pela situação delicada na península coreana, tudo ameaças consideráveis à paz e à estabilidade mundial. Tudo isto certamente que preocupa os amantes da liberdade e da democracia, e levanta sérias reservas quanto ao futuro, cada vez mais incerto. A democracia directa, ou o conceito de “uma pessoa, um voto”, não agrada a todos, e mesmo nesta última semana os seus detractores tiveram acontecimentos a que podem facilmente apontar o dedo. Em França o ex-presidente Nicholas Sarkozy foi detido no âmbito de uma investigação sobre o financiamento da sua campanha em 2017 – quem diria. Mesmo em Portugal, o maior partido da oposição foi notícia pelos piores motivos, quando o seu recém apontado secretário-geral foi obrigado a deixar o cargo depois de (embaraçosas) revelações a respeito do seu currículo, que continha uma série de inverdades (para ser simpático), bem como dúvidas quanto à sua morada fiscal (outra vez, hoje sinto-me especialmente generoso). Não surpreende portanto que se venha assistindo a uma onda de populismo, e ao recrudescimento da extrema-direita na Europa. É realmente pena. Eu acredito na democracia. Ainda acredito. Não vou baixar a cabeça, e prefiro pensar que isto não passa de uma fase. A própria espécie humana, disucutivelmente com mais defeitos que virtude, nunca conviveu muito bem com a diversidade de opinião, não é de hoje, e depois de duas lamentáveis guerras no século passado, convenceu-se de que se calhar seria melhor procurar um equilíbrio, um consenso entre todos os seus intervenientes, colocando de lado as diferenças. Já se percebeu e vai-se percebendo que cada vez mais que esta é uma tarefa complicada. Precisamos da classe política, não há que negá-lo, e precisamos de puxar por ela também. É urgente uma geração de homens e mulheres que sirvam antes de se servirem, a bem fa humanidade. E quer na Rússia, quer na China, esta pretensão vai ficando adiada. Por enquanto, apenas, esperamos todos. Tânia dos Santos Sexanálise VozesA Luta e as Derrotas [dropcap style =’circle’] A [/dropcap] 14 de Março de 2018, no Rio de Janeiro, Marielle Franco foi morta/assassinada/ executada por ser quem era. Perdão, não foi só por ser quem era, mas por lutar por aquilo em que acreditava. Não foi um simples crime de ódio, e isto digo-o com alguma certeza: foi um crime político. Silenciou-se a voz de uma mulher, negra, feminista e defensora dos direitos humanos. Ao longo de tantos séculos de humanidade e civilização quantas vozes já foram silenciadas? Muitas, demasiadas. Mas desta vez bateu-me forte. Esta era uma voz contemporânea, uma voz com a qual poderia ter-me identificado. Muitas ideias que já partilhei aqui, neste espaço de escrita, vezes sem conta, cairiam no mesmo espectro ideológico. Aquele em que acredita que é precisa a emancipação plena das sexualidades, das raças, e das condições de vida humanas. A luta, que deveria ser de todos, é somente para aqueles que a julgam absolutamente necessária. Mulheres de todo o mundo, uni-vos! Da China ao Brasil, mostrem a palavra, as vossas ideias de igualdade e a vossa militância pelo fim da injustiça. Na criatividade contínua ou pontual descobrem-se novas formas de irreverência, novas formas de dar visibilidade à dor de muitos. Dar voz aos oprimidos e injustiçados não é somente mostrar como a vida é filha da mãe. Dá-se visibilidade e põe-se em causa as estruturas, permitem-se mudanças – tem-se esperança que a voz de uns possa um dia dar a voz a muitos mais. Perseverança, resiliência e teimosia são as características obrigatórias para quem quiser alistar-se a este exército. Há a resistência verbal e física, há resistência em forma de balas e de tortura. Não consigo não admirar as muitas pessoas, e muitas mulheres, que deram o corpo e espírito ao manifesto, à causa, qualquer que seja. Haverão lutas mais dignas que outras? Mais necessárias que outras? Isso já são preciosismos que me ultrapassam. Atrevo-me a celebrar a neta que quis dar voz à avó que era prostituta (obrigada Zhang Lijia), ao J-Bo que antes era a Joana (obrigada por seres o primeiro transexual masculino em Macau) e a todxs xs outrxs que marcam, continuamente, a esfera pública e o nosso imaginário colectivo. Grandes, médios e pequenos gestos que vão semeando mudança. As sementes caiem por entre as pedras calcárias do passeio e, contra todas as expectativas, as