Celebrando o Namoro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]is que o dia dos namorados voltou! Se eu procurar ‘valentine’s day’ nas bases de dados académicas, são as áreas de gestão e consumo que mais andam a publicar acerca deste dia. Porque o pessoal do marketing sabe que ‘celebrações que exigem troca de prendas tem um grande impacto na economia’.

Consumir para celebração do amor romântico é, no mínimo, discutível. Que se ande a escrutinar as motivações para o consumo romântico, também me parece pouco… ia dizer ético, mas num mundo neoliberal não se discute a ética do consumo, só o promovemos desenfreadamente. Os resultados destes estudos, que equiparam a importância dos gestos amorosos com a troca de prendas, tentam compreender os significados associados a este dia, tão recentemente globalizado. Parece que as camadas americanas mais jovens (particularmente masculinas) acreditam que caso não presentearem as suas ‘mais que tudo’ no dia 14 de Fevereiro, que as suas relações podem ficar em risco. O pior é que a ideia de que esta é uma celebração que só existe para fazer mexer certas economias não lhes é desconhecida, mas simplesmente é negada em prol de expectativas sociais e relacionais.

Vive-se num mundo muito estranho quando gestos de amor estão calendarizados e associados a comportamentos economicistas. Porque não há nada de errado em oferecermos coisas uns aos outros, nem ter um dia disto e daquilo: todos os dias do ano estão muito provavelmente associados a uma causa ou outra. O amor romântico tem todo o direito (e o dever) de ser celebrado, partilhado, reflectido e praticado. Se forem necessárias desculpas externas para ajudar a fazê-lo, ninguém tem nada contra. Aliás, dizem outros investigadores que o dia dos namorados obriga a que os casais pensem no seu amor. Ora tendem a enaltecer os aspectos positivos do relacionamento, para quem tem vindo a construir uma relação forte. Ora tendem a separar-se com mais frequência durante a semana anterior e posterior ao dia dos namorados, para os que têm o relacionamento por um fio. As más línguas acrescentam que uma ruptura antes do 14 serve propósitos de poupança. Acreditem ou não, mas há quem julgue que quanto mais cara a prenda, mais amor se presenteia.

A preocupação é real. Há algo de perverso na forma como muitos namorados lidam com o dia São Valentim (de Roma!) – esse mártir que a igreja católica reconhece mal. O São Valentim continua a ser das histórias pior contadas no Martirológio (a palavra nova da semana). A história que se eternizou, mas que não se sabe bem se é real, é que o Valentim era o padre que andava a celebrar casamentos cristãos, a pessoas que não se podiam amar. A celebração do amor romântico a partir destes rumores de um santo no séc. V tiveram notoriedade dentro dos círculos ingleses medievais. Nessa altura começaram-se a escrever cartas uns aos outros finalizando com o que a tradução literal para português seria ‘queres ser o meu Valentim?’, i.e., ‘queres ser um mártir pela causa do amor?

Desde o séc. XIV até os dias de hoje muita água já rolou, muito amor já se deu, e agora muitas prendas continuam-se a dar! Esta celebração até altera a nossa percepção das rosas e dos chocolates, e de toda a representação do amor romântico ocidental que tenta ser globalizado. Porque este dia anda agora a moldar as expectativas relacionais com uma preocupação excessiva pelo consumo, quando a reciprocidade romântica precisa de de um trabalho de intimidade e de uma reinvenção do que é romântico, para cada um de nós, e para cada casal.

14 Fev 2018

Exame de mandarim II

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o meu artigo, publicado a 30 de Janeiro, analisei a situação dos estudantes da Universidade Baptista de Hong Kong que, devido à alta taxa de insucesso no exame de mandarim (70% de reprovações) ocuparam parte das instalações da Universidade. Este exame é condição necessária para a obtenção do grau de Bacharel, os estudantes têm de comprovar os seus conhecimentos de mandarim.

A prova foi implementada há cerca de 10 anos atrás. Numa votação realizada em Abril de 2016, 90% dos estudantes manifestaram-se contra a realização deste exame como etapa necessária à graduação. Desde essa altura, a Universidade entrou em negociações com os estudantes e, finalmente, em Novembro de 2017 a prova regressou. Durante as várias reuniões que tiveram lugar antes da reactivação do exame, a Universidade garantiu que iria ser uma prova simples, os estudantes precisavam apenas de demonstrar que possuíam as competências para comunicarem em mandarim. Era esperada uma taxa de 90% de sucesso no exame. No entanto, verificou-se o contrário e só passaram 30% dos alunos. A causa do fracasso dos estudantes terá sido a seguinte:

“Você fala mandarim fluentemente, mas o tom não corresponde ao que era pedido na pergunta, por isso não pode passar”.

Este tipo de razões causou um grande descontentamento nos estudantes e deu origem à ocupação das instalações. O género de linguagem com que o presidente da Associação de Estudantes, Lau Tsz-kei, se dirigiu aos professores provocou muitas críticas, porque revelava falta de respeito pelos docentes. Foram também acusados de ter posto em risco a segurança dos funcionários. A Universidade reagiu de imediato e Lau Tsz-kei, Andrew Chan Lok-hang e outros colegas foram suspensos a 24 de Janeiro último. No dia 30, todos eles apresentaram formalmente desculpa aos professores do Centro de Línguas. A 1 de Fevereiro, na sequência do pedido de desculpas, a Universidade anulou a ordem de suspensão dos estudantes. No entanto, dois destes alunos foram sujeitos a um processo disciplinar, que terá lugar no próximo dia 15.

Este incidente deu origem a grandes controvérsias. Em primeiro lugar, poucos dias após a ocupação do Centro de Línguas, apareceu escrito nas paredes “Mandarim, Não”. Os estudantes manifestaram-se para dar a conhecer os motivos do seu descontentamento. Os professores sentiam-se numa posição desconfortável. Mais de 100 docentes escreveram uma carta ao Reitor a testemunhar incómodo devido ao comportamento dos estudantes. Os que estiveram presentes no Centro de Línguas durante a ocupação, afirmaram que a sua segurança esteve em risco. Cheng Chung Tai, membro do Conselho Legislativo, escreveu à Comissão para a Igualdade de Oportunidades no dia 17 de Janeiro, salientando que as políticas adoptadas no exame de graduação poderiam estar em colisão com a lei contra a discriminação, porque os estudantes de Hong Kong são obrigados a estudar mandarim e os estudantes do continente não são obrigados a estudar cantonês. Além disso, os estudantes estrangeiros tanto podem aprender mandarim como cantonês.

A partir destes exemplos, podemos verificar que os estudantes lutaram para defender os seus interesses. Também lhes tinha sido dada uma expectativa de 90% de resultados positivos. Como esta percentagem baixou dramaticamente para os 30%, sentiram-se defraudados pela Universidade. A revolta e a frustração estiveram na origem da ocupação do Centro de Línguas. Mas os comportamentos excessivos provocaram criticas por parte da sociedade.

Será o mandarim uma língua difícil de aprender? A resposta será “provavelmente, não”, sobretudo, para os estudantes de Hong Kong. Eles já a escrevem, da mesma forma que os estudantes do continente. A questão aqui é saber pronunciá-la. Não parece ser muito difícil. A revolta destes jovens deve ter sido provocada pelo grande número de reprovações.

Antes de se fazer o exame, ninguém pode saber ao certo qual vai ser a taxa de sucesso. Apesar disso a Universidade apontou para uma taxa de 90% de êxito. Mas era só uma previsão. Com apenas 30% dos alunos a passarem o exame, é necessário analisar as razões deste fracasso e decidir o que fazer a seguir. O descontentamento dos estudantes é compreensível, mas não justifica a ocupação das instalações. A ocupação perturbou a actividade do Centro e afectou outros estudantes que não estavam envolvidos nesta prova, o que não deixou de ser injusto.

Em segundo lugar, estaremos perante um logro? Será que a Universidade quebrou uma promessa? Ou será que os estudantes falam mal mandarim? Até ao momento não existem respostas a estas perguntas. O melhor a fazer é procurar um entendimento entre a Universidade e os alunos. Os alunos terão de encontrar respostas a estas interrogações e decidir as medidas a tomar. Mesmo que os estudantes percebam que houve algum logro, devem tentar compreender os motivos e procurar um entendimento com a Universidade. Todos os problemas que ocorreram ficaram a dever-se à falta de comunicação e de negociação.

E porque é que os estudantes não negociaram com a Universidade? Talvez porque hoje em dia os jovens são demasiados auto-centrados. A baixa taxa de natalidade em Hong Kong leva as escolas a tratarem os estudantes com mil cuidados. Desde a escola primária, passando pela secundária e, finalmente, pela Universidade, os estudantes são sempre um trunfo. Usam-nos para receber benefícios. Se alguma coisa lhes desagradar, convencem-se que estão a ser maltratados. É natural que existam comportamentos menos razoáveis quando as pessoas acreditam que estão a ser maltratadas.

Mas este caso já assumiu contornos políticos. A carta que Cheng Chung Tai dirigiu à Comissão para a Igualdade de Oportunidades, apontando para uma possível infracção à lei contra a discriminação, pode causar problemas. Uma questão que poderia ter sido resolvida internamente está a complicar-se. Esta queixa não é bem-vinda.

O Ano Novo Chinês está a chegar. Desejo a todos os meus leitores o melhor para este Ano do Cão. Feliz Ano Novo.

13 Fev 2018

A China no Ano do Cão

“Compared with the congress of two parties (Republican Party and Democratic Party) in the United States, the National Congress of the Communist Party of China takes a longer time for the change of state leadership compared with the President selection of the United States, the democratic form is more completed, the democratic selection procedure is more completed, the democratic contents are more adequate, the democratic essence is more effective and the democratic achievements are more abundant, already exceeding the United States.”
“China’s Road and China’s Dream: An Analysis of the Chinese Political Decision-Making Process Through the National Party Congress” – Angang Hu

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Ano Novo Chinês do Cão, que começa oficialmente a 16 de Fevereiro de 2018 e termina em 4 de Fevereiro de 2019, será palco da realização e execução de profundas e sérias alterações na China, no seguimento do decidido pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês (PCC), a 19 de Janeiro de 2018, ao propor e escrever o pensamento do presidente Xi Jinping sobre o “Socialismo com Características Chinesas para uma nova era na Constituição da China”, a lei fundamental do país. O presidente Xi Jinping, que também é Secretário-geral do Comité Central do PCC, pronunciou um discurso na Segunda Sessão Plenária do 19.º Comité Central do PCC, realizada em Pequim entre 18 a 19 de Janeiro de 2018.

A Segunda Sessão Plenária aprovou uma proposta do Comité Central do PCC sobre a revisão da Constituição. As principais conquistas teóricas, princípios e políticas adoptadas no 19.º Congresso Nacional do PCC devem ser incorporadas em uma revisão da Constituição, de acordo com o conteúdo divulgado após a dita Sessão Plenária. As novas realizações, experiências e requisitos do desenvolvimento do Partido e do país devem ser incorporados na Constituição revista, em que se deve manter o compasso dos tempos e melhorar a Constituição, mantendo a sua consistência, estabilidade e autoridade.

O Comité Central do PCC convidou o Partido a unir-se, com o presidente Xi Jinping, no seu centro, e aderir ao Estado de direito socialista com características chinesas. A sessão foi presidida pelo Politburo Político do Comité Central do PCC. O presidente Xi fez um discurso na dita sessão, tendo contado com a participação de duzentos e três membros e cento e setenta e dois membros suplentes do Comité Central do PCC, membros do Comité Permanente da Comissão Central de Inspecção Disciplinar do PCC, responsáveis principais em assuntos proeminentes, alguns deputados ao 19.º Congresso Nacional do PCC, eleitos de base de organizações e especialistas. Na sessão, os líderes adoptaram uma proposta de alteração de algumas partes da Constituição. O presidente da Comissão Permanente do Congresso Nacional do Povo apresentou o projecto de proposta na referida sessão, pelo que se tornava necessário alterar a Constituição da China, nesta nova era.

A República Popular da China (RPC) promulgou a sua primeira Constituição em 1954. O Quinto Congresso Nacional do Povo, em 1982, aprovou a presente Constituição, que sofreu quatro alterações, em 1988, 1993, 1999 e 2004, respectivamente. A Constituição tem desempenhado um papel importante no progresso do país, pois foi alterada em conformidade com a realidade e desenvolvimento do Partido e do país, e desde a última alteração em 2004, o Partido e o país passaram por importantes mudanças.

O 19.º Congresso Nacional do PCC fez importantes implementações estratégicas no socialismo com características chinesas para a nova era, pelo que é essencial alterar a Constituição para incorporar realizações teóricas, práticas e institucionais feitas pelo Partido e pelo povo. O processo de modificação deve levar o marxismo-leninismo, o “Pensamento de Mao Tse Tung”, a “Teoria de Deng Xiaoping”, a “Teoria dos Três Representantes” que têm como pilares os interesses da maioria do povo, a cultura e as forças produtivas avançadas, a “Perspectiva Científica do Desenvolvimento”, e o “Pensamento do presidente Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas” para uma nova era, como guia.

O pensamento do presidente Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era é uma orientação que o Partido e o país defenderão a longo prazo. É de enfatizar que o pensamento do presidente Xi Jinping é a última conquista na adaptação do marxismo ao contexto chinês e é o tipo de marxismo para a China contemporânea e para o século XXI.  O pensamento deve ser uma ideologia orientadora a ser mantida a longo prazo pelo PCC e pelo país, pelo que a liderança do Partido, deve ser fortalecida e confirmada em todas as áreas de actuação.

A adesão à liderança do PCC é justificada como um princípio na revisão da Constituição e a liderança do PCC é o atributo essencial do socialismo com características chinesas e a maior força do sistema. O plano integrado de cinco alcances, que é de promover de forma coordenada o avanço económico, político, cultural, social e ecológico, e a nova visão do desenvolvimento inovador, verde, aberto e universal, são vitais para o rejuvenescimento nacional. Os objectivos passam pela finalização da construção de uma sociedade moderadamente próspera, em todos os aspectos até 2020, basicamente, realizando a modernização socialista em 2035 e construindo a China, como um grande país socialista moderno, em meados do século XXI.

É de atender que, seguindo o caminho do desenvolvimento pacífico, procurar uma estratégia mutuamente benéfica de abrir e promover a construção de uma comunidade com um futuro compartilhado, é de grande importância para a causa do desenvolvimento pacífico da humanidade. A reforma para estabelecer um sistema de supervisão nacional, que está sob a liderança do Partido e abrange todos os que exercem o poder público é uma reforma significativa do sistema político e uma decisão importante para fortalecer a auto-supervisão do Partido e do Estado, pelo que todos, devem obedecer à Constituição. É de destacar o importante papel da Constituição na governança estadual e o comprometimento universal na garantia da sua implementação. Os empenhos para aderir ao domínio da lei devem dar prioridade à regra da Constituição.

Os esforços para aderir ao governo pela lei devem colocá-lo em conformidade com a supremacia da Constituição. É de entender que todo comportamento anti-constitucional deve ser corrigido, sem falhas, e nenhuma organização ou indivíduo tem o poder de violar a Constituição ou a lei. Assim, todas as pessoas, órgãos do Estado, forças armadas, partidos políticos, grupos civis, instituições públicas e empresas devem ter a Constituição como seu guia fundamental. As pessoas em todos os níveis de cargos públicos, especialmente os principais funcionários, devem exercer o poder e trabalhar de acordo com a Constituição e a lei, e submeterem-se à supervisão do povo.

É obrigação geral enriquecer as principais disposições institucionais da Constituição, o que desempenharia um papel importante na melhoria e desenvolvimento do sistema de socialismo com características chinesas. A revisão da Constituição, proporcionará uma garantia poderosa para o desenvolvimento do socialismo com características chinesas na nova era, dado que a Constituição é o cerne do sistema de direito socialista chinês, e a adesão ao Estado de Direito deve dar prioridade à regra da Constituição. Os esforços para aderir ao governo pela lei devem fazer, que se actue em conformidade com a Constituição, como sendo a máxima prioridade.  Esta experiência, que é aprendida com a história do desenvolvimento da China, deve ser respeitada e amada.

A partir do 18.º Congresso Nacional do PCC, em 2012, o Comité Central do PCC com o presidente Xi no centro do poder, levou o país a manter e a desenvolver o socialismo com características chinesas, estabelecendo o referido Pensamento. A revisão pode manter a Constituição ao ritmo do desenvolvimento do Partido e do país, mantendo a sua consistência, estabilidade e autoridade. Este é o compromisso do Comité Central do PCC de oferecer o seu conceito de governança de acordo com a Constituição.

O PCC também fortalecerá a supervisão para garantir o cumprimento da Constituição, avançar na revisão constitucional e salvaguardar a poder da Constituição. O Comité Central do PCC, desde 2012, tomou medidas significativas para salvaguardar a dignidade e autoridade da Constituição, como por exemplo, ao estabelecer o “Dia Nacional da Constituição”, que é um mecanismo que tem por fim assegurar fidelidade à Constituição. A revisão proposta reforçará a implementação e a adesão à Constituição por toda a sociedade, aumentará a confiança das organizações de base em reformas e desenvolvimento, e fornecerá orientação constitucional para diversos sectores com vista a acelerar a reforma.

O presidente Xi Jinping pediu, em 4 de Dezembro de 2017, no “Dia Nacional da Constituição”, para aumentar a conscientização pública sobre a Constituição e a sua implementação, que tem sido observada pela China desde 2014. A Constituição contém as regras fundamentais do país, e deve ser cumprida durante a implementação da lei, como disse o presidente Xi, em uma instrução enviada para a abertura de uma sala de exposições em Hangzhou. O salão apresenta documentos sobre a primeira Constituição da RPC, que foi redigida no mesmo local e promulgada em 1954.

A legislatura da Assembleia Popular Nacional, adoptou a actual Constituição, a 4 de Dezembro de 1982, com base na versão de 1954. A sala de exposições é importante para a promoção da Constituição, para que mais pessoas se tornem conscientes e respeitem as leis do país de acordo com o Pensamento do presidente Xi, que solicitou ainda, à administração da sala de exposições para defender a liderança e o Estado de Direito e do Partido, e desempenhar o seu papel na promoção e implementação da Constituição. A partir de 4 de Dezembro de 2016, todos os funcionários eleitos ou nomeados, têm que fazer juramento público de fidelidade à Constituição.

É importante salientar que a 28 de Novembro de 2017, um conjunto de regulamentos para promover a transparência nos assuntos do Partido foi revisto e adoptado, em uma reunião do Politburo Central do PCC, e publicados a 25 de Dezembro de 2017. O Regulamento do PCC sobre “Transparência nos Assuntos do Partido (Julgamento)”, foi o primeiro documento oficial divulgado desde o 19.º Congresso Nacional do PCC, em Outubro de 2017, que estabelecem as bases para as futuras regras de divulgação dos assuntos do Partido e especificam a definição, princípios, conteúdo, procedimentos e formas de trabalho. A transparência foi um passo importante para a implementação do espírito do 19.º Congresso Nacional do PCC e uma obrigação para o desenvolvimento da democracia intrapartidária e democracia socialista.

O PCC, nos últimos anos, fez grandes esforços para explorar o caminho para a transparência nos assuntos do Partido, tendo revelado um conjunto de documentos, como o “Regulamento sobre o Estabelecimento de um Sistema de Porta-Vozes para os Comités do PCC”, o “Regulamento para Promover a Transparência dos Assuntos do Partido nas Organizações Primárias do PCC” e do “Regulamento de Estabelecimento e Melhoramento de Mecanismos de Divulgação de Informações e Interpretação de Políticas”. A partir do 18.º Congresso Nacional do PCC, em 2012, o Partido acelerou a sua campanha anticorrupção.

