Cirurgia em suspenso

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m Hong Kong, no passado dia 13 de Outubro, o Dr. Kelvin Ng Kwok-chai saiu à pressa do Hospital Queen Mary, antes de terminar um transplante de fígado que estava a realizar. O Dr Kevin saiu para efectuar uma operação que tinha agendada numa clínica particular. A conclusão do transplante foi adiada por três horas, até ao seu regresso.

O Dr. Kelvin contava que a cirurgiã chefe, a Drª. Tiffany Wong Cho-lam, tivesse continuado o transplante após a sua saída. Mas como surgiram alguns imprevistos, a Drª. Tiffany decidiu suspender a intervenção até à vinda do colega.

No período em que ocorreu este incidente, o Dr. Kelvin estava sob contrato especial a tempo parcial com o Hospital Queen Mary, celebrado devido à escassez de cirurgiões especialistas na sua área, e era consultor honorário deste hospital.

As condições especiais do contrato foram determinadas pela falta de “cirurgiões altamente qualificados” capazes de realizar intervenções mais complexas. O Queen Mary é o único hospital público de Hong Kong a realizar transplantes de fígado. Um “cirurgião altamente qualificado” tem de ter, no mínimo, 17 anos de prática cirúrgica.

Os dados demonstram que só existem sete médicos no Queen Mary capazes de efectuar com sucesso um transplante de fígado.

No passado mês de Dezembro, um painel de investigação emitiu um relatório que foi entregue ao Hospital. Salientava que o Dr. Kelvin estava convicto que a sua colega, a Drª. Tiffany, tinha condições para concluir o transplante sozinha. No entanto, os dois médicos não tinham discutido nenhum plano de emergência. O Dr. Kelvin também não tinha tomado medidas para evitar eventuais conflitos entre as chamadas de emergência do Hospital Queen Mary e as marcações na clínica privada.

O relatório concluiu que o procedimento do Dr. Kelvin foi “inaceitável” e “desnecessário”.

O painel de investigação recomendou que o Hospital Queen Mary lançasse um código de conduta de forma a regular os papéis e responsabilidades do pessoal honorário. O Hospital foi também instado a realçar que, os médicos de serviço devem agir atempadamente de forma a dar resposta pronta às necessidades dos pacientes.

Após a publicação do relatório o Dr.Kelvin afirmou: “Aceito as conclusões do relatório. Continuo ao serviço do Hospital a tempo parcial. O meu cargo a tempo inteiro na Universidade de Hong Kong mantem-se.”

A Autoridade Hospitalar de Hong Kong está a considerar separar os processos de forma a determinar se o Dr. Kelvin deverá ou não ser acusado.

O chefe da unidade de transplantes do fígado da Universidade de Hong Kong, o Professor Lo Chung-mau, declarou que o Dr. Kelvin é um médico muito dedicado. Adiantou ainda que, se for castigado e impedido de trabalhar no de Hospital Queen Mary, serão os doentes os principais prejudicados. O Professor Lo prosseguiu: “Nestes casos, o objectivo da punição não deve ser provocar mal-estar – mas sim permitir que mais doentes sejam ajudados.”

O Professor Lo disse ainda que aqui não está em causa a ética profissional, mas sim o julgamento pessoal do Dr. Kevin. “Se ele tivesse deixado o doente por motivos pessoais, digamos, para ir ao restaurante ou ao cinema, estaria em causa a ética profissional. No entanto, acredito que nesta situação, ele foi obrigado a pôr no prato da balança as duas situações… Se ele não tivesse ido à clínica, o outro doente poderia processá-lo.”

Este caso deu muito que falar em Hong Kong e não deixa de ser compreensível. Abandonar um paciente durante uma operação é caso para preocupação generalizada. Quando um doente se submete a uma cirurgia, põe a sua vida nas mãos do médico. Felizmente, nesta situação não houve consequências graves. Se tivesse havido alguma complicação que afectasse a saúde do doente, o médico podia ter sido processado por negligência. Mas, como não houve danos, a questão da negligência não se coloca.

Será que abandonar um doente durante uma operação implica quebra do código de conduta profissional? A resposta depende da natureza do código de conduta em causa. Os códigos de conduta implementados pelo Conselho Médico são preceitos e normas que regulam os procedimentos médicos. Se o código de conduta não especificar que o médico não pode abandonar o doente durante uma operação, dificilmente se poderá falar de má prática profissional.

Pelo que se sabe, o Dr. Kelvin será castigado internamente, mas, no entanto, devemos ter em conta as declarações do Professor Lo. Se o Hospital reduzir o horário de consultas do Dr. Kelvin, os doentes serão afectados pela ausência de um médico altamente qualificado. Mas se não houver qualquer punição, vão fazer ouvir-se muitas vozes em Hong Kong. Aparentemente, estamos perante um dilema.

Seja como for, é inaceitável um médico abandonar um doente durante uma operação. Não se pode permitir este comportamento. É necessário implementar novas regras de conduta da prática médica de forma a impedir que casos semelhantes ocorram no futuro. A experiência de Hong Kong é vital para Macau, já que é necessário reflectir sobre a melhor forma de alterar o nosso sistema de saúde.

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