David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDespedimento sumário [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 14 o site “appledaily.com” publicou uma notícia sobre o despedimento súbito de oito funcionários de um jardim de infância em Mongkok, Hong Kong, após a cerimónia de entrega de diplomas. O director do infantário encontra-se entre os funcionários despedidos. A história conta-se em poucas palavras. A cerimónia foi realizada fora da escola. Quando o director e alguns educadores regressaram ao estabelecimento, o supervisor esperava-os acompanhado por seguranças. “Dêem-lhes 15 minutos para irem buscar as suas coisas. Os cheques com as indemnizações já estão passados. Estou de partida para o estrangeiro e quem não levar o cheque agora, vai ter de esperar três meses até que eu regresse a Hong Kong.” O despedimento sumário atingiu seis educadores, um funcionário administrativo e o próprio director. Dos onze funcionários ao serviço, a escola ficou reduzida a três. O supervisor convidou ex-funcionários a regressar à escola. O súbito despedimento perturbou imenso os atingidos. Alguns choravam convulsivamente. Os pais, acabados de saber do sucedido, voltaram rapidamente para o infantário. Educadores e crianças choravam abraçados. Aparentemente, por trás de tudo isto, esteve a má relação de trabalho entre o director e o supervisor. Os educadores despedidos afirmaram que eram pagos abaixo da média. Mas, nem mesmo assim, conseguiram garantir o posto de trabalho. Já eram mal pagos e ainda acabaram por ser despedidos. Na sequência dos acontecimentos a polícia foi chamada ao local. Mas por se tratar apenas de um conflito laboral os agentes nada puderam fazer. Em Hong Kong, o posto mais elevado dentro de qualquer escola é o de supervisor, o director está sob as suas ordens. A decisão do supervisor prevalece, portanto. O director estava ao serviço do infantário há 17 anos. Os educadores há dez, sete, cinco, três e um ano, respectivamente. Se os meus leitores estão recordados, há algumas semanas a esta parte falei sobre o Fundo Compensatório da Previdência, que se destina a indemnizar trabalhadores que ficam desempregados após trabalho de longa duração. Os trabalhadores com mais de cinco anos de casa podem habilitar-se a este Fundo. A desactualização da lei do trabalho de Hong Kong, que ainda se rege pelas condições socio-económicas e laborais dos anos 70, é um dos problemas que estas pessoas têm de enfrentar. Se se lembrarem desse período, sabem que na década de 70 não se vivia desafogadamente em Hong Kong e que a cidade não estava desenvolvida. As empresas em geral não tinham grande capacidade económica e, por isso, a os benefícios garantidos por lei aos trabalhadores eram escassos. Nestes contratos tudo se resume ao dinheiro. Se a entidade patronal estiver disposta a pagar ao empregado o valor da indemnização previsto, não terá qualquer dificuldade em despedi-lo, pondo desta forma um ponto final nas suas obrigações para com ele. Foi o que se passou na situação que temos vindo a relatar. O supervisor paga o que tem a pagar e vê-se livre dos oito empregados. Neste caso o que choca mais é a desumanidade do processo. Em primeiro lugar, os funcionários foram despedidos no dia da cerimónia de entrega dos diplomas. Era um dia feliz que se transformou num dia de lágrimas e infelicidade. Entretanto, o caso foi comunicado à polícia e à comunicação social. A história passou a ser do domínio público e, como tal, é possível que venham a ter dificuldade em contratar novos funcionários. Em segundo lugar, as crianças serão necessariamente afectadas e irá gerar-se um sentimento de insegurança. Esta insegurança vai alastrar-se aos pais e a outros educadores que venham a trabalhar no infantário e põe em risco os laços afectivos que se têm de estabelecer entre os educadores, as crianças e os pais. Em última análise os pais podem perder a vontade de deixar as crianças nesta escola. Desconhecem-se os motivos do mau relacionamento entre o supervisor e estes educadores. Mas, no que à educação diz respeito, a principal preocupação deverá ser o interesse das crianças. Estes meninos têm idades compreendidas entre os 2 e os 6 anos. Neste período das suas vidas, o afecto que recebem dos educadores é talvez mais importante do que os conhecimentos que estes lhes transmitem. Se os professores desaparecerem sem mais nem menos no final de cada ano, este estabelecimento acabará por vir a ter problemas, e as crianças não se vão sentir bem. É uma situação em que todos ficam a perder. A Lei Laboral de Macau é bem melhor do que a de Hong Kong, porque na altura em que foi elaborada já Macau era próspero. Os empregados têm direito a mais benefícios. Basta lembrarmo-nos que a lei de Macau impõe uma pausa no final de cada cinco horas de trabalho, pagamento de horas extraordinárias quando o horário excede o estipulado, etc. Talvez Hong Kong deva rever a sua Lei Laboral de forma a dar mais protecção a quem trabalha. No mínimo deve evitar que casos como o que acabámos de descrever se repitam.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexting [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e há quem defenda que a revolução digital não alterará a nossa forma de nos relacionarmos, eu não faço parte desse grupo de pessoas. Os nossos exercícios de sedução já sofreram o upgrade dos novos desenvolvimentos tecnológicos, seja isso com os famosos dating websites, o tinder, ou simplesmente porque agora estamos todos muito mais contactáveis, e à distância de um click. Sexting, que é a maneira inglesa de nomear mensagens de teor sexual, surgiu como uma nova tendência na forma como seduzimos e queremos ser seduzidos. Contudo, da mesma forma que a big data desenvolve novos desafios para as práticas sociais e no desenvolvimento de políticas públicas, também o sexting é alvo de alguns desafios conceptuais e de regulação. Ora vamos por partes. Não há nada de errado em trocar mensagens de teor sexual, com fotografias de corpos desnudados ou pormenores de órgãos sexuais excitados, desde que seja totalmente consensual. Um casal que ande a trocar mensagens marotas para praticar novas formas de sedução faz parte da nossa sexualidade se assim o quisermos – até mesmo se o fizermos com estranhos. Repito: desde que seja consensual, não vejo nada de particularmente problemático. Só que estas novas formas de lidar com o sexo já tiveram os seus problemas. Material de conteúdo sexual, seja ele escrito, mas predominantemente imagético, é por vezes re-utilizado para outros fins. Quantas vezes é que já ouvimos histórias de casais onde um dos elementos publica as fotos íntimas do outro? Já ouvimos umas quantas – e o medo, irritação e consternação são mais do que legítimos. Já para não bastar de ver as fotos da intimidade espalhadas pelo mundo virtual, acontece que as comunidades que nos rodeiam não vão envergonhar a pessoa que publicou conteúdos que não era de seu direito, mas a pessoa que viu a sua confiança traída pelo ex-companheiro. Quando se é adolescente então, estes processos são particularmente problemáticos porque no meio de tanta fase de transição e de hormonas a saltitar, este tipo de vergonha parece intransponível. As vítimas que passam por este tipo de situação – que carregam este tipo de vergonha e que se sentem sem controlo do que se está a passar – por vezes tomam medidas mais drásticas ao porem um fim às suas vidas. Estes são casos dramáticos que inicialmente começam por uma troca inofensiva – à primeira vista segura – e consensual de imagens de teor sexual. Os governos, ao verem um desenvolvimento tão dramático a estes casos fazem o que acham melhor: ilegalizar o sexting ou promover campanhas onde nunca se deve trocar este tipo de imagens com absolutamente ninguém. Mas em vez de se educar para uma sexualidade saudável, continua-se a promover tabus e restrições que (normalmente as mulheres) têm que resolver – seja isso a vergonha, a culpabilização ou a acusação de que são umas galdérias por algum dia terem pensado em fotografar-se semi-nuas e quererem partilhar isso com quem mais intimidade sexual têm. Pensemos na prevenção rodoviária como um exemplo: não só se responsabilizam os condutores pelo que fazer (ao regular comportamentos) mas também se desenvolvem veículos mais seguros e tecnologias de protecção mais eficazes. É isso que falta na narrativa do sexting também – uma preocupação digital para contornar estas questões. Porque este é um problema que reflecte a forma como vemos o sexo ou a nossa expressão sexual e que realça alguns dos problemas relativos à privacidade digital – porque as redes sociais ainda estão na sua infância, e um entendimento de como regulamentar certas práticas também está numa fase muito embrionária. Há quem diga que a tecnologia amplifica os nossos piores comportamentos… Eu acho que o potencial de promover comportamentos seguros e bem informados deveriam ser bem maiores. Se pudermos investir numa educação sexual e digital menos melindrada, talvez possamos proteger com eficácia a nossa integridade e a liberdade de expressarmos a nossa sexualidade.
João Luz VozesTrabalhador Não Residente [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]NR, outrem, fantasma desprovido de cidadania trasladado pela força do labor. Sou a soma de todos os medos, bode expiatório dos males do mundo, o larápio de pão local. Nas palavras de um sublinhado provocador, “dizem que semeio o caos e a destruição como o vento semeia as papoilas”. Essa é a minha reputação. Porém, sou exactamente o contrário, vivo nas antípodas da percepção daquilo que projectam de mim. Procuro ser edificante, na total acepção da palavra, numa Macau que é uma construção de forasteiros. TNRs emprestam o músculo para fazer a cidade crescer em altura, estrangeiros investem deltas de cobre, gente de fora vem jogar e deixar o dinheiro que enriquece o território abraçado pelo sufocante e míope lótus. Já antes, Macau havia sido construída por outros, vivia do acasalamento entre interior e exterior. Muitas vezes com violência, como qualquer cópula que se preze. A existência é um processo de cooperação e partilha, o encerramento e a solidão só se revelam, no seu expoente máximo, na morte. Parece ser a isso que aspiram aqueles que me olham de lado, que desconfiam do estrangeiro que carrega maus presságios na bagagem. Em Macau tudo o que é mau é importado. Doenças são trazidas de fora para o seio impoluto da eterna saúde. Crime também é algo que transborda das fronteiras do medo para o interior desta imaculada comunidade de santos. Os maus costumes, a sarna, peçonhas várias, má condução de veículos, conduta sexual diabólica, erecções infames, mau hálito, caspa, tudo emanações exteriores. Nada me verga perante este tufão escala de ignorância 8, muito pelo contrário, aguento este vendaval com um esgar trocista. Pobres diabos, amedrontados pelo fantasma da concorrência, receosos de perder regalias, prioridades, na Macau que mima em demasia, que aburguesa e vive num oásis económico de pleno emprego. Aqueles que me temem, coitados, vivem presos à ineptidão de um umbigo que enclausura, dos horizontes encerrados na geografia de cárcere. Vivem num cativeiro auto-imposto. Daí o receio de quem tem o mundo por sua casa, as estrelas como tecto último, o horizonte como destino. Os meus braços querem o mundo, da mesma forma que a minha boca anseia pão e o meu equador as vossas filhas. A emigração faz parte da natureza humana, fundadora da inata curiosidade que nos move, desde os primórdios dos nossos tempos. Há mais de 200 mil anos, os primeiros humanos sentiram a vontade de partir, começava assim o engenhoso e a vontade de abarcar o globo num fôlego. Emigrámos do leste africano, daquilo que hoje é a Etiópia e lançámo-nos numa aventura sem fim, que nos está a levar hoje além do sistema solar. O nosso primeiro apetite é sair, numa eterna alusão uterina. Seguir esta pulsão é estar conforme à natureza, vogar à bolina, orçar o libidinoso contacto dos elementos em direcção ao mais sublime dos portos. Reconhecer este desiderato requer elevação, saber receber é um exercício de nobreza, aquilo que traça a distinta linha entre um anfitrião e um selvagem com medo da própria sombra. Há muito que deixámos para trás o passado neandertal, mas ele persiste resiliente e traz o Homem à sua condição ancestral de prisioneiro na platónica caverna. Mesmo sem grande vontade de resvalar para alegorias, a verdade é que as sombras nas paredes de Macau ganham cavernosas identidades, tornam-se sinistras. É verdade que a luz cega aqueles que teimam em viver na treva, mas os olhos precisam da clarividência da verdade, da exposição ao que é autêntico. Gentes de Macau, saiam da caverna, ouçam o apelo deste estrangeiro que vos quer bem, soltem-se dos pesados grilhões do medo, encarem o que de melhor há na vossa natureza. Eu não tenho medo, ostento o meu peito aberto, vivo solto, bebo a vida de um trago, sou mal pago e sorrio dos infortúnios e armadilhas que me metem na frente, sempre ciente da minha grandeza. Posso não ter muito nos bolsos, mas o meu coração transborda, encaro o sol de frente, a minha casa é onde a sola dos meus pés se firma. A orfandade de pátria é a minha assinatura no indigno cartão que me identifica, não há fronteira que me contenha. O meu nome é Liberdade!