plantinhas crescem na adversidade. Nós nem sabemos bem como, mas crescem. A 14 de Março de 2014, em Beijing, Cao Shunli morreu por ser quem era. Perdão, por lutar por aquilo em que acreditava. Quatro anos e 17310 km que separam duas mortes de mulheres que atreveram mostrar a sua voz. Que raio de coincidência infeliz. Estas são as derrotas, o que querem que vos diga? Gostava que não acontecessem. Ainda assim vivo iludida de que ‘perder’, não nos desanima nem nos enfraquece. Quanto muito a derrota fortalece ou enraivece, cria massa crítica para mais confronto. O que é que isto tudo tem que ver com sexo? Tem tudo e nada. Face a estas e tantas outras derrotas – aliás, parece que vivemos num mundo triste, ultimamente – tenho criado o meu espaço de protesto, tenho dado forma à voz do sexo que no fundo poderia ser a voz de tudo o que nos preocupa. Esforço-me por exorcizar os meus demónios nesta tentativa débil de criação, e de resistência. David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesMediatismos no Tribunal [dropcap style=’circle’] O [/dropcap] antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi acusado de ter aceitado da Wave Media a quantia de 3,8 milhões de HKD (487.000 USD) para remodelar uma penthouse na China. Em paga do favor, Donald Tsang ter-se-ia mostrado “favorável” à concessão da licença de emissão para a operadora de Rádio, no período em que exercia funções como Presidente do Conselho Executivo. Bill Wong Cho-bau, o maior accionista daquela operadora, era proprietário da penthouse e pagou as obras de remodelação. O caso foi apresentado perante um júri no Supremo Tribunal. Presidiu o juiz Andrew Chan Hing-wai. Como no final não foi possível que 6 dos 8 jurados concordassem com a acusação, Donald Tsang saiu em liberdade. No entanto, a apreciação final apresentada por escrito pelo juiz Andrew Chan incluía muitos comentários sobre o caso. Se ainda estiverem recordados das notícias que saíram durante o julgamento, um dos jurados, então referido como Mr. Q, perseguiu e chegou à fala como uma famosa estrela mediática, que se tinha deslocado ao Tribunal como apoiante de Donald Tsang. Mr. Q era um fã de longa data desta celebridade, pelo que a interpelou e fizeram-se fotografar juntos. O procurador separou imediatamente Mr. Q do resto dos jurados e reportou o caso ao juiz. Temendo uma possível parcialidade do jurado, o juiz afastou-o do júri. No parágrafo 32 da sua apreciação, o juiz declara, “…… Mr. X (a celebridade) foi introduzido no Tribunal por um elemento de uma empresa de relações públicas, ao contrário dos cidadãos normais que tiveram de esperar na fila para entrarem. Quando entrou sentou-se na área reservada à família e aos amigos do réu …” Nos parágrafos 36, 38 e 39, o juiz refere, “O processo que levou ao afastamento de Mr. Q, fez-me perceber pela primeira vez que uma empresa de relações públicas e consultoria, tinha sido envolvida neste julgamento. De facto, eles estiveram constantemente presentes, dentro e fora do Tribunal, ao longo do primeiro julgamento e também do segundo, mas na altura eu não tinha tomado consciência das suas funções, já que todos os cidadãos têm direito a assistir às audiências.” “A família e os amigos do réu têm todo o direito de estar presentes no julgamento, para observarem os trabalhos e para o apoiarem. O que não é permitido de forma alguma, a estas ou a quaisquer outras pessoas, é tentar exercer influência sobre membros do júri. Interferir com o júri é subestimar os alicerces do nosso sistema jurídico.” “Antes do início do primeiro e do segundo julgamento, o Réu, através dos seus advogados, pediu o consentimento do tribunal para reservar lugares para os seus amigos e familiares. O pedido foi deferido. Ao longo do segundo julgamento, especialmente durante a parte final, antigos colegas do Réu, como, os seus antigos Secretário das Finanças e da Justiça, antigos Conselheiros do Partido Democrata, Conselheiros em funções da Aliança Democrática para o Melhoramento e Progresso de Hong Kong, e proeminentes figuras religiosas, estiveram presentes no Tribunal em diferentes ocasiões, introduzidos pela empresa de relações públicas e consultoria, e tomaram assento na área reservada, à semelhança de Mr X. O objectivo destas presenças era, sem dúvida, mostrar ao júri que o Réu era uma pessoa de bem, apoiado