A divulgação de informações sobre funcionários corruptos de alto nível e os casos de violações do Código de Austeridade de oito pontos do Comité Central do PCC, atraiu a atenção das pessoas para a “Comissão Central de Inspecção Disciplinar do PCC (CCDI) ”, em uma clara demonstração dos esforços para promover a transparência nos assuntos do Partido. Além disso, um relatório anual divulgado pelo Departamento de Organização do Comité Central do PCC, contém o número de membros e organizações do Partido, bem como a composição das organizações a todos os níveis. Além de promover a transparência em alguns assuntos dentro do escopo das suas funções, alguns departamentos do Partido, incluindo o CCDI, bem como a organização e os departamentos internacionais do Comité Central do PCC, também realizaram eventos do dia aberto aos diplomatas estrangeiros, agências de média estrangeira e público.

Todavia, permanece um fosso entre o actual nível de transparência nos assuntos do Partido e os requisitos da nova era. O propósito da informação a divulgar não é suficientemente amplo, os procedimentos não são totalmente institucionalizados e a transmissão ao público muitas vezes mostra-se rígida e restrita. Algumas organizações e departamentos do Partido não conseguiram divulgar as informações mais interessantes para as pessoas mas, em vez disso, tornam públicas informações inadequadas, como segredos de comemorações. Os regulamentos sobre a transparência nos assuntos do Partido são de grande importância no exercício de uma governança completa e rigorosa, fortalecendo a supervisão intrapartidária e aproveitando o entusiasmo, a iniciativa e a criatividade de todo o PCC.

É de considerar que há muito tempo houve divergências em teorias e práticas sobre a conotação de transparência nos assuntos do Partido. Os novos regulamentos do PCC pela primeira vez dão uma definição clara e autorizada a este respeito, pois exigem que as organizações do Partido divulguem assuntos relativos à sua liderança e construção, entre os seus membros. Assim, a liderança e a construção do Partido constituem todos os assuntos do PCC. Os assuntos do Partido, referem-se principalmente ao seu funcionamento interno, são o que as suas organizações e os membros têm o direito de conhecer, pois o PCC é o partido no poder na China e os seus assuntos e políticas influenciarão o desenvolvimento nacional.

9 Fev 2018

O grande desafio

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente, dois apelos a instâncias superiores da justiça, um na RAEM e o outro na RAEHK, chegaram ao fim. Em Hong Kong, o Tribunal de Última Instância aceitou o apelo de Joshua Wong, Nathan Law e Alex Chow que recorreram da sentença do Tribunal de Primeira Instância.

Os activistas tinham sido condenados a penas de prisão por terem tentado forçar a entrada na sede governamental, na sequência dos protestos associados à “revolta dos guarda-chuvas”. A sentença inicial foi revista e o Tribunal optou por pena suspensa e prestação de serviço comunitário. Os três jovens saíram em liberdade. Em Macau, o deputado Sulu Sou apresentou um recurso no Tribunal de Segunda Instância, contestando a decisão do plenário da Assembleia Legislativa de suspender as suas funções, mas o Tribunal recusou o apelo bem como o pedido de providência cautelar. Se Sou não recorrer para o Tribunal de Última Instância, a questão relativa à legitimidade dos procedimentos que levaram à suspensão do seu mandato na Assembleia Legislativa chegará ao fim. O Tribunal Judicial de Base retomará o julgamento do seu caso.

Os finais distintos dos dois apelos demonstram a independência do poder judicial em ambas as regiões. Qualquer avaliação de sentenças de um Tribunal só pode ser feita através de processos jurídicos. É a salvaguarda da independência do poder judicial à luz do enquadramento legal. Um acto político não equivale ao estado de direito e não pode violar a justiça processual. Caso contrário, o estado de direito será substituído pela anarquia. Prefiro não falar sobre estes dois apelos, mas gostava de partilhar os meus pontos de vista sobre a lei através de um filme que vi.

A TV Cabo de Macau passa muitas vezes um filme intitulado “O Grande Desafio”. É baseado numa história real protagonizada por Melvin B. Tolson, um poeta negro americano, que foi professor na década de 30. O filme conta como Melvin Tolson fundou e treinou a primeira equipa de debate do Wiley College, uma escola do Texas para negros, que viria mais tarde a vencer um desafio contra a equipa da Universidade de Harvard. É uma demonstração da difícil luta dos negros contra a discriminação racial.

Como o filme passava repetidamente, acabei por vê-lo várias vezes. Para mim, um dos momentos altos da história é a apresentação do argumento de James L. Farmer, Jr. (filho de um pastor negro) durante a última sessão do debate, na qual citou a famosa frase de Augustine Hippo, “Uma lei injusta não é uma lei”, para contrapor a afirmação da equipa de Harvard, “nada do que ataca o estado de direito pode ser legítimo”. Nesse tempo, os negros não tinham os mesmos direitos dos brancos perante a lei. James L. Farmer afirmou ainda que, perante uma lei injusta, tinha o direito e o dever de a combater de todas as formas possíveis. Não através da agressão, mas sim com acções não-violentas.

O Movimento da Não Violência continua a ser uma doutrina que surgiu com as lutas sociais dos anos 30. Há algum tempo atrás tive uma conversa com um membro pró-democrata do sector jurídico de Hong Kong. Ele defendia que a lei deve ser respeitada por todos os sectores da oposição. Se pensamos que uma lei é má, devemos lutar para corrigi-la, não para quebrá-la. Se todos transgredirem a lei porque a acham desadequada, a ordem social será destruída e só podemos esperar o pior. Estas palavras merecem-nos alguma reflexão.

Nos últimos 100 anos da História da China houve sempre ausência de legitimidade democrática, dando origem à violência institucional, que tem um impacto muito maior do que qualquer outra violência. No processo de construção de uma sociedade governada pela lei, é vital encarar a sociedade como um todo, independentemente dos sistemas e do papel desempenhado pelos representantes da autoridade. Se tivermos a coragem de falar a verdade abertamente, podemos enfrentar grandes desafios. Quem ousar viver uma vida de verdade, será sem dúvida uma pessoa realizada.

9 Fev 2018

A falha politológica

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uito se tem falado por aí da “falência da democracia” ou do seu fracasso. Engraçado e ao mesmo tempo trágico que se fale, se analisem as causas, façam-se as analogias históricas, retirem-se as devidas conclusões e, no fim, se encare o “fim da democracia” como uma inevitável fatalidade.

É pena que assim seja, uma vez que, e como disse o pensador, a democracia é o pior dos sistemas com excepção de todos os outros.

O que se passa é que ainda se confunde democracia com classe política. E Estado com Governo. Quando falha o Estado não falha este ou aquele Governo: falhamos todos nós, que somos o Estado. E falando de falhas, mas agora das geológicas, aquilo a que temos assistido nos últimos três ou quatro anos é uma intensa actividade sísmica na zona que é conhecida pela falha na placa tectónica da política – a falha politológica.

As frentes populistas a que temos assistido a sair agora da toca, anunciando o longo inverno da classe política convencional e a morte da democracia por holocausto nuclear, são agora as mesmas que eram antes, mas com outros temas. O avanço da tecnologia não foi acompanhado pela democracia, que assim não se dotou de um anti-vírus do populismo, e tem sido um derramar de infecções, umas atrás das outras, manifestadas através de meio cibernético, como não podia deixar de ser, e neste caso assumindo a forma de Facebooks e Twitters, os “transformers” da anti-democracia.

Aí encontramos todos os vírus que contaminam a democracia. De um lado os conspiracionistas, do outro os saudosistas. Os primeiros engendraram uma teoria da conspiração que passa por acreditar que uma tal “Nova Ordem Mundial” está a levar a cabo um plano, com a cumplicidade da classe política e económica dominante e do Vaticano (pasme-se), que passa pela “substituição populacional” ou ainda “genocídio branco”. Isto seria complicado de explicar aqui em poucas palavras, mas “in a nutshell” quer dizer que se eu optar por casar e ter filhos com uma pessoa de outra designação étnica que não a minha, estou a cometer “genocídio”. A sério, é isto mesmo e mais nada, e não se deixem convencer de outra coisa.

Os saudosistas, e destes tenho mesmo muita pena, são pessoas que descobriram finalmente que a democracia não foi feita para eles. Queriam uma placa dourada com o seu nome, descerrada com honras de pano de veludo vermelho, mas não deu. Daí que evoquem Salazar, o seu bom pastor, e recordem com saudades os tempos em que eram todos ovelhinhas no seu Presépio pobrezinho, coitadinho, que “nunca roubou”, sendo isto o melhor que se pode dizer dele. Os saudosistas que nasceram depois do 25 de Abril – data que desprezam sem saber nada dela – são simplesmente ignorantes. Não sabem do que falam.

No fundo e no fim de contas, o que está mal não é a democracia. É a falha politológica, a provocar todos estes abanões que nos fazem temer pela solidez das fundações da democracia. E para isto não há remédio, não sei, nem vou dizer a ninguém o quê ou como deve pensar. Passa tudo por um exame de consciência, mas se querem uma recomendação que não fica mal aceitar, aqui vai: leiam, analisem, duvidem, coloquem-se no lugar das pessoas, em suma, pensem.

8 Fev 2018

Filhos Únicos

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om a viragem para o ano do cão – feliz ano novo chinês vindouro! – penso sempre se este será um bom ano para ter filhos. Será que os recém-casados vão correr para procriar e trazer boa fortuna para a vida do seu rebento e entes queridos? Não sei. Infelizmente, sei pouco sobre o zodíaco chinês, e também sei pouco sobre nascimentos, mas digamos que um excerto semanal sobre a sexualidade sabe dizer uma, duas ou três coisas sobre a procriação.

Dediquei-me, há uns dias atrás, ao tema do controlo à natalidade – os incentivos e as proibições – e eis que não será certamente surpresa para ninguém que a política do filho único chinesa tenha sido das mais controversas e das mais invasivas às singularidades da vida privada. Argumentos prós e contra, há muitos. O meu foco não será tanto na argumentação da adequação do projecto de desenvolvimento económico e populacional. O que eu quero é reflectir acerca da dificuldade que é de implementar leis que lidam tão intimamente com a nossa intimidade, desculpar-me-ão a redundância.

Se houve partes que correram mal nesta experiência de engenharia social foi porque haviam normas – tradições – que não estavam alinhadas com a proposta legal. No que toca à sexualidade, ao género e à família há valores e assumpções muito enraizadas nos seres e nas sociedades. A primazia do primogénito ou a valorização dos múltiplos filhos para ajudar a sustentar a família não mudou depois de 1979, quando, de repente a lei obrigava a ter um só filho. Tudo o que aconteceu para que as famílias pudessem ter o filho homem para continuar a linhagem familiar envolveu muitas decisões difíceis, e às vezes até crimes. Isto agora resulta numa discrepância brutal na quantidade de homens e mulheres na China continental, estima-se que existirão entre 32 a 36 milhões de homens a mais.

Ninguém sabe muito bem o que é que este desequilíbrio de género poderá trazer. Os historiadores dizem que tanto homem junto só poderá trazer violência, e perpetuam a ideia de que quando demasiada testosterona está junta só poderá ter consequências nefastas – uma espécie de explosão de masculinidade tóxica. Mas eu quero ser mais positiva do que isso. Vem aí o novo ano, e novos anos são de renovação – e de limpezas primaveris – e eu fantasiei que esta é uma oportunidade para re-invenção familiar. Há mais homens do que mulheres na China, e depois? Acho que isso só é problemático se insistirmos com a lógica heteronormativa (lembram-se deste conceito?) em que não há nada para além de uma constelação familiar que envolva um homem e uma mulher.

A vida familiar e privada parece definir a constelação societal, e ao estudar a política do filho único ainda mais impressionada fiquei acerca de como a nossa intimidade exige que as sociedades se reinventem, para melhor ou para pior. Quando a lei dita tão claramente de que forma devemos viver a nossa sexualidade e quantos filhos devemos ter, assistimos à formas de transformação familiares que influenciam gerações. Se calhar, mais do que se preocuparem com a quantidade de homens na China, podemos preocuparmo-nos com os ‘pequenos imperadores’ e ‘imperatrizes’ que governam a vida das suas famílias com exigências ‘imperiais’ acrescidas. Será que a China comunista, de valores anti-feudais, está preparada para sustentar os caprichos de tantos que nunca tiveram um irmão com quem partilhar as suas coisas, as suas ideias e a atenção dos seus familiares? Não quero eu dizer que todos os filhos únicos sejam uns mimados! Nada disso. Mas a vida familiar não é de todo simples, e desde muito cedo que molda as nossas perspectivas e expectativas acerca do mundo. Curiosamente, apesar de ser um tema mais que debatido na esfera pública chinesa, nunca ninguém se debruçou acerca deste fenómeno. Quem são os filhos únicos, e como é que eles vão liderar a China para o sonho chinês?

7 Fev 2018

Cirurgia em suspenso

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m Hong Kong, no passado dia 13 de Outubro, o Dr. Kelvin Ng Kwok-chai saiu à pressa do Hospital Queen Mary, antes de terminar um transplante de fígado que estava a realizar. O Dr Kevin saiu para efectuar uma operação que tinha agendada numa clínica particular. A conclusão do transplante foi adiada por três horas, até ao seu regresso.

O Dr. Kelvin contava que a cirurgiã chefe, a Drª. Tiffany Wong Cho-lam, tivesse continuado o transplante após a sua saída. Mas como surgiram alguns imprevistos, a Drª. Tiffany decidiu suspender a intervenção até à vinda do colega.

No período em que ocorreu este incidente, o Dr. Kelvin estava sob contrato especial a tempo parcial com o Hospital Queen Mary, celebrado devido à escassez de cirurgiões especialistas na sua área, e era consultor honorário deste hospital.

As condições especiais do contrato foram determinadas pela falta de “cirurgiões altamente qualificados” capazes de realizar intervenções mais complexas. O Queen Mary é o único hospital público de Hong Kong a realizar transplantes de fígado. Um “cirurgião altamente qualificado” tem de ter, no mínimo, 17 anos de prática cirúrgica.

Os dados demonstram que só existem sete médicos no Queen Mary capazes de efectuar com sucesso um transplante de fígado.

No passado mês de Dezembro, um painel de investigação emitiu um relatório que foi entregue ao Hospital. Salientava que o Dr. Kelvin estava convicto que a sua colega, a Drª. Tiffany, tinha condições para concluir o transplante sozinha. No entanto, os dois médicos não tinham discutido nenhum plano de emergência. O Dr. Kelvin também não tinha tomado medidas para evitar eventuais conflitos entre as chamadas de emergência do Hospital Queen Mary e as marcações na clínica privada.

O relatório concluiu que o procedimento do Dr. Kelvin foi “inaceitável” e “desnecessário”.

O painel de investigação recomendou que o Hospital Queen Mary lançasse um código de conduta de forma a regular os papéis e responsabilidades do pessoal honorário. O Hospital foi também instado a realçar que, os médicos de serviço devem agir atempadamente de forma a dar resposta pronta às necessidades dos pacientes.

Após a publicação do relatório o Dr.Kelvin afirmou: “Aceito as conclusões do relatório. Continuo ao serviço do Hospital a tempo parcial. O meu cargo a tempo inteiro na Universidade de Hong Kong mantem-se.”

A Autoridade Hospitalar de Hong Kong está a considerar separar os processos de forma a determinar se o Dr. Kelvin deverá ou não ser acusado.

O chefe da unidade de transplantes do fígado da Universidade de Hong Kong, o Professor Lo Chung-mau, declarou que o Dr. Kelvin é um médico muito dedicado. Adiantou ainda que, se for castigado e impedido de trabalhar no de Hospital Queen Mary, serão os doentes os principais prejudicados. O Professor Lo prosseguiu: “Nestes casos, o objectivo da punição não deve ser provocar mal-estar – mas sim permitir que mais doentes sejam ajudados.”

O Professor Lo disse ainda que aqui não está em causa a ética profissional, mas sim o julgamento pessoal do Dr. Kevin. “Se ele tivesse deixado o doente por motivos pessoais, digamos, para ir ao restaurante ou ao cinema, estaria em causa a ética profissional. No entanto, acredito que nesta situação, ele foi obrigado a pôr no prato da balança as duas situações… Se ele não tivesse ido à clínica, o outro doente poderia processá-lo.”

Este caso deu muito que falar em Hong Kong e não deixa de ser compreensível. Abandonar um paciente durante uma operação é caso para preocupação generalizada. Quando um doente se submete a uma cirurgia, põe a sua vida nas mãos do médico. Felizmente, nesta situação não houve consequências graves. Se tivesse havido alguma complicação que afectasse a saúde do doente, o médico podia ter sido processado por negligência. Mas, como não houve danos, a questão da negligência não se coloca.

Será que abandonar um doente durante uma operação implica quebra do código de conduta profissional? A resposta depende da natureza do código de conduta em causa. Os códigos de conduta implementados pelo Conselho Médico são preceitos e normas que regulam os procedimentos médicos. Se o código de conduta não especificar que o médico não pode abandonar o doente durante uma operação, dificilmente se poderá falar de má prática profissional.

Pelo que se sabe, o Dr. Kelvin será castigado internamente, mas, no entanto, devemos ter em conta as declarações do Professor Lo. Se o Hospital reduzir o horário de consultas do Dr. Kelvin, os doentes serão afectados pela ausência de um médico altamente qualificado. Mas se não houver qualquer punição, vão fazer ouvir-se muitas vozes em Hong Kong. Aparentemente, estamos perante um dilema.

Seja como for, é inaceitável um médico abandonar um doente durante uma operação. Não se pode permitir este comportamento. É necessário implementar novas regras de conduta da prática médica de forma a impedir que casos semelhantes ocorram no futuro. A experiência de Hong Kong é vital para Macau, já que é necessário reflectir sobre a melhor forma de alterar o nosso sistema de saúde.