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO desprezível regime da Coreia do Norte “Throughout the post–Cold War period, U.S. responses to North Korea’s nuclear ambitions have been based on a simple premise: a nuclear North Korea would destabilize regional stability and thus cannot be permitted under any circumstances. At the height of each of the North Korean nuclear crises, both the Clinton and Bush administrations imposed a series of economic sanctions and considered military options.” “Global Rogues and Regional Orders: The Multidimensional Challenge of North Korea and Iran” – Il Hyun Cho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Coreia do Norte tem sido particularmente contraditória nos últimos meses, aumentando acentuadamente o número e a ambição dos seus testes de mísseis balísticos. Ainda não é claro, porque razão o seu governo optou por se comportar de uma maneira tão desviante em termos internacionais. A opinião convencional é de que o regime de Kim Jong-un parece sente-se repentinamente muito mais ameaçado pelos Estados Unidos e pelos seus aliados, temendo que seja o próximo país escolhido para uma intervenção militar em grande escala e subsequente mudança de regime político. Assim, e de acordo com essa linha de pensamento, Kim e os seus seguidores estão à procura desesperadamente por construir um programa de mísseis balísticos e armas nucleares, que seja suficientemente grandioso, potente e de grande alcance para dissuadir os americanos e s o seus aliados de os atacar militarmente. Se considerarmos em termos de valor nominal, esta posição parece razoável, pois a Coreia do Norte é um estado desonesto, que é amplamente criticado pela maior parte do mundo, não fazendo uma análise minuciosa da situação em termos globais. Em primeiro plano, não existe motivo para que a Coreia do Norte se sentira mais ameaçada, actualmente, do que nos anos anteriores. As doutrinas de invasões preventivas e mudanças de regime chegaram ao seu ponto culminante, sob o governo George W. Bush, declinaram com Barack Obama e não há motivo para acreditar antes da crise actual, que Donald Trump teve algum interesse real em uma guerra com a Coreia do Norte. Os comentários de Trump sobre o Kim Jong-un, em verdade, foram geralmente corteses durante a sua campanha eleitoral e, recentemente, em Maio de 2017, Trump elogiou Kim como um biscoito muito inteligente, e sentir-se-ia feliz por sentar-se à mesa e comer na sua companhia um hamburguer. A declaração de que o regime começou a testar mísseis com mais rapidez do que nunca, porque se tornou dominada por um súbito terror de que os Estados Unidos e os seus aliados iriam invadir o país sem aviso, não tem qualquer fundamento. Em segundo lugar, há poucos desejos estratégicos da parte dos Estados Unidos e dos seus aliados de derrubar o regime de Kim Jong-un e os norte-coreanos bem o sabem. Os sul-coreanos preocupam-se com os milhões de refugiados que inundarão as suas fronteiras, se o regime de Kim Jong-un entrar em colapso, e o gigantesco custo financeiro que uma unificação subsequente poderia acarretar. Os japoneses estão mais preocupados com a ameaça representada pela China do que pela Coreia do Norte, e temem que uma mudança de regime neste país possa reduzir o número de forças militares dos Estados Unidos estacionadas na região, o que também reduziria a necessidade estratégica que une a Coreia do Sul e o Japão, apesar das nefastas memórias que existem entre os dois estados, sobre o horrível tratamento japonês dado ao povo coreano de 1910 a 1945. Sem a ameaça da Coreia do Norte, o Japão poderia sentir-se abandonado pelos seus dois principais aliados e ter de enfrentar só o emergente gigante chinês. A Coreia do Norte fornece aos Estados Unidos um pretexto para estacionar as tropas e forças navais na região, o que ajuda a conter a China, enquanto minimiza a necessidade de fazer uma menção exagerada ao elefante na sala da região. Em terceiro lugar, mesmo que Kim Jong-un realmente se sentisse em pânico sobre a administração Trump, já possui o dissuasor mais efectivo, que pode realisticamente esperar alcançar. O regime testou com sucesso, em termos nucleares, uma bomba atómica em 2006 e, posteriormente, construiu uma reserva pequena, mas letal, de armas nucleares. Tem a capacidade de fazer ataques nucleares contra os parceiros americanos na Ásia-Pacífico, nos próximos anos, e poderá até atacar os Estados Unidos usando a sua grande força submarina ou colocando ogivas em contentores de carga, que poderiam ser enviados e não detectados para os portos americanos e detonados remotamente. Além disso, as suas ogivas foram feitas de forma impenetrável contra um primeiro ataque americano por algum tempo, inclusive através da ocultação em “bunkers” subterrâneos fortificados. Pelo menos alguns seriam provavelmente carregados em submarinos lançadores de mísseis, que a Coreia do Norte testou com êxito em Setembro de 2016. Isso garante que a Coreia do Norte possui uma capacidade nuclear poderosa de retaliação. Ao reforçar a sua dissuasão nuclear, a Coreia do Norte também possui a capacidade de responder a uma invasão ou ataque nuclear americano, infligindo uma destruição terrível aos aliados dos Estados Unidos e aos americanos com base na Ásia-Pacífico usando meios não-nucleares, incluindo o ser capaz de devastar a capital sul-coreana com rajadas massivas de artilharia aptas a realizar ataques químicos, ainda que exista qualquer proximidade entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos em termos de paridade nuclear. Temos de considerar que em quarto lugar se a Coreia do Norte realmente procura evitar ser atacada, deve manter uma atitude tão moderada quanto possível. A Coreia do Norte não tem escassez de problemas internos e externos que estão sob observação da administração Trump, e seria fácil manter-se em segurança se resolver deixar de ser o centro das atenções mundiais. As acções da Coreia do Norte foram particularmente provocatórias, quase deliberadamente estudadas para fomentar uma resposta hostil. O assassinato de Kim Jong-nam em Fevereiro, usando uma arma química em plena luz do dia em um aeroporto da Malásia, só faz sentido se o objectivo fosse estimular os actores estrangeiros a níveis mais altos de hostilidade. O retorno do cidadão dos Estados Unidos, Otto Warmbier, em estado de coma e que acabou por falecer a 19 de Junho de 2017, quando tinha sido condenado a uma pena de quinze anos de trabalho e não era visto há mais de um ano, parece intencionalmente preparado para inflamar os ânimos. Porque não o mantiveram escondido, fingindo que ainda estava a cumprir a sua sentença? Mesmo os próprios testes de mísseis foram realizados de forma mais conflituante possível, com o regime norte-coreano a responder às críticas dos Estados Unidos, proclamando que realizaria os testes semanalmente, mensalmente e anualmente, juntamente com o lançamento de novos vídeos de ataques nucleares da Coreia do Norte contra importantes cidades americanas. O momento para o teste do mais recente míssil efectuado pela Coreia do Norte, foi no dia de feriado nacional dos Estados Unidos, a 4 de Julho de 2017, sendo uma verdadeira bofetada provocativa. Se a Coreia do Norte tivesse realmente medo de uma invasão pelos Estados Unidos e seus aliados, chamar deliberadamente e repetidamente a atenção de forma negativa é uma acção completamente descabida. Ainda podia testar os mísseis, mas tentaria evitar anunciar ao máximo o que está realmente a preparar. Se a série de testes de mísseis que aumentam rapidamente não está a ser feita principalmente para evitar um ataque dos Estados Unidos contra a Coreia do Norte, qual a razão porque o regime está agir tardiamente de forma tão beligerante? Alguns dos possíveis motivos são bem conhecidos e um deles é que o governo pode estar a usar os novos testes para divulgar a força e as conquistas técnicas do regime à sua população, a fim de distraí-los e reduzir o seu descontentamento. O outro motivo é de que Kim Jong-un pode acreditar que inúmeros testes permitirão fazer os Estados Unidos retornarem às negociações, e fazerem novas concessões à Coreia do Norte, tendo como moeda de troca a paralisação do seu programa de armas nucleares. Há também, no entanto, outra razão potencial que recebeu pouca consideração nos círculos políticos e académicos, que é o facto da Coreia do Norte estar intencionalmente a incitar os Estados Unidos, ao lançamento de ataques punitivos em pequena escala contra si. Tal pode parecer contra-intuitivo, qual a razão porque um país quer ser atacado por forças externas? Os ganhos em popularidade do seu líder, provavelmente, superariam as perdas materiais incorridas pelos bombardeamentos, especialmente porque a história mostrou que tais ataques de mísseis americanos raramente têm qualquer efeito militar significativo. A história também mostrou que um governo sob ataque de um inimigo internacional muitas vezes experimenta um enorme impulso de popularidade, como resultado do aumento de patriotismo, um maior desejo de cooperação contra um agressor, e uma melhor disposição para tolerar as dificuldades internas como parte do esforço de guerra e conhecido como “Síndrome ao redor do efeito de bandeira.” O mesmo aconteceu, por exemplo, no início da campanha de bombardeamento da OTAN a Belgrado, durante a Guerra do Kosovo, o que levou a uma explosão de popularidade para o anteriormente aviltado presidente Slobodan Milosevic, e que permitiu que permanecesse no poder por mais tempo do que seria possível (a sua popularidade apenas possibilitou, depois de se saber que os bombardeamentos seriam sustentados, algo que a dissuasão norte-coreana desde longa data, bem como as protecções chinesas e russas, converteriam em suicidas para que os Estados Unidos se acaso tentassem). O regime norte-coreano vem a trabalhar para acumular benefícios de popularidade, por estar em estado de animosidade com os Estados Unidos há décadas, mas a realidade do conflito essencialmente ilusório que descreve para o seu povo, sofre de uma grande falha que é a ausência de ataques inimigos palpáveis que a população pode ver, ouvir e sentir. Um ataque real dos Estados Unidos preencheria bem esse vazio. Além disso, uma das fraquezas da posição de Kim Jong-un como líder é a ausência de credenciais militares reais. Ter a oportunidade de agir como o líder que, valentemente, enfrenta o poder da superpotência mais importante do mundo e sobrevive, ajudaria também, a preencher essa lacuna com facilidade. Kim Jong-un tem uma razão clara para desejar um impulso interno em termos de popularidade. O estado fortaleza sobre o qual reina, está a ser atacado por uma multiplicidade de factores que podem prejudicar o controlo do seu regime sobre a população, incluindo uma escassez generalizada de alimentos, prestação inadequada de cuidados de saúde, extrema escassez de energia e aumento do acesso da população a informações do mundo exterior, através de meios ilegais. Apesar de o regime parecer ser seguro contra o risco de revolta interna ou golpe militar em futuro previsível, só se mantém devido ao intenso e contínuo trabalho do governo e das suas forças de segurança para manter o “status quo”, e patrocinar uma manifestação patriótica em torno do regime de Kim, face a ataques americanos abertos, bem como elevar o próprio líder a herói militar, pode ser visto como suficientemente benéfico para valer a pena o sofrimento de um dano físico, resultante de um ataque que um míssil ou drone pode causar. Assim, Kim Jong-un recuaria na ideia de um ataque nuclear americano ou de invasão em grande escala, que significaria o fim do seu regime. A dificuldade para o seu governo é de encontrar a resposta correcta. Se agir de forma muito beligerante, ao disparar uma ogiva nuclear contra Tóquio ou Seul, por exemplo, provavelmente criaria uma resposta de grande intervenção ou erradicação nuclear. Ao invés, trata de irritar e ofender os Estados Unidos a um nível que seja suficiente para incitar um bombardeamento em pequena escala, mas não a nível tão grave que possa vir a incorrer em algo pior. As acções que o regime tomou nos últimos meses, incluindo o teste de novos mísseis, mas que na verdade não atacaram país algum, matando ínfimas pessoas, em vez de grande número de civis estrangeiros, e nivelando as ameaças que são preenchidas com hipérbole, mas cuja pouca essência alinharia exactamente com esta estratégia. É altamente improvável que os Estados Unidos arrisquem que a Coreia do Norte dispare armas nucleares contra os seus aliados, ou fazendo explodir um contentor de carga nuclear em São Francisco, ou provocando uma retaliação nuclear maior da China, ou mesmo lançando uma invasão em grande escala da Coreia do Norte por causa de um único cidadão morto e alguns testes de mísseis ilegais. Todavia, não é de todo improvável que possa responder com o mesmo tipo de ataques militares que Trump usou contra a Síria este ano, depois do governo de Assad ter usado armas químicas contra a sua população, Bill Clinton usou contra o Afeganistão e a Somália após os ataques da embaixada dos Estados Unidos em 1998, e contra o Iraque no mesmo ano, por não terem cooperado com os inspectores de armas da ONU, e Ronald Reagan utilizou contra a Líbia em 1986, após o bombardeamento da discoteca de Berlim e contra Beirute, em 1983, pelo bombardeamento de um quartel militar multinacional. É de considerar que, enquanto a administração Trump considera as suas respostas ao recente aumento de beligerância da Coreia do Norte, deve ter em consideração que o lançamento de ataques limitados pode, de facto, ser exactamente o que o regime de Kim Jong-un quer. Existem muitas outras razões pelas quais os Estados Unidos devem agir com extrema prudência, antes de tomar esse caminho, que não deve ser negligenciado. Fazer exactamente o que um ditador totalitário desprezível quer, pode em geral ser uma má decisão. A verdade é que as sanções ocidentais e as promessas de acção da China não conseguiram controlar o seu programa nuclear, tendo a Coreia do Norte realizados testes de mísseis a cada duas semanas desde o início do ano. As sanções são destinadas a prejudicar a economia, mas apesar de toda a miséria, o país está a crescer entre 1 por cento a 5 por cento ao ano. A ONU tentou bloquear o acesso da Coreia do Norte ao dólar americano, limitando a quantidade de carvão que o estado pode exportar, potencialmente privando-o de mais de um quarto da sua receita total de exportações. A China, compradora de 99 por cento das vendas de carvão da Coreia do Norte, afirmou em Fevereiro de 2017 que suspenderia todas as importações. Tais medidas não tem impedido que a Coreia do Norte continue por meios fraudulentos a vender carvão e a ter acesso a moeda estrangeira, bem como usa agentes de terceiros países para vender drogas, armas e produtos falsificados. O governo permite que as pessoas singulares criem negócios lucrativos, Além de produzirem para o Estado, os agricultores e as fábricas têm alguma liberdade para procurar os seus clientes. As imagens de satélite mostram que os mercados crescem em tamanho e número entre as cidades. As pequenas e médias empresas estão a proliferar e seis empresas de táxi operam em Pyongyang. A fúria apocalíptica da Coreia do Norte na realização de um programa de armas nucleares, incluindo o seu não cientificamente e militarmente provado primeiro lançamento de mísseis balísticos intercontinentais é fundamentado no que dizem ser um conjunto racional de metas em que o mais importante é a auto-preservação. O regime diz que quer uma bomba nuclear porque viu o que aconteceu, quando o Iraque e a Líbia ficaram sem as armas de destruição massiva. Os seus regimes foram derrubados por intervenções apoiadas pelo Ocidente. A Coreia do Norte quer travar outros países de fazerem o mesmo, nomeadamente a administração do presidente Donald Trump, de derrubar o seu regime totalitário.
Isabel Castro VozesDois por quatro [dropcap]1[/dropcap] Macau tem um ritmo estranho. Às tantas os outros sítios também têm um ritmo estranho, mas quem vive aqui não está neles e, por isso, não sabe de certeza vivida. Ficamos por cá a fazer a contabilidade de um tempo bastante parvo, em que os dias são sempre muito compridos e, em simultâneo, demasiado curtos, até porque o sol foge cedo, muito cedo, nos dias em que se digna a aparecer. São dias compridos, mas curtos, que teimam em ser extraordinariamente repetitivos para quase todos nós, emoldurados que estamos entre afazeres profissionais, familiares, pessoais, sociais. Dias curtos, mas compridos, que se condensam em ciclos, sempre mais ou menos iguais. Quem veio de fora faz as contas não aos anos, mas ao número de edições deste ou de determinado acontecimento. A partir de certa altura, o tempo começa a mingar. Ainda ontem era grande prémio e está quase aí outra vez, deixem o Verão acabar e vão vê-lo em auditivas acelerações. Por entre estes compassos repetitivos de Macau, que se escreveram para serem dois por quatro, andante, andam fusas e semifusas que, de tão rápidas, se nos escapam ao entendimento. Damos por elas, mas não sabemos que leitura fazer das coisas que não aparecem escritas. O que nos mostram não chega a ser. Não nos resta mais do que esperar pelo tempo, esse conceito que alguém inventou para evitar que vida e morte se juntassem demasiado depressa. [dropcap]2[/dropcap] Vêm aí as legislativas, assunto que, muito provavelmente, não empolgará por aí além a maioria dos que me lêem. Para este ano há mais do mesmo, com mais diversidade, mas com o grau de interesse de sempre: pouco. Ainda assim. Faz parte desta coisa de ser cidadão estarmos informados das nossas opções, mesmo sabendo, de antemão, que dificilmente nos servirão. É um direito dever, um dever direito, não há mais e é o que temos. No início era complicado perceber isto, lembro-me bem. Fui assistir ao meu primeiro plenário na Assembleia Legislativa com uma útil revista na mão que me dizia quem era quem, na medida em que é possível perceber-se quem é quem, e lembro-me de pensar que seria difícil algum dia entender o que verdadeiramente se dizia por ali. Não me enganei redondamente, apesar de, com o tempo, ter conseguido fixar os rostos e algumas das ideias, uma conquista que, feitas bem as contas, serve de pouco, de muito pouco. Sei quem são mas não sei quem são, ainda hoje, apesar de tudo. Ainda bem. Ainda assim. Várias legislaturas depois, com mais mudanças pelo meio do que seria de esperar, apesar do tédio que marca o tempo político, continuo a surpreender-me com este sistema e com quem faz parte dele. Os grandes e os pequenos, os grandes que estão ali de pedra e cal, com raízes na alcatifa fofa, e os pequenos, aqueles que não chegam lá mas que, por algum motivo quase sempre pouco ligado a uma irresistível vontade de participação cívica, querem lá estar também. Por norma, não conseguem. Ainda assim. Surpreendem-me os nomes e a falta de ideias e também o excesso de monotemáticas lutas. Listas que têm apenas um único objectivo, como se fosse um disparate ter mais do que um. Ou como se fosse de todo impossível dez cabeças produzirem dez ideias diferentes. Listas que se dizem cor-de-rosa, o que quer que isso signifique. Candidatos que continuam no século XX, na primeira metade do século XX. Candidatos que não saíram do século XVIII. Candidatos que ainda não perceberam que já não há cavalos e burros nas ruas, que dos agricultores resta apenas uma associação com o nome, que as mulheres não carregam cântaros na cabeça e que as crianças não andam descalças, barrigudas de fome, nas ruas enlameadas da terra, e que os mandarins agora são outros, com menos sedas e talvez menos mulheres. O tempo tem um ritmo estranho. Compassos de dois por quatro, andante, 60 por minuto, como manda o tempo, talvez 80 em caso de crise, fusas e semifusas que não encaixam, corre tudo tão depressa e tudo fica no mesmo sítio.