pelas figuras mais destacadas da sociedade.” A “empresa de relações públicas e consultoria” mencionada pelo juiz é normalmente uma empresa ou uma pessoa singular que trabalha a favor da boa imagem do réu. O júri deve ouvir todos os testemunhos que são dados no Tribunal e analisar todas as provas. Estas provas são apreciadas pela Acusação e pela Defesa. Depois de todas as provas terem sido aceites e examinadas, são submetidas à apreciação do júri para que seja emitido um veredicto de inocência ou de culpa. No julgamento de Donald Tsang estiveram presentes muitas celebridades, que se sentaram na área exclusivamente reservada a amigos e familiares do réu, de forma a que todos os jurados os pudessem ver distintamente. Existe a possibilidade de que a presença destas personalidades possa ter influenciado o júri a acreditar na inocência do réu; neste cenário, a hipótese de o réu ter cometido um crime será baixa e, portanto, não é culpado. E porque é que os jurados se deixam afectar por estas disposições? Porque são todos pessoas comuns. Qualquer pessoa que tenha completado o ensino secundário e tenha mais de 21 anos pode integrar um júri. Não são escolhidos entre os famosos, e não podem ser especialistas em leis. Os jurados podem ser facilmente influenciados por estes cenários. Se isto for possível, então pode ser também possível que, perante uma situação deste género, a decisão do júri, ao invés de ser tomada a partir das provas apresentadas, possa partir de factores exteriores ao processo. Se for o caso, o estado de direito está a ser respeitado? Se o estado de direito não for respeitado, a população vai continuar a confiar no sistema jurídico? O Tribunal é um espaço aberto a todos os cidadãos. Em Hong Kong, as pessoas são livres de entrar e de sair de uma sala de audiências, e a presença de pessoas famosas não vai contra a lei. Mas a presença de celebridades pode afectar a decisão do júri e, desta forma, afectar o grau de confiança que a população deposita no nosso sistema jurídico, e assim pode ser encarada como um pouco “imoral”. É preciso contrabalançar os interesses de ambas as partes e ter em consideração o estatuto social de Donald Tsang. Donald Tsang foi Chefe do Executivo de Hong Kong, a maior parte dos seus amigos são pessoas de nomeada. A sua presença em Tribunal pode ser apenas uma forma de lhe demonstrarem o seu apoio. Se assim for, o objectivo não será influenciar o júri, mas sim apoiar um amigo. Mas agora façamos uma visita ao website dos Tribunais de Hong Kong. Na página “Sala de Audiência Tecnológica”, IMAGEM – PROCEDIMENTOS JURÍDICOS E SISTEMAS DE TRANSMISSÃO”, pode ler-se, “A Sala de Audiências Tecnológica está equipada com um Sistema de Transmissão para contemplar situações em que o público não cabe todo no Tribunal. Se o juiz assim o desejar, a sala de espera contígua à sala de Audiências Tecnológica pode ser imediatamente convertida numa extensão do Tribunal. Assim que o sistema de transmissão for activado, quem está sentado no exterior pode assistir à sessão através de ecrãs LCD.” Se quisermos evitar o efeito potencialmente pernicioso da presença de celebridades na sala de audiências, poderemos reservar os lugares na sala apenas para familiares e amigos chegados, ficando os VIPs acomodados na sala exterior, onde podem assistir à sessão através dos ecrãs colocados para o efeito. Macau implementa o sistema jurídico continental e, por isso, os julgamentos dispensam a presença de um júri. O juiz é o único responsável pelas sentenças. A decisão do juiz é a voz da lei, e não a de pessoas comuns. A vantagem é óbvia. «1...74757677787980...113»
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesLiderança colectiva ou oligárquica Pelo que consta, Xi Jinping voltou a ser eleito para o cargo de Presidente da China no 13º Congresso Nacional do Povo (CNP), tendo sido Wang Qishan designado para Vice-Presidente, Li Zhanshu para Presidente do Comité Permanente do CNP, Wang Yang para Presidente do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, e Li Keqiang terá sido reeleito como Primeiro Ministro. A nova liderança da China, com Xi Jinping no centro do poder, está finalmente definida. Os resultados foram conhecidos antes da votação dos delegados do CNP, o que quer dizer que a votação é uma mera formalidade. A situação é semelhante à que ocorreu