6 Fev 2018

A Harmonia

[dropcap style≠‘circle’]P[/dropcap]or aqui está tudo bem, espectacular, não podia estar melhor depois dos envidados esforços das sacrossantas autoridades para manter esta terra solidamente segura e protegida contra influências desequilibradas externas. Quero saudar-vos e dar-vos as boas-vindas à terra da pura felicidade, o território do amor e contentamento de todos, este enclave de equilíbrio imóvel, o centro do júbilo máximo onde não há espaço para imperfeição.
Eu sou a concórdia, o esteio de pureza e higiene social, transformo o mundo num desenho animado, onde os polícias são agentes da Playmobil e os cidadãos personagens de anime. Pelas ruas não faltam sorrisos rasgados a amarelo emoji, pessoas que passeiam infantilidade fermentada no encerramento a cidade redoma sitiada em aprazimento e dinheiro. A vida é uma aventura de proporção exacta e consonância obediente para toda a pequenada da Região Administrativa Especial do Clube dos Amigos Disney.
Prevejo que no futuro, todos os residentes vão usar bibe e circular pelas ruas de mãos dadas trauteando cantigas de equilíbrio e sensatez.
A paz social e a tranquilidade residem na conformidade, na concórdia e no amor pelo escrupuloso cumprimento. Eu sou o resultado do punho vigoroso do pai poder, o somatório dos disciplinadores açoites dados pela mão que todos dirige com sabedoria em direcção a um futuro melhor. Por favor, não sejam impertinentes, sejam meninos bonitos e não discutam como me alcançar, como alicerçar harmonia, pois essa é uma das principais tarefas dos iluminados.
Eu sou o garante da simetria, da regularidade, da coesão de onde nasce a fraternidade, do entendimento entre irmãos, do amor absoluto despido dos excessos da irracionalidade.
Comportem-se, por favor, para o vosso bem, ou o desalinho toma conta das vossas vidas e aí terão de ser trazidos à harmonia pela força.
Entristece-me ver uma sociedade de chakras desalinhados, sem feng shui, onde a pornografia e a indecência ganham terreno. Este desígnio de tomar o espírito humano, de o moldar à segura complacência, não é pêra doce, muito pelo contrário, é uma maça raineta.
Deve ser a queda símia, essa vertigem biológica funda nos genes das pessoas, que leva ao arrebatamento, à dispersão e às tesões pouco sensatas, ao nascimento de pensamentos contrários à ordem pública. Porquê este gosto pelos abismos lúbricos, pelo pluralismo onde o confronto é, não só inevitável, mas génese desta inquietação que palpita no sangue das pessoas?
Dizem que esta é a natureza do Homem, nascido para a desobediência desde os primeiros capítulos no Jardim do Éden, irrequieto a lançar-se em fluxos migratórios tendo o sonho como bússola, ou a sonhar com outra realidade que não esta.
Porquê esta propensão para a lascívia, para a controvérsia? Porque é que nunca estão satisfeitos e insistem na crítica, na participação cívica. Calem-se e obedeçam. Reneguem a revolução que a biologia vos dita e conformem-se a mim, a narcotizante harmonia.
Chega de prazeres ilegais e imodestos, tudo o que é do domínio do lúbrico deve ficar reservado aos estrangeiros, esses mafarricos com cifrões nos olhos. Qualquer escorregadela por parte do mui prezado residente deve ser tido como um assunto reservado à intimidade, que jamais será capaz de contagiar ao resto da população.
Quero mostrar-vos como a submissão é óptima, como é o mais confortável porto de abrigo e a forma de alcançar uma sociedade comedida, bem comportadinha, sóbria, que lava os dentes depois das refeições, que se penteia antes de sair de casa, que quando lhe é pedido para saltar prontamente pergunta quão alto. Quero mostrar-vos as vantagens de viver num cartoon onde tudo é perfeito, quero inundar as ruas com a música da senhora no radiador, do Eraserhead, que canta que no paraíso está tudo bem. Ela tem toda a razão, está tudo impecável, podem dormir um soninho descansado porque os senhores que sabem das coisas estão no poder a consolidar a harmoniazinha. Haverá alguma coisa melhor que isto?!

5 Fev 2018

O turismo e a cidade

“There can be little doubt that tourist areas are dynamic, that they evolve and change over time. This evolution is brought about by a variety of factors including changes in the preferences and needs of visitors, the gradual deterioration and possible replacement of physical plant and facilities, and the change (or even disappearance) of the original natural and cultural attractions which were responsible for the initial popularity of the area.”
“The Tourism Area Life Cycle, Vol. 1: Applications And Modifications” – Richard Butler

[dropcap]O[/dropcap] turismo está a passar por mudanças fundamentais em relação ao mercado, à estrutura da indústria e ao produto em si, sendo transformações impulsionadas por uma fundamental transição para padrões pós-modernos de consumo, tornando o turismo, uma das marcas de referência dos modos de produção e consumo na economia do conhecimento. Os modelos tradicionais de gestão do turismo e planeamento estão a adaptar-se rapidamente a uma nova realidade em que o turismo joga, quantitativa e qualitativamente, um papel sem precedentes na formação do desenvolvimento económico.

Tendo em consideração as interconexões entre o turismo e a cidade do ponto de vista da pesquisa orientada para as políticas, o turismo penetra e influencia cada vez mais as decisões políticas em todas as áreas do desenvolvimento da cidade, tais como o uso da terra, desenvolvimento de locais, regulamentos de construção, infra-estruturas, inovação, qualidade ambiental, inclusão social, empreendedorismo e governança urbana, o que torna urgente incluir perspectivas de turismo nos modelos implementados para enfrentar questões e desafios urbanos.

O turismo pode apoiar as cidades na construção da sua reputação, promoção do seu capital relacional na arena global, ao propor e apoiar um modelo de qualidade do desenvolvimento urbano. Além disso, o turismo urbano é, por si, um fenómeno multifacetado. Os diversos tipos de viajantes chegam a uma cidade com propósitos muito diferentes, e as suas múltiplas interacções com os moradores e com as atracções e infra-estruturas da cidade, dão origem a uma variedade de tipos de turismo, daí a existência de uma ampla gama de modelos de turismo sobreposto (e modelos de negócios) que coexistem.

O turismo é uma função essencial de contextos urbanos contemporâneos. O potencial e as limitações da integração do turismo nas políticas urbanas são realizados por meio de uma variedade multifacetada e multidisciplinar de contribuições. A partir de diferente perspectivas, pode ser analisada a forma como a procura do desempenho do turismo pode contribuir para qualidade da vida urbana e para o bem-estar das comunidades locais (qualidade dos espaços, emprego, acessibilidade, inovação e aprendizagem), mas também pode criar riscos, tensões e conflitos, como é atestado pelo aumento de acções anti-turismo em reacção à mercantilização cultural e ao turismo de gentrificação induzida.

A esse respeito, a integração do turismo na agenda urbana é condição (tanto intelectual e política), por abordar de forma crítica e positiva as assimetrias produzidas pelo fenómeno do turismo urbano. Tais assimetrias levam a uma (manejável) troca entre os interesses dos residentes e os dos turistas ou desencadeiam um jogo positivo, para o bem-estar dos residentes permanentes e temporários. É de considerar que um ressurgimento do interesse no fenómeno do turismo urbano deve ser conectado com uma variedade de factores de natureza contingente e estrutural.

O turismo tem vindo a crescer e a diversificar-se na última década, e num contexto global em rápida mudança, a indústria de viagens tem-se vindo a transformar. As previsões da “Organização Mundial de Turismo (OMT) ”, apontam que o número de chegadas internacionais de turistas no mundo aumentará 3,3 por cento anualmente, em média, até 2030, enquanto, o “Fórum Económico Mundial”, que se realiza anualmente em Davos, prevê que o sector de viagens e turismo crescerá 4 por cento anualmente, a uma velocidade maior do que outros sectores económicos, como a produção, transportes e serviços financeiros.

Além das tendências crescentes, a diversificação e a transformação global do fenómeno do turismo tem estado a ser observado e questionado. Os tipos de inovação devem ser analisados, como resumindo os campos em que a novidade e as trajectórias emergentes podem ser procuradas; a inovação a novos nichos de mercado, concentrando-se na abertura de novas oportunidades de mercado através do uso de tecnologias; a inovação regular que segue padrões históricos de acréscimo de mudança; a inovação revolucionária, que deriva do uso intensivo de tecnologias em produtos ou serviços específicos, ainda não envolvendo toda a indústria do turismo; e, finalmente, a inovação arquitectónica que afecta a indústria do turismo como um todo.

É importante considerar que um dos desafios actuais no domínio da pesquisa do turismo consiste na identificação de inovações turísticas e na análise dos seus aspectos sociais, efeitos económicos e culturais, bem como da sua capacidade de mudar profundamente a forma como os viajantes, por um lado, e os operadores turísticos se envolvem com desenvolvimento do turismo. O turismo é um fenómeno situado e ao longo da sua evolução na sociedade global, não foi um insignificante factor nas trajectórias evolutivas das cidades. E, no entanto, o turismo urbano parece persistir à margem do debate sobre as cidades, pois raramente é estudado como parte de uma economia, sendo principalmente confinado como um agente de gentrificação e como resultado directo (e quase aceite) da regeneração liderada por processos de cultura. Quais são os motivos da marginalização do turismo em estudos urbanos?

A resposta tem em parte a ver com uma história intelectual de que o turismo é relegado a desempenhar o papel de alternativa fácil por atraso das regiões periféricas que permaneceram fora dos processos de industrialização. Têm sido propostos dois tipos ideais, como sejam o turismo de urbanização e a urbanização do turismo, sendo ambos destinados a sinalizar a incorporação do turismo em processos de urbanização. O último (urbanização do turismo), identifica o turismo como o principal motor de moldagem física, social e económica da cidade. O turismo urbano e o lazer desempenham um papel predominante na produção local. O turismo de urbanização não prevalece na economia urbana, e é uma das muitas dimensões para explicar a trajectória evolutiva das cidades. Existe consciência do crescimento no discurso global do turismo, sobre a necessidade de convergir em um caminho do turismo sustentável que parece coincidir com o turismo de urbanização racional, onde o turismo não assume a liderança na economia local, mas contribui para a diversidade urbana, lazer e cultura atmosférica de consumo.

A conceitualização sustentável do turismo urbano é a principal resposta aos efeitos negativos que o seu rápido crescimento tem provocado. Todavia, esforços significativos de pesquisa devem abordar o turismo de urbanização, as suas formas, políticas e práticas que o caracterizam e os seus efeitos e limites. O papel do turismo na formação do desenvolvimento social, económico e tecido físico das cidades, faz pressupor a necessidade da existência de aprofundamento de muitas formas intermediárias que o turismo carrega em contextos urbanos. O desenvolvimento do turismo global está intimamente interligado com a trajectória de transformação urbana e urbanização. A população residente deve ser articulada com uma população temporária e oscilante de visitantes, com impacto no tecido físico e socioeconómico urbano.

O crescimento desproporcionado em números, aumento de receitas e expansão da presença de turistas em várias áreas urbanas analisados por estudos de vizinhança, instam ao tratamento do turismo como facto urbano significativo. As cidades não são apenas os principais destinos ou pontos de atenção dos itinerários dos viajantes, mas também são a origem da maioria dos viajantes, dado que 80 por cento dos turistas são provenientes das cidades, e esta é uma das razões fundamentais para a reconsideração do turismo como um factor crucial no desenvolvimento da cidade, como afirma a “Declaração de Istambul de 2012”, promovida pelo OMT, que é a agência da ONU encarregada da promoção turística sustentável e universalmente acessível. Muitos são os países que aceitam que o turismo é um recurso fundamental para as cidades e seus residentes, porque pode contribuir para o rendimento local, bem como para a manutenção de infra-estruturas e prestação de serviços públicos.

A “Declaração de Istambul” descreveu o turismo como a maior indústria do mundo, criadora de benefícios económicos e promoção da cultura e bem-estar, bem como da coesão e preservação do património. A OMT enfatizou a importância das políticas públicas que impulsionam os impactos positivos do turismo urbano, enquanto evitam ou mitigam os efeitos negativos, ou seja, se a maioria das políticas de turismo forem concebidas como estratégias autónomas de mercadologia e promoção, em tempo, realizarão uma reflexão estruturada sobre as políticas urbanas integradas. A questão crucial é a de saber em que medida as instituições de ensino superior podem ajudar a comprovar estas afirmações e orientar o debate para a definição de base teórica e acção empírica, responsável, sustentável e acessível ao turismo.

Os impactos das viagens nas cidades de destino que recebem visitantes são significativos das perspectivas comerciais, sociais e culturais do turismo. Os gastos dos visitantes constituem uma fonte de negócios cada vez mais importante, constituindo receitas para as cidades de destino, abrangendo a hospitalidade, vendas a retalho, transportes, desporto e indústrias culturais. É um importante motor económico para o emprego e fonte de rendimento para as cidades, e conjuntamente com o fluxo de visitantes, agrega o conjunto de novas ideias e experiências que beneficiam os visitantes e as cidades de destino.

Se, por um lado, o turismo é representado como uma panaceia panglossiana para muitos (em alguns casos, até para todos), os problemas de desenvolvimento (como fonte de receita, ideias, emprego, conexão e dinamismo), por outro lado, a consciência dos muitos efeitos negativos do turismo tem alimentado interpretações cada vez mais críticas dos seus impactos e papel nas áreas urbanas, marcando o fim da lua-de-mel das cidades com o turismo urbano, com o surgimento de movimentos anti-turismo pela reivindicação dos moradores ao seu direito à cidade.

É de considerar os argumentos esgrimidos na descrição dos efeitos desiguais de aumento de rendimento e deslocamento induzido pela dinâmica urbana associada ao turismo, lazer e consumo, com as consequentes implicações sociais, económicas e exclusão política. O turismo urbano continua a ser um campo imaturo de pesquisa simplista e as descrições sobre o fenómeno turístico da cidade são o resultado, e não se entende como é possível a feitura de legislação sem suporte científico. A falta de estudos científicos sobre o turismo abundam, e desde logo ressaltam os estudos de negligência do turismo nas cidades e das cidades que negligenciam o turismo.

É evidente que tem havido uma espécie de consenso implícito sobre a negligência do turismo no processo de urbanização e desenvolvimento económico. A imaturidade do turismo urbano como domínio analítico tem raízes históricas, pois até à década de 1980, a literatura académica sobre o turismo urbano era muito limitada para não dizer quase inexistente, posteriormente, o turismo urbano começou a tornar-se parte integrante dos estudos de turismo, embora como um fenómeno bastante distinto e consequente área de pesquisa, pois uma profunda visão rural continuou a caracterizar o turismo por longo tempo.

O preconceito anti-urbano caracterizou especialmente o contexto anglo-americano, onde o turismo estava principalmente ligado à ideia de recreação ao ar livre, no campo, onde o contacto directo com a natureza podia ser experimentado, e por contraste, na visão industrial, as cidades foram concebidas como lugares para o trabalho árduo, para as tarefas sérias dos serviços, comércio e governo. Desde a década de 1980, o interesse no turismo urbano cresceu rapidamente, em paralelo com a crescente atenção dada à necessidade de regular e contrariar as externalidades negativas do turismo em cidades históricas. O modelo de férias marinhas ao sol que surgiu na década de 1960 começou a diminuir, enquanto o turismo urbano cresceu. Esta tendência foi impulsionada pelo surgimento e fortalecimento do transporte aéreo de baixo custo, conjuntamente com a melhoria da conectividade das cidades europeias.

A liberalização do transporte aéreo na União Europeia significou uma revolução no turismo, uma vez que afecta fortemente os fluxos de viajantes, tanto quantitativamente quanto qualitativamente. As “Transportadoras de Baixo Custo (LCCs na sigla na língua inglesa)” estão a deslocar viajantes para fora das rotas tradicionais, criando novos destinos. Os destinos emergentes são muitas vezes cidades pequenas, geralmente não famosas, onde as companhias aéreas de baixo custo pagam tarifas e taxas aeroportuárias mais baixas. O entusiasmo por um cenário turístico radicalmente dinâmico levou à concepção das LCCs como uma oportunidade não só para expandir a geografia do turismo, mas também para reposicionar destinos bem estabelecidos.

O governo de Malta, por exemplo, em 2006, ofereceu incentivos às companhias aéreas de voos baratos em uma tentativa de favorecer curtas férias urbanas e expandir o turismo cultural/patrimonial na despesa do modelo sol e praia. O resultado foi um aumento no número de chegadas, mesmo que não tenham ocorrido mudanças estruturais na procura turística. Ao mesmo tempo, as LCCs desencadearam uma nova onda de discussão sobre a contribuição do turismo para o desenvolvimento local. Tem sido defendido que o facto de o maior número de turistas fluírem, como os permitidos pelas LCCs, nem sempre significam desenvolvimento do turismo local e que nos negócios do destino turístico, sendo necessários modelos que maximizem os benefícios e mitiguem as externalidades negativas.

2 Fev 2018

O “segundo sistema”

[dropcap]P[/dropcap]or acreditar firmemente no legado que representa o pensamento de Deng Xiaoping, génio ímpar da China do nosso tempo, de que faz parte o princípio “Um País, dois sistemas”;

Por sentir que Macau atravessa um momento difícil que pode comprometer a viabilidade do Sistema Político estabelecido na Lei Básica, por deficiência de conhecimento do funcionamento do Estado de Direito, trave mestra em que assenta a edificação do “segundo sistema”;

Por entender que as comunidades que formam o tecido social da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China devem entender plenamente a via por que circula o seu destino colectivo e a construção da sua felicidade colectiva, unidas entre si e no respeito individual e colectivo pelos símbolos e autoridades nacionais da República Popular da China;

A propósito do almoço oferecido recentemente, a alguns macaenses, por Sua Excelência o Chefe do Executivo, pareceu-me oportuno lembrar um artigo escrito em 28 de de Janeiro de 2005 no jornal “Ponto Final” sob o mesmo título:

O “segundo sistema”

Ouve-se de vez em quando o lamento de macaenses, com alguma notoriedade em Macau, alegando que o “segundo” sistema os tem discriminado, não lhes dá as oportunidades que merecem, nem reconhece o seu papel legitimador desse mesmo “segundo” sistema.

O princípio “um país, dois sistemas” foi a fórmula criada por Deng Xiao Ping para superar o antagonismo ideológico capitalismo/socialismo e abrir caminho à reunificação da China.

O objectivo de tal princípio visa harmonizar sob a bandeira da República Popular da China, o sistema e as políticas socialistas do Interior com o sistema capitalista em que assentam as economias de Macau, Hong Kong e Taiwan. Dele não se extrai um mícro de propósito discriminatório. Étnico ou rácico. Nem se vê que o relativo menor sucesso do Sr. Tung Chee-Hwa na RAHEK possa ser atribuído ao déficit de gente lusa em Hong Kong para legitimar o “segundo” sistema.

A Lei Básica da RAEM, com generosidade e pragmatismo, confere o estatuto de cidadania aos residentes de Macau, independentemente da sua nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas e ideológicas, instrução e situação económica ou condição social (art. 25.º).

Passando dos enunciados teóricos à prática, volvidos mais de cinco anos de vida da RAEM, encontram-se deputados portugueses no seu órgão legislativo, assessores portugueses nos gabinetes dos membros do Governo, directores de serviços, coordenadores de equipas de projecto e quadros superiores portugueses por toda a Administração Pública e magistrados portugueses nos órgão judiciais. Na actividade privada é visível a prosperidade de advogados, médicos, engenheiros, arquitectos, industriais de restauração e outros profissionais portugueses. Nascidos em Macau ou em outras paragens. Sem discriminação.

Discriminação era antes. E não há muito tempo. Quando os chineses, por mais habilitações que tivessem, fora do sistema de ensino português, na Função Pública, por exemplo, apenas podiam ser motoristas ou serventes.

Macau é cada vez mais um espaço admirável e cheio de oportunidades para todos. A questão é ter unhas, como se costuma dizer em português. Uma bioquímica macaense, preterida em concurso de admissão aos Serviços de Saúde, será a excepção que confirma a regra? Haverá outros casos?

Nesta como em outras matérias, a cultura chinesa que enforma o Poder Político na RAEM é muito pragmática. Na linha, aliás, do que dizia também Deng Xiao Ping: “Não importa que o gato seja branco ou preto. O importante é que apanhe os ratos”.

2 Fev 2018

Sedução ou Assédio?