Carlos Morais José VozesAs celebrações – No início era a Clepsydra [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omemora-se, neste ano de 2017, os 150 anos da morte de Camilo Pessanha. A efeméride quase passa despercebida no mundo de língua portuguesa, de Portugal a Macau, uma discrição que talvez agradasse ao poeta, cuja vida de exílio o afastou dos meios literários do seu tempo. Não deixou por isso – nem pela dimensão reduzida da sua obra – de influenciar as letras portuguesas, à medida da originalidade e brilho de uma escrita que, nas palavras de António Ferro, produziu «um missal» de uma geração. Pessanha escolheu uma vida de exílio, sobretudo de distanciamento progressivo e irremediável, no longínquo porto de Macau, nesse tempo colónia portuguesa, na costa sul da China. Se com alguma facilidade podemos pensar que a vida de Camilo Pessanha se caracterizou pela estranheza — e para isso basta ter em consideração o seu progressivo distanciamento geográfico e quotidiano das suas raízes portuguesas — é o espanto que nos assalta quando temos em consideração o estabelecimento da sua obra poética. Raramente, na história da Literatura, sobretudo do século XX, deparamos com tamanha dificuldade em ter como assente e definitiva a versão final de uma obra literária. No caso do poeta da Clepsidra, são inúmeras as dúvidas, as versões, os poemas continuamente reescritos a cada autógrafo ou no momento seguinte à sua publicação. Quando, num determinado instante, se julga ter finalmente acesso em definitivo a um corpus poético, eis que do acaso ou do estudo, da investigação ou de um acontecimento singular, surgem novas dificuldades ou, simplesmente, outras descobertas, que tudo voltam a pôr em causa e fazem repensar, se não o conjunto da obra, pelo menos o estabelecimento definitivo de um texto que insiste em se querer em processo. Descortinar que versão de seus poemas o poeta abraçaria é percorrer um labirinto – de autógrafos, publicações em jornais e revistas, edições póstumas, rasuras, cartas, anotações – cujo fio salvívico parece estar nas mãos de uma Ariadne amiga de folguedos cruéis. Um episódio é bem revelador deste imbróglio em que a obra de Pessanha se tornou. Trata-se do famoso Caderno Poético, onde o poeta colava poemas saídos na imprensa escrita, que de seguida transformava, introduzindo variantes formais e de conteúdo, ou no qual escrevia directamente versões novas de poemas. Este pequeno caderno de capa negra terá sido confiado pelo próprio, antes da sua morte, a Laura Castel Branco que, após o desaparecimento do poeta em 1926, compreendendo o valor do que tinha em mãos, o entregou à guarda segura da Biblioteca de Macau. Em vão. Durante quatro décadas o precioso documento esteve desaparecido, ou por não haver ninguém que soubesse da sua existência ou por se ter perdido entre os volumes daquele depósito de livros. Foi preciso que, em 1967, durante a Revolução Cultural chinesa, cujos ardores também incendiaram as ruas de Macau, os Guardas Vermelhos invadissem a biblioteca dos “colonialistas” e atirassem uma série de móveis para a rua, pela janela de um primeiro andar. Uma secretária velha caíu com estrépito sobre o lajedo e logo se espatifou. De uma das gavetas rebentadas, saltou um caderno negro e oleoso que o director da Biblioteca, Luís Gonzaga Gomes, se apressou a recolher, ciente da importância daquele achado. Examinado o documento, logo se tornou patente que nele existiam novas versões de poemas que se julgavam definitivos, nas edições até então trazidas a lume da sua obra. No entanto, os compiladores preferiram, nalguns casos, ignorar esta descoberta e continuar a apresentar da obra do poeta versões que ele próprio desdenhara ou emendara. Aliás, muitas são as fantasias que se produziram em torno da própria produção da poesia em Camilo Pessanha. Uma das mais correntes – e mais falsas – indicia que o poeta não recorreria à escrita e que somente utilizaria a memória para compor e guardar os poemas. Sem pretender entrar aqui em polémica, basta ter consideração os inúmeros autógrafos e, principalmente, o cuidado quase fanático com que hoje constatamos que revia e tornava reecrever alguns dos poemas, para nos assegurarmosde que o seu método de trabalho era lento e exigente, o que implicou necessariamente o recurso ao papel. Ao lermos a crítica efectuada a um volume de versos de António Fogaça, publicada ainda nos seus tempos de estudante em Coimbra, verificamos que Pessanha salvaguarda ferozes critérios de exigência, certamente os mesmos que o levaram a reter a publicação dos seus versos em livro até uma idade tardia, talvez para não incorrer nos defeitos que ainda jovem apontava ao seu condiscípulo. Daí que sejamos levados a considerar que devemos tomar como versões definitivas as que mais tardias foram realizadas pelo poeta, frutos de um labor permanente sobre um texto que não cessava de se reconstruir e aperfeiçoar. Quando, em princípios deste século, fizemos um levantamento dos livros existentes na Biblioteca Central de Macau, que tinham pertencido ao poeta, deparámos com um exemplar da revista Centauro, dirigida por Luís de Montalvor, o famoso número único da publicação, onde surgem, entre outros, poemas de Pessanha e de Fernando Pessoa. Este era o exemplar que lhe fora enviado de Lisboa e que deve ter chegado a Macau no próprio ano da sua publicação, ou seja, em 1916. Ao folhear as suas páginas, foi com emoção que demos com as anotações e rasuras feitas nos poemas pela mão do poeta, modificações estas que são, afinal, as últimas versões conhecidas, feitas por ele próprio e sem intervenção de estranhos. Quanto mais não fosse, esta descoberta justificaria uma nova edição, que foi realizada. Nela apresentámos estas novas versões de alguns dos poemas, as que por ora consideramos definitivas – deixando sempre espaço a que outros acontecimentos produzam novidades –, para além de preferirmos sempre as variantes autógrafas ou provenientes de emendas e rasuras às que foram sendo publicadas na imprensa. Assim, tomamos igualmente o Caderno Poético como referência de credibilidade superior às versões sujeitas à mão, quantas vezes apressada ou pesada, do editor. Atendendo ao intrincado deste processo e ao regular aparecimento de novos documentos, não acreditamos apresentar a versão definitiva, mas vamos proporcionar a todos quantos lhe amam esta obra, nestes 150 anos da sua morte, uma versão comemorativa da Clepsydra, em forma de missal — finalmente, como prescrevia António Ferro. E tendo sido este o lugar por ele escolhido para viver e morrer, faz um sentido quase irónico mas reconfortante ser agora, neste território há dezassete anos sob soberania chinesa, prestada por Macau uma homenagem ao que foi, indubitavelmente, o seu maior poeta. Com a publicação de uma edição renovada da Clepsydra, daremos então início em finais de Julho às celebrações dos 150 anos, que se estenderão até ao fim do ano e adiante, mas cujo ponto alto será por volta do dia do seu nascimento, 7 de Setembro. Contamos que a população de Macau participe connosco nesta homenagem a um dos nossos melhores.
Leocardo VozesAguenta, que é verão [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Verão em Macau. Sim, eu bem sei que falo disto todos os anos, mas é incontornável. E é um tema “light”, uma vez que não dá para culpar os governos nem ninguém daquilo que é apenas a culpa da mãe natureza, em suma. É como uma avó de quem gostamos muito mas nos oferece sempre meias horrorosas no Natal, e que nunca vamos usar – a gente gosta dela na mesma. Só que em vez de meias, esta avó, ou mãe ou o que quiserem, dá-nos monções. Ora está um sol e um calor que não se aguenta, ora vinte minutos depois cai um toró de proporções diluvianas. Isto a juntar à humidade relativa na ordem dos 90 e tal por cento, garante-nos uns meses de estio tudo menos secos. Aqui não há seco para ninguém no Verão. Preparai-vos para suar até de lugares que nunca chegaram a imaginar ser possível (isto nos homens é mais verdade). O Verão em Macau não se passa: aguenta-se! Dou como exemplo a última terça-feira de manhã. Saí de casa perto das 8:30 para dar o meu modesto contributo ao progresso da RAEM, não sem antes verificar pela janela o aspecto do céu, que parecia tudo menos a prometer chuva. Mas eis que cinco minutos depois de por o pé na rua, dou comigo a guardar os óculos de sol, e a procurar a varanda mais próxima para me abrigar da chuva. Deu para me safar apenas todo molhado, em vez de encharcado até aos ossos (como também já aconteceu), quando cheguei ao trabalho, altura em que não só já não chovia, como ainda fazia um sol radioso. Ninguém diria que esteve a chover cinco minutos antes. Umas das desvantagens da chuva são os guarda-chuvas, coisa que detesto usar, e só o faço em caso de não ter outra opção. Não me importo que me caiam umas gotas de uma chuvinha molha-parvos qualquer. Eu não tenho medo da água, tomo banho todos os dias. O nosso corpo é composto por 70% de água. E não é só quando chove que se abrem os guarda-chuva, pois o sol também é um elemento que a população local teme especialmente, porque os deixa com a tez escura. Que horror! E à conta disto não é raro o dia em que tenho que me fazer à luta, suportando os varões alheios no rosto, arriscando-me a ter uma vista fisgada, enfim, ai o sol, ai a chuva, ai tudo. E finalmente há o impacto do Verão na moda. Em Macau nada é moda entre Junho e Setembro. Estes meses foram guardados para a não-moda. Ele é as sandálias com meias, as capas de chuva de plástico transparentes, as botas de borracha com Hello Kitties, as meias pretas de senhora naqueles dias de fumeiro, e isto para não falar outras vez dos malditos guarda-chuvas. Andar com um sol abrasador e de guarda-chuva na mão nem chega perto de ser “british style”. É simplesmente parvo. Mas pronto, e por quê não bazar antes daqui para fora? Por que temos que trabalhar, ora essa! E onde vamos passar o fim-de-semana? Onde houver ar condicionado, onde mais? Se me estou a queixar? Nada disso, é tão agradável. É só preciso aprender a aguentar.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA Biologia do Amor [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] complexo sistema hormonal que cada um de nós possui alimenta as sensações amorosas do nosso corpo. Nós sabemos quando estamos com tesão, apaixonados ou enamorados porque interpretamos os sinais ao nosso redor, ao mesmo tempo que interpretamos os sinais do nosso próprio corpo e mente. Há quem vá ainda mais longe para perceber estes sistemas que nos sustentam, ao ponto de explorar estas normais palpitações corpóreas para um mapeamento mais fidedigno do amor – da sua biologia, fisiologia e anatomia. Há neurocientistas por todo o planeta a perceber como é que o cérebro trabalha quando se apaixona ou quando se ama. Porque queremos perceber melhor estes processos? Porque assim podemos trabalhar com as melhores estratégias para garantir (escolher) um bom parceiro e assim investir num relacionamento duradouro e feliz. A investigação está tão avançada que já sabemos bastante acerca das zonas cerebrais que são activadas quando estamos apaixonados; conseguimos explorar o comportamento sexual e as suas bases inatas – ou as suas tendências evolutivas – e tenta-se perceber porque é que o amor acontece, se não é o cupido a lançar umas setas pr’áli e pr’acolá, que raio se passa então? Todas estas tentativas de desmanchar estes mecanismos poderiam desfazer a magia do amor romântico mas, lá por sabermos a receita do melhor bolo de chocolate do mundo, não quer dizer que vamos deixar de ter prazer em comê-lo. Contudo, esta visão atomista do amor – que é feita de mecanismos e processos cerebrais – mostra-nos uma realidade descontextualizada do mundo vivido. Por isso é que uma das mais conhecidas investigadoras na área do amor e das neurociências, Helen Fisher, é uma optimista acerca da história do amor e do seu futuro. Eu cá aconselho muita cautela nestas interpretações. Não só porque sou uma pessimista, mas porque não conseguiria funcionar sem uma representação do mundo complicado em que vivemos. Será que o amor se manteve o mesmo ao longo de tantos de existência da nossa espécie? Que são entre 200.000 e 100.000 anos? Eu diria que não. O amor, que é uma forma tão inata de ser, de estar e de cuidar, por mais natural que possa parecer, não é totalmente reproduzida de geração em geração. O sexo, que também é daquelas necessidades biológicas básicas das nossas vidas, também não se manteve o mesmo na nossa espécie. Estas necessidades levam uma roupagem cultural e social que lhe conferem variabilidade e imensa criatividade – que é trabalhada e transformada em conjunto. Por exemplo, quando alguém me vem dizer que o amor em nada se alterará mesmo que as nossas artes de sedução se tenham alterado drasticamente (e aqui estou a pensar nos auxiliares tecnológicos), porque os mecanismos do amor (no cérebro) são sempre os mesmos… Eu pergunto-me: exactamente como? Quando é que nos limitamos a sentir o corpo como um ditador de funções e não ouvimos as nossas complicadas cabecinhas acerca de quem somos, onde estamos, para onde queremos ir ou do que é que estamos rodeados? Por mais que se queira reduzir o amor a um processo neuro-cognitivo eu não deixo de pensar no conteúdo deste processo que é muitas vezes ignorado (e dado como redundante) nestas perspectivas mais neurológicas. Não estou de todo a julgar o ser humano como umas tabulas rasas do sexo e do amor e a pensar-nos totalmente permeáveis a tudo o que acontece à nossa volta. Nada disso! O amor há-de ter uma essência semi-universal para a forma como nos relacionamos e criamos laços vinculativos com os nossos parceiros românticos e amantes. Mas que as formas de expressão são mais que muitas, disso não tenho dúvidas nenhumas. O sexo transforma-se não só naquilo que precisamos, mas naquilo que desejamos que o sexo seja – e o amor também.