aquando da eleição do Chefe do Executivo de Macau. Se prestarmos atenção à História do povo chinês, compreendemos que a sua noção de democracia e de liberdade é débil, este povo sempre se acostumou a viver sob o autoritarismo. Mesmo quando o sistema imperial foi derrubado na China, há cem anos atrás, e Yuan Shikai foi eleito como o primeiro Presidente da República, pouco tempo depois declarou-se Imperador. A ideologia de Sun Yat-sen, que incluía uma série de pensamentos políticos ocidentais, não passou de um conjunto de teorias. Combatia a ideologia imperial que tinha vigorado por muitos séculos, alicerçada no sistema feudal, e não se revia no comunismo que defendia a ditadura do proletariado. Os “Três Princípios do Povo” e os “Cinco Poderes da Constituição” implementados por Sun Yat-sen, inspirados no pensamento político ocidental, não passaram de teorias que não conseguiram combater de forma eficaz o sistema imperial enraizado numa sociedade feudal, nem o comunismo que defendia a ditadura do proletariado. Chiang Kai-shek em Taiwan e Mao Tsé Tung na China, permaneceram no poder até ao fim das suas vidas. No fim de contas, do que é que a China precisa, de uma liderança colectiva ou de uma liderança oligárquica? Depois de Deng Xiaoping ter passado pela Revolução Cultural, formulou um novo conjunto de regras para o jogo do poder. Embora nunca tenha assumido o título de líder supremo da Nação chinesa, tendo sido sim o arquitecto da reforma e das políticas de abertura, para não falar da influência significativa que exerceu sobre as Forças Armadas, não lhe foi difícil mudar o Secretário Geral do Comité Central do Partido Comunista. Mas para a China, é difícil compreender o significado da verdadeira democracia, da liberdade e o conceito do estado de direito. Durante a ascensão e a queda das Dinastias na História da China, o papel desempenhado pelo povo e pelas instituições foi importante, embora sujeito à influência de condicionalismos internos e externos. No entanto, qualquer medida produz uma panóplia de efeitos e o seu sucesso depende da capacidade de se adaptar à situação existente. Após o incidente de 4 de Junho de 1989, as reformas do sistema político estagnaram. Mas as reformas económicas geraram lucros gigantescos, enquanto o poder se transformava num ninho de corrupção. A liderança colectiva foi gerando problemas institucionais e, gradualmente, foram-se formando grupos de interesses. Através de jogos de poder, os interesses individuais foram vingando. Em resultado dessas manobras, foram surgindo diversas questões no seio do Partido Comunista e da própria sociedade. Quando a crise se instalou, o autoritarismo oligárquico deu entrada na cena política. A emenda constitucional revogou a restrição para a reeleição do Presidente da Nação e a indigitação de responsáveis vai contra a prática habitual, até aqui conhecida como “até aos sete fica, aos oito vai-se” (os responsáveis de topo deveriam ficar no poder até aos 67 anos e reformar-se aos 68). Tudo isto demonstra que a China precisa de um poder central forte de forma a enfrentar a incertezas que se avizinham. A duração desta situação vai depender das mudanças sociais. Durante 13º Congresso Nacional do Povo, a única coisa que me agradou foi a manutenção da cerimónia do “juramento de lealdade”. É um acto simbólico do estado de direito. É a promessa de que o País será governado de acordo com a lei. Existem relações circunstanciais entre as pessoas, a sociedade e o sistema e estes elementos estão na origem da liderança colectiva e da liderança oligárquica. A prevalência de qualquer uma delas está nas mãos das pessoas envolvidas.
Leocardo China / Ásia VozesDa Rússia, com ardor [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ivemos eleições na Rússia no passado fim-de-semana, e como seria de esperar, o actual presidente e oligarca Vladimir Putin obteve uma vitória esmagadora. O sufrágio não foi o que pode propriamente chamar de um hino à democracia, tendo ficado marcado por inúmeras irregularidades, desde a captura de imagens dos boletins de voto, até à oferta de bilhetes para concertos aos eleitores, entre outros episódios que dariam água pela barba aqui ao nosso CCAC, em Macau. Diria mais: que os faria corar de vergonha. É indiscutível que o povo russo está do lado de Putin, o seu novo homem forte depois