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s temas polémicos exigem-nos opiniões. Todo o movimento #metoo norte-americano (e mundial) veio levantar questões importantes acerca da nossa sociedade e da forma como percebemos o género e o sexo. Os globos de ouro foram palco de um mar negro de indumentárias de luxo femininas. A indústria cinematográfica e televisiva tem assistido a toda uma maré de acusações e queixas da forma como o assédio sexual parece fazer parte da normalidade diária – e têm havido contínuas tentativas de as condenar.
Há quem ache a tentativa de activismo durante uma gala cinematográfica absolutamente patética (no sentido que não é assim que se faz política); há quem ache que o movimento se tenha tornado numa caça às bruxas; há quem ache que é de louvar a tentativa de consciencialização sobre tema. Não estou muito preocupada em pensar ‘qual a melhor forma’ de resolver o problema. Porque o que me parece central é perceber se existe um problema de todo.
Se isto não é claro para muita gente, se calhar o primeiro passo é clarificar. Para mim é bastante óbvio que o problema existe, mas eu tive uma educação muito feminista – e por favor não se esqueçam que o feminismo é muito plural e diversificado – e já senti na pele as múltiplas nuances do assédio. Um dos mais importantes mitos acerca do tema é que o assédio divide os homens como os maus da fita e as mulheres como as vítimas indefesas. O que não é bem verdade, se pensarmos no género e no sexo como uma construção social, onde vários actores contribuem para os significados e práticas associadas. Gostava que esta reflexão fosse para além da lógica de ‘quem é que tem a culpa?’ – porque isso só parece atiçar hostilidade. Vamos afastarmo-nos disso por um momento, e partir para uma introspecção acerca das normas que regem as relações interpessoais, particularmente em contexto laboral.
Não quero soar muito quadrada, mas quando se trabalha, acho que gostaríamos de ser tratados de forma profissional. Não me parece que deverá haver muito espaço para a sedução – para a importunação ou o assédio sexual. Quando eu faço uma apresentação de teor académico, não estou à espera que comentem as minhas pernas, o meu decote, ou a proporção da minha cintura com as minhas coxas. Mesmo no mundo distante de Hollywood, mesmo que a imagem e o sexo venda nos castings de representação, acho que temos o direito de ser avaliados de acordo com as nossas habilidades profissionais. Até que ponto é que o sexo tem que estar presente em todas as coisas da nossa vida? Parece que o sexo é commumente utilizado como uma ferramenta de controlo do outro (e das sociedade em geral). E nestes jogos de controlo, os homens normalmente assumem um papel e as mulheres normalmente assumem outro.
Quando uma resposta francesa ao movimento #metoo veio a público, pareceu-me haver uma confusão entre os conceitos de sedução e de assédio. Tenho sido surpreendida pelo sarcasmo de muitos cronistas, opinadores públicos, mulheres e homens de igual forma. A sedução é um fenómeno bilateral – para um tango bem dançado são precisas duas partes com alguma coordenação. Por outro lado, o assédio já é a insistência de uma parte para com a outra – que não é desejada pelos dois, só por uma. Para além desta diferença ter que ser reforçada vezes e vezes sem conta, também vale a pena relembrar que as mulheres têm sido mais sujeitas a tratamentos menos devidos (e a esta confusão de conceitos) – o que não quer dizer que os homens não sejam assediados também. A tentativa de tornar o assédio socialmente condenável tem sido interpretado como demasiado ‘radical’ e um ‘exagero’ – isto porque considerou-se este tipo de interação como (absolutamente) normal durante muito tempo. Os homens aprendiam que era assim que podiam lidar com as mulheres, e as mulheres aprendiam que faz parte da sua existência ter que aprender a lidar com os avanços que por vezes não são desejados. Mas tem-se tentado mudar a forma como vemos o assédio, de forma a não confundi-lo com sedução. Podiam ser a mesmíssima coisa, mas felizmente, não o são.

31 Jan 2018

Exame de mandarim

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s estudantes Lau Tsz-kei e Andrew Chan Lok-hang foram suspensos na sequência do envolvimento nos protestos contra a obrigação do exame de mandarim. Os incidentes ocorreram no campus da Baptist University, Hong Kong. Inicialmente estiveram envolvidos 30 alunos nos protestos. Os estudantes começaram por abordar os funcionários do Centro de Línguas da Universidade. Um vídeo clip mostra Lau a falar de forma rude e incorrecta.

Este exame é obrigatório há muito tempo e é condição necessária à formatura. No entanto, alguns alunos alegam que o exame é bastante difícil e requerem a sua isenção, se puderem provar que o seu domínio do mandarim é suficientemente bom.

Lau e Andrew eram dirigentes activos de um grupo de apoio à língua cantonesa na Universidade. Lau afirma que nem ele, nem nenhum dos seus colegas, ameaçou qualquer funcionário, no entanto admite que os manifestantes estavam um pouco “acalorados”. “Só queríamos dialogar e colocar dúvidas. Não penso que isto fosse uma ameaça à segurança destas pessoas. Na realidade, eles podiam entrar e sair à vontade do gabinete. Por acaso até os ajudamos a recolher algumas cartas … não houve qualquer contacto físico.”

Mas Roland Chin Tai-hong, Presidente da Universidade, não partilha desta opinião e acredita que os comportamentos dos estudantes puseram em causa a segurança dos funcionários. A suspensão temporária, independente da conclusão do processo disciplinar, foi necessária. “Investigações preliminares determinaram que, nesse dia, a conduta dos estudantes fez com que os professores se sentissem ameaçados e insultados. Este comportamento vai contra o código de conduta do aluno. Todos os estudantes, funcionários e professores se sentiram insultados com este incidente.”

Roland Chin, adiantou que, a partir deste pressuposto, o director dos assuntos estudantis, Gordon Tang Yu-nam, recomendou de imediato a suspensão dos dois alunos. “Ficam impedidos de assistir a aulas e comparecer a exames, mas podem entrar no campus.”

Os estudantes reagiram mal e apelidaram o Presidente da Universidade de “insensível”. Lau declarou: “Estou chocado. Normalmente estas decisões são tomadas depois da conclusão da investigação.”

No seguimento da divulgação deste caso na imprensa, Andrew recebeu mais de 100 mensagens com ameaças de espancamento e morte no Facebook. Acabou por decidir suspender o seu internato de um ano no Hospital de Medicina Chinesa da Província de Guangdong e regressar a Hong Kong, porque o Hospital estava a receber telefonemas com ameaças.

O outro estudante suspenso, Andrew, afirmou: “Continuo a receber inúmeras mensagens com insultos e ameaças e o Presidente não toma quaisquer medidas, só pensa em castigar-nos e não faz nada quanto à nossa segurança.”

Mas o Presidente da Universidade diz que isso não é verdade e que está preocupado com a situação. Afirma que pediu à Escola de Medicina Chinesa que enviasse um professor para acompanhar Andrew no seu regresso a Hong Kong.

Tanto quanto se pode perceber, a maior parte das pessoas condena o comportamento destes estudantes. Só porque não conseguem passar no exame de mandarim, alguns alunos criaram um movimento contra esta prova. Daqui resultaram comportamentos abusivos e, aparentemente, funcionários e professores foram insultados. Os estudantes negam estas alegações e afirmam que ninguém sofreu danos físicos e que é não é aceitável castigar antes da conclusão da investigação.

Mas a que é que se devem estes comportamentos dos estudantes?

Nos anos 90, o Governador de Hong Kong David Wilson alargou o leque de Universidades para combater a saída de estudantes para o estrangeiro. Desde essa altura, existem cada vez mais Universidades de Hong Kong, o que aumenta significativamente a competição entre elas. Os alunos são tratados mais como “clientes” do que como “estudantes”. Diria mesmo que são tratados como “VIPs”. Estão ao dispor serviços de “excelência”, nomeadamente passar o maior número de alunos possível. Um grau elevado de reprovações não é um bom cartão de visita para a Universidade, pode conduzir a um decréscimo de inscrições. Os estudantes apercebem-se desta “condição” e, portanto, esforçam-se pouco. Deixaram de estar concentrados no estudo.

Para além disto, por causa dos preços elevadíssimos da habitação, hoje em dia em Hong Kong a maioria dos casais tem apenas um filho. Os pais concentram todo o seu afecto nessa criança. Quando cresce, pode ser levada a acreditar que é merecedora de toda a atenção deste mundo. Acrescenta ainda uma certa tendência, inclusivamente veiculada através do Conselho Legislativo de Hong Kong, que pode criar nos jovens a ilusão de que têm direito a tudo. Neste enquadramento social, não é de estranhar que os estudantes se sintam à vontade para gritar, protestar e dizer os disparates que quiserem. É também por isto que acham que, se ninguém sair ferido, não fizeram nada de mal.

Tratar os estudantes como VIPs pode dar origem a grandes problemas.

30 Jan 2018

Uma permanente obsessão

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vejo um filme passado em Macau, independentemente da sua qualidade, fico sempre fascinado pelas imagens, quase estupidificado e, ao mesmo tempo, submerso numa catadupa inenarrável de emoções. A coisa agrava-se quando a história retrata gente de Macau e o seu quotidiano. Tenho então um prazer quase voyeurista em entrar na casa das pessoas, dar pelos seus objectos, pelas fotografias sobre móveis de fórmica, as músicas trauteadas, os restos das vidas espalhados pelas mesas, pelas cadeiras, pelo chão.

Produz-se em mim um estranho reconhecimento de algo que realmente nunca presenciei, uma familiaridade com o que nunca vivi, um estranho sentimento de pertença, de partilha, meramente imaginário da minha parte. Terei alguma vez entrado num apartamento parecido com aquele? Seria tarde e agora não me lembro. Ou talvez isso nunca tenha realmente acontecido.

Isto ocorreu-me ao ver o filme “Sisterhood”, da realizadora de Macau Trace Choy. Independentemente da história ou do tema, a mim bastariam as imagens para me manterem agarrado ao ecrã, invadido por uma catarata de emoções. Por quê? Afinal, os ambientes retratados não são meus conhecidos mas algo dotado de uma existência pressentida. Não são sítios onde vivi mas espaços ocultos ou inacessíveis, que fazem parte do quotidiano de toda esta gente que me rodeia, mas aos quais o meu acesso é basicamente nulo. São os milhares de vidas à minha volta, envoltas sempre no mistério da sua cultura e na abissal diferença do seus desejos. Então por que razão isto me perturba tanto? Que tenho eu a ver com isto?

O filme em si é excelente, a história transporta-nos entre a cidade pré e pós crescimento desmesurado do Jogo. Existe a nostalgia do que existiu e desapareceu e um enorme vazio, unicamente colmatado pelas relações que restam do passado, mas que os novos ritmos tornam obsoletas. Tudo isto bastaria para tornar este um bom filme. Mas, para mim, é a presença da cidade, dos perfis e dos contornos, das pessoas e dos lugares, reais, imaginários e ou desaparecidos, que realmente me fascinou e com certeza me vai obrigar a rever várias vezes. Por quê esta minha tão estranha e permanente obsessão, que me faz ir da lágrimas ao riso, da estupefacção à euforia, da saudade à tristeza e ao desespero?

29 Jan 2018

O erro médico

“Misdiagnoses, wrong prescriptions, operating on the wrong patient, even operating on the wrong limb (and amputating it): these are the consequences of rampant carelessness, overwork, ignorance, and hospitals trying to get the most out of their caregivers and the most money out of their patients.”
“Killer Care: How Medical Error Became America’s Third Largest Cause of Death, and What Can Be Done About It” – James B. Lieber

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]rrar é humano, perdoar é divino. Embora possa ser aplicado em geral, perdoar, esquecer ou ignorar erros na medicina não é aceitável, uma vez que as consequências podem ser desastrosas. Os erros na vida quotidiana conduzem a acidentes de trânsito e à existência de vítimas. Os erros na indústria prejudicam os trabalhadores e as comunidades. Ambas as situações são motivo fértil de erros que os profissionais da saúde podem praticar ao cuidar dos pacientes. Os erros em medicina são evidências de que algo correu mal nos cuidados de saúde do paciente e da comunidade e que causou danos, que devem ser prevenidos e corrigidos.

As evidências são inúmeros, pelo que os médicos podem e devem trabalhar muito para os evitar. Os exemplos de erros médicos abundam, como procedimentos exploratórios e diagnósticos injustificados, efeitos adversos previsíveis mas imprevistos de intervenções médicas ou drogas, decisões cirúrgicas indesejáveis ou incorrectas e os seus resultados, tratamento não suportado pela evidência da sua eficácia e eficiência. Todos os tipos de erros e as suas consequências, sejam de natureza médica ou não, têm múltiplas implicações, como correcção e prevenção, actividades legais, reclamações para reparação e compensação, procura e implementação de melhorias ou avaliações dessas iniciativas e actividades.

As consequências económicas, sociais, físicas e de saúde mental são importantes para aqueles que cometem erros e para as suas vítimas. A vida moderna nem sempre simplifica ou elimina problemas e desafios de erros. Pode, de facto, torná-los mais frequentes, sofisticados e desafiadores para os controlar. No plano social, os erros médicos são considerados para os tribunais como matéria de vários litígios que devem levar a correcções solicitadas pelos autores e feitas por profissionais da saúde, suas instituições e ambientes de trabalho e outras compensações das vítimas pelos perpetradores. Qualquer erro médico é um produto de várias circunstâncias externas, incluindo o ambiente, condições de trabalho e pressões, considerando a tecnologia em rápida evolução e o sistema administrativo.

Tais factores externos só contribuem para a essência (os factores internos) por trás do erro médico, ou seja, o raciocínio defeituoso do médico, lógica, pensamento crítico e tomada de decisão. Os factores internos são sobre o que acontece no nosso cérebro, no cérebro daqueles com quem se trabalha e nos cérebros dos que criaram o ambiente de trabalho e as ferramentas da situação da saúde que se tem em mãos e que incluem os atributos fisiológicos e patológicos, atitudes, habilidades motoras e sensoriais, bem como as respostas a factores externos. Os factores externos são sobre o que acontece fora do cérebro.

O convívio com o erro médico é uma experiência aprendida como qualquer outro acontecimento. O dano também é causado por não ensinar, aprender e compreender erros médicos como falhas no pensamento crítico. A compreensão, prevenção e correcção dessas falhas é a principal responsabilidade de todos os profissionais de saúde. A mensagem que deve ser revelada é de que erro e dano médico está interconectado, não sendo idênticos a nível teórico, nem a nível prático. A metodologia do estudo e gestão de erros e danos médicos é dividida entre casos únicos e múltiplos e eventos. O erro humano (individual) e do sistema, no entanto interligados, não são idênticos, pois o seu entendimento e controlo são metodologicamente complementares e mais úteis se forem tratados separadamente.

Os usos de evidências sobre erros e danos médicos e a forma de os tratar por meio de argumentação, pensamento crítico e lógica informal são tão importantes como produzir a melhor evidência, pois ambos estão necessariamente ligados. O erro e o dano médicos são fenómenos conjuntos, como a doença e a saúde e daí o dever de serem estudados e controlados por métodos epidemiológicos. Por mais desconfortável que possa parecer a alguns humanistas, os cuidados clínicos de pacientes individuais e em grupo, protecção e promoção da saúde, tanto a nível individual como comunitário, também significam saúde industrial (no âmbito de uma ética e leis rigorosas).

A medicina beneficia e deve usar da experiência retirada de erros e danos de fontes externas, como indústria, desenvolvimento de novas tecnologias, transporte, negócios, economia, administração e gestão, finanças, além da psicologia, ergonomia, cinesiologia, sociologia e bioestatística para humanamente e efectivamente produzir a melhor saúde possível de indivíduos e grupos de indivíduos. O facto de cometer erros, compreender as suas causas e ocorrências, e preveni-los sempre será parte integrante da medicina, por mais lamentável que isso possa ser e parecer. As consequências, de facto, do erro podem ser desastrosas para os pacientes, profissionais de saúde e comunidades.

O domínio de erro médico tem muitas partes interessadas, incluindo pacientes, médicos, outros profissionais de saúde, magistrados, advogados, investigadores, economistas de saúde, sociólogos, psicólogos, ergonomistas e assistentes sociais. A segurança do paciente como um todo pode ser considerada sinónimo de ausência de erro médico e na prática e pesquisa não só de medicamentos, mas também de qualquer domínio relacionado com a saúde. As relações actuais com o erro na fabricação, no desenvolvimento de novas tecnologias e seus usos, e no transporte beneficiam das principais contribuições e progressos provocados por muitos especialistas que trabalham principalmente em campos não médicos.

Os profissionais da saúde estão actualmente a adicionar uma nova dimensão ao mundo cada vez mais integrado da literatura médica. Os erros médicos não só ocorrem esporadicamente, mas também podem ser epidémicos, endémicos e até mesmo de natureza pandémica. A epidemiologia clínica e de campo está a concentrar-se gradualmente na pesquisa das causas de erro médico, na investigação da sua ocorrência e na efectividade de programas correctivos e intervenções. O seu envolvimento na alfabetização está a crescer, assim como a argumentação do pensamento crítico moderno e a lógica informal subjacente ao raciocínio médico, à tomada de decisão e às contribuições epidemiológicas. A grande variedade de causas de erro médico, como formação inadequada, falhas das tecnologias médicas tradicionais e novas nos seus desenvolvimentos e usos, influências fisiológicas, psicológicas e ambientais, gestão de dados e informações, deficiências de execução, falhas de funcionamento do sistema de saúde e de comunicação, erros baseados em regras e de raciocínio, bem como tomada de decisão.

A noção de erro médico é separada dos danos. O erro médico nem sempre causa danos, ou seja, o erro e o dano médico tem causas específicas por vezes sinónimas e outras vezes distintas. O estudo de ambos é crucial para melhorar a segurança do paciente. A medicina em domínios clínicos e comunitários avança de várias formas, incluindo os resultados espectaculares em áreas fundamentais, como pesquisa de células estaminais, genética médica ou explorações moleculares. A produção, avaliação e uso das melhores evidências em farmacologia básica e clínica, disciplinas cirúrgicas e outros cuidados clínicos que cobrem todas as faixas etárias são de extrema importância.

A melhoria contínua da pesquisa, raciocínio, pensamento crítico e metodologia de tomada de decisão em todos os domínios torna-se essencial. Só melhorando e reorientando a educação médica e estruturando e expandindo o processo e impacto da avaliação do atendimento médico, incluindo a tradução do conhecimento se poderão obter resultados palpáveis na senda de uma melhor prática médica. O desenvolvimento de novas tecnologias, incluindo o seu contexto ético, a melhor atenção e acções para entender, prevenir e controlar os erros humanos e de sistemas em atendimento clínico, medicina comunitária e saúde pública em todos os domínios mencionados, bem como na experiência em expansão resultante de sua correcção poderão diminuir as estatísticas do erro e dano médico.

É de considerar que muitas vezes esquecemos que aprender com os nossos erros e corrigi-los é uma ferramenta educacional e de aprendizagem extremamente poderosa (se feita correctamente) e que os pacientes beneficiarão imensamente de outros erros infelizes cometidos no passado. Esta é talvez a maior vantagem de aumentar a atenção que se atribui ao domínio do erro médico. Os erros na medicina, tão temidos pelos médicos e seus pacientes, e são, sem dúvida, mais do que alertar a evidência de que algo está errado, causa danos e deve ser prevenido e corrigido. Os erros médicos ocorrem como avaliação de risco, diagnóstico, tratamento, prognóstico e decisões relacionadas, mas também ocorrem, às vezes endemicamente, na pesquisa e na prática de medicina clínica, familiar e comunitária ou saúde pública.

Às vezes, raramente, esperadas, explicadas ou não, são uma parte importante do problema de erro geral em vários empreendimentos humanos. Ainda que a maior parte do esforço na medicina esteja focada em boas evidências de acções benéficas e os seus resultados, usos e efeitos, deve notar-se que eventos nefastos, como os erros médicos, boas evidências sobre os mesmos, bem como seu controlo exigem igual atenção, compreensão, e prevenção. O contrário seria o oposto da ética médica. Os erros médicos também desempenham um duplo papel, mencionado excepcionalmente, do ponto de vista das relações causa-efeito. Os erros médicos são causados por algo. Metodologicamente, são variáveis dependentes, consequências de alguma situação. É necessário conhecer as suas causas, preveni-las e corrigi-las. Por outro lado, os erros médicos causam danos como morte ou lesão.