Hoje Macau VozesArte Chinesa – O dom magnífico de Camilo Pessanha Alberto Osório de Castro [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]implesmente par droit d´aînesse entre os amigos e admiradores de Camilo de Almeida Pessanha, quis o grande amigo do Poeta, o brilhante jornalista Dr. Carlos Amaro, que algumas palavras minhas acompanhassem estas fotografias da arte chinesa que a Ilustração publica, e representam a magnífica colecção de cem peças características da arte milenária do Celeste Império oferecidas por Camilo ao Museu das Janelas Verdes. Como essas fotografias avivam em mim a esta hora de Inverno português, entristecida de lufadas e névoa, a relembrança dos resplandecentes dias abafados de espera de tufão, vividos em companhia de Camilo, em Agosto de 1911, na linda e melancólica, risonha e estranha terra de Macau, à maravilha católica e china, china sobre tudo, já agora, cheia de repiques finos à missa, de discretos biocos de confessadas, de silenciosos deslizes de milhares de Celestes, atravancando as ruas cada dia mais, invadindo as praças e rossios, coalhando as airosas lorchas do porto, gente atarefada e calada, reservada e de nós distante, aparentemente impassível, mas em cuja massa se sente a força profunda da maré que avança, e vai avassalar o velho empório europeu de veniaga nas Costas da China. Pobre e linda Macau dos séculos xvi e xvii, como és ainda curiosamente portuguesa à moda desses séculos, sob a taciturna invasão china que te envolve e todavia te dá ainda um aspecto de vida! E contudo, ó arcaica Macau, desde que Fernão Mendes Pinto andou de aventura no Império do Meio, assistindo aos primeiros avanços da potência tártara, que de memoráveis coisas se não deram nessa China imensa que só na aparência é milenariamente imóvel: abalada para o sul dos exércitos tártaros da Manchúria, queda da dinastia chinesa dos Ming, sangrento, como nenhum outro, triunfo da dinastia Manchu dos Ta-Tsing, dois séculos de terrível agitação das associações secretas chinesas contra o vencedor tártaro, indo, poucos meses após a minha passagem em Macau, até à abdicação do último imperador Ta-Tsing e à proclamação duma república à europeia ou americana, como compasso de espera da passagem da sombra de um novo Dragão imperial…. Tanta coisa a dizer sobre a China e a sua arte! Mas o espaço é limitado nesta revista, naturalmente. O que é e o que vale a colecção que Camilo Pessanha acaba de oferecer a Portugal, e está representada nestas três fotografias da Ilustração do Século, mandadas ao Dr. Carlos Amaro pelo bravo oficial da Armada, [ Sr.] José Carlos da Maia, hoje o governador de Macau? Críticos de arte competentes o dirão ao público. Assinalo apenas na formosíssima colecção que vai entrar no Museu das Janelas Verdes, as pinturas de Sou-Loc-Pang, o Ho-Ku-Sai chinês, que um poderoso mandarim artista disputaria a punhados de prata de lei; reconheço esbeltíssimos vasos de obra de cloisonné, de champ-levé e de nielagem; preciosas cerâmicas dos Ming; craquelés da vetusta dinastia dos Song, que teve no seu império tão grandes artistas; estatuetas de porcelana, e bronzes litúrgicos duma patina acentuada pelos séculos; charões e madeiras marchetadas; esculturas de marfim, unicórnio, âmbar e pau de águila; pedras duras e cristal de rocha talhados com a lenta paciência do sonho, ao molde de todas as formas quiméricas, das frutas e das corolas mais raras dos vergéis de Aladim. É todo o prestígio e a fantasmagoria da cisma forte do ópio no cérebro dum Quincey, de Gautier, e do pobre Gérard de Nerval. Camilo acaba de dar à política terra portuguesa, que quase não cura já senão de politicar, o mais elevado exemplo de grande poeta e de grande patriota. Em plena Lisboa politicante, Camilo Pessanha vai-nos pôr, em um museu público, de novo em contacto, pela magia da arte (quand nous parlons aujourd’hui de la «Magie de L’art», nous ne savons pas combien nous avons raison, diz Salomão Reinach), com as velhas civilizações requintadamente artísticas da China e do Japão, que um momento nos deslumbraram no século xvi, nesse século em que a nossa Pátria era ainda uma coisa viva e orgânica, vivendo por todas as suas células e os seus tecidos mais delicados. Da maravilhosa colecção de Camilo, feita com tanto amor, e à custa talvez do melhor dos seus momentos de funcionário e de lucidíssimo advogado, cem dos mais característicos exemplares são por ele oferecidos ao Museu das Janelas Verdes. Que ao menos os artistas de Portugal, pintores, arquitectos, escultores, músicos e poetas, artífices dos metais preciosos e das finas pedrarias, das palavras e dos ritmos da Língua, actores, bordadores, lavrantes, e decoradores, criadores geniais ou simples diletantes, todos os que põem na arte a mais pura nobreza da sua inteligência e do seu sangue, os que só pela virtude mágica misteriosamente evocadora da arte esperam ainda manter viva e sensível a velha encantadora alma de Portugal, que ao menos esses, entre a turba agitada, recebam com discreto e comovido louvor o sortilégio que nos chega do Sol levante doirado, o dom magnífico do Poeta, o dom feito em vida, porque postumamente Camilo se fará relembrado pela adaptação ou adopção mais bela que possa imaginar do florido lirismo da China. Dia a dia Camilo decifra e traslada do Chinês tudo o que, de mais singular, afinado e humano criou para enlevo de milhões de almas tão diversas das nossas o génio poético da imensa China matizada de jamais vistas peónias. A China através da alma estranhamente sensitiva de Camilo! Canta docemente uma das suas líricas de «Poeta Maldito» cismando na esteira fina da fumaria: O meu coração desce, Um balão apagado… Melhor fora que ardesse Nas trevas incendiado. Há-de arder, estou certo, há-de arder o seu pobre coração de grande poeta para todo sempre exilado, e no mais belo, imaginoso, florido e espiritual incêndio de poesia sensitiva que Portugal jamais viu: num pomar de cerejeiras em flor a arder, ferido pelo fogo de todas as centelhas, da tempestade que nos arrebata, da noite trovejante que sobre nós se cerra…
Carlos Morais José VozesCamilo Pessanha e a Luz (Apresentação do livro de Maria Antónia Jardim, “CamiloPessanha um Educador Épico-Ético”) [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]inhas senhoras e meus senhores, Cabe-me a grata e honrosa tarefa de apresentar este livro de Maria Antónia Jardim sobre o poeta Camilo Pessanha. Faça-o com redobrado prazer pelo momento histórico em que nos encontramos — seis meses depois da transferência de soberania de Macau para a Républica Popular da China — pois o seu lançamento e a nossa própria presença constitui uma prova da permanência de valores portugueses nesta terra, realçados e magnificamente sublinhados pelo facto de nos reunirmos à volta da obra de um poeta. Mais do que vocação, mais do que horizonte e distância, a poesia apresenta-se ao exilado, afinal, como destino. Muito se falou em Macau de Camilo Pessanha, mas pouco se fez pela memória do homem e da obra. Basta pensar que a sua estátua foi erigida, à pressa e quase envergonhadamente, somente em 1999. Que não foi criado um pequeno instituto de estudos camilianos, talvez ladeado de um pequeno museu. E tudo isto faria sentido porque Camilo Pessanha é, sem dúvida, consideremos o português ou outra língua qualquer, o mais importante poeta que alguma vez viveu em Macau, sendo um magnífico símbolo desta cidade. É também por tudo isto que saudamos o aparecimento desta obra, cujo alcance — para além do seu mérito próprio — reside igualmente no facto de demonstrar que muito há ainda a fazer e a pensar sobre o poeta da Clepsidra e a sua obra. Distante em vida e em morte dos círculos literários da metrópole, Camilo Pessanha não teve a atenção de um Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro, embora estes o tenham considerado seu Mestre. Em 1914, Sá-Carneiro respondia à seguinte questão do jornal Républica Qual a melhor obra de arte dos últimos trinta anos? que, e passo a citar: “À minha vibração emocional, a melhor obra de Arte escrita nos últimos trinta nos é um livro que não está publicado — seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista. Ouvindo pela primeira vez os seus versos, fustigou-me sem dúvida uma das impressões maiores, mais intensas a Ouro e gloriosas de Alma da minha Ânsia de Artista. Rodopiantes de Novo, astrais de Subtileza, os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas, leoninas de miragem, oscilantes de vago, incertas de Íris. Pompa heráldica, sombra de cristal zebradamente roçando setim”. Esta extraordinária admiração que a poesia de Pessanha desperta nos expoentes literários da sua própria época é bem garante do interesse e alcance, quer formal quer temático, da sua produção poética e, portanto, acolhemos com alegria a presença deste novo estudo de Maria Antónia Jardim, escrito sob o signo da luz, essa mesma que Sócrates acreditava na possibilidade de entrever na demanda de si-próprio e cujo “Conhece-te a ti mesmo” não está por acaso na epígrafe deste livro. Escreveu o próprio Camilo Pessanha que a poesia é, antes de mais, étnica, no sentido em que — e cito — “a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico”. Camilo refere, portanto, que a poesia encontra a sua seiva, a sua força de poesis (em grego, criação), nesse solo original, solo que deve ser entendido como cultura. Ora é precisamente o solo cultural, simbólico e também de ideais políticos, em que assenta a poesia de Camilo Pessanha que este livro procura lavrar, na busca de elementos arcaicos, fundamentais — se quiserem, arquetipais — cuja lenta maturação através da História encontram ressonâncias na obra do poeta. Maria Antónia Jardim leva-nos numa viagem intemporal ao encontro de Platão, um dos fundadores da gnose Ocidental, ele próprio tão influenciado por um certo Oriente; mas também de Confúcio e do budismo cuja influência em Pessanha é igualmente detectada. Chegamos pois ao ponto em que poderemos esboçar as teses centrais deste livro, a saber: a influência de Platão em Pessanha; a intensificação, ou, se quisermos, o potencionamento do germe platónico pelo saber oriental; e como estas raízes gregas do solo Pessanha o aproximam do confucionismo e do conceito de “Li”. Como é óbvio não é aqui o espaço de desenvolvimento destas ideias, nem de descrição total das teses da autora, até porque se o fizesse estragaria o efeito de surpresa que este livro provoca, para além do prazer estético que a leitura das suas páginas proporciona. Ao levar-nos num trajecto em que o tempo, tal como em qualquer viagem, se suspende, Maria Antónia Jardim descreve uma constelação de labirintos do pensamento, cujo fio de Ariadne é o próprio Camilo Pessanha. É à luz da sua obra, como a candeia do filósofo, que a autora percorre os meandros da filosofia ocidental, sem perder de vista esse saber do Oriente cujo conhecimento nos aproxima de uma perspectiva global da Sabedoria humana, na medida em que são mais os nódulos, os encontros, com o Ocidente, do que o caminhar em vias paralelas. É por isso que vale a pena, definitivamente, ler este livro, mesmo que nalguns pontos se possa discordar do que nele se encontra expresso. É que a profundidade da abordagem remete cada um dos leitores para um exercício de pensamento também ele inevitavelmente profundo, constituindo um bálsamo para quem no mundo de hoje quase inevitavelmente respira um ar demasiado poluído de banalidades. Esta obra enriquece o universo camiliano, também na medida em que se afasta da análise literária pura, das escolas e dos ismos, para entrar no campo mais claro dos conceitos. Camilo Pessanha foi, como se sabe, um poeta exilado, um desses que “vagueiam e se definham por longínquas regiões” , regiões estas que, da geografia ou do espírito, são o palco onde é traçada, a letras de ouro e sangue, a memória mais duradoura e profunda — para alguns, divina — do povo a que pertencem. Muitos de nós percorrem o mesmo território de exílio, espaço excelente de saudade e contemplação do lugar de origem mas, sobretudo, de lenta metamorfose cujo devir se profetiza, ainda hoje, envolto nesse mesmo luminoso manto de neblina. Muito Obrigado.
Fa Seong A Canhota VozesTerra, Marte ou morte? [dropcap style≠’circle’]“A[/dropcap] Terra é muito perigosa, volta rapidamente para Marte!”. Estas frases são bem conhecidas em comunidades que falam cantonês, porque surgiram de um filme de comédia de Hong Kong, Shaolin Soccer, cujo protagonista é o actor que todos conhecem, Chow Sing Chi. A concepção dessas frases tem sido para gozar com quem não gosta de se ver e se quer mandar embora, mas alguém já pensou que o que diz poderá ser uma realidade? Agora não é para brincar! O renomado físico teórico e cosmólogo Stephen Hawking reiterou recentemente que todos os países devem criar uma base na Lua dentro de 30 anos e enviar seres humanos para Marte antes de 2025. Esta alerta está a aproximar-se. Nos anos passados, a previsão de Hawking foi “emigrar para outros planetas dentro de 1000 anos”, mas agora o físico teórico defende que para os seres humanos sobreviverem devem sair da Terra dentro de 100 anos. A nossa Terra está mesmo perigosa. Terramotos, doenças infecciosas, acidentes nucleares, inclusive ataques terroristas. Todos os dias ouvimos notícias tristes, pessoas mortes, acidentes graves. Já serão estas razões suficientes para nós deixarmos a nossa casa, deixarmos o nosso planeta? Donald Trump não compreende, mas o mesmo cosmólogo sabe muito bem se os humanos continuarem a “devorar” os recursos da Terra num ritmo insustentável, se não pararmos a poluição, as mudança climáticas, o degelo das calotas polares e o desaparecimento de florestas, é possível que a chegada de catástrofes se acelere. Assim, Stephen Hawking está convencido que devemos abandonar a Terra e explorar fora é a única salvação. A única forma de salvação? Quer dizer que a Terra está já tão destruída pelos humanos que teremos de sair? Quer dizer que as actividades de protecção ambiental, a poupança de energia e água, o desenvolvimento de energias sustentáveis já não servem de nada, perderam a sua eficácia e já não podem melhorar o ambiente onde vivemos há milhares de anos? Ou seja: destruímos um planeta e mudamos para outro, como quando mudamos de roupa depois de a sujar? Extinguimos os recursos de um e vamos fazer o mesmo no outro? Não sei se a futura tecnologia conseguirá tornar isso real, percebo é que o egoísmo dos seres humanos mostra-se perfeitamente aqui, porque se não alterarem comportamentos que fizeram mal à Terra, continuarão a cometer erros, se nunca pensarem em corrigir mas somente em como fugir, seja qual for o planeta para onde vão, o resultado será igual. Hawking disse que, se nos mantivermos na Terra, os seres humanos correm risco de extinção. Talvez nós já não possamos alterar o “fim do mundo”. Se teme a morte, por que não desacelerar a destruição da Terra, a partir deste momento, e evitar fazer o que é mau para o planeta?
João Luz VozesO Reencarnador [dropcap style≠’circle’]r[/dropcap]e·en·car·na·ção, substantivo feminino. Acto ou efeito de reencarnar. Reassumir a forma humana. O termo, de origem latina, significa literalmente “voltar a entrar na carne”. Pitágoras usava a expressão “metempsicose” quando se debruçava na trigonométrica nova existência. “Metempsicose” resulta da soma do quadrado das partes “meta” (mudar) e “empsykhoun” (introduzir a alma em), para se referir à “hipotenúsica” ideia da transmigração de almas de um corpo para outro. Longe de querer mergulhar no mundo místico das religiões, ou nos domínios do espiritismo, proponho um exercício de esquizofrenia nesta página. Todas as semanas a minha carne receberá a presença de alguém que conte algo sobre Macau e o Mundo. Convido-me a vestir a pele de indefinidos terceiros, a ver a realidade com os seus olhos, a sentir as suas dores, a partilhar as suas alegrias, terrores e esperanças. Esta página destina-se à ocupação post-mortem de uma defunta narrativa, à canalização de espíritos através do poder invocativo das palavras. Sei que vou errar, essa é a única humana certeza que tenho antes de enfrentar esta tarefa. No entanto, comprometo-me, numa espécie de juramento agostiniano, a não perseverar no diabólico equívoco. Confesso que ser outro, representar algo no papel, afigura-se uma aliciante promessa de improváveis aventuras. A reencarnação é, afinal, o labor supremo da imaginação, a via essencial da arte representativa, do teatro, da literatura, do devaneio que faz correr a alma em direcção ao insondável. A derradeira fuga ao ego. Pretendo recorrer, o melhor que conseguir, ao engenho do mimetismo como instrumento em prol da racionalização, da busca da paz trazida pela compreensão, da lucidez que se materializa a partir de um lugar de absoluta e difusa esquizofrenia. O mais afastado possível da segunda vida do perdido Norman Bates e de todos os loucos que habitam a ficção e a realidade. Isto apesar de Macau proporcionar, por razões que desconheço, condições perfeitas para a loucura germinar, como um habitat natural perfeito para o cultivo de um sortido variado de psicopatias. Afinal, todas as terras têm os seus respectivos punhados de loucos, como que um número mínimo requerido de Joanes por unidade geográfica vicentina. A sensação de excesso de demência por metro quadrado em Macau, talvez, se deva ao apertado abraço da densidade populacional, o sufoco metropolitano pode muito bem empolar essa percepção. Erasmo de Roterdão teceu um elogio protestante a esse desígnio da psique humana, como uma forma de tornar Roma mais longe no mapa espiritual. Bem, talvez já esteja a cair no fácil abismo do erro, é muito humanamente possível. Mas hoje, neste meu primeiro acesso, encontro-me destituído de papel a encarar o ainda estagnado carrossel identitário. Um corpo vazio, receptáculo por preencher, como esta e outras tantas futuras páginas. Aqui me apresento, caros leitores, em registo interno, totalmente assumido e nu. O meu nome é João Luz, nasci há 38 anos e 8 meses em Setúbal. Tenho pouco mais de sete meses de Macau e uma sede imensa de clareza e compreensão. Esta é a minha desfloração, a perda da virgindade em matéria de crónicas de opinião assinadas. Espero conseguir expressar a minha percepção da forma mais fiel possível aos personagens que vou representar neste palco de papel. Eles serão o veículo para exorcizar Macau e o Mundo, segundo as minhas lentes, de acordo com o meu palato. A minha pena presta-se a traduzir para palavras as ruelas e os becos da cidade, os fantasmas do Porto Interior, as meninas que mercantilizam deleite, a opulência gorda do poder, o esmorecer de forças dos despojados. Quero abarcar tudo nesta página, torná-la a minha cruz pessoal de reflexão, o derrame de caleidoscópicas miríades de pensamentos no melhor português que conseguir conjurar no mais curto espaço de tempo. Quero o impossível e ser tudo, ao mesmo tempo, já, imediatamente. Anseio com júbilo a entrada em cena da primeira personagem. Já pressinto as pressagiosas pancadas de Molière a ecoar secas e premonitórias num horizonte próximo. Por hoje serei apenas o “reencarnador”, o vazio, o ciclo por completar depois da morte e antes do retorno à vida. Na próxima semana serei outro.
