A Harmonia

[dropcap style≠‘circle’]P[/dropcap]or aqui está tudo bem, espectacular, não podia estar melhor depois dos envidados esforços das sacrossantas autoridades para manter esta terra solidamente segura e protegida contra influências desequilibradas externas. Quero saudar-vos e dar-vos as boas-vindas à terra da pura felicidade, o território do amor e contentamento de todos, este enclave de equilíbrio imóvel, o centro do júbilo máximo onde não há espaço para imperfeição.
Eu sou a concórdia, o esteio de pureza e higiene social, transformo o mundo num desenho animado, onde os polícias são agentes da Playmobil e os cidadãos personagens de anime. Pelas ruas não faltam sorrisos rasgados a amarelo emoji, pessoas que passeiam infantilidade fermentada no encerramento a cidade redoma sitiada em aprazimento e dinheiro. A vida é uma aventura de proporção exacta e consonância obediente para toda a pequenada da Região Administrativa Especial do Clube dos Amigos Disney.
Prevejo que no futuro, todos os residentes vão usar bibe e circular pelas ruas de mãos dadas trauteando cantigas de equilíbrio e sensatez.
A paz social e a tranquilidade residem na conformidade, na concórdia e no amor pelo escrupuloso cumprimento. Eu sou o resultado do punho vigoroso do pai poder, o somatório dos disciplinadores açoites dados pela mão que todos dirige com sabedoria em direcção a um futuro melhor. Por favor, não sejam impertinentes, sejam meninos bonitos e não discutam como me alcançar, como alicerçar harmonia, pois essa é uma das principais tarefas dos iluminados.
Eu sou o garante da simetria, da regularidade, da coesão de onde nasce a fraternidade, do entendimento entre irmãos, do amor absoluto despido dos excessos da irracionalidade.
Comportem-se, por favor, para o vosso bem, ou o desalinho toma conta das vossas vidas e aí terão de ser trazidos à harmonia pela força.
Entristece-me ver uma sociedade de chakras desalinhados, sem feng shui, onde a pornografia e a indecência ganham terreno. Este desígnio de tomar o espírito humano, de o moldar à segura complacência, não é pêra doce, muito pelo contrário, é uma maça raineta.
Deve ser a queda símia, essa vertigem biológica funda nos genes das pessoas, que leva ao arrebatamento, à dispersão e às tesões pouco sensatas, ao nascimento de pensamentos contrários à ordem pública. Porquê este gosto pelos abismos lúbricos, pelo pluralismo onde o confronto é, não só inevitável, mas génese desta inquietação que palpita no sangue das pessoas?
Dizem que esta é a natureza do Homem, nascido para a desobediência desde os primeiros capítulos no Jardim do Éden, irrequieto a lançar-se em fluxos migratórios tendo o sonho como bússola, ou a sonhar com outra realidade que não esta.
Porquê esta propensão para a lascívia, para a controvérsia? Porque é que nunca estão satisfeitos e insistem na crítica, na participação cívica. Calem-se e obedeçam. Reneguem a revolução que a biologia vos dita e conformem-se a mim, a narcotizante harmonia.
Chega de prazeres ilegais e imodestos, tudo o que é do domínio do lúbrico deve ficar reservado aos estrangeiros, esses mafarricos com cifrões nos olhos. Qualquer escorregadela por parte do mui prezado residente deve ser tido como um assunto reservado à intimidade, que jamais será capaz de contagiar ao resto da população.
Quero mostrar-vos como a submissão é óptima, como é o mais confortável porto de abrigo e a forma de alcançar uma sociedade comedida, bem comportadinha, sóbria, que lava os dentes depois das refeições, que se penteia antes de sair de casa, que quando lhe é pedido para saltar prontamente pergunta quão alto. Quero mostrar-vos as vantagens de viver num cartoon onde tudo é perfeito, quero inundar as ruas com a música da senhora no radiador, do Eraserhead, que canta que no paraíso está tudo bem. Ela tem toda a razão, está tudo impecável, podem dormir um soninho descansado porque os senhores que sabem das coisas estão no poder a consolidar a harmoniazinha. Haverá alguma coisa melhor que isto?!

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