Os erros neste contexto são as causas do dano e servem como variáveis independentes na associação com as suas consequências. O dano pode levar a uma cascata de outras consequências. Os erros médicos pertencem a uma família maior de erros em vários domínios, como os erros no desenvolvimento e uso de novas tecnologias, ergonomia, administração, gestão, política e economia. A experiência em todos esses campos, adquirida ao longo das três últimas gerações, é parcialmente aplicada em medicina. As especificidades da medicina exigem atenção adicional aos factores humanos e outros que afectam tanto os prestadores de cuidados, quanto os pacientes ou comunidades na configuração e no contexto da sua prática.

Os erros ocorrem não apenas na pesquisa e avaliação de saúde, fundamentalmente, clínica e comunitária, mas também em situações directamente perturbadoras na prática e na prestação de cuidados diários. Os erros também ocorrem na tradução de conhecimento e em consequências benéficas ou nocivas de usos ou não de evidências. Qualquer erro médico é um produto de várias circunstâncias, incluindo o ambiente, condições de trabalho e pressões, tecnologia em rápida evolução, gestão, administração ou funcionamento do sistema e outros factores externos. Tais factores externos contribuem apenas para a essência (factores internos) por trás do erro médico, ou seja, o próprio raciocínio defeituoso do médico, lógica, pensamento crítico, tomada de decisão e seu desempenho sensório-motor.

A fronteira entre o primeiro e o último é a realidade diária. A patologia humana ensina sobre mecanismos subjacentes comuns e, em seguida, sobre cada transtorno e doença individualmente considerada e sobre como tratá-la. Ao lidar com os erros atribuídos ao pensamento crítico na medicina, da mesma forma, aprende-se sobre paradigmas, elementos e regras do pensamento crítico, e depois de se estar familiarizado com a sua patologia (ou seja, os transtornos, falhas e falácias) como doenças do raciocínio que, em última instância, levam e produzem erros médicos e as suas consequências. Sem essa aprendizagem e experiência, como é possível prevenir e, de qualquer forma, minimizar os erros médicos? É de entender que conviver com erro médico é uma experiência aprendida, como qualquer outra situação.

O dano também é causado por não ensinar, aprender e compreender erros médicos como falhas no pensamento crítico? Erros médicos ocorreram muitas vezes no passado, ocorrem actualmente e ocorrerão infelizmente, no futuro. Deve-se aprender a viver com os erros e a evitar da melhor forma que se puder, dada a evolução das circunstâncias da prática e da pesquisa médica, pois é de atender aos variados e principais estímulos médicos, a urgência e a magnitude do problema em medicina interna e cirurgia. Alguns dos principais jornais, revistas e monografias tentam explicar o desafio (especialmente o diagnóstico) do público oferecendo uma selecção de grandes relatórios e artigos sobre o problema do erro médico. Algumas Universidades e instituições internacionais desenvolvem rotas e estratégias para lidar com o problema dos erros em medicina e cirurgia e todo o movimento de prevenção e controlo de erros médicos, está a ganhar propósitos mais claros e a atenção está a tornar-se estruturada e organizada.

Se considerarmos uma perspectiva mais ampla de erros na medicina, enfrentamos o problema geral de erros médicos como a diferença entre o comportamento real ou a medição e as regras de expectativas para o comportamento ou medição, mais especificamente enfrentando o problema de falhas na acção planeada e o seu cumprimento (erro de execução) ou uso de um plano incorrecto para atingir um objectivo (erro de planeamento). A acumulação de erros resulta em acidentes. Um erro pode ser um acto de comissão ou de omissão. Por exemplo, em cirurgia, um erro é mais do que dar um mau nó ou uma sutura mal executada. Muitos erros médicos são, em um sentido mais amplo, erros clínicos que podem ser realizados por outros profissionais de saúde ou quando trabalham em conjunto. Em termos mais gerais, talvez seja correcto dizer que um erro médico é algo que aconteceu no consultório e que não deveria ter acontecido e que absolutamente não é para voltar a acontecer.

Os erros na medicina são imputáveis em diversas situações como na formação (conhecimento, atitudes e habilidades), falha de tecnologias médicas (o equipamento está mal instalado, projectado ou avariado), utilizações inadequadas de tecnologias médicas (o equipamento é usado onde, quando, e no que não deve), factores fisiológicos e psicológicos como a condição física e psicológica do médico e outros profissionais de saúde como a fadiga ou stress, registo, processamento e recuperação de dados e informações causados ​​por tecnologias da informações e seu uso (inadequação da tecnologia da informação e avaria), competências deficientes na execução (movimento ou actividades sensoriais baseadas em experiência passada), erros taxonómicos devido a enganos (classificação de actividades defeituosas devido a etiologia mal explicada ou usada), falhas do sistema (funcionamento dos serviços de saúde, triagem e subsequente atendimento de emergência que não funcionam como deveriam), erros de comunicação e avarias, erros fundados em regras (orientações, guias de utilizador não seguidos), erros no raciocínio e decisões sobre problemas de saúde.

É de ponderar que praticar um erro médico não é necessariamente negligência com todas as suas consequências jurídicas e financeiras, mas pode acontecer e causar algum tipo de dano. Os erros médicos são estudados e avaliados de duas formas que nem sempre são claramente especificados, sendo que uma abordagem é investigar as causas de erros médicos (erros são consequências ou variáveis dependentes), e em outra apreciação, os erros médicos estão relacionados como causas prejudiciais (erros são causas ou variáveis independentes). As taxonomias actuais de erros médicos nem sempre especificam o possível duplo papel dos erros. Os erros médicos não se limitam ao diagnóstico ou a decisões de tratamento, pois podem ocorrer em qualquer fase do trabalho médico, como a avaliação do risco de doença, compreensão das suas causas e eficácia de intervenção para prevenir, curar ou controlar de outra forma um problema de saúde ou o seu prognóstico a nível individual ou comunitário.

Os erros médicos também podem ser estudados através de métodos quantitativos, tais como a bioestatística ou informática, de métodos adoptados de outros domínios como a aviação, ou de métodos qualitativos e com o lugar reconhecido das humanidades em medicina, a porta abre-se para lógica informal e pensamento crítico (um companheiro natural para a medicina fundamentada em evidências e epidemiologia clínica) como guardiões contra os erros médicos.

26 Jan 2018

O amigo macaense

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 19 de Janeiro recebi um telefonema de um amigo para me informar que o Carlos Manuel Coelho tinha falecido. Esta notícia encheu-me de tristeza. É sempre difícil aceitar a morte, mesmo quando sabemos que a pessoa em causa sofria de problemas de saúde há algum tempo.

Conheci o Carlos Manuel Coelho há mais de vinte anos, quando ele trabalhava na Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ), sediada num edifício da Avenida do Conselheiro Ferreira de Almeida. Nessa altura, fui à DSEJ para entregar as candidaturas dos meus alunos às actividades de Verão e foi o Carlos que recebeu os impressos. Vinte anos volvidos, voltei a encontrá-lo. Tinha ido dar uma palestra à escola onde ele trabalhava como assistente do Reitor e ele honrou-me com a entrega de uma medalha comemorativa. Há quatro anos atrás, tornei-me também assistente do Reitor, na mesma escola onde o Carlos trabalhava, e desta forma tornamo-nos colegas. Em Junho de 2016, deixei de trabalhar na referida escola e assim terminou também a nossa parceria laboral.

Carlos Manuel Coelho tinha um belíssimo nome chinês, Kou Vai Lon, que ligava muito bem com a sua imagem. Quem não o conhecesse, ficava invariavelmente com a ideia de estar perante uma pessoa arrogante. Mas após alguma convivência, esta impressão dissipava-se. No entanto, há quem diga que nem toda a gente gostava dele. Mas a partir do momento em que se tornava nosso amigo, sentíamo-nos abençoados.

Nas eleições de 2014 para a Assembleia não fui reeleito, mas, apesar disso, não pude continuar a cumprir todos os meus antigos compromissos laborais. Acabei por ter de abandonar a escola, onde tinha estado durante muitos anos, e iniciar um novo trabalho num ambiente completamente diferente. Enquanto funcionário público, que dedicou décadas da sua vida à educação, Carlos Manuel Coelho ensinou-me muito sobre como lidar com pessoas e situações, embora, devido à minha personalidade, não tenha posto tudo em prática. Contudo, ele fazia análises muito certeiras sobre tudo o que o rodeava e ajudou-me a abrir os olhos para determinadas realidades. De todo o trabalho que, durante anos, desenvolveu ao serviço do Governo, o que o enchia de maior orgulho era o Festival Juvenil Internacional de Dança, cuja organização estava a seu cargo. Mas o que mais me impressionava era a sua entrega à promoção do ensino do Português na escola onde trabalhava.

Graças à excelente educação que recebeu, Carlos Manuel Coelho tinha um completo domínio da língua portuguesa, o qual desejava partilhar com a comunidade. Para além de organizar aulas de Português na sua própria escola, também o ensinava noutros locais, o que lhe valeu um amplo reconhecimento. Levou ainda o ensino da lusitana língua aos jardins de infância, organizando jogos e encenando para os mais pequeninos acontecimentos do dia a dia. Um dos cacifos do seu escritório estava atulhado de tubos de papel higiénico e outros materiais que coleccionava para mais tarde usar como ferramentas pedagógicas. Era difícil avaliar pela sua aparência como era na verdade um pedagogo tão apaixonado.

Carlos Manuel Coelho vestia-se com bom gosto e tinha um sentido da vida muito particular. Na sua mensagem do Weibo podia ler-se, “A vida é curta, por isso aproveitem cada dia ao máximo”. Ao fim de dois anos de o conhecer, acabei por ir aprendendo, aos poucos, a apreciar a Arte e a vida. Sabia confeccionar excelentes pratos macaenses, especialmente doçaria. Tinha também profundos conhecimentos sobre mobiliário em cerejeira e porcelanas. Estava sempre pronto a ajudar e a partilhar o que sabia, mas só se nos considerasse amigos.

Por vezes, convivemos com certas pessoas durante anos e nunca passam de conhecidos. Mas, de outras, com quem nos identificamos, ficamos amigos num abrir e fechar de olhos. Com o Carlos Manuel Coelho, verificou-se o segundo caso.

Ultimamente tem acontecido de tudo em Macau. Muitas destas coisas são a paga do que as pessoas fizeram ao longo dos anos. A vida é curta na verdade e eu fui um privilegiado por ter conhecido o Carlos Manuel Coelho, que foi um grande amigo. Que o Senhor tenha a sua alma e olhe pela sua família.

 

26 Jan 2018

Organização Judiciária: Entre o Quase Nada e o Quase Tudo

[dropcap style≠‘circle’]1.[/dropcap] Anunciam-se mexidas à Lei de Bases de Organização Judiciária (LBOJ) e a discussão pública (ou publicada) tem-se centrado quase exclusivamente na exclusão dos juízes estrangeiros em poderem julgar casos que incidam sobre segurança nacional. De passagem foi-se também falando na questão do duplo grau de jurisdição, há muito reclamada, para que os titulares dos cargos políticos possam ser julgados no Tribunal de Segunda Instância, de modo a poderem recorrer para o Tribunal de Última Instância. E ainda se foi referindo a necessidade de se aumentar o número de juízes do TUI.

 

2. São óbvias e mais do que justificadas as fortes críticas a que o sistema inclua uma limitação à possibilidade de os juízes estrangeiros julgarem casos que impliquem questões de segurança nacional (seja lá o que isso for). De um ponto de vista politicamente correcto invoca-se que todos os juízes têm a mesma idoneidade, imparcialidade, etc., e que a Lei Básica não permite tal discriminação. O que é rigorosamente verdade. Mas num aparte politicamente incorrecto dir-se-á que, provavelmente, os juízes estrangeiros até terão um maior distanciamento em relação a este tipo de matérias, o que os habilitará a ter uma mais ampla liberdade e independência de decisão, por não estarem tão condicionados por paradigmas socioculturais tão específicos como são os da cultura chinesa.

É também mais do que óbvia a necessidade de se assegurar um duplo grau de recurso nos julgamentos de titulares de cargos políticos. Como seria saudável que fosse alargado o número de juízes na Última Instância para permitir um refrescamento das correntes jurisprudenciais e permitir que mais processos pudessem ser decididos nesse último tribunal da RAEM.

 

3. Fora isso, as alterações à LBOJ vão pouco além de meros ajustamentos administrativos, sem fôlego, sem ambição, sem atenderem à modernidade da evolução judiciária e, acima de tudo, sem visão estratégica. Ou seja, uma oportunidade (quase) perdida de se mexer na organização judiciária da RAEM (incluindo-se aí a Lei de Bases e os Códigos de Processo).

 

4. Reclamo há muito que é preciso olhar para o judiciário com outra visão e sem os condicionamentos conservadores com que os juristas muitas vezes vêm estes coisas, condicionados por uma tradição que por vezes lhes retira a ousadia reformista.

Ora, um dos trabalhos a empreender, com grande impacto no sistema, seria o de integrar a jurisdição administrativa e fiscal na jurisdição comum, criando aí juízos especializados para as questões administrativa e/ou fiscais, e aprofundando-se ainda mais a especialização na primeira instância.

É preciso coragem para dar este passo. E vencer muitas resistências.

 

5. Permitam-me um exemplo do que está a acontecer em Portugal. No recentíssimo “Acordo para o Sistema de Justiça”, assinado em Lisboa entre as cúpulas das organizações representativas dos Juízes, dos Magistrados do Ministério Público, dos Advogados, dos Solicitadores e dos Funcionários Judiciais, foi incluído, a abrir um documento entregue às autoridades políticas, num conjunto de outras 88 medidas, a seguinte proposta que mereceu o consenso de todos: “Estudo da unificação da jurisdição comum com a jurisdição administrativa e fiscal, criando uma ordem única de tribunais, um único Supremo Tribunal e um Conselho Superior da Magistratura Judicial”. Isto é uma revolução, que se invoca com alguma legitimidade devido à identidade das matrizes existentes! E na RAEM nem sequer seria preciso mexer com tantos interesses instalados, como em Portugal, uma vez que aqui que só existe uma única hierarquia de tribunais de recurso e só existe um único Conselho de Juízes.

 

6. Os tribunais administrativos, na sua lógica antiquada, formalista, privilegiadora da “verdade” formal, muitas vezes em detrimento da verdade material, têm de ser profundamente restruturados. E, falando claro, a única forma de o fazer é retira-los do gueto em que se encontram e integrá-los numa jurisdição comum, e sujeitos a uma disciplina processual comum às restantes especialidades judiciárias.

 

7. Associado a esta ideia é imperativo rever, com amplitude, as normas de processo, simplificando-as, criando procedimentos mais ajustados e flexíveis, de modo a que possam ser aplicados por igual às diversas especializações (entre elas a administrativa e fiscal). E uma forma de os simplificar começaria por se lhes retirar, a todos eles e a alguma legislação avulsa, todas normas de competência, onde nunca deveriam ter entrado.

E o momento até seria oportuno, porque o Governo está também a rever, em separado, o Código de Processo Civil.

 

8. Esta “revolução” levaria a que passasse a haver um Código do Sistema Judiciário (em substituição da Lei de Bases de Organização Judiciária) e um Código de Processo Judiciário, que serviria para regular o funcionamento de todos os tribunais comuns (com excepção dos tribunais criminais, uma vez que os procedimentos a observar aí, têm, na verdade, um DNA muito específico).

 

9. Para não alongar este enunciado de questões gerais, há um outro tópico para ponderação que considero ser importante.

É preciso um tempo razoável para que um juiz seja nomeado definitivamente para o lugar. Não basta a conclusão com aproveitamento de um curso ou estágio de formação. É necessário existir um “período experimental” de alguns anos (cinco, por hipótese) para que se perceba, após inspecções regulares, se uma determinada pessoa tem a formação técnica e os traços pessoais e de personalidade adequados para o desempenho dessa tão importante função pública e que tanto impacto tem na regulação dos conflitos sociais. É importante que essa função seja exercida com sabedoria técnica, com parcimónia e algum recato, com respeito institucional por todos aqueles que têm de acorrer a um tribunal, com autoridade, mas sem autoritarismo. O facto é que nem sempre a sabedoria jurídica chega para fazer um bom juiz!

Este princípio é valido para Macau, como é válido para Portugal onde, infelizmente, não tive a capacidade de colocar o assunto na ordem do dia, na altura em que aí coordenei o grupo de trabalho que procedeu à reforma do sistema judiciário de 2013.

 

10. A terminar, não uma nota de rodapé, mas um desabafo em jeito de pergunta: o que continua a impedir que os advogados possam corresponder-se com os tribunais através de meios electrónicos, e vice-versa, usando certificação digital, e tenham de continuar a usar o fax e a carregar papel e mais papel para zelosos funcionários arquivarem em pastas que depois são guardadas em móveis atafulhados?

No século XXI, e numa terra onde há dinheiro e condições técnicas para o fazer com facilidade, é absolutamente inacreditável que se continue a viver nesta pré-história judiciária!

 

Texto por João Miguel Barros, Advogado

25 Jan 2018

Desejo Masculino e Testosterona

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ada é consensual, nem a natureza do desejo sexual. Até rimei. As ciências baseiam-se nas várias formas de como olhar o mundo para interpretar fenómenos humanos. Como se entende o desejo sexual (e os problemas e vantagens a eles associados) vão variar de acordo com as nossas orientações epistemológicas. A mais utilizada para perceber o desejo sexual, que até está presente no nosso senso comum, é a do modelo biológico. Mais concretamente, que as nossas queridas hormonas contribuem para os sinais mais óbvios do desejo e da performance. Mas será a biologia capaz de explicar tudo?

Há quem diga sim, há quem diga que não. Parece que os estudos que suportam a tese biológica poderão ser re-interpretados à luz de um entendimento mais dialógico, i.e., tendo em consideração os corpos e as mentes da parelha do desejo e do sexo. A evidência mais clara de que o desejo não depende totalmente de existência de testosterona em força, é a dos eunucos. Os eunucos que, no caso da corte chinesa, trabalhavam para servir as concubinas do imperador, eram castrados para não haver risco algum de se envolverem com as meninas, muito menos engravidá-las – para não correr o risco das concubinas produzirem possíveis herdeiros infiéis à linhagem do imperador. O que certas descrições da época parecem informar é que lá pelos homens terem perdido os tomatinhos (de forma bastante traumática, suponho), não era por isso que não iriam brincar ao sexo com as raparigas (ou rapazes) que quisessem. Aliás, isto é tão verdade que até poderá ter havido a prática de remoção do pénis, para além dos testículos, só para não se correr risco absolutamente nenhum. Mas nada indica que os eunucos não pudessem, ainda assim, não gozar o prazer sexual, usando as mãos ou a boca, por exemplo.

Vou tentar explicar o porquê da persistência do desejo, da melhor forma que puder. Imaginem um homem com problemas em ter uma erecção: como é um tanto ou quanto estigmatizante para a sexualidade masculina acontecer tal coisa, é normal que o desejo se agarre à vergonha – para assim se proteger de situações desconfortáveis. Por isso, é bastante comum ver a disfunção eréctil associada à falta de desejo, mas e se não for a biologia a causar a inibição do desejo sexual? E se a causa for o estigma da não-erecção? Quer dizer que a natureza do desejo vai muito além das hormonas (não descartando que elas são parte importante, claro). No caso dos eunucos, eles sabiam que tinham como trunfo sexual a infertilidade – as mulheres sentiam-se atraídas por isso. Não é fantástico poder sentir o prazer do toque e do orgasmo sem se ter que preocupar com uma gravidez indesejada, quando a pílula estava longe de ser comum? Alguns relatos da época parecem apontar para esta explicação – e não me parece descabida de todo – o desejo sexual será, por isso, o resultado de relações de atração.