Isabel Castro VozesO dedo mindinho [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é uma impressão. É um facto. Quem vive nesta cidade sabe perfeitamente que, de há uns anos para cá, existe a ideia de que não há propriamente um Governo. Às tantas, esta Macau pós-transição nunca chegou a ter um Governo; foi tendo, isso sim, conjuntos de secretários em torno de uma figura central, o Chefe do Executivo. A diferença estará na liderança. Não sei se é a memória que atraiçoa, por embelezar obrigatoriamente o passado, mas estou em crer que é coisa do passado isso de haver um líder capaz de transmitir a noção de equipa governativa. O que agora temos é uma mão cheia de secretários. São cinco, um para cada dedo, sendo difícil escolher quem está no anelar. Também não é claro quem ocupa o indicativo. Tenho suspeitas sobre quem se retraiu e escolheu o mindinho, um dedo sempre muito disputado nestas lides da governação local, por ser pequeno e aparentemente ninguém dar por ele. Esta mão cheia de secretários faz coisas aqui e ali, não em grupo mas em actos que se me afiguram individuais. Em abono da verdade, diga-se que, num ou noutro aspecto, o que tem sido feito cai bem, apesar de persistirem muitos dos problemas que vinham da mão cheia de secretários precedente. Mas falta o braço, claramente. Não se percebe por onde anda, o que tem feito, a que comandos responde. O imbróglio em torno da Lei de Terras é disto exemplo. Do ponto de vista político, é talvez a maior embrulhada que Macau viveu nos últimos anos. Já não interessam os detalhes de quem disse o quê e quando, se um prometeu e o que veio a seguir não cumpriu. O que importa é o que se tem agora. E o que temos é um sombrio problema de contornos que nos escapam, porque se passam numa dimensão que não é a nossa, e que resultou numa série de actos nunca vistos. Em contas simples, já lá vão três iniciativas de deputados, por norma resguardados na análise de propostas e não proactivos na elaboração de projectos. A primeira intenção foi chumbada e até vinha de nomeado pelo Chefe do Executivo. Da segunda ninguém sabe o paradeiro, se tem autorização para sobreviver ou não; a terceira está em análise mas, aposto dez avos, poucas hipóteses terá de se consubstanciar. Este incómodo legislativo traduziu-se esta semana noutro tipo de acção: nove deputados juntaram-se e foram falar com o Chefe do Executivo para apresentarem uma proposta concreta sobre o caso que gerou toda a polémica em torno da Lei de Terras. A resposta chegou um dia depois: o Governo vai pensar. A réplica surpreendeu-me, admito, não pelo conteúdo, porque todos nós sabemos que o Governo pensa muito, mas pelo simples facto de existir, vinda de uma estrutura que é muda quando lhe convém. E convém-lhe quase sempre. Não tenho particular piedade dos concessionários que nada fizeram em tempo útil nos terrenos que lhes foram sendo confiados e, entretanto, retirados. Já compreendo bem a indignação de quem passou anos em vão à espera de respostas das Obras Públicas, que lavam as mãos do problema, apesar de ser reconhecida a inércia em que mergulharam no seguimento do drama Ao Man Long. Compreendo ainda melhor aqueles que investiram o que tinham – e o que pediram ao banco – e ficaram a ver navios, por terem confiado que as casas crescem como as árvores crescem e as ervas crescem, sobretudo as daninhas. Perante esta embrulhada, restam duas hipóteses: alguém está à espera de um sinal divino para que tudo se resolva ou alguém está à espera de 2019 para que esta trapalhada deixe de ser sua. Em ambos os casos, diz muito sobre o modo como hoje a cidade é gerida. Um braço, uma mão cheia de gente, pedaços de carne que se mexem sem que haja um corpo visível.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesBrexit, nacionalismo e anti-migração “Trump was a supporter of Brexit- the proposition that the UK should leave the EU – and had accurately proclaimed during his campaign that Brexit was a sign that he would win, too. The voters were in revolt against their traditional rulers. The election in the US was so similar to the Brexit campaign; the result was always going to be the same, too: victory for those on the outside.” “The Rise of the Outsiders: How Mainstream Politics Lost its Way” – Steve Richards [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] referendo de 2016 sobre a saída ou permanência na União Europeia (UE) deveria oferecer uma resolução final ao debate sobre a Europa, que dividiu os partidos políticos da Grã-Bretanha durante décadas. No entanto, ao invés de pôr fim ao debate, os resultados das eleições gerais, de 8 de Junho de 2017 demonstraram que o “Brexit” continuará a ser um factor de divisão e influência na política britânica dos próximos anos. A palavra “Brexit” continua a ser usada como uma abreviatura para descrever o voto da Grã-Bretanha para abandonar a UE, em 23 de Junho de 2016 e activar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, a 29 de Março de 2017, tendo o significado do termo sido objecto de reflexão. A primeira-ministra britânica no discurso proferido na Conferência do Partido Conservador, em Birmingham, a 2 de Outubro de 2016, afirmou que o significado do termo era simples, pois “Brexit significa Brexit”. O objectivo desta divisa era duplo. Por um lado, Theresa May claramente afirmou a sua intenção de retirar o Reino Unido da UE. Por outro lado, a sua mensagem “Brexit significa Brexit” procura eliminar todas as sugestões de que haveria um segundo referendo. O andamento rápido para o momento actual é difícil de avaliar se qualquer uma dessas mensagens intencionadas atingiu o público-alvo. Todas as situações consideraram a incerteza sobre o que esta palavra realmente significa, e que ainda é generalizada. O resultado confuso do referendo, as múltiplas possibilidades e tecnicismos do “Brexit” e o prazo prolongado significam que, tanto para o Reino Unido como para a UE, as relações futuras se assemelham a cinquenta tons de cinza, ao invés de alguma divisão estabelecida, a preto e branco. O objectivo dos analistas acerca do tema não é fazer um balanço das extensas prosas em torno do que significa o “Brexit”. Mesmo após os resultados das eleições gerais de 8 de Junho de 2017, esta palavra significa muitas realidades para pessoas diferentes. Não tem uma iteração singular. Não tem voz unificada. Pelo contrário, esse termo está em evolução, pois desde o referendo de 2016, ouve-se falar de um “Brexit duro”, um “Brexit suave” e um Brexit “áspero”, para citar apenas alguns rótulos linguísticos frequentemente associados a este termo. À medida que as tentativas da primeira-ministra britânica de recuperar o equilíbrio depois de perder a maioria no Parlamento se produzem, é motivo para especular que não tem autoridade para garantir um “Brexit duro”. Pelo contrário, é de esperar que a aliança com o “Partido Unionista Democrático (DUP na sigla inglesa) ” da Irlanda do Norte signifique o surgimento de estratégias de negociação alteradas e mais suaves. É difícil avaliar os efeitos que os resultados das eleições gerais terão na posição de negociação do Reino Unido com a UE. À medida que os jogos de linguagem do “Brexit” continuam a acumular, é importante não perder de vista um argumento omnipresente que os mantém juntos. Para evitar tal descuido, deve-se demonstrar que a securitização da migração continua a ser uma âncora linguística constante, em relação às vagas de incerteza criadas pelo “Brexit”, e das consequências das eleições gerais de 8 de Junho de 2017, ou seja, a argumentação usada pelos actores políticos quando falam de segurança para enquadrar os migrantes como uma ameaça existencial para o país e legitimar o uso de medidas extraordinárias. O segundo objectivo é considerar visões alternativas do “Brexit” oferecidas por meios de poder concorrentes. Em particular, é de destacar os movimentos opostos à securitização, realizados pelo gabinete do Prefeito de Londres, através da campanha “London Is Open”. O slogan “Vote Leave, Take Back Control” adoptado pelos chamados “Brexiteers”, reflecte o que exactamente está em jogo, pois durante a acumulação dos argumentos do referendo de 2016, afirmou-se que o “Brexit” salvaria o país de despender enormes somas de dinheiro, em vez de aforrar os bolsos dos burocratas em Bruxelas, ou pagar o cheque em branco da crescente crise de refugiados. Outros “Brexiteers” observaram rapidamente que o “Brexit” iria habilitar o governo a recuperar a autonomia completa sobre as leis e regulamentos nacionais. A campanha ” Vote to Leave “, em vez disso, assegurou aos eleitores que o “Brexit” faria o Reino Unido recuperar o controlo completo das fronteiras e, portanto, uma maior capacidade de regular a migração. O “Vote to Leave” defendia que se votassem a favor do “Brexit”, conseguiriam economizar trezentos e cinquenta milhões de libras por semana, que podiam ser gastos em prioridades, como o “Sistema Nacional de Saúde”, escolas e habitações, e em um mundo com tantas ameaças, é mais seguro controlar as fronteiras e decidir por si quem pode entrar no país, e não ser governados pelos juízes da UE, bem como controlar a imigração e ter um sistema mais justo que acolhe pessoas no Reino Unido, com base nas aptidões que possuem, e não no passaporte que têm, e iriam comerciar livremente com todo o mundo, dado que a UE não permite a assinatura dos acordos comerciais com aliados chave como a Austrália e Nova Zelândia e economias em crescimento, como a Índia, China e Brasil e seriam livres para aproveitar novas oportunidades, que significam novos empregos e poderiam fazer as suas leis, por pessoas que pudessem escolher e retirar, o que seria mais democrático. Se votassem por permanecer na UE, esta alargar-se-ia, o que representaria a adesão de cinco países como a Turquia com setenta e seis milhões de habitantes, a Sérvia com sete milhões e duzentos mil habitantes, a Albânia com dois milhões e oitocentos mil habitantes, a Macedónia com dois milhões e cem mil habitantes e o Montenegro com seiscentos mil habitantes. A UE custaria cada vez mais para o Reino Unido. Se a UE custa actualmente os referidos trezentos e cinquenta milhões de libras semanalmente, que seriam suficientes para construir um hospital para o “Sistema Nacional de Saúde” semanalmente, sendo que o Reino Unido recebe menos de metade desse dispêndio e não se pronuncia acerca da forma como os fundos foram gastos, bem como a imigração continuaria fora de controlo, pois quase dois milhões de pessoas vieram para o Reino Unido da UE nos últimos dez anos. É de imaginar o que seria nas próximas décadas, quando países novos e mais pobres aderissem à UE. O Reino Unido teria de continuar a resgatar o Euro, pois os países que o usam já têm uma maioria construída. Teriam de pagar a conta pelo fracasso do Euro. O Tribunal Europeu continuaria a monitorizar as leis, dado que controla tudo, de quanto impostos pagam, quem podem deixar entrar e sair do país e quais os trâmites. Escusado será dizer que essas linhas de argumentação não apareceram do vazio. Os mais bem entendidos na política britânica devem estar profundamente conscientes de que securitização da migração não é um fenómeno novo no Reino Unido, nem é uma característica única do “Brexit”, mas pelo contrário, a sua base foi esculpida pelo ex-primeiro-ministro David Cameron, e pelo seu governo muito antes do termo “Brexit” ter sido inventado. É de recordar do furor político criado pelas observações de David Cameron, a 30 de Julho de 2015, aquando da “Crise de Calais”, referindo-se a “enxame de migrantes” que foi condenada e considerada desumanizadora. Os comentários de Theresa May no seu papel como Secretária do Interior, também, podem sugerir a mesma condenação, quando a 6 de Outubro de 2015, afirmou que a imigração prejudicava a coesão social, e a 19 de Maio de 2017, os Conservadores afirmavam que os altos níveis de imigração tornavam impossível uma sociedade mais coesa. É de considerar que essas tramas culminaram na construção de políticas governamentais, que deliberadamente visavam a migração líquida que ainda estão vivas actualmente. Torna-se claro que a liderança de “Brexiteers” soou forte e orgulhosamente a partir dessa lista de hinos securitizada ao longo do referendo de 2016. O cartaz “break point” anti-migrante, com a imagem de Nigel Farage, que foi líder do “Partido de Independência do Reino Unido (UKIP na sigla inglesa)”, de 5 de Novembro de 2010 a 28 de Novembro de 2016, que defende ideais conservadores e eurocépticos, mostra uma fila de migrantes e refugiados e incita ao ódio racial. Esse cartaz pode ser visto como um acto de linguagem visual que mobilizou, reforçou e acelerou activamente as intrigas preexistentes, que enquadraram os migrantes como uma ameaça existencial para o Reino Unido. A imagem na opinião de muitos constituiu um discurso de ódio e fazia eco da propaganda nazi. Se considerarmos as consequências dessas intrigas securitizadas e imagens, damos conta que um céptico pode perguntar, porque as devemos considerar se os migrantes foram securitizados todo o tempo que o ex-primeiro-ministro David Cameron exerceu funções? Porque devemos chamar a atenção de Farage e do seu cartaz anti-imigração? Um ano após o referendo da UE, não é o momento de aceitar o consenso anti-imigração no Reino Unido e não nos devemos preocupar mais com a luta contra os difíceis negociadores da UE que aguardam o Reino Unido? Embora seja tentador evitar que essas questões sejam inconsequentes, é de argumentar que o discurso sobre a imigração que prevaleceu tão fortemente durante o referendo da EU, ainda exige um exame por dois motivos. O primeiro, porque o plano dessas tramas de securitização semeadas antes do voto do “Brexit” ajudam a explicar, porque Theresa May está disposta a retirar o Reino Unido da UE, mesmo que isso signifique afastar o país do mercado único, mesmo que o possa prejudicar grandemente. Se analisarmos os principais discursos que pronunciou desde que se tornou primeira-ministra, é