de José Estaline, o único que cumpriu um mandato (?) mais longo que o actual presidente. Se em termos de popularidade não há nada a apontar, o mesmo não se pode dizer quanto à sua legitimidade; os rivais do presidente russo dignos desse nome foram sistematicamente eliminados, e ora estão detidos, ora no exílio, ora mortos. A consolidação do poder da parte de Vladimir Putin na Rússia, e igualmente de Xi Jinping na China colocam-nos perante um novo paradigma, ao que não é alheia a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, há um ano e meio. As maiores potências do planeta voltam-se para dentro, procurando fazer valer os seus interesses num contexto internacional problemático, agravado pela guerra na Síria e pela situação delicada na península coreana, tudo ameaças consideráveis à paz e à estabilidade mundial. Tudo isto certamente que preocupa os amantes da liberdade e da democracia, e levanta sérias reservas quanto ao futuro, cada vez mais incerto. A democracia directa, ou o conceito de “uma pessoa, um voto”, não agrada a todos, e mesmo nesta última semana os seus detractores tiveram acontecimentos a que podem facilmente apontar o dedo. Em França o ex-presidente Nicholas Sarkozy foi detido no âmbito de uma investigação sobre o financiamento da sua campanha em 2017 – quem diria. Mesmo em Portugal, o maior partido da oposição foi notícia pelos piores motivos, quando o seu recém apontado secretário-geral foi obrigado a deixar o cargo depois de (embaraçosas) revelações a respeito do seu currículo, que continha uma série de inverdades (para ser simpático), bem como dúvidas quanto à sua morada fiscal (outra vez, hoje sinto-me especialmente generoso). Não surpreende portanto que se venha assistindo a uma onda de populismo, e ao recrudescimento da extrema-direita na Europa. É realmente pena. Eu acredito na democracia. Ainda acredito. Não vou baixar a cabeça, e prefiro pensar que isto não passa de uma fase. A própria espécie humana, disucutivelmente com mais defeitos que virtude, nunca conviveu muito bem com a diversidade de opinião, não é de hoje, e depois de duas lamentáveis guerras no século passado, convenceu-se de que se calhar seria melhor procurar um equilíbrio, um consenso entre todos os seus intervenientes, colocando de lado as diferenças. Já se percebeu e vai-se percebendo que cada vez mais que esta é uma tarefa complicada. Precisamos da classe política, não há que negá-lo, e precisamos de puxar por ela também. É urgente uma geração de homens e mulheres que sirvam antes de se servirem, a bem fa humanidade. E quer na Rússia, quer na China, esta pretensão vai ficando adiada. Por enquanto, apenas, esperamos todos.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA Luta e as Derrotas [dropcap style =’circle’] A [/dropcap] 14 de Março de 2018, no Rio de Janeiro, Marielle Franco foi morta/assassinada/ executada por ser quem era. Perdão, não foi só por ser quem era, mas por lutar por aquilo em que acreditava. Não foi um simples crime de ódio, e isto digo-o com alguma certeza: foi um crime político. Silenciou-se a voz de uma mulher, negra, feminista e defensora dos direitos humanos. Ao longo de tantos séculos de humanidade e civilização quantas vozes já foram silenciadas? Muitas, demasiadas. Mas desta vez bateu-me forte. Esta era uma voz contemporânea, uma voz com a qual poderia ter-me identificado. Muitas ideias que já partilhei aqui, neste espaço de escrita, vezes sem conta, cairiam no mesmo espectro ideológico. Aquele em que acredita que é precisa a emancipação plena das sexualidades, das raças, e das condições de vida humanas. A luta, que deveria ser de todos, é somente para aqueles que a julgam absolutamente necessária. Mulheres de todo o mundo, uni-vos! Da China ao Brasil, mostrem a palavra, as vossas ideias de igualdade e a vossa militância pelo fim da injustiça. Na criatividade contínua ou pontual descobrem-se novas formas de irreverência, novas formas de dar visibilidade à dor de muitos. Dar voz aos oprimidos e injustiçados não é somente mostrar como a vida é filha da mãe. Dá-se visibilidade e põe-se em causa as estruturas, permitem-se mudanças – tem-se esperança que a voz de uns possa um dia dar a voz a muitos mais. Perseverança, resiliência e teimosia são as características obrigatórias para quem quiser alistar-se a este exército. Há a