Portanto, trocando isto por miúdos: o desejo sexual parece alimentar-se da atração pelo outro, mas também da forma como nós achamos que o outro pode sentir-se atraído por nós, e das nossas condições de prazer. Daí eu ter descrito o desejo como dialógico, porque parece depender de uma conversa de atrações, do que eu acho do outro, e do que eu acho que o outro acha de mim. Claro que o que nós julgamos atraente é construído socialmente, e o perigo sempre foi associar o prazer e a performance masculinas à erecção e à ejaculação, sem nunca dar espaço suficiente a outras formas de amor e de prazer. A lógica biológica, e melhor disseminada socialmente, parece atrapalhar as formas de desejo sexual que poderiam ser exploradas, justificadas e concretizadas fora da testosterona. Se os eunucos, privados de níveis normais de testosterona, continuavam a sentir desejo e fantasia, e que ainda iam para a cama com as miúdas com quem era suposto não irem, o sexo tem de estar algures entre as nossas cabeças, a nossa magia sensorial e os nossos genitais.

24 Jan 2018

Novo rosto na Justiça

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m Hong Kong, no passado dia 6, a nova Secretária da Justiça tomou posse. Chama-se Teresa Cheng Yeuk-wah e vem substituir Rimsky Yuen Kwok-keung. Embora Rimsky não tenha explicado os motivos da sua demissão do cargo, tudo indica que esta se ficou a dever principalmente a motivos de saúde.

Teresa Cheng Yeuk-wah é Conselheira Sénior em Hong Kong. Foi também presidente do Centro para Arbitragem de Disputas Financeiras, a delegação de Hong Kong do Centro Internacional para Arbitragem de Disputas Financeiras, e vice-presidente do Conselho Internacional de Arbitragem Comercial.

Os sistemas jurídicos de Hong Kong e de Macau são diferentes, especialmente no que diz respeito ao exercício da advocacia. Em Hong Kong os causídicos dividem-se em dois grupos, os solicitadores e os advogados de barra. Estes últimos, também designados por “conselheiros”, são especialistas em todo o tipo de litígios e podem exercer nos Tribunais de todas as instâncias. Ao contrário, o solicitador tem acesso apenas a alguns Tribunais. Para aceder às mais altas instâncias o solicitador precisa de uma autorização especial.

O advogado de barra pode vir a receber os títulos de Conselheiro e de Conselheiro Sénior. Esta atribuição terá de ser aprovada pelo Supremo Tribunal. O Título de Conselheiro Sénior só pode ser atribuído a advogados com desempenho de excelência em Tribunal, especialmente no que diz respeito à análise de casos. Tanto Rimsky como Teresa Cheng receberam o título de Conselheiro Sénior, o que significa que ambos são excelentes advogados.

De acordo com o artigo 63º da Lei Básica de Hong Kong, o Secretário da Justiça tem o poder de decidir quem deverá ser processado. Este artigo garante a independência do poder jurídico. É também mais um garante do estado de direito. Em Macau, o artigo 90º da Lei Básica enuncia: “Os Procuradores da Região Administrativa Especial de Macau deverão exercer as suas funções, conforme está consignado na Lei, de forma independente e livre de quaisquer interferências.” A função deste artigo é equivalente à do artigo 63º da Lei Básica de Hong Kong.

Na sua primeira conferência de imprensa, Teresa Cheng afirmou: “Por vezes, as pessoas fazem leituras diferentes do conceito ‘um País, dois sistemas’ e talvez também da Lei Básica. No entanto, se persistirmos na aplicação dos princípios legais, e analisarmos objectiva e racionalmente a Lei Básica, promulgada pelo Congresso Nacional do Povo de acordo com a constituição da República Popular da China, acabaremos por chegar todos ao mesmo entendimento legal.”

Teresa Cheng adiantou ainda: “A primeira missão do Secretário da Justiça é garantir a manutenção do estado de direito.”

Estas declarações demonstram que Teresa Cheng vai tomar as suas decisões em estrito acordo com a Lei, no entanto a situação não lhe é muito favorável. A nova Secretária da Justiça vai enfrentar uma série de desafios, como a questão da partilha alfandegária, a Lei do Hino Nacional e os recursos dos membros do movimento “Occupy Central” de Hong Kong. No entanto, até ao momento, não existem rumores sobre a criação de leis relacionadas com o artigo 23º da Lei Básica. A legislação sobre segurança nacional deverá ser elaborada posteriormente.

A partir deste primeiro discurso, podemos depreender que Teresa Cheng é forte e que defende firmemente o estado de direito. É possível que a sua experiência como mediadora de conflitos comerciais lhe tenha conferido uma certa cordialidade que a pode vir a ajudar a lidar com os diferentes grupos de interesses.

Mas o seu passado também indica que ela não é muito hábil a lidar com questões políticas. A construção ilegal da sua residência na Villa de Mer, Siu Lam, Tuen Mun é um dos melhores exemplos para o ilustrar. Há um tempo atrás, a construção ilegal da casa do antigo Chefe do Executivo, C Y Leung, deu muito que falar em Hong Kong. Foi também o caso do Secretário-Chefe Henry Tong. Teresa Cheng caiu no mesmo erro e, além disso, não deixou esta questão resolvida antes da sua designação para o cargo, o que não é bom para ela nem para o Governo da RAEHK. Embora tenha apresentado desculpas públicas no primeiro dia no exercício de funções, não se pode livrar das críticas.

Uns dias depois surgiram mais notícias. O Governo da RAEHK autorizou Teresa Cheng a manter o seu lugar de mediadora em seis casos de arbitragem de conflitos. Apesar disso o Governo garante que não existe conflito de interesses, e assegura que não faz parte das funções do Executivo envolver-se nestes assuntos. Os casos vão-se somando, um atrás do outro.

Os acontecimentos demonstram claramente que não é fácil ser membro do Governo de Hong Kong.

23 Jan 2018

A legalidade não tem valor de mercado

Toute Société dans laquelle la garantie des Droits n’est pas assurée, ni la séparation des Pouvoirs déterminée, n’a point de Constitution” – Artigo 16.º, Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789
  1. [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo escreveu Vieira de Andrade, há na actualidade um conjunto de direitos cuja raiz se faz remontar aos estóicos e a Cícero, que foi depois objecto de densificação com o Cristianismo e as doutrinas de S. Tomás de Aquino, continuando historicamente no Iluminismo e no Liberalismo, e cujos marcos mais recentes podem ser encontrados nas revoluções americana e francesa. Estes direitos acabaram por ser acolhidos em textos de características para-universais, como é o caso de diversos documentos da ONU, entre os quais o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, documento que a RPC, enquanto país fundador daquela organização subscreveu em 1998, concordando que fosse posto em vigor em Macau, através de consagração expressa na Lei Básica (LB), como parte da garantia da existência de um “segundo sistema”.

2. Pela sua origem histórica e importância, esses direitos atravessaram os anos e os séculos e devem ser hoje considerados “património espiritual comum da humanidade“. Assim, impõem-se em quaisquer circunstâncias, não admitindo várias leituras de acordo com pretextos de natureza social, económica ou política para permitirem violações do respectivo conteúdo.

  1. Convirá por isso referir que a LB de Macau contemplou a existência desses direitos em diversas disposições, mas o problema que tem vindo a colocar-se nos últimos tempos com mais acuidade é que esses direitos não são os únicos: a sua vigência na ordem interna tem de ser articulada, quer com outros direitos, quer com a acção dos órgãos do poder político, visto que podem tornar-se conflituantes quando colocados em confronto perante determinadas situações concretas. Em causa estão os chamados actos políticos enquanto afirmações de poder decorrentes do exercício da função política.
  2. Como vários autores têm destacado (F. do Amaral, G. Canotilho, E. de Oliveira, J. Miranda, M. Rebelo de Sousa, entre outros e para referir só a doutrina portuguesa), o que caracteriza a função política enquanto actividade pública de um Estado é o seu fim específico como definidora do “interesse geral da colectividade” (F. do Amaral), correspondendo à prática de actos que, “com grande margem de liberdade de conformação” (G. Canotilho), fazem a “definição primária e global do interesse público” (J. Miranda), “exprimindo opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade (…) e que respeitam, de modo directo e imediato, às relações dentro do poder político e deste com outros poderes políticos” (M. Rebelo de Sousa). Para este último, a “essência do político reside na realização das escolhas“, não visando projectar-se em termos imediatos sobre os cidadãos. Nesta linha, no Acórdão do STA de 06/02/2011, proferido no Processo 045990 (2ª secção do CA), escreveu-se que actos políticos são “actos próprios da função política e cujo objecto directo e imediato é a definição do interesse geral da comunidade, tendo em vista a conservação e o desenvolvimento desta“.

 

  1. Mas ao lado destes actos que definem a essência da actividade política, também há os chamados “actos auxiliares de direito constitucional“(Afonso Queiró, Esteves de Oliveira) que são aqueles que se destinam a “pôr, manter, modificar ou fazer cessar o funcionamento de um órgão ou regime”, nele se incluindo, por exemplo, a nomeação ou exoneração de um primeiro-ministro, a dissolução de um órgão legislativo ou a marcação da data de umas eleições (cfr. J. de Sousa, Poderes de Cognição dos Tribunais Administrativos relativamente a Actos Praticados no Exercício da Função Política, Julgar, 3, 2007).

 

  1. A LB esclarece-nos que os tribunais da RAEM têm jurisdição sobre todas as causas judiciais (cfr. art.º 19.º), com excepção das que respeitem aos “actos do Estado”, dando-se como exemplo destes as relações externas e a defesa nacional. Por seu turno, a Lei de Bases da Organização Judiciária (LBOJ) estatui que estão excluídas do contencioso administrativo as questões que tenham por objecto os actos “praticados no exercício da função política e a responsabilidade pelos danos decorrentes desse exercício, quer este revista a forma de actos quer a de omissões“.

 

  1. Não resta, assim, qualquer dúvida de que os actos praticados no exercício da função política estão excluídos do contencioso administrativo, não sendo para isso necessária uma qualquer absurda resolução para atestar esta realidade.

 

  1. Mas, pergunta-se agora, desse contencioso estão excluídos todos os actos? Aparentemente dir-se-ia que sim. Só que é aqui que reside o problema, dado que importa compatibilizar o que está vertido na LB (jurisdição sobre todas as causas judiciais) com a LBOJ (exclusão de actos da função política). O facto de um acto ser praticado por um órgão que habitualmente pratica actos inseridos na função política não faz com que todos os actos sejam actos políticos. Uma ordem do Presidente da AL para que um funcionário lhe leve um copo de água no decurso de uma reunião não é um acto político, embora esse pedido possa ocorrer no exercício de uma função política como é a direcção de um Plenário.

 

  1. O controlo jurisdicional dos actos políticos ou de “natureza política” tem sido uma magna questão do direito político-constitucional e administrativo e objecto de muitas discussões. A noção de acto político radica no direito francês e no velho Conselho de Estado, constituindo criação da jurisprudência deste (uma das “escassas máculas da sua história exemplar“, escreveram García de Enterría e Fernández Rodriguez, 1997) quando, após a queda de Napoleão, a dinastia dos Bourbons volta ao poder e aquele órgão decide autolimitar as suas competências para conseguir sobreviver.

 

  1. O conceito evoluiu, tendo passado por concepções distintas – na teoria da motivação ou do móbile político como acto de “alta política“(Arrêt Lafitte de 1/05/1822); depois classificado em função da “natureza do acto“, no Arrêt Prince Napoléon de 19/02/1875; finalmente, abandonando uma definição geral por uma análise empírica de natureza casuística ­ (cfr. B. M. Acuña, El Control Jurisdiccional de los actos politicos del Gobierno en el derecho español, RIEDPA, 2, 2015; J.L. Carro e Fernandéz Valmayor, La doctrina del acto politico, 1967; K. Navarro e M.A. Sendín Garcia, El Control Judicial de los actos politicos en España y Nicaragua, https://biblio.juridicas.unam.mx), até se admitir na actualidade que a diferença entre actos políticos e administrativos estará apenas no grau de discricionariedade, o qual depende da diferente densidade normativa da sua regulação, e não da vinculação positiva ou negativa à norma jurídica. Num caso com discricionariedade mais forte, no outro mais fraca.

 

  1. Certo é que existem mecanismos de controlo do acto político, vertidos nas Constituições e nas leis, que condicionam o processo da sua elaboração, produção e aplicação, obrigando ao cumprimento de determinados requisitos: há órgãos próprios aos quais compete a sua emissão, exigências de forma e de motivação a respeitar, há que conformá-los com os princípios e valores constitucionais, sem esquecer as regras a obedecer para que quando produzidos possam ser escrutinados e conhecidos de todos.

 

  1. É aos tribunais que cabe, em qualquer sistema moderno de direito, o controlo do princípio da legalidade, pois todos os órgãos do Estado estão submetidos à lei. A RAEM não constitui excepção, constituindo um chiste dizer que “qualquer irregularidade eventualmente cometida até chegar ao Plenário está coberta pela deliberação do Plenário” (JTM, 18/01/2017). Já foi assim, já houve quem assim pensasse em tempos remotos, mas não está mais, e mal seria que ainda estivesse.

 

  1. O papel dos parlamentos e dos tribunais é na actualidade diferente daquele que desempenharam no passado. A AL, pese embora todas as suas insuficiências e deficiências de composição, enquanto órgão parlamentar, não é “una corporación medieval, sino un órgano del Estado sometido, ni más ni menos que los otros órganos y los ciudadanos, a los principios y a las normas de la Constitución” (Torres Muro, 1986, El Control Jurisdiccional de los Actos Parlamentarios. La Experiencia Italiana), que é como quem diz da LB. A AL não pode ser vista, por muito que isso custe a alguns “legisladores”, como uma fortaleza isenta de todo e qualquer controlo e na qual se podem cometer os maiores desmandos, incluindo a violação de direitos fundamentais universalmente consagrados, por meras razões de circunstância. Há valores mais altos.

 

  1. Em Itália, o fim do fascismo e a aprovação da Constituição de 1947 deram corpo a um novo posicionamento, que levou a considerar ao lado dos interna corpori acti, a necessidade de equilibrar a defesa da autonomia das assembleias com a “tutela contra a lei viciada pelo procedimento” (Manzanella, Il Parlamento, Bolonha, 1977). Só é lei a que obedece a determinado processo de produção. E não é, ao contrário do que alguns pensam, a unanimidade parlamentar que transforma em lei qualquer borrão que seja colocado à votação do Plenário. Existem normas jurídicas que regulam a formação da vontade legislativa. A submissão à lei, escreveu Boneschi, é a base do “procedimento de formação da vontade pública“.

 

  1. Daí que, também, de há muito se admitiu que haja ao lado das normas “di organizzazione procedurale” outras que “regulan la fase de la decisión parlamentaria (norme sulla decisione)“. É verdade, como diz Pizzorusso, que “as finalidades de controlo não se podem pôr todas ao mesmo nível ao longo do procedimento legislativo, havendo que distinguir entre as mesmas”, em termos tais que a distinção não possa “basear-se em circunstâncias extrínsecas, mas sim derivar da posição dos diferentes actos do procedimento, com base na sua estrutura, em relação às funções que lhes são cometidas pelo ordenamento jurídico e os seus efeitos”.

 

  1. Com a autoridade que lhes é reconhecida, e que há muito ultrapassou as fronteiras atlântica e pirenaica, García de Enterría e Ramón-Fernandéz sublinharam que até a regra da irrecorribilidade dos actos de trâmite é uma simples regra de ordem, não uma regra material absoluta que seja absolutamente infiscalizável pelos tribunais.

 

  1. E quando em causa estão direitos fundamentais parece evidente, até para o homem da rua, e ainda que o acto final seja político, que não se podem permitir atropelos devido à precipitação e à incompetência dos executores para atingirem os fins que pretendem. Que em qualquer caso sempre seriam politicamente discutíveis: “[a] independência do Poder Judicial e a sua vinculação exclusiva ao Direito tornam-no, nas sociedades democráticas, o guardião próximo dos direitos individuais perante os poderes públicos e nas relações entre privados. (…) Os tribunais (os juízes) encarnam a consciência jurídica da comunidade e constituem a última instância de defesa da liberdade e da dignidade dos cidadãos” (Vieira de Andrade, 2010).

 

  1. Refira-se ainda que o Comité Permanente (CP) do 12.º Congresso do PCC, na sua 24.ª Sessão, analisou o disposto no art.º 104.º da LB de HK, tendo concluído, de relevante para o que aqui se trata, que devem ser seguidos os procedimentos legais relativamente à forma e ao conteúdo para um acto poder ser considerado válido. Ora, ninguém duvida que um juramento de investidura de um deputado é um acto político. E foi esse o sentido que também lhe quiseram atribuir os prevaricadores ao desrespeitarem o que estava legalmente estabelecido. Ou seja, no caso concreto sobre o qual se pronunciou, o CP veio dizer foi que se os procedimentos legais não foram seguidos o juramento prestado é inválido. Independentemente daquilo que os tribunais de HK pudessem, eventualmente decidir sobre a questão que lhes fora confiada. E, acrescento eu, mesmo que esse juramento fosse eventualmente confirmado por unanimidade pelos deputados do Legislative Council de HK, as invalidades nunca seriam consumidas pelo acto político final. Se dúvidas havia, elas dissiparam-se com a interpretação feita.

 

  1. Como bem diz pessoa que muito estimo, a RPC não pode permitir que na RAEM as coisas se possam passar de modo diferente daquele que ocorreu em HK relativamente aos critérios de interpretação das respectivas Leis Básicas. O CP não vai fazer uma interpretação para HK, em 2016, e outra diferente para Macau, em 2018, se questão idêntica lhe vier a ser suscitada sobre o cumprimento das formalidades de um acto político.

 

  1. Admitir que procedimentos consagrados na lei poderiam ser desrespeitados, ainda que por unanimidade dos decisores, e que existem áreas vinculadas da actuação do Governo ou da AL que se furtam ao controlo dos tribunais – inclusivamente espezinhando direitos fundamentais consagrados na LB ­–, seria um grave retrocesso. Um retrocesso não pode ser motivo de satisfação da RPC. E em nada contribuiria para a dignificação do “segundo sistema”.

Haja tino. E, por uma vez, vergonha e patriotismo (para os que não forem “patriotas de circunstância”).

22 Jan 2018

A humanização da medicina

“The term ‘epidemic of error’ has been coined. In the United States, the Institute of Medicine, acting under the National Academy of Sciences, has identified errors in healthcare as a leading cause of death and injury, comparable with that of road accidents.”
“Errors, Medicine and the Law” – Alan Merry and Warren Brookbanks

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] luto, doença e a dor derrubam as ilusões brilhantes e superficiais da vida. As doenças, bem como as pequenas necessidades corporais, são, respectivamente, as óptimas e pequenas epifanias diárias da nossa limitação e são, de facto, um mistério, mas não podemos deixar o sofrimento no “não dito”. Não se trata de dar a resposta à dor e sofrimento na doença, mas de adoptar uma pesquisa inesgotável e essencial para a humanização do homem, bem como responder à pergunta de “quem sou eu?”. A doença muitas vezes pode levar à angústia, à desistência da vida e ao desespero e existe a necessidade de convidar todo o pessoal envolvido no sistema de saúde, do médico ao auxiliar a não escaparem de uma tarefa tão maravilhosa, como é a de humanizar a medicina e a doença.