claro que Theresa May colocou a soberania nacional acima de tudo, e até ao presente absteve-se de negar categoricamente que existe a necessidade da Grã-Bretanha manter o acesso ao mercado único e aos passaportes comunitários em matéria de prestação de serviços de investimento financeiros ao abrigo da “Directiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros (2004/39/CE – DMIF) ”. A prática revelará o prejuízo futuro quanto a estas matérias, e o efeito certamente serão o suicídio político e comercial. Poderá existir um suspiro colectivo de alívio e talvez possa aparecer um final alternativo depois de tudo? Talvez a securitização da migração possa ser desfeita para prevenir tais eventualidades extremas? Os “Brexiteers” alcançaram o seu objectivo e podemos ver um amolecimento da sua posição anti-imigração? É entendimento que esses cenários são improváveis de acontecerem. A falta de clareza sobre os direitos e o estatuto dos cidadãos da UE serve como uma recordação importante de que Theresa May não mostrou sinais de atenuar a securitização de contextos de migração, durante as negociações que começaram a 19 de Junho de 2017. A UE considera como temas fundamentais e prioritários, o estatuto dos cidadãos prejudicados pelo “Brexit” , ou seja, os europeus que vivem no Reino Unido e os britânicos que residem nos vinte e sete Estados-membros, descrever as contribuições financeiras assumidas pelo Reino Unido enquanto membro do bloco comunitário e conhecida como factura do divórcio, e o estatuto da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. A primeira-ministra britânica pretende fechar as portas do Reino Unido ao princípio da liberdade de movimento que está no centro do projecto constitutivo da UE. Deste ponto de vista, a probabilidade de um “Brexit duro” se materializar no futuro próximo parece crescer em vez de diminuir. Embora os resultados das rápidas eleições que Theresa May convocou tenham lançado uma luz caótica sobre as negociações do “Brexit”, não é sensato esperar que renuncie à sua promessa de retirar o Reino Unido do mercado único. Também não é óbvio que a UE tenha a intenção de repensar este ponto. É de observar que de uma perspectiva europeia, não importa se o Reino Unido tem um governo minoritário ou não, pois depende de como essas negociações desenrolarem e quais as cartas estratégicas que serão colocados na mesa de negociações, sendo possível que o contexto da securitização ressurja com vingança em vez de desaparecer. A segunda razão pela qual é necessário (re)considerar as questões descritas é porque existem argumentos alternativos a serem considerados quando viajamos pela estrada com destino ao “Brexit”. Se voltarmos atrás na revisão dos contextos secuturizantes que saíram do governo e das atitudes políticas que envolveram as eleições gerais de 2017, damo-nos conta de uma questão que muitas vezes não é formulada. Qual é a alternativa para o “Brexit”? Esta questão estava visivelmente ausente da campanha. Ao dar um passo para trás para encontrar uma resposta adequada, foi refrescante descobrir que existem movimentos desidratadores em jogo. A resposta da capital do Reino Unido ao “Brexit” com a campanha “London Is Open”, liderada pelo prefeito de Londres, Sadiq Khan, reflecte um contraste deliberado com o enquadramento descrito. As mensagens de interiorização, nacionalismo e anti-imigração do governo, e as do município, foram refutadas intencionalmente e publicamente por uma nova campanha sob a bandeira de “Londres é aberta”. A campanha foi lançada a 16 de Julho de 2016, menos de um mês após os resultados do referendo do “Brexit”, com o objectivo de mostrar que “Londres está unida e aberta para os negócios e para o mundo, após o referendo da UE”. O pequeno vídeo produzido pelo gabinete do Prefeito tornou-se viral, poucos dias após o seu lançamento, enquanto os cartazes que reforçavam a mensagem, eram colocados no metro de Londres. A campanha defende não apenas o relacionamento de Londres com a Europa e os cidadãos da UE, mas também a diversidade global da cidade com a garantia de que continuaria a ser bem-vindo e celebrado em Londres. A ênfase da campanha na inclusão global, em vez de meramente europeia, confirma a noção de que o “Brexit” não se trata apenas de melhores negócios ou de retorno do controlo da UE, mas tem sido sobre imigração, identidade, raça e história.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCrises [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]inguém gosta muito da ideia de que está a envelhecer. A determinada altura das nossas vidas recusamos aniversários porque são a lembrança de que estamos a contabilizar anos nos nossos ossos, músculos e pele. A meia idade talvez seja dos momentos mais difíceis: lembramo-nos que a melhor metade das nossas vidas já se foi e que a próxima provavelmente será de declínio. Daí que haja um momento de profunda confusão onde o passado e o futuro se encontram, que é como quem diz, a ‘crise de meia idade’. As consequências para a forma como nos vemos sexual e romanticamente, são tremendas. Vemo-nos menos desejáveis e, sexualmente, começamos a encontrar outro tipo de obstáculos ao prazer pleno, inerentes ao envelhecimento do corpo. Estes são normais momentos de transformação física e psicológica que têm que ser trabalhadas de forma individual ou em casal. Muitas vezes os divórcios coincidem com estas alturas – Por alguma razão será, não é? As nossas identidades têm que se ajustar a uma realidade do envelhecimento… numa sociedade que preza o culto da juventude. Ninguém ensina ninguém a envelhecer graciosamente, a sociedade ensina-nos que temos que controlar a corrida do tempo de todas as formas possíveis. Tanto os homens como as mulheres nestas condições de meia-idade, e particularmente, no estatuto de recém-solteiros, começam a perceber que não é tão fácil engatar. As mulheres temem confirmar que a sociedade já não as acha bonitas como antigamente e os homens procuram desesperadamente provar que ainda têm controlo das suas vidas amorosas e sexuais. Eu sugiro que as tentativas de adaptação serão diferentes dependendo do género a que nos referimos. Por uma questão prática, e não factual, vamos pôr uns homens num saco estereotípico e as mulheres noutro. A crise de meia idade masculina vai ter a minha particular atenção. As tentativas de lidar com uma auto-estima estilhaçada passam por comprar carros desportivos e ‘experimentar’ coisas novas. Coisas novas que passam por fazer novos piercings, começar frequentar saídas nocturnas e dançar ao som do novo milénio, com os mesmos passos de dança dos anos 90. E sim, esta é uma fase de vida que já foi gozada vezes sem conta na cultura popular, mas se me permitem o tom pessimista, acho muito triste que a ansiedade e depressão sejam alimentadas pelo simples reconhecimento de que ninguém vai para novo. O envelhecimento é um facto irrefutável da condição humana, que se tentarmos lutar contra ele, o resultado será longe de positivo – vai ser destrutivo. Entretanto aturamos as dificuldades psico-emocionais de alguns homens que não conseguem olhar para os desafios da outra metade da vida de forma saudável. Ora, todos nós passamos por momentos difíceis, mas estas crises mostram-se particularmente relacionais e desenvolvem-se nas expectativas dos papéis de que homens e mulheres desempenham. Se me permitem a queixa, homens com quase 50 anos que procuram jovenzinhas para puderem saciar os desejos de juventude é um cliché daqueles que já me irrita. A semana passada tive a oportunidade de explorar a ideia de que o amor não escolhe idades e acredito genuinamente nisso. Mas também sei que certas dinâmicas relacionais dão espaço para perpetuar estas ‘crises’, particularmente masculinas, que evitam agarrar pelos cornos a ideia de que estão a ficar mais velhos, mais feios e mais flácidos. Mas se há quem consiga viver em negação é o homem que consegue seduzir mulheres mais novas. Não há nada como a fantasia de que o tempo na verdade não passa, e que a continuidade ou descontinuidade desta dimensão, é irrelevante.
Leocardo VozesVocês em Macau [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistem inúmeros dogmas que foram criados sobre a vida dos portugueses e outros expatriados em Macau e que, para quem não acompanhou a evolução da nova realidade, continuam actuais, e com os quais eu próprio tomo contacto cada vez que vou a Portugal de férias – e vai sendo cada vez menos. Não foram uma, nem duas, nem três as vezes que de repante salta um comentário do tipo “Vocês em Macau…”, seguido de qualquer coisa do género “…têm todos um rolls-royce na garagem”. Não é bem assim, mas não anda muito longe. Assim decidi compilar uma série de ideias feitas que muitos portugueses da metrópole ainda têm sobre nós, os expatriados, às quais convém fazer um “update”. “Vocês em Macau” têm facilidade em arranjar emprego, sendo portugueses. Já foi assim, mas vai sendo cada vez menos verdade que a nacionalidade portuguesa é meio caminho andado para garantir um emprego em Macau. Antes de 1999 bastava ser cidadão nacional português e obter uma declaração de que residia no território há mais de três meses confirmada por duas testemunhas para se obter o BIR, mas hoje em dia não só os critérios são mais rígidos, mas há também uma demora processual na autorização da residência que ninguém consegue explicar, e nem as autoridades justificam – é um mistério. “Vocês em Macau” não se pode dizer exactamente que “trabalham”, quer dizer, “vão ao emprego”… Essa é talvez uma das maiores diferenças em relação ao período da administração portuguesa. Trabalha-se sim e quem está no sector privado nem pense “encostar-se à sombra da bananeira”. Na hora de distribuir as atribuições, os portugueses não são menos que os outros. “Vocês em Macau” têm como que “um desconto”, ao contrário dos chineses ou de outros estrangeiros. Tal como na presunção anterior a esta, nada disso. Quem está com contrato e “pisa na bola” vai parar ao olho da rua com a mesma facilidade, seja ele português, chinês, italiano ou outro qualquer. Chefes chatinhos como aí também há por estas bandas, com a agravante de ainda precisarmos de atender ao aspecto cultural, e para quem não domina a língua, pior ainda. “Vocês em Macau” ganham bem… em “pataquinhas”. O mito da árvore das patacas é uma coisa do passado. Essa proverbial árvore, se realmente existiu , já há muito que secou; é verdade que se ganha melhor que em Portugal em algumas profissões, mas as despesas são muito mais que no passado. A habitação, por exemplo, tem um peso na ordem dos 30-40% da despesa total, ou mais para quem opta por viver sozinho ou dividir a renda por menos pessoas. Quem tem casa própria ou atribuida pela empresa onde trabalha está mais à vontade, mas não deixa de sentir a subida galopante da inflação em muitos dos bens de primeira necessidade. “Vocês em Macau” têm uma vidinha tranquila. É tudo perto. Sim, de facto é possível a muitos (como eu próprio) deslocar-se a pé para o emprego, apesar de já ter sido mais agradável, quando não era inevitável andar aos encontrões e aos empurrões, já para não falar do calor e da humidade. Para quem precisa de apanhar transporte ou conduzir, as distâncias também não são as mesmas do que entre Lisboa e a Margem Sul, por exemplo, mas a qualidade do serviço de transportes deteriorou-se, e o trânsito passou a ser um dos problemas que demoram a resolver. “Vocês em Macau” não precisam de se preocupar com a questão da segurança, dos assaltos… Apesar dos números da criminalidade terem vindo a aumentar, ainda é possível andar a qualquer hora e em qualquer lugar de Macau sem recear os assaltos, pois aqui não existem bairros “problemáticos”, como em Portugal. No entanto começam a surgir certas preocupações com algumas liberdades que em Portugal são praticamente “intocáveis”. Ah sim, e as penas pelos delitos relacionados com droga são muito mais pesadas que em Portugal – aqui não há lugar a certas “brincadeiras”. “Vocês em Macau” têm os casinos, que resolvem todos os problemas de fundo, enquanto aqui os políticos são uns aldrabões e não mexem um dedo. Os casinos são uma fonte de receitas que muitas economias invejam, sem dúvida, especialmente as micro-economias, como é o caso de Macau. O problema é que não se sabe muito bem por onde andam essas receitas, que em tempos batiam recordes atrás de recordes, e de como não estão a ser usadas para resolver problemas de longa data que têm vindo a agravar-se cada vez mais. “Vocês em Macau” têm uma data de países à volta, praias paradisíacas, ilhas de sonho… é só passear! É verdade e é muito mais fácil a alguém ir passar um fim-de-semana prolongado à Tailândia ou às Filipinas do que a um português fazer o mesmo em Bruxelas ou Amesterdão, que ficam mais ou menos à mesma distância de um voo. E é muito mais barato, também. Mesmo assim não se queixem, pois se vivem no litoral estão a meia-hora de carro de qualquer praia decente, enquanto para nós é necessário apanhar um avião. “Vocês em Macau” agora queixam-se tanto… então o que estão ainda aí a fazer? Parece uma provocação ou uma pergunta parva, mas é pertinente. Há os que se fartaram e se foram embora, há os que não gostam mas não têm outra escolha porque em Portugal têm as portas fechadas, e há os que mesmo tendo a opção de regressar, criaram aqui raízes, casaram com pessoas de cá, tiveram filhos e fazem aqui a sua vida. E para esses “queixar-se” quando as coisas correm mal é o mesmo que toda a gente faz quando quer o melhor para a si e para os seus. Esclarecidos? Mas melhor que ouvir falar, e ainda por cima confiar em testemunhos que nada têm ver com o Macau do presente, era vir cá ver como isto é. Se não vos dá jeito, se é longe, caro, não vos interessa, ou não conhecem aqui ninguém e portanto acham que não vale a pena, paciência, só que antes de afirmar com essa dose de certeza que aqui é uma espécie de “mundo do faz-de-conta”, o melhor é informarem-se primeiro. Valeu, ó “vocês em Portugal”?