resistência verbal e física, há resistência em forma de balas e de tortura. Não consigo não admirar as muitas pessoas, e muitas mulheres, que deram o corpo e espírito ao manifesto, à causa, qualquer que seja. Haverão lutas mais dignas que outras? Mais necessárias que outras? Isso já são preciosismos que me ultrapassam. Atrevo-me a celebrar a neta que quis dar voz à avó que era prostituta (obrigada Zhang Lijia), ao J-Bo que antes era a Joana (obrigada por seres o primeiro transexual masculino em Macau) e a todxs xs outrxs que marcam, continuamente, a esfera pública e o nosso imaginário colectivo. Grandes, médios e pequenos gestos que vão semeando mudança. As sementes caiem por entre as pedras calcárias do passeio e, contra todas as expectativas, as plantinhas crescem na adversidade. Nós nem sabemos bem como, mas crescem. A 14 de Março de 2014, em Beijing, Cao Shunli morreu por ser quem era. Perdão, por lutar por aquilo em que acreditava. Quatro anos e 17310 km que separam duas mortes de mulheres que atreveram mostrar a sua voz. Que raio de coincidência infeliz. Estas são as derrotas, o que querem que vos diga? Gostava que não acontecessem. Ainda assim vivo iludida de que ‘perder’, não nos desanima nem nos enfraquece. Quanto muito a derrota fortalece ou enraivece, cria massa crítica para mais confronto. O que é que isto tudo tem que ver com sexo? Tem tudo e nada. Face a estas e tantas outras derrotas – aliás, parece que vivemos num mundo triste, ultimamente – tenho criado o meu espaço de protesto, tenho dado forma à voz do sexo que no fundo poderia ser a voz de tudo o que nos preocupa. Esforço-me por exorcizar os meus demónios nesta tentativa débil de criação, e de resistência.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesMediatismos no Tribunal [dropcap style=’circle’] O [/dropcap] antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi acusado de ter aceitado da Wave Media a quantia de 3,8 milhões de HKD (487.000 USD) para remodelar uma penthouse na China. Em paga do favor, Donald Tsang ter-se-ia mostrado “favorável” à concessão da licença de emissão para a operadora de Rádio, no período em que exercia funções como Presidente do Conselho Executivo. Bill Wong Cho-bau, o maior accionista daquela operadora, era proprietário da penthouse e pagou as obras de remodelação. O caso foi apresentado perante um júri no Supremo Tribunal. Presidiu o juiz Andrew Chan Hing-wai. Como no final não foi possível que 6 dos 8 jurados concordassem com a acusação, Donald Tsang saiu em liberdade. No entanto, a apreciação final apresentada por escrito pelo juiz Andrew Chan incluía muitos comentários sobre o caso. Se ainda estiverem recordados das notícias que saíram durante o julgamento, um dos jurados, então referido como Mr. Q, perseguiu e chegou à fala como uma famosa estrela mediática, que se tinha deslocado ao Tribunal como apoiante de Donald Tsang. Mr. Q era um fã de longa data desta celebridade, pelo que a interpelou e fizeram-se fotografar juntos. O procurador separou imediatamente Mr. Q do resto dos jurados e reportou o caso ao juiz. Temendo uma possível parcialidade do jurado, o juiz afastou-o do júri. No parágrafo 32 da sua apreciação, o juiz declara, “…… Mr. X (a celebridade) foi introduzido no Tribunal por um elemento de uma empresa de relações públicas, ao contrário dos cidadãos normais que tiveram de esperar na fila para entrarem. Quando entrou sentou-se na área reservada à família e aos amigos do réu …” Nos parágrafos 36, 38 e 39, o juiz refere, “O processo que levou ao afastamento de Mr. Q, fez-me perceber pela primeira vez que uma empresa de relações públicas e consultoria, tinha sido envolvida neste julgamento. De facto, eles estiveram constantemente presentes, dentro e fora do Tribunal, ao longo do primeiro julgamento e também do segundo, mas na altura eu não tinha tomado consciência das suas funções, já que todos os cidadãos têm direito a assistir às audiências.” “A família e os amigos do réu têm todo o direito de estar presentes no julgamento, para observarem os trabalhos e para o apoiarem. O que não é permitido de forma alguma, a estas ou a quaisquer outras pessoas, é tentar exercer influência sobre membros do júri. Interferir com o júri é subestimar os alicerces do nosso sistema jurídico.” “Antes do início do primeiro e do segundo julgamento, o