A importância de humanizar a doença deve-se ao facto de que o sorriso, a palavra gentil, o abraço não custa nada, mas pode fazer milagres, consolar e dar serenidade ao coração do paciente. Um antigo provérbio senegalês lembra uma grande verdade esquecida pela medicina tecnológica de que “o cuidado do homem é o homem “. O Corpus Hippocraticum afirma que onde existe amor pelo homem também há amor pela arte médica. Na ética do médico hipocrático, a filantropia aparece inseparavelmente combinada com a filosofia e Galeno de Pergamo é muito claro ao afirmar que o médico deve conhecer o remédio, mas também saber como compreender o paciente e respeitar a sua vontade, ser que é ao mesmo tempo técnico e filantrópico.

À luz desses eventos passados, a ideia de se pensar numa medicina para humanizar pode parecer paradoxal. Todavia, desde há anos, com uma insistência cada vez maior, se tem vindo a falar de humanização da medicina e, em geral de cuidados de saúde. O termo humanização que não deixa de ser um vil neologismo, refere-se à necessidade de trazer de volta a prática da arte médica, e em geral, aos cuidados de saúde, os momentos de humanidade que parece ter perdido e desde logo põe a questão de saber como e onde foi perdida a filantropia?

Ao olharmos sobre o contexto verificamos que a relação médico-paciente se revela imediatamente inadequada à luz dessa dualidade, não só porque a relação envolve outras matérias, mas também e sobretudo porque a complexidade dos temas, estruturas e factores culturais envolvidos exige que essa relação seja considerada em uma perspectiva mais ampla, pois é inserida, determina e é o produto em um processo circular, de uma rede de relacionamentos da nossa sociedade. A sociedade onde estão incluídos os serviços e relação médico-paciente, é constituída pela cultura, ciência, valores onde se enquadra o homem, saúde e solidariedade, estruturas produtivas e a organização social. O serviço onde se inclui o médico-paciente é uma relação sujeita a complexas interferências.

A perda de filantropia tem a ver com diversos contextos onde se integram as transformações na medicina, a gestão pública da saúde, a medicina entre ciência e a tecnologia, a indústria da saúde e mais a montante, um horizonte cultural alterado, a crise da ética, os resultados da concentração na autonomia e a influência do utilitarismo. Tendo em atenção a transformações na medicina damos conta que a nacionalização dos cuidados de saúde levou, com a gestão da saúde pública, à melhoria geral do estado de saúde da população mas, ao mesmo tempo, a relação médico-paciente retornou aos mecanismos do aparelho estatal.

O paciente tornou-se um utilizador e o médico ficou sobrecarregado com tarefas burocráticas e entre os dois interpõe-se o Estado, sendo que o médico, muitas vezes não depende da tarefa que deve enfrentar. Se observarmos de forma mais analítica, vemos que os componentes mais degradados, geralmente, denunciam burocratização, ineficiência e subdivisões de tarefas com tendência a aumentar as despesas; fragmentação do acto médico em uma sequência de relações entre o paciente e um número crescente de trabalhadores da saúde, com pouca flexibilidade para necessidades individuais e pedidos de intervenção de emergência; participação dos pacientes no serviço de saúde garantido com uma mentalidade passiva-assistida, que exige direitos e não se sente obrigada a desempenhar funções.

Tais atitudes são facilmente combinadas em pacientes com abordagem fetichista de drogas e, na medicina básica, a tendência de não responsabilizar um único médico em relação à instituição hospitalar, bastando ver a multiplicidade de testes laboratoriais, a elefantíase de serviços especializados e a excessiva facilidade de admissões, pelo que um relacionamento médico-paciente é afectado negativamente. A deterioração do relacionamento nos hospitais, na qual a ênfase é colocada na relação médico-paciente, muitas vezes é desconsiderada pela mesma modalidade pela qual é organizada a vida de um hospital ou, de acordo com os termos actuais, a empresa hospitalar. A maioria dos pacientes que se dirigem a um hospital, de facto, confia na medicina mais do que no médico que conhecerão pela primeira vez.

O médico que atende o paciente está inserido em uma organização de trabalho, que tende a subdividir as diversas especialidades e competências, e pode estar a exercer a sua profissão na especialidade ao qual o caso se enquadra, sendo que a percepção da sua responsabilidade está centrada na doença e é muito menos dirigida para as emoções, experiências e tolerância do paciente. Os que se transformam em um mecanismo da estrutura hospitalar entram em um processo mais ou menos complexo, no qual faz pouco sentido usar a noção de cuidar do outro, não sendo de negar que o horizonte da arte médica é o de cuidar, o que significa preocupação com o outro.

O propósito médico é completamente penhorado por métodos e meios que são impessoais, mas muito eficazes. A crise do Estado de bem-estar e a relação médico-paciente é influenciada pela globalização da economia. A necessidade estrutural de conter cuidados de saúde levou as autoridades a tomar precauções que, apesar da boa fé em tentar preservar a sustentabilidade do serviço de saúde, afectam negativamente a relação médico-paciente. O médico vem assumir e conjuntamente todo o pessoal de saúde, dois contratos, um com o Estado que o contrata, enquadra, e paga, e com o paciente. O risco é que a relação de aliança, confiança e assistência, que existe entre o médico e o paciente, torna-se secundária e, portanto, objecto de responsabilização.

As razões do Estado e os motivos do paciente parecem ser conflituantes. A este respeito, muitos economistas, administradores e especialistas em bioética acreditam que os médicos, conjuntamente com a obrigação de cuidar do paciente individualmente considerado, têm a obrigação de economizar recursos para a sociedade, ou seja, o médico não seria simplesmente o agente dos seus pacientes, mas um agente duplo, que também deveria avaliar se os benefícios do tratamento aos seus pacientes são dignos dos custos pela sociedade. Assim, de acordo com esta perspectiva, o médico deve equilibrar as necessidades médicas do paciente e o material gasto pela comunidade no processo de tomada de decisão, ou decidir se um determinado acto ou processo médico é, em última instância, um custo para a sociedade. Neste cenário, o relacionamento médico-paciente aproxima-se de outras prioridades de valor, como as do utilitarismo, sendo determinantes a qualidade de vida e a relação custo-benefício.

A relação de tratamento, durante muito tempo, foi implementada e pensada como uma relação interpessoal, parcialmente mediada pelos meios do médico. Tais tratamentos são realizados através de meios que reduzem a interacção pessoal ao mínimo. Este facto determina várias mudanças na mesma forma de praticar a profissão médica. O médico está cada vez mais orientado a pensar em si e na sua actividade como função da ciência, que é de conhecimento e ninguém ousaria dizer que a figura do paciente está-se a tornar uma variável dentro da medicina No entanto, o facto é que a extensão dos ensaios clínicos, embora orientada, em princípio, para resolver a obscurecer patologias humanas, leva, de facto, a um número cada vez maior de pessoas a serem pensadas também, embora certamente não só, como meio para a implementação de um programa de pesquisa (e esta condição central assume uma conotação adicional nos casos em que o paciente faz parte do grupo de controlo que está sujeito a placebo). Esta situação, que tem a sua própria legitimidade, corre o risco, no entanto, de mudar progressivamente o horizonte finalista da pesquisa e da medicina.

A competência do médico é medida cada vez mais por referência às suas publicações científicas, que qualificam de facto, o conhecimento disponibilizado à comunidade científica, e obviamente são conhecimentos que, potencialmente e oralmente, têm uma queda próxima ou remota, de impressão terapêutica, mas inevitavelmente desaparece a centralidade do paciente como uma realidade singular, substituído por um universal que é a patologia do mesmo. A doença sempre tem duas faces. A primeira corresponde ao que o médico pode diagnosticar, através de diferentes modalidades, e que é representável de forma objectiva e impessoal. Este rosto da doença é o que faz de cada paciente um caso clínico, um componente das estatísticas médicas, uma ocasião para o exercício da arte médica e para o desenvolvimento profissional do médico. A outra face, é o da vida do paciente, enquanto a doença é, desde logo, uma nova forma de existir e de pensar sobre a condição de alguém, uma percepção nova e desagradável da identidade física e psíquica. Face à tentação de conceber, uma relação técnica com os organismos vivos, a medicina é chamada a salvar a verdade da relação entre uma pessoa (o médico) perante outra pessoa, que está em estado de fragilidade, e que pede ajuda para alcançar a sua capacidade individual.

O valor da pesquisa científica está fora de questão, mas devemos sempre lembrar que, no universo dos valores, a pessoa humana vem em primeiro plano. O Papa João Paulo II a este propósito afirmou, que a ciência não é o valor mais elevado ao qual todos os outros devem ser subordinados. Mais alto, na classificação dos valores, reside o direito pessoal do indivíduo à vida física e espiritual, à sua integridade psíquica funcional. A humanização significa uma relação médico-paciente que não se baseia no paternalismo, mas em uma atitude cada vez mais activa do paciente, com base em uma aliança terapêutica entre pessoas, onde o paciente não é apenas dotado de direitos precisos, mas participa do diagnóstico e estratégias terapêuticas necessárias ao seu corpo e doença.

É uma relação terapêutica que deve ser uma aliança de humanidade, a do doente e do médico ou operador profissional. Se do ponto de vista jurídico a expressão do consentimento, tende a permitir que o médico seja responsável por quaisquer consequências negativas da intervenção, do ponto de vista ético é igualmente fundamental, uma vez que constitui a única legitimidade moral possível, excepto para casos de aflição e necessidade urgente, para a sua intervenção, sendo necessário, de facto, reconhecer o paciente na sua subjectividade e envolver em um relacionamento baseado na participação verbal, sensibilidade linguística, compreensão da sua formação social e cultural.

O consentimento informado, em princípio, não pode ser reduzido a uma folha de informação simples, mais ou menos detalhada, que o paciente (ou quem quer que seja) deve assinar, o que representa o ponto de referência da relação médico-paciente, uma vez que é realmente sobre o que tem de ser feito, no momento, do ponto de vista clínico, que se deve exercer o respeito interpessoal, a preocupação com o outro, o reconhecimento da profissionalismo e atenção à situação exigida. Somente se o consenso continuar a ser um instrumento de diálogo, e não uma folha de informações simples, é possível atenuar essa tensão conflituante que muitas vezes actua como base. A discussão sobre o valor das declarações antecipadas não pode ser exercida no nível estritamente jurídico e factual, pois de facto, deve ter em consideração o nível ético da questão.

É de que, no reconhecimento, ao menos ideal, do valor das declarações antecipadas, a vontade revela claramente a dignidade da pessoa humana em todas as condições da vida, sem que isso se torne abandono terapêutico ou em uma delegação de responsabilidade do médico. Vivemos uma era de relativa escassez de recursos, e um orçamento equilibrado corre o risco de ser percebido cada vez mais como um objectivo prioritário, e não apenas como uma restrição a ter em mente, ao questionar e trabalhar para proteger a saúde das pessoas, objectivo primeiro do serviço de saúde. A alocação de recursos destinados à saúde, orientando-os para a obtenção do melhor resultado possível, é uma decisão louvável quando se trata de propósitos postos ao serviço de pessoas; o mesmo não pode ser dito quando a optimização dos recursos aumentam para o objectivo principal a ser perseguido, porque as pessoas e não as necessidades orçamentais, são o maior valor que pode orientar o critério sobre as decisões a serem tomadas.

A exigência da humanização, no plano social, traduz-se no compromisso directo de todos os profissionais de saúde a promoverem na sua área e de acordo com a sua competência, condições adequadas para a saúde, a melhorar instalações inadequadas, favorecer a distribuição correcta dos recursos para garantir que a política de saúde tenha como objectivo apenas, o bem da pessoa humana e como homens, até antes como pacientes ou médicos (e ninguém pode esquecer que o prestador de cuidados pode-se tornar paciente), que vivem dentro de uma sociedade e cultura complexa e articulada, é necessário encontrar tempo para repensar o tema da dor, sofrimento, existência, vida e morte não sendo possível cuidar do homem sem pôr em prática a sua imagem, que é também de todos.

19 Jan 2018

Hollywood Ending

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]etive-me no outro dia durante uma boa meia-hora a ler as acusações que recaem sobre o produtor de cinema Harvey Weinstein; um caso que tem feito correr muita tinta, e daí a curiosidade. O mais impressionante foi o testemunho das muitas actrizes, na altura quase todas jovens debutantes da indústria da sétima arte, e dos encontros “picantes” que tiveram com o empresário.

É evidente que estamos aqui perante um indivíduo que se aproveitou da sua situação de poder para satisfazer os seus instintos de predador sexual. Weinstein é uma pessoa desequilibrada e potencialmente perigosa, que calhou estar numa posição que lhe permitia levar adiante os seus intentos. Acontece na América, acontece em Portugal, acontece aqui e acontece em toda a parte. Em Hollywood tem mais “glamour”, tem mais “chispa”, e infelizmente tem servido de medida para rebaixar o debate no que concerne aos crimes de assédio e de abuso sexual. Ousou-se mesmo expandir o âmbito desse crime abominável que é a violação. Vamos por partes.

Depois do caso Weinstein, desatou-se numa autêntica “caça às bruxas”, com novas revelações de abusos, alguns recentes, muitos nem por isso, e que custou o emprego, a carreira e o bom nome a muita gente nos meios de Hollywood. Julgo que não se via nada assim desde os negros tempos do McCarthyismo e o seu “comité de actividades anti-americanas”, nos anos 50 do século transacto. Na semana passada chegou de França uma espécie de manifesto, assinado pela actriz Catherine Deneuve e outras 99 signatárias, pedindo um pouco de bom senso, e que se distinga afinal o que é um crime, daquilo que é apenas…um “galanteio” – digamos assim. A iniciativa de Deneuve foi criticada, e entendo porquê; também não concordo que um apalpão seja “uma coisa de nada”, mas no essencial, concordo com o que ela diz. É preciso ter em conta que Deneuve é uma diva, do tempo em que um desaforo ou um atrevimento se resolviam com um tabefe. Le temps ont changé, mon cher.

É que se realmente estamos aqui a falar de crimes, convém recorrer à jurisprudência; se alguém é acusado de um crime tem todo o direito a defender-se, e quem o acusa precisa de PROVAR o que diz. Sei, é um assunto muito delicado, onde existe uma tendência inata de dar crédito à palavra da vítima, mas também não existe vítima se não existe crime. Os crimes, todos eles, têm que ser provados, meus amigos. De outra forma é a anarquia, regressa a Santa Inquisição, volta a Stasi, a PIDE e os guardas-vermelhos, e é o fim da civilização como a conhecemos.

Na base de toda esta discussão está o consentimento – apesar de nem sempre se falar nele. Aqui a regra de ouro é a seguinte: não é não, e apenas não. Custa muito menos dizer “não” do que “gostava muito mas hoje não posso”, “queria mas tenho as batatas ao lume”, ou “olhe que o sr. engenheiro é casado”. “Não” é uma palavra com uma sílaba apenas, e qualquer avanço que seja feito a partir daí, é imediatamente tido como um abuso – um crime. Muito simples.

O que faz falta a muita gente é espreitar a página do Templo Satânico de Salem, Massachusetts (estou a falar a sério, vão espreitar na internet, se quiserem), onde o princípio fundamental é “o nosso corpo é a nossa propriedade privada, pessoal e inviolável”. Para quê ser simpático com potenciais predadores sexuais, quando basta dizer apenas “não”?

Há uns tempos escrevi no meu blogue, meio na brincadeira, que qualquer dia o consentimento tinha que ser dado na presença de um notário, para quem restassem dúvidas no caso de reconsiderações posteriores de uma das partes. A tecnologia antecipou-se e agora existe uma aplicação de telemóvel onde as duas partes “clicam” numa opção que lhes permite verificar no futuro que ambas consentiram ao acto que praticaram juntas. Ao ponto que isto chegou!

Este caso hollywoodesco não veio senão perpetuar, e mal, o velho conceito de que o sexo é algo que os homens procuram, e de que as mulheres precisam de se defender, como se fosse um castelo. A tal Revolução Sexual (sem aspas, porque aconteceu mesmo) foi feita para que se permitisse que duas pessoas que se acabaram de conhecer, ou que se conhecem mal, possam ter intimidade uma com a outra, de mútuo consentimento. Foi feita para os homens e para as mulheres. Para todos, sem excepção.

18 Jan 2018

Sexo e Aleatório

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo quer-nos nus, vestidos não tem tanta graça. Há quem não concorde totalmente, uma rapidinha de órgão sexual descoberto e mais nada, para encaixar os sexos, e/ou as bocas e outros orifícios de prazer, também é kinky. Mas para além do prazer sexual, podemos nós esquecer o que de mau o sexo pode trazer? A violência? Só com a nossa intimidade descoberta é que nos magoamos, só para fazer justiça à máxima taoista de que o bem só existe porque o mal anda algures.

Gostava de escrever melhor para expressar melhor – comunicar melhor – se é que conseguem perceber a diferença. O sexo não é só um bode expiatório para o nosso reencontro pessoal, é também a possível concretização de sermos felizes com os outros. O sexo tem tanto que ver connosco próprios como é parte integrante da nossa socialização, de quando aprendemos que os outros são importantes na nossa vida. Da mesma forma que damos sentido à música, ao sonho, ou à fantasia e aos conteúdos culturais que nos embalam constante e incessantemente ao construirmos as nossas narrativas. O sexo está lá, nem que seja porque cada um de nós nasce do sexo, nasce do amor ou da ausência dele. Nasce do toque, seja esse de corpos nus ou de corpos cobertos, tocaram-se. Quando era uma criança pré-consciente do sexo e da forma como os bebés nascem, teorizei com o auxílio das novelas brasileiras, que esse toque era o simples beijo, e que com trocas sucessivas de saliva os nossos corpos de poderes alquímicos tornariam vivo o que era inexistente.

Este excerto chama-se aleatório porque nunca sabemos o que o sexo suscita e estou a exercitar formas de o descobrir. Caímos em escorregas de significados que provavelmente não têm fim – nem início. A queda contradiz-se com a ascensão porque – lá está – precisamos de opostos e de equilíbrios, morais, éticos ou racionais. Mas tal como as ondas sonoras, as frequências caem e crescem com a mesma sintonia, nunca se definindo como o progresso ou a retrocesso. O sexo nem sempre é bom, nem sempre é mau, simplesmente existe no meio da nossa existência, que tanto insiste no caos.

Tantas revistas, tantos canais, tantos vídeos, tantos livros, tantos manuais, tantos textos (!!) para dissecar os significados do sexo e do amor da mesma forma, para chegar a conclusões mais ou menos esclarecedoras acerca do que nós podemos fazer pela nossa sexualidade e pela dos outros.

Virgens de todos os géneros, tamanhos e estilos, valores puritanos que pairam até nos espíritos mais liberais. É tudo uma confusão! Mulheres que acham que o assédio é um assunto sério, outras que acham que restringe o acesso à liberdade de importunação. Feminismos de todas as cores e feitios, que ao contrário do que se julga, de muito pouco tem de consenso. Homens que pedem por mais direitos, e outros que dizem que já têm os suficientes. Serão questões de raça, de género, de sexo, de classe social? Afinal o que é se passa neste mundo de injustiças, sexuais e de outros tipos, que não consegue arranjar soluções consensuais para a justiça social? Para a justiça sexual! Ai de quem me traga mundos a preto e branco, de moralismos claros, de soluções pré-definidas.