Carlos Morais José A outra face VozesA liberdade prometida [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos parecem muito tempo mas estes que passaram desde a transferência de soberania de Hong Kong até ao presente fugiram num ápice. Para isso terá contribuído certamente o desenrolar compulsivo, quase maníaco, dos factos. Estes, de tal modo se sucederam, que por vezes se atropelaram e mutuamente atiraram para o caixote do lixo da História. O século XXI tem sido fértil em acontecimentos, em momentos que, noutras eras, teriam sido incontornáveis, disruptivos. Agora não: existe esta sensação de que a vida continua igual, orientada pelos mesmos tiques pois a humanidade não consegue viver no sobressalto diário que os media hoje proporcionam. Insinuou-se a gripe das aves, eclodiu a crise asiática, a mãe pátria salvou as finanças da praça financeira. Nos EUA ruíram as torres-gémeas, semeou-se a guerra de novo pelo mundo. Cresceu desmesuradamente Macau, o fosso entre ricos e pobres alargou-se consideravelmente na ex-colónia britânica. Veio outra crise, de um tamanho tal que a Grande Depressão parecia agora ínfima. Em Hong Kong, os guarda-chuvas amarelos ocupavam durante meses as ruas e impediam o sufrágio universal condicionado. Muitas vezes me pergunto se, caso fosse realmente o interesse de Pequim controlar os assuntos de Hong Kong, Joshua Wong e outros activistas radicais não seriam seus agentes. Isto porque, de modo quase perfeito, impediram que a RAEHK desse um passo fundamental para uma realização democrática mais completa: o sufrágio universal condicionado. Como se sabe, a proposta de Pequim passava primeiro por admitir uma sufrágio universal. E, em segundo lugar, que os nomes merecessem a sua aprovação, isto porque, segundo o léxico oficial, teriam de ser patriotas. O primeiro aspecto não é de desprezar. Um sufrágio universal é algo de onde dificilmente se recua. E, correndo tudo bem, ou seja, se Hong Kong não afrontasse a China, é de admitir que a cidade poderia gozar de um sufrágio sem condicionantes dentro de uma década. Assim não o quiseram os activistas dos guarda-chuvas amarelos. Que interesses realmente defendem é difícil de saber, mas os resultados que conseguem vão pouco além de um acentuado gosto pela vitimização mediática. E, claro, de um retrocesso no processo democrático. Os activistas dos guarda-chuvas amarelos queriam, num golpe, passar de um regime colonial, onde a representação democrática eleitoral directa era mais fraca do que, por exemplo, em Macau, para uma democracia eleitoral de modelo ocidental. Não aceitaram um passo intermédio e no mesmo gesto queimaram uma série de pontes que permitiam um diálogo contínuo entre as partes. O comportamento dos deputados eleitos, quando do juramento, foi lamentável. Traíram o país ou enxovalharam-no, pois mesmo não se sentindo chineses, nem por isso deixavam de estar na China e certas atitudes não são admissíveis; mas sobretudo traíram os seus eleitores que assim se quedaram sem representantes no parlamento. Finalmente, com tanta fanfarra e pouca votação, proporcionaram a Pequim o congelamento sine die das reformas democráticas. A democracia é complicada em Hong Kong não por causa da liberdade de expressão, dos direitos humanos ou dos animais. A questão é, claramente, outra. O receio de mudança, de perda de controlo, existe mais do lado dos homens fortes da cidade, do que por parte de Pequim. Os tubarões do imobiliário e da navegação, os mestres das finanças, os donos dos grandes negócios, conluiados com interesses no continente, esses serão os que sobretudo receiam uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos dividida, resultado eventual do voto popular. Em Hong Kong, a estrutura económico-política é ainda herdeira dos impérios, chinês e inglês. O maoísmo vizinho pouco ou nada a perturbou. É certo que, apressadamente e à última da hora, os ingleses lembraram-se de inocular o vírus dos gritos pela “democracia” e “liberdade”, depois de 140 anos de feroz garra colonial sobre a população chinesa da cidade. Ainda nos 70 Bruce Lee destruía, num dos seus filmes, uma placa onde se lia “Proibida a entrada a chineses e a cães”. É também por isso revoltante ver bandeiras britânicas nos protestos do 1 de Julho… O despertar tardio dos britânicos para a democracia em Hong Kong retirar-lhes-ia a legitimidade que a China lhes concedeu com a assinatura da Declaração Conjunta. No entanto, também graças a este documento (para além, creio, da própria vontade de Pequim), a Lei Básica não deverá sofrer alterações que tornem inoperacional o segundo sistema. E o Reino Unido tem o dever de olhar para o que acontece e verificar o cumprimento dos acordos, pelo menos do que constitui o seu espírito mais íntimo. A China, como mãe-pátria, tem o dever de não assustar os seus filhos, sobretudo quando isso não parece de todo necessário, como no caso dos livreiros. Por Macau ainda nos banhamos na liberdade prometida.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesCasas sem tecto [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] jornal “Exmoo” de Macau publicou recentemente um estudo onde se demonstrava que 60% dos jovens não têm intenção de comprar casa própria. O valor médio das casas ronda actualmente os 2 milhões e 125 mil patacas. Estima-se que para obter essa quantia os jovens precisem de cerca de sete anos de poupanças. Esta estimativa é feita a partir de um salário de 19.000 patacas mensais, que permitiria uma poupança de 9.500 patacas/mês (metade do salário), logo o valor da casa só poderia ser conseguido num período de sete anos. O estudo também apontava as dificuldades decorrentes de não se possuir casa. O ditado “sem casa, não há casamento” é muito antigo. No entanto, há quem rejeite esta ideia, afirmando que, se fosse verdade, só os ricos se casavam. Mas independentemente da opinião de cada um, a questão da habitação é um dos problemas sociais mais prementes de Macau. É inegável que o elevado custo das casas provoca inúmeros problemas sociais, como por exemplo o casamento tardio. O casamento tardio provoca a paternidade tardia. Se uma mulher planear ser mãe aos 35 anos, ou mais, estará a entrar num período menos fértil e a enfrentar uma gravidez de maior risco. Os problemas para a saúde da mãe e do bebé aumentam. Mas para além desta questão, temos a considerar os problemas financeiros decorrentes do elevado custo das casas. O estudo demonstra que em média as pessoas levam 17 anos a pagar a sua habitação, consumindo nesta despesa metade do seu ordenado. É evidente que se mais de 40% do rendimento familiar for gasto com os pagamentos da casa, a sua qualidade de vida será seriamente afectada. A casa passa a ser um fardo e não uma fonte de prazer. E é preciso não esquecer, que estes cálculos não incluem os juros cobrados pelo Banco. É muito fácil encontrar pessoas que levam 20 a 30 anos a pagar as prestações das suas casas. Nestes casos passam praticamente a vida inteira a despender metade dos seus rendimentos só com as despesas de habitação. Mas, mesmo depois do pagamento ter sido efectuado na íntegra, a história não chega ao fim. Se o casal tiver tido apenas um filho, depois da morte de ambos, o filho herdará a casa. Terá, portanto, a felicidade de não ter de vir a passar pelo que os pais tiveram. Mas se a família tiver mais do que um filho, aqueles que não herdarem a casa vão conhecer o mesmo calvário. O problema da habitação vai transitar para a geração seguinte. Devido à premência desta questão, o estudo sugere ao Governo algumas soluções. É preciso implementar um sistema para “facilitar a compra”. Quando o Governo decide vender um terreno, o contrato celebrado com a construtora deverá prever uma percentagem de fogos para jovens que vão comprar casa pela primeira vez. Se estas casas forem vendidas posteriormente, a venda só poderá ser feita a naturais de Macau. Obviamente que é uma boa medida porque permite que mais residentes, sobretudo jovens, possam ter casa própria. Se acreditarmos que a família é a base da sociedade é bom que façamos o possível para protegê-la. As medidas para “facilitar a compra” garantem um certo número de casas aos naturais de Macau. Mas se os preços continuarem elevados, o problema não se resolve. Disponibiliza-se a propriedade, mas não o dinheiro. Será bom que o Governo crie outras medidas para ajudar os jovens. O sistema da “Habitação Económica” é o melhor para a juventude. Este sistema permitia que o Governo vendesse casas a baixo preço. Ser-se natural de Macau era a primeira condição para a compra. A segunda condição implicava que se tratasse de uma primeira compra de casa. A terceira estabelecia o impedimento de venda durante um período de 16 anos. É uma pena que, depois de 2013, nunca mais se tenham vendido casas ao abrigo deste sistema. O estatuto que regula os rendimentos do Governo de Macau é diferente do que regula os rendimentos do Governo de Hong Kong. O segundo depende em grande parte dos lucros da venda de terrenos, ao passo que o primeiro depende sobretudo dos lucros da indústria do jogo. Assim, no caso de Hong Kong, se os preços dos terrenos baixarem, os lucros do Governo vão por igual caminho. Como em Hong Kong a margem que o Governo tem para lançar novos impostos é apertada é improvável que surjam novas taxas que contrabalancem as perdas provocadas pela eventual baixa do preço dos terrenos. Assim sendo. o custo das casas na cidade não deverá diminuir nos tempos mais próximos. No entanto, a situação em Macau é diferente. O facto de não ter na transacção de terrenos a sua principal fonte de rendimento dá ao Governo de Macau mais liberdade para fixar um preço para a venda de propriedades. O Governo de Macau tem, portanto, mais flexibilidade para criar um tecto para a venda de casas. O elevado preço da habitação em Macau é um problema que tem de começar a ser solucionado o mais breve possível. Se os jovens não tiverem casa própria, o sentimento de pertença a Macau diminui. Para além disso, sem controle dos preços, os proprietários de casas e terrenos enriquecem cada vez mais, provocando um fosso crescente entre pobres e ricos. E, obviamente, isso será péssimo para a sociedade em geral. A lei tem mecanismos que permitem a compra de casas ao abrigo do sistema da Habitação Económica e esta é uma das melhores ferramentas para resolver o problema habitacional em Macau. Não é só através de decretos que estas questões se solucionam.
Isabel Castro VozesCom uns trocos no bolso [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é difícil perdermos a noção das coisas. Vivemos numa bolha com demasiadas especificidades para conseguirmos espreitar além das paredes. Vivemos a um ritmo que não nos dá tempo para parar, escutar e atravessar para outros lados. Por isso é que andamos em círculos, muitas vezes às escorregadelas, mas sempre a acelerar. Macau é uma terra de ilusões, de sensações, de milhões, de excessos, de excessos excessivos, onde o tempo passa mais depressa do que a nossa capacidade de fazermos contas à vida. No meio deste turbilhão onde toda a gente tem tudo, achamos sempre que ainda não temos aquilo de que precisamos. Os que têm tudo também querem mais, querem o dobro do que têm, como se fosse possível duplicar o infinito. Descobrem fórmulas de multiplicação de fortunas que não vêm nos manuais de economia. Das finanças sentimentais ninguém trata, porque não há tempo e, colocando tudo o que é de relevo em perspectiva, as almas ficam tão longe que mal se vêem. Os zeros é que contam. Não é fácil mantermos os pés nesta terra, nem aterrarmos noutra qualquer. Sobrevoamos a vida sem pousarmos em nada, atarefados que estamos em afazeres que são os mais importantes, os mais decisivos, os mais inúteis também, mal o dia acaba e outro começa, com cinco minutos de intervalo para descanso dos pés cansados. Tudo mudou muito nos últimos tempos, sabemos bem, apesar de não sabermos para onde vamos nesta centrifugadora de tempo e de energia. Tudo mudou muito e mais vai mudar, sabemos bem também, nós que começamos a olhar com normalidade para tudo aquilo que os outros fazem, todas as extravagâncias, todos os inusitados pedidos, todas as estranhas exigências. Já não nos espantamos com este mundo, como se a ausência de espanto fosse a normalidade. Queiramos ou não, todos nós fomos sugados pelo dinheiro que nos paga a casa, o carro, as jóias, as refeições com estrelas e sem estrelas, os ovos estrelados, o arroz com vegetais, o peixe cru raro e a sardinha na brasa. Só no mundo da normalização da invulgaridade é que é normal comprar casas com três quartos, sem despensa, por dez milhões. Ou palácios por 70. Compram-se coisas aos milhões como quem muda de camisa. Ou de gravata. Assim como é normal mudar de roupa, também é normal tirar notas da mala, passar cheques, fazer transferências e comprar imóveis classificados em terras distantes. É tudo demasiado normal. A Fundação Macau também compreende este espírito de normalidade. E alinha nele sem qualquer problema, sem qualquer desfaçatez, com toda a sinceridade de quem tem bem assimilado este modo de vida abastado, alargado, despreocupado, por ser aos milhões. Outra coisa não conhece. Porque tem muitos milhões, mandatou um dos seus curadores para que este estudasse a aquisição de um determinado palácio lisboeta que pretendia comprar. Por coincidência, o curador é um empresário com olho para o negócio e com capacidade para cheirar a concorrência a quilómetros de distância. Por coincidência também, o mandatado anda com 65 milhões no bolso e não é pessoa para ficar à espera de convocatórias, reuniões e actas. Porque é um businessman, faz business. Compra o palácio em perspectiva, chega a casa e comunica o facto, os seus pares batem palmas ao feito, fazem-se poucas contas aos trocos, gastam-se mais uns milhões em avaliações e estudos ao que já se pretendia comprar antes de ser comprado, e está feito o negócio. Não se falou dele porque não calhou. Numa terra em que os milhões andam aos pontapés, tanto se lhe dá, como se lhe deu. E depois ninguém tem nada que ver com isso. Também já nos habituámos a que nos normalizem os passos. Como se as tecnologias não bastassem para que se saiba se vos escrevo de Macau, da Taipa ou da Papua Nova Guiné. Todos sabemos onde andam uns e outros. Mas há quem queira ir mais longe e precise de compreender o que se faz entre este passo e o seguinte, o que se lê entre este livro e o próximo, a quem se sussurra, com quem se grita, com quem se viaja, qual é o último pensamento que nos abraça antes de o sono nos apagar. Estranha normalização esta que não nos faz gritar, espernear, fugir a sete pés, agarrar a vida com as duas mãos. Não é difícil perdermos a noção das coisas quando as coisas que nos rodeiam surgem sem pré-aviso para se instalarem no meio da normalidade, disfarçadas de vulgaridades. Mas há que parar. Parar e escutar, para atravessar sempre, porque na travessia é que corre a liberdade.
António Saraiva VozesO efeito de estufa [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] “efeito de estufa” uma expressão muito em voga – consiste no aumento, ainda que até à data reduzido – desde 1975 cerca de 0,15 º C por década- da temperatura média da Terra. Tal subida, embora ligeira como dissemos, é inegável, pois resulta da média de milhares de medidas, em variados pontos do globo. Esta subida acompanha a subida constante da percentagem de anidrido carbónico na atmosfera, tendo-se assim relacionado as duas variáveis (há ainda outros gases que provocam o efeito de estufa, nomeadamente o metano (um gás combustível e explosivo, produzido nos campos de arroz, nas vacarias e nos aterros sanitários), os óxidos de azoto (produzidos pelos veículos), e os carbonetos halogenados (CFC e HCFC). Estes gases, juntamente com as poeiras, formam como que um manto que cobre a terra, impedindo a dissipação do calor, e provocando assim o aquecimento da Terra. A subida das temperaturas tem-se traduzido no degelo de gelos polares, o que por sua vez provoca uma subida das águas do mar (10 a 20 cm no século XX); a isto há que somar a expansão das águas devido ao aumento de temperatura, o, que, a continuar, fará com que algumas terras baixas fiquem alagadas; degelo das partes menos frias das montanhas geladas, subindo assim em altitude a zona ocupada pelas árvores; florações mais precoces alguns dias; da mesma forma antecipação das migrações de algumas aves; etc. As subidas de temperatura causarão maior evaporação – assim o ar será mais húmido e haverá maior precipitação (aumento de 7% da precipitação por cada grau Centígrado de aumento da temperatura); embora numas regiões passará a chover menos e noutras mais; e têm sido apontadas como causadoras de um maior número de tufões, tornados e cheias. A nível dos oceanos, haverá mais anidrido carbónico a dissolver-se na água, que ficará mais ácida; esta acidez afecta a fixação de calcário, ou seja, prejudica os corais, os bivalves (como as ameijoas), e os animais de esqueleto externo (lagostas, camarão…). Quanto ao impacto nas plantas poderá ser positivo – pois com mais calor e mais anidrido carbónico as plantas crescerão mais (já se usa a técnica de aumentar a percentagem de anidrido carbónico em estufas) – ou negativo, pois algumas plantas, nomeadamente as de longo ciclo vegetativo (árvores e arbustos) e pouca ”margem de tolerância” quanto à temperatura (ou também a outros factores, pois, como vimos, haverá alterações na quantidade de chuvas) poder-se-ão ver “fora” do seu clima preferido, e assim definhar, ou mesmo morrer. O acordo de Paris Cientes de tais problemas numerosos responsáveis das nações começaram a discutir a melhor forma de o enfrentar- do que resultou, após muitos avanços e recuos (1), o acordo de Paris. Este acordo visa limitar as emissões de anidrido carbónico, de forma a manter o aumento da temperatura média mundial em limites “aceitáveis” – abaixo dos 2 º C (preferivelmente a 1,5 º C) em relação aos valores da época pré-industrial. Embora tal acordo seja mais teórico do que efectivo – os Estados apenas têm que comunicar as suas emissões, não estando previsto qualquer mecanismo de ”punição ” para quem não cumpra, nem de ”recompensa” para os “bons alunos” (2), este acordo tem duas virtudes que importa realçar: em primeiro lugar assume o medo da humanidade face à alteração, por acção humana, de algo muito básico – visto por muitos como pertencendo à esfera do divino, o clima – assim como o medo do fogo. Em segundo lugar por ter sido um acordo que – num mundo tão dividido –- envolveu praticamente todos os Estados (talvez pelo medo a que acima nos referimos). Em todo o caso esse acordo – e aí a porca começa a “torcer o rabo” – considera que certos países já se desenvolveram o suficiente, tendo que diminuir os seus gastos energéticos, enquanto outros, menos desenvolvidos, têm direito a aumentar as suas emissões de anidrido carbónico. Mas quem deseja de boa vontade ver coartados os seus ”direitos”? Um, Dez, Cem Quando era miúdo, e andava na Escola Primária, escrevíamos numa lousa (pedra negra de xisto) com um lápis também de lousa. Uma verdadeira receita ecológica, pois apagava-se com um pano e voltava-se a escrever na mesma lousa. Havia ainda uns cadernitos, de papel de má qualidade, nos quais se escrevia com uma caneta de aparo, que era preciso molhar na tinta ao fim de cada linha. E havia alguns privilegiados que até tinham um lápis! Já em Macau, no início dos anos 90, as minhas filhas pediram-me lápis. Sabendo que havia muitos lápis em casa dediquei uma hora a junta-los numa gaveta: havia cerca de 30! Trinta lápis! Número ridículo quando comparado com as caixas cheias de lápis, uns ainda por afiar, outros de bico partido, não poucos já secos – que, vinte anos mais tarde, encontrei em caixas no quarto de uma das minhas netas. E assim vai o Mundo. Cada criança (adulto) “rica” tem hoje quilos de lápis, de brinquedos, de sapatos e sapatilhas…de facto calcula-se que hoje cada homem tenha às suas ordens cerca de 100 escravos mecânicos (número que, evidentemente, varia de país para país) …que .nos transportam de Macau para Portugal em 24 horas, nos levam aos ombros quando moramos no 20º andar, nos cozinham a comida sem fazer fumo, nos fazem ter temperaturas agradáveis em casa mesmo no Verão, nos possibilitam ter os tais 100 ou duzentos lápis, etc., etc., etc.. E vejamos: quem está disposto a dispensar o trabalho que todas essas máquinas nos fazem? Vamos por um exemplo caseiro – quem dá o sábado livre às empregadas filipinas que tem em casa? E será que não sabemos o que come essa multidão de escravos mecânicos? Matérias primas arrancadas da Terra e Energia. E dessa Energia 80%, ou mesmo mais, provem de “combustíveis fósseis” (restos de antigas florestas) – ou seja do petróleo, do carvão, e do gás natural. Que ao serem queimados produzem anidrido carbónico – o tal gás que provoca o “efeito de estufa”. E note-se que mesmo energias aparentemente “limpas” como a electricidade, foram geradas muitas vezes pela queima destes combustíveis (3). Quanto a outros gases de efeito de estufa, nomeadamente o metano, o problema é semelhante – se alguns podem dispensar o bife – quem dispensará o arroz? E assim, malgrado as numerosas declarações a favor da ecologia – todos podemos constatar que o tamanho dos automóveis aumentou (tendo não poucos as dimensões dos antigos carros funerários), o nível de iluminação das lojas aumentou, as lojas aboliram as portas para melhor chamarem clientes (aumentando-se assim os gastos energéticos para obter um ambiente fresco)… os prédios frente a Macau, no Zuhai, brilham toda a noite em festivais de cores e de formas… Alargando um pouco a discussão, todos os políticos baseiam o seu discurso em “mais bens, mais progresso”. Os investidores procuram o máximo lucro, os próprios atletas procuram bater records. Em jeito de conclusão O Acordo de Paris é mais um processo de intenções que a solução do problema –embora, como diz a minha mulher, “quem me dá um osso não quer que eu morra”. E somos NÓS que provocamos o efeito de estufa, e não políticos mais ou menos simpáticos. E embora não seja a única ameaça que pesa sobre a Humanidade – entre outras poderemos mencionar a bomba atómica – a solução deste problema – a menos que se descubram novos e revolucionários meios de obter energia, ou de captar o anidrido carbónico – implicará as mais profundas mudanças na vida dos cidadãos.