Réu, através dos seus advogados, pediu o consentimento do tribunal para reservar lugares para os seus amigos e familiares. O pedido foi deferido. Ao longo do segundo julgamento, especialmente durante a parte final, antigos colegas do Réu, como, os seus antigos Secretário das Finanças e da Justiça, antigos Conselheiros do Partido Democrata, Conselheiros em funções da Aliança Democrática para o Melhoramento e Progresso de Hong Kong, e proeminentes figuras religiosas, estiveram presentes no Tribunal em diferentes ocasiões, introduzidos pela empresa de relações públicas e consultoria, e tomaram assento na área reservada, à semelhança de Mr X. O objectivo destas presenças era, sem dúvida, mostrar ao júri que o Réu era uma pessoa de bem, apoiado pelas figuras mais destacadas da sociedade.” A “empresa de relações públicas e consultoria” mencionada pelo juiz é normalmente uma empresa ou uma pessoa singular que trabalha a favor da boa imagem do réu. O júri deve ouvir todos os testemunhos que são dados no Tribunal e analisar todas as provas. Estas provas são apreciadas pela Acusação e pela Defesa. Depois de todas as provas terem sido aceites e examinadas, são submetidas à apreciação do júri para que seja emitido um veredicto de inocência ou de culpa. No julgamento de Donald Tsang estiveram presentes muitas celebridades, que se sentaram na área exclusivamente reservada a amigos e familiares do réu, de forma a que todos os jurados os pudessem ver distintamente. Existe a possibilidade de que a presença destas personalidades possa ter influenciado o júri a acreditar na inocência do réu; neste cenário, a hipótese de o réu ter cometido um crime será baixa e, portanto, não é culpado. E porque é que os jurados se deixam afectar por estas disposições? Porque são todos pessoas comuns. Qualquer pessoa que tenha completado o ensino secundário e tenha mais de 21 anos pode integrar um júri. Não são escolhidos entre os famosos, e não podem ser especialistas em leis. Os jurados podem ser facilmente influenciados por estes cenários. Se isto for possível, então pode ser também possível que, perante uma situação deste género, a decisão do júri, ao invés de ser tomada a partir das provas apresentadas, possa partir de factores exteriores ao processo. Se for o caso, o estado de direito está a ser respeitado? Se o estado de direito não for respeitado, a população vai continuar a confiar no sistema jurídico? O Tribunal é um espaço aberto a todos os cidadãos. Em Hong Kong, as pessoas são livres de entrar e de sair de uma sala de audiências, e a presença de pessoas famosas não vai contra a lei. Mas a presença de celebridades pode afectar a decisão do júri e, desta forma, afectar o grau de confiança que a população deposita no nosso sistema jurídico, e assim pode ser encarada como um pouco “imoral”. É preciso contrabalançar os interesses de ambas as partes e ter em consideração o estatuto social de Donald Tsang. Donald Tsang foi Chefe do Executivo de Hong Kong, a maior parte dos seus amigos são pessoas de nomeada. A sua presença em Tribunal pode ser apenas uma forma de lhe demonstrarem o seu apoio. Se assim for, o objectivo não será influenciar o júri, mas sim apoiar um amigo. Mas agora façamos uma visita ao website dos Tribunais de Hong Kong. Na página “Sala de Audiência Tecnológica”, IMAGEM – PROCEDIMENTOS JURÍDICOS E SISTEMAS DE TRANSMISSÃO”, pode ler-se, “A Sala de Audiências Tecnológica está equipada com um Sistema de Transmissão para contemplar situações em que o público não cabe todo no Tribunal. Se o juiz assim o desejar, a sala de espera contígua à sala de Audiências Tecnológica pode ser imediatamente convertida numa extensão do Tribunal. Assim que o sistema de transmissão for activado, quem está sentado no exterior pode assistir à sessão através de ecrãs LCD.” Se quisermos evitar o efeito potencialmente pernicioso da presença de celebridades na sala de audiências, poderemos reservar os lugares na sala apenas para familiares e amigos chegados, ficando os VIPs acomodados na sala exterior, onde podem assistir à sessão através dos ecrãs colocados para o efeito. Macau implementa o sistema jurídico continental e, por isso, os julgamentos dispensam a presença de um júri. O juiz é o único responsável pelas sentenças. A decisão do juiz é a voz da lei, e não a de pessoas comuns. A vantagem é óbvia.