Escrevendo aleatoriamente, na nossa tentativa de perceber o que quer que seja, também as vidas parecem aleatórias. Discussões que nunca mais acabam porque tudo é problemático e nada nunca é fácil. Há um conforto em pensar que nada fica sempre na mesma, e que não há respostas simples para absolutamente nada. O sexo é complexo, as respostas sexuais são complexas, as posições sexuais podem ser complexas. As vidas sexuais que procuram sentido(s), e que raramente o encontram, nunca desistem de tentar.

16 Jan 2018

Um projecto de resolução infeliz e desastroso

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi recentemente apresentado, na Assembleia Legislativa, um projecto de resolução intitulado «Natureza política das deliberações do Plenário da Assembleia Legislativa». O conteúdo dos seus enunciados linguísticos restringe-se a duas disposições: uma delas propõe-se qualificar «As deliberações do Plenário da Assembleia Legislativa que determinam a suspensão ou perda de mandato de deputado» como «actos de natureza política, que estão excluídos do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro» (artigo 1.º); a outra destina-se a regular as mencionadas deliberações do Plenário da Assembleia Legislativa, não só para os casos futuros, que venham a ocorrer a partir do dia seguinte ao da sua publicação, mas também, retroactivamente, para os casos que tenham ocorrido antes da sua publicação e posteriores à entrada em vigor da Lei Básica (LB), ao dispor que «A presente resolução entre am vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos desde 20 de Dezembro de 1999» (artigo 2.º).

O aludido projecto de resolução suscita questões várias, que são juridicamente relevantes para o Direito Constitucional da RAEM e que, numa primeira análise, restringiremos, apenas, a três.

A primeira, consiste em saber qual a natureza jurídica da resolução, que se pretende aprovar: trata-se de uma resolução normativa – genérica (destinatários indeterminados) e abstracta (situação indeterminada) -, ou perante um acto individual (destinatário determinado) e concreto (situação determinada), praticado sob a forma de resolução? A questão não é dispicienda, visto que tem implicações jurídicas[1].

Pelo teor formal da redacção dos seus preceitos, a resolução parece ser portadora de uma intencionalidade normativa. Mas, só na sua aparência porque, na realidade, estamos perante uma resolução que respeita a um caso individual e concreto, desprovida, pois, de carácter normativo, tal como, expressamente, resulta da Nota Justificativa, que acompanha o projecto de resolução: «No dia 4 de Dezembro de 2017, o Plenário da Assembleia Legislativa deliberou a suspensão do mandato de um deputado através da Deliberação n.º 21/2017/Plenário, publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, I Série, n.º 49 – Suplemento, de 5 de Dezembro de 2017, tendo-se suscitado daí algumas dúvidas».

Quer dizer, a causa da apresentação do projecto de resolução reside no facto de a Deliberação n.º 21/2017/Plenário (que é um acto, individual e concreto) ter suscitado algumas dúvidas aos seus proponentes[2]. Que dúvidas poderão ser essas? Segundo a Nota Justificativa, essas dúvidas não respeitam à natureza da deliberação em causa, já que são os próprios proponentes do projecto de resolução que reconhecem a natureza política das deliberações da Assembleia Legislativa do Plenário da Assembleia Legislativa que determinam a suspensão ou perda de mandato dos deputados[3]. Tais dúvidas também não respeitam à insindicabilidade contenciosa dos actos políticos, porquanto os proponentes do projecto de resolução, depois de proclamarem, na Nota Justificativa, que «Os referidos actos políticos são praticados pela Assembleia Legislativa no exercício da função política», logo acrescentam que, «Nos termos da alínea 1) do artigo 19.º da Lei n.º 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária), esses actos estão excluídos do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro».

Se assim é, as dúvidas só podem respeitar à validade procedimental da própria Deliberação n.º 21/2017/Plenário. Isto é, certamente, por considerarem ilegal o procedimento que conduziu à prática da mencionada deliberação[4] e por concluirem que tal ilegalidade contaminou o acto praticado, os proponentes através do projecto de resolução visam uma de duas coisas: (i) ou retirar da competência dos tribunais do «contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro» a sua eventual sindicabilidade contenciosa; ou (ii), na sua impossibilidade, interferirem no funcionamento daqueles tribunais. Em qualquer caso, o que está em causa é: tendo em conta as consequências políticas que daí possam advir[5], evitar que os tribunais do «contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro» reconheçam ter sido cometida qualquer ilegalidade no decurso do procedimento e, como se por um golpe de magia, susceptível de produzir a metamorfose de um acto político em acto administrativo, serem os mesmos tentados a praticar actos jurisdicionais, nomeadamente, o de «suspensão de eficácia de actos administrativos»[6].

No caso da primeira hipótese, somos reconduzidos à segunda questão jurídica, que consiste em saber se a Assembleia Legislativa tem competência para, através de uma resolução sua, regular matéria jurisdicional, respeitante ao «contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro», designadamente, para qualificar «As deliberações do Plenário da Assembleia Legislativa que determinam a suspensão ou perda de mandato de deputado» como «actos políticos» e, por via dessa qualificação, determinar que os tribunais do «contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro» não têm competência (especial) para exercer o seu controlo jurisdicional sobre as referidas deliberações.

A este propósito, a Lei Básica, no terceiro parágrafo do seu artigo 84.º, estabelece uma reserva de lei especial, ao dispôr que «A organização, competência e funcionamento dos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau são regulados por lei». Significa isto que, embora a Assembleia Legislativa seja o único órgão da RAEM com competência para regular as competências dos seus tribunais, essa competência só pode ser exercida sob a forma de lei e nunca sob a forma de resolução, sob pena de ficar inquinada de vício de forma. Pelo que, se o projecto de resolução tem a intenção de atribuir aos tribunais do «contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro» uma competência (especial) que, em termos gerais, consta já da alínea 1) do artigo 19.º da Lei n.º 9/1999 (LBOJ)[7], então, é inquestionável que o projecto de resolução, a ser aprovado pela Assembleia Legislativa, viola o terceiro parágrafo do artigo 84.º da Lei Básica, bem como a alínea 11) do artigo 6.º da Lei n.º 13/1999 (Regime Jurídico de Enquadramento das Fontes Normativas Internas)(RJEFNI), na medida em que a normação jurídica do regime administrativo é feita por leis[8].

À terceira questão jurídica, reconduz-nos a segunda hipótese: em que o projecto de resolução assume a intenção de evitar que os tribunais pratiquem actos jurisdicionais (desde logo, o de suspensão da eficácia de actos administrativos) sobre a aludida Deliberação n.º 21/2017/Plenário e que os advogados exerçam a sua actividade profissional, nesse tipo de caso. Mais propriamente, a questão jurídica consiste em saber se a Assembleia Legislativa tem competência para, através de uma resolução sua, interferir no «normal funcionamento» dos tribunais, mais especificamente, no funcionamento dos tribunais do «contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro», bem como no exercício da profissão forense.

Também é inquestionável que, se essa é a intenção dos proponentes, então, o projecto de resolução, a ser aprovado pela Assembleia Legislativa, viola, por um lado e no que à interferência no funcionamento dos tribunais diz respeito: (i) o princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2.º, 11.º, 16.º, 17.º e 19.º, da Lei Básica; e (ii) o princípio da independência dos tribunais e dos juízes, consagrado no primeiro parágrafo dos artigos 19.º e 89.º[9], e no artigo 83.º da Lei Básica[10], bem como no artigo 5.º da Lei n.º 9/1999(LBOJ), que densifica o seu conteúdo[11]. Por outro lado, no que respeita à interferência no «exercício da profissão forense», isto é, às restrições à liberdade fundamental do exercício dessa profissão, o projecto de resolução, a ser aprovado pela Assembleia Legislativa, viola, os artigos 40.º, segundo parágrafo e 92.º da Lei Básica[12], bem como a legislação avulsa, que regula essa profissão, designadamente, o artigo 12.º do Estatuto do Advogado[13] e o n.º 2 do artigo 12.º do Código Deontológico[14].

As questões técnico-jurídicas, que deixámos esboçados, são por si só, estamos em crer, suficientemente sérias e graves para se concluir que estamos perante um projecto de resolução que, a ser aprovado pela Assembleia Legislativa: é susceptível de ser interpretado como violando legislação fundamental da RAEM (tal como a LB, a LBOJ, o RJEFNI, etc.) e, por essa via, não dignificar esse órgão de direcção política; de interferir no funcionamento dos tribunais; de lançar a suspeição sobre a actividade dos juízes, que se pressupõe e exige que seja independente e imparcial e de pôr em crise o seu profissionalismo; de proibir o exercício da profissão forense num caso concreto; de comprometer a imagem da RAEM perante o exterior. Enfim: um projecto de resolução infeliz e desastroso, se os seus proponentes não extraírem, a tempo, as devidas ilações políticas!

[1] Não trataremos, porém, essas implicações jurídicas aqui.

[2] Anote-se que, o procedimento da Assembleia Legislativa, que culminou na deliberação da suspensão, decorreu os seus trâmites, em momento anterior ao projecto de resolução, e que, mesmo antes da sua projectada entrada em vigor, não viu, ainda, esgotada a questão da susceptibilidade (ou não) da sua apreciação pelos tribunais da RAEM. Por outro lado, porque nenhum outro caso existe que, tendo ocorrido no passado, esteja ainda em condição de ser jurisdicionalmente apreciado e decidido, é inegável, que a resolução apenas incide sobre um destinatário individual e concreto (aquele deputado que foi objecto de suspensão do mandato através da Deliberação n.º 21/2017/Plenário). O que significa que, para além deste caso concreto, a pretendida retroactividade apresenta-se com objecto impossível e, portanto, desprovida de qualquer eficácia jurídica.

[3] Na Nota Justificativa refere-se: «As decisões do Plenário da Assembleia Legislativa relativas à suspensão do mandato de um deputado, tomadas ao abrigo da Lei n.º 3/2000 (…), são actos de natureza política. Em paralelo, as decisões do Plenário da Assembleia Legislativa relativas à perda do mandato de um deputado, tomadas ao abrigo do artigo 81.º da Lei Básica e do n.º 2 do artigo 19.º da Lei n.º 3/2000 (…), são também actos de natureza política».

[4] Questão que aqui não abordaremos, mas que, tanto quanto sabemos, pela comunicação social, foi submetida a apreciação jurisdicional.

[5] Na Nota Justificativa, afirma-se: «Todos esses actos [os actos mencionados na nota 3] são livres de interferência de qualquer outro órgão [órgão jurisdicional, entenda-se] ou indivíduo [advogado?], de modo a evitar que seja posto em causa o normal funcionamento da estrutura política definida na Lei Básica». A única via, pela qual um indivíduo tem a possibilidade de interferir nos actos em causa é através do exercício da profissão forense, pelo que, estamos em crer que, quando a Nota Justificativa se refere a indivíduo é aos advogados que está a referir-se.

[6] Anote-se que, na Nota Justificativa, diz-se: «Nesta conformidade, a presente resolução vem confirmar que as deliberações do Plenário que sejam relativas à suspensão ou perda do mandato de um deputado são actos de natureza política, que estão excluídos do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro, sendo que estas mesmas deliberações não podem ser também sujeitas ao regime de suspensão de eficácia de actos administrativos». Ou seja, os proponentes do projecto de resolução, pretendendo evitar a «interferência» dos tribunais num acto (político) da AL, acabam, paradoxalmente, por interferirem no funcionamento desses mesmos tribunais, pondo por essa via em causa «o normal funcionamento da estrutura política definida na Lei Básica», como se verá.

[7] A Nota Justificativa fala em «confirmar que as deliberações (…) são actos de natureza política, que estão excluídos do «contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro (…)». Mas, nem está em causa uma confirmação, nem a mesma pode ser objecto de resolução.

[8] Esta lei auto-vincula a Assembleia Legislativa, nos exercício dos seus poderes, seja na aprovação de resoluções, seja na aprovação de leis, constituindo, neste caso, uma lei de valor reforçado.

[9] Com o seguinte conteúdo: «Os juízes da Região Administrativa Especial de Macau exercem o poder judicial nos termos da lei, e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o caso previsto no parágrafo terceiro do artigo 19.º desta Lei

[10] Que estabelece: «Os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau exercem independentemente a função judicial, sendo livres de qualquer interferência e estando apenas sujeitos à lei».

[11] Do seguinte teor: «1. Os tribunais são independentes, decidindo as questões sobre que detenham jurisdição exclusivamente de acordo com o direito e não se encontrando sujeitos a interferências de outros poderes ou a quaisquer ordens ou instruções. 2. Exceptuam-se do disposto no número anterior os casos previstos na Lei Básica (…) e o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores. 3. A independência dos tribunais é garantida, nos termos do Estatuto dos Magistrados, pela inamovibilidade e irresponsabilidade dos juízes e pela existência de um órgão independente de gestão e disciplina

[12] O artigo 92.º da Lei Básica, conjugado com os seus artigos 35.º e 64.º, alínea 5), manda atender ao «sistema anteriormente vigente em Macau», quando o Governo pretenda «estabelecer disposições», em «propostas de lei», a serem submetidas à Assembleia Legislativa, destinadas à regulação do «exercício da profissão forense». O que significa que a figura jurídica da resolução está afastada como meio de regulação.

[13] Artigo 12.º (Do mandato judicial e da representação por advogado): «1. O mandato judicial, a representação e a assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para a defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza. 2. O mandato judicial não pode ser objecto, por qualquer forma, de medida ou de acordo que impeça ou limite a escolha directa e livre do mandatário pelo mandante». A independência, tal como a dignidade, do exercício da profissão forense vêm consagradas no artigo 20.º do mesmo Estatuto.

[14] Em conformidade com esta disposição, «Constitui dever do advogado, no exercício da sua profissão, não advogar contra lei expressa (…)», pelo que não pode uma resolução da Assembleia Legislativa substituir-se à lei e proibir o exercício dessa profissão. Acresce que sobre o advogado incidem deveres deontológicos, tais como: «O advogado deve pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento das instituições» (art. 12.º/1) e «É dever do advogado protestar contra as violações de direitos humanos e combater as arbitrariedades de que tiver conhecimento no exercício da profissão.» (art. 13.º). Anote-se que, por força do prescrito no n.º 1 do artigo 7.º (Infracção disciplinar) do Estatuto do Advogado, «Constitui infracção disciplinar a violação culposa, por acção ou omissão, dos deveres consignados no presente Estatuto, no Código Deontológico e nas demais disposições aplicáveis.»

João Albuquerque – Advogado

15 Jan 2018

Deixem as balas voar

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om a abertura ao trânsito na Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau marcada para este ano, a Construção da Região Metropolitana da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau estará prestes a acontecer. De acordo com as tendências actuais, o papel político da RAEM e da RAEHK e as suas funções estratégicas serão certamente reajustados.

Após o encerramento do Congresso Nacional do Povo (CNP) e a da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), que terão lugar no próximo mês de Março, as lideranças aos mais diferentes níveis serão confirmadas. Vão ser atribuídas novas tarefas e lançar-se-á de imediato mãos à obra para a criação de um novo figurino político. O tempo passa e não espera por ninguém, tal e qual como as reformas e as políticas de abertura. Para a China, as grandes preocupações políticas concentram-se no que se passa em casa e no estrangeiro, ao passo que os acontecimentos que ocorrem em Hong Kong e em Macau são vistos como questões locais. Mas, seja como for, a China não tolerará nunca quem queira destabilizar os seus macro ou micro-territórios.

Depois do regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade tem confiado à indústria do jogo o seu florescimento económico. Quem tem poder e influências consegue gerir a economia em proveito próprio. A situação de Macau, socialmente próspera e politicamente ultra-estável, é criada pela coordenação entre grupos representantes de diversos interesses. No entanto, sob esta superfície de super-estabilidade, a administração do Governo está minada de corrupção e os preços das matérias-primas e das propriedades sobem continuamente.

A sociedade está apenas virada para o lucro e, mesmo instituições e organizações chinesas sediadas em Macau, acabaram por ser contagiadas por este modus vivendis. Mas se pensarmos bem, quando as coisas vão longe demais numa certa direcção, acabam por surgir forças contrárias que as virão combater. As mudanças acabam sempre por acontecer mais cedo ou mais tarde, é tudo uma questão de saber quais devem chegar em primeiro lugar. É voz corrente que, se o CNP e o CCPPC terminarem favoravelmente, os assuntos de Macau serão agendados para discussão, numa antecipação à mudança nos lugares-chave do Governo da RAEM, prevista após a eleição do Chefe do Executivo, em 2019.

Até 2019, Hong Kong, Macau e Taiwan passarão por eleições locais. Em Taiwan, as eleições estão marcadas para finais de 2018 e o seu resultado vai influenciar directamente o futuro do Partido do Progresso Democrático (PPD) e do Kuomintang da China (KMT) e afectará indirectamente as perspectivas de unificação pacífica com a China. Para o KMT e para o Presidente Xi Jinping são questões da mais alta importância.

Em Hong Kong, a eleição circunscrita a um círculo, para preencher quatro lugares em aberto no Conselho Legislativo, está marcada para 11 de Março de 2018. Uma outra eleição similar, para preencher mais dois lugares vagos, está marcada para o final do ano. Estas duas eleições podem ser encaradas como “uma injustiça política” deixada pelo antigo Chefe do Executivo Leung Chun-ying. É o preço a pagar pela população de Hong Kong, e também pelo Comité Permanente do PNC que usou o seu poder para interpretar a Lei Básica, donde resultaram estas eleições. “Hoje é sobre Hong Kong, amanhã será sobre Taiwan”, aposto que o Governo Central não ficará propriamente feliz se isto vier a acontecer.

Da mesma forma, “Hoje é sobre Macau, amanhã será sobre Hong Kong”. Esta é uma frase muito usada pelo campo da pan-democracia de Hong Kong nos seus comentários ao princípio “um país, dois sistemas”. Durante um certo período, o despertar das consciências do campo democrático de Macau ficou a dever-se ao trabalho empenhado dos seus membros na Assembleia Legislativa.

Mas, com a chegada do jovem Sulu Sou ao hemiciclo, aconteceu uma mudança na forma de discutir e debater os assuntos. Sulu Sou foi eleito sob o slogan “levar as reformas e o desenvolvimento sustentado à Assembleia Legislativa”. A entrada de sangue novo na Assembleia deveria ter-lhe trazido vitalidade. No entanto, algumas pessoas tomarão uma decisão política errada, ao transformarem um caso simples numa questão complicada. Esta decisão teve como consequência a suspensão do mandato de Sulu Sou. E, no pior dos cenários, Sulu Sou pode vir a ter o seu mandato cessado por decisão política da Assembleia Legislativa.

Se vier a ser o caso, a Assembleia Legislativa e a sociedade em geral sairão diminuídas. Se Sulu Sou tivesse optado por apresentar recurso da decisão e por pedir uma nova votação do seu círculo eleitoral, o processo demoraria um ano ou mais.

A 4 de Dezembro de 2017, a Assembleia Legislativa tomou uma decisão política insensata. Foi como se tivesse dado um tiro no princípio “um país, dois sistemas”. Como as balas ainda andam à solta, deixemo-las voar por mais algum tempo. Eu acredito que a população de Macau tem discernimento e também acredito na independência judicial, no princípio “um país, dois sistemas” e na erudição da cultura chinesa. Mas uma coisa em que não acredito é em elites políticas.

12 Jan 2018