Leocardo VozesVai p’rá tu’rua [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s portugueses que chegam agora a Macau – e ainda vão sendo alguns, felizmente – poderão ficar surpreendidos com o nome de alguns dos arruamentos da RAEM. Quem se demora a observar as placas toponímicas do território diverte-se a pensar na origem do baptismo destas ruas, becos, travessas e pátios. Quando cheguei a Macau há vinte anos, ouvi falar de uma tal de “Ilha Verde”. Ilha Verde? – pensei eu – deve ser um sítio bestial, ideal para passar um fim-de-semana, umas férias, ou isso assim. Mas este tal Bairro da Ilha verde, “cheng chau” em chinês, não passa de um amontoado de barracas, habitações sociais e ferro-velho atirado lá para a zona norte da cidade. Tem muito pouco de verde, nada de ilha, e é populado por gente que pendura as cuecas nas janelas que dão para a rua. É um engodo. Mas o que seria de esperar de um sítio que fica perto de um tal Bairro do Fai Chi Kei? (fai chi significa “pauzinhos”, daqueles de comer, em chinês). Existe ainda um tal Canal dos Patos, onde não encontramos nenhuma ave daquele tipo – ou outra qualquer, para esse efeito. Outros locais como a Travessa das Janelas Verdes ou o Pátio do Jardim apresentam-se bastante cinzentões, decepcionantes. Existe aqui perto de casa uma tal Rua do Teatro, que além de não ter nenhuma sala de espectáculos visível, tem várias lojas de armazenamento e distribuição de fruta, tornando impossível a circulação de veículos e pessoas, especialmente depois das seis horas da tarde. Devia-se chamar Rua da Fruta. Perto da Igreja de S. Lourenço existe um tal Pátio das Seis Casas. Eu já lá estive e contei pelo menos oito! Existe contudo uma Travessa Curta (na imagem), que faz jus ao nome. Não tem mais de dois metros de comprimento! Isto é que é chamar os bois pelos nomes. Existe um Coloane um tal Pátio Pequeno, mas ainda não tive oportunidade de verificar a pequenez do mesmo. Como se sabe, os chineses não são adeptos de dar nomes de rua a personalidades históricas, figuras públicas ou beneméritos. Assim temos nomes muito simplistas, como a Travessa dos Ovos ou ou o Beco dos Óculos, o Pátio da Cadeira ou o Pátio do Banco. Outros mais românticos ficam sempre bem num cartão postal; a Rua da Esperança, Felicidade, Fortuna, Harmonia, Riqueza, Saúde, Prosperidade, Tranquilidade ou Virtudes, a Travessa da Glória ou da Paixão, o Beco da Sorte, o Pátio da Eterna Felicidade ou da Eterna União. Sempre é menos deprimente do que viver no Beco do Desprezo (em Coloane, e adivinho que será perto do Estabelecimento Prisional de Macau), no Pátio da Ameaça, do Desgosto ou da Indigência. Curiosamante não existem em Macau arruamentos com os nomes de desgraça, tragédia, miséria ou fome, mas bem podiam existir. Sem dúvida que é muito mais agradável ser abençoado e viver na Rua Alegre ou na Rua da Aleluia, do que viver na Rua da Cadeia ou na sua correspondente de calão, a Rua da Cana. Quem é chique sempre pode morar na Travessa do Clube dos Iates, enquanto os mais pobrezinhos ficam remetidos ao Beco das Barracas ou ao Beco das Barraquinhas. Ou ainda à Travessa do Hospital dos Gatos, onde deve ser impossível dormir devido aos miados de angústia. O evento dos Jogos da Ásia Oriental, realizados na RAEM em 2005, baptizou uma série de arruamentos, incluíndo uma Avenida, Travessa e Praça, e exactamente, “dos Jogos da Ásia Oriental”, uma Rua do Desporto, e uma tal Rua da Patinagem, em Coloane. Esta deve ser dedicada aos orçamentos para a realização de certos eventos e projectos na RAEM, que são conhecidos por “patinar” de vez em quando. Disse eu de vez em quando? Queria dizer “sempre”. Ainda em Coloane, exstem novos arruamentos com nomes bastante “floridos”: a Rua das Albízias, das Cássias Douradas, das Champacas Brancas, das Bauínias, das Árvores do Pagode, das Canforeiras, das Acácias Rubras, das Lichias, das Schimas, das Margoseiras ou das Mangueiras. Lindo, lindo, um deleite para os adeptos da floricultura e da botânica. Em contraste existe em Macau um Pátio do Pivete, onde deve ser impossível abrir uma janela. E celebremos com alegria a toponímia de Macau, provavelmente a mais rica do mundo!
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA imoralidade do terrorismo “The purpose of terrorism is to destroy the morale of a nation or a class, to undercut its solidarity; its method is the random murder of innocent people.” “Just and Unjust Wars: A Moral Argument with Historical Illustrations” – Michael Walzer [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]emos assistido aos mais diversos eventos mundiais, desde os atentados de 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos até ao último ataque terrorista em Londres, a 3 de Junho de 2017. Temos vivido acontecimentos violentos e reais, de guerras a genocídios. No entanto, quando se trata de eventos simbólicos à escala mundial, ou seja, não apenas factos que têm a atenção da comunicação social a nível mundial, mas que representam um fracasso para a globalização, não encontramos nenhum. Durante a inércia da década de 1990, os eventos entraram em greve na expressão do escritor argentino Macedonio Fernández. A greve terminou e os acontecimentos não estão mais em risco e com os ataques ao World Trade Center, em Nova Iorque, podemos até dizer que temos diante de nós o evento absoluto, a mãe de todos os eventos, o evento puro que unifica em si todos os eventos que nunca aconteceram. Todo o jogo da história e do poder é interrompido por esse evento, mas também são as condições de análise. Temos que aprisionar o nosso tempo. Enquanto os eventos estavam estagnados, tínhamos que os antecipar e movermos mais rapidamente do que eles. Mas quando aceleraram, tivemos de caminhar mais devagar, embora sem permitir enterrá-los sob uma infinidade de palavras, ou reunir nebulosas de guerra, e preservar intacta a incandescência inesquecível das imagens. Tudo o que foi dito e escrito tem sido a evidência de uma aberração gigantesca para o evento em si e do fascínio que exerce. A condenação moral e a santa aliança contra o terrorismo estão na mesma escala que o prodigioso júbilo de ver essa superpotência global destruída, ou melhor, vê-la, em certo sentido, destruindo-se e suicidando-se em uma chama de glória, pois pelo seu poder infernal, fomentou toda essa violência que é endémica a nível mundial, e, logo, essa imaginação terrorista (involuntariamente) que habita em todos nós. O facto de termos sonhado com esse evento, pois todos, sem excepção, sonharam com o mesmo, porque ninguém pode evitar sonhar com a destruição de qualquer poder que se tornou hegemónico a um nível considerado inaceitável para a consciência moral ocidental. No entanto, é um facto, e que pode ser medido pela violência emotiva de tudo o que foi dito e escrito no esforço para o dissipar. É possível dizer em simples pincelada que fizeram, o que desejávamos que fosse feito. Se tal não for levado em conta, o evento perderá qualquer dimensão simbólica. Torna-se um puro acidente, um acto puramente arbitrário, a fantasmagórica assassina de alguns fanáticos, e tudo o que restaria seria eliminá-los. Agora, sabemos muito bem que não é assim. O que explica todos os delírios contrafóbicos sobre exorcizar o mal. É porque está lá, em todos os lugares, como um objecto obscuro de desejo. Sem essa cumplicidade profunda, o evento não teria tido a ressonância e, a sua estratégia simbólica. Os terroristas, sem dúvida, sabem que podem contar com essa cumplicidade indescritível. Tal vai muito além do ódio pelo poder mundial dominante entre os deserdados e os explorados, entre aqueles que acabaram no lado errado da ordem global. Mesmo aqueles que compartilham as vantagens dessa ordem têm esse desejo malicioso nos seus corações. A alergia a qualquer ordem e poder definitivos são felizmente universal, e as duas torres do World Trade Center eram formas de realização perfeitas, nas suas dimensões, dessa ordem definitiva, não sendo necessário, um impulso de morte, um instinto destrutivo, ou mesmo de efeitos perversos e involuntários. Muito logicamente e inexoravelmente, o aumento do poder aumenta a vontade de destruí-lo. E foi parte da sua própria destruição. Quando as duas torres entraram em colapso, teve-se a impressão de que estavam a responder ao suicídio dos suicidas, com os seus próprios suicídios. Sempre foi dito que mesmo Deus não pode declarar guerra a si mesmo. O Ocidente simbolicamente, na posição de Deus (omnipotência divina e legitimidade moral absoluta), tornou-se suicida e declarou guerra a si mesmo. Os inúmeros filmes de desastres, testemunham essa fantasia, que claramente tentam exorcizar com imagens, afugentando tudo com efeitos especiais. Mas a atracção universal que exercem, que é parecido com a pornografia, mostra que a actuação nunca foi muito longe, bem como o impulso de rejeitar qualquer sistema que se torne mais forte, à medida que se aproxima da perfeição ou da omnipotência. É provável que os terroristas não tenham previsto o colapso das Torres Gémeas, mais do que os especialistas, pois muito mais do que o ataque ao Pentágono, teve um maior impacto simbólico. O colapso simbólico de todo um sistema surgiu por uma cumplicidade imprevisível, como se as torres, ao sucumbirem, cometessem suicídio, juntando-se para completar o evento. Em certo sentido, todo o sistema, pela sua fragilidade interna, deu uma mão amiga à acção inicial. Quanto mais concentrado o sistema se tornar globalmente, formando uma única rede, mais se torna vulnerável em um único ponto, pois é como o pequeno “hacker” filipino que havia gerido o mal, desde os recessos escuros do seu computador portátil, ao introduzir o vírus “Eu te amo”, que circundou o mundo devastando redes inteiras. Nos Estados Unidos foram dezoito assaltantes suicidas que, graças à arma absoluta da morte, reforçada pela eficiência tecnológica, desencadearam um processo catastrófico global. Quando o poder global monopoliza a situação desta forma, quando há uma concentração tão assombrosa de todas as funções na máquina tecnocrática, e quando nenhuma forma alternativa de pensamento é permitida, qual é a outra forma existente para além da mudança por via da prática de actos terroristas? Foi o próprio sistema que criou as condições objectivas para essa retaliação brutal. Ao usar todas as cartas do jogo, forçou o outro a mudar as regras. E as novas regras são ferozes, porque as apostas são desumanas e para um sistema que tem excesso de poder, representando um desafio insolúvel, os terroristas respondem com um acto definitivo que também não é susceptível de troca. O terrorismo é o acto que restaura uma singularidade irredutível ao núcleo de um sistema de troca generalizada. Todas as singularidades (espécies, indivíduos e culturas) que pagaram as suas mortes, pela instalação de uma circulação global governada por um único poder, estão a vingar-se através dessa transferência da situação pela via terrorista. É o terror contra o terror e não há mais nenhuma ideologia por detrás. Estamos além da ideologia e da política. Nenhuma ideologia causa e nem mesmo a islâmica pode explicar a energia que alimenta o terror. O objectivo não é mais transformar o mundo, mas (como as heresias fizeram no seus dias) radicalizar o mundo pelo sacrifício. Enquanto o sistema pretende realizá-lo pela força, o terrorismo, como vírus, está em toda parte. Existe uma perfusão global do terrorismo, que acompanha qualquer sistema de dominação, como se fosse a sua sombra, pronto para se activar em qualquer lugar, como um agente duplo. Não é possível desenhar uma linha de demarcação em torno dessa situação. É no coração desta cultura que a combate, que a fractura visível e o ódio que permeia os explorados e os subdesenvolvidos, globalmente, contra o mundo ocidental, secretamente se conecta com a fractura interna ao sistema dominante. Esse sistema pode enfrentar qualquer antagonismo visível. Mas contra o outro tipo, que é de estrutura viral, como se toda a máquina de dominação segregasse o seu contra-aparelho, o agente do seu desaparecimento, contra essa forma de reversão quase automática do seu poder, o sistema nada pode fazer. O terrorismo é a onda de choque dessa reversão silenciosa. Este não é, portanto, um choque de civilizações ou religiões, e fere muito além do Islamismo e do Ocidente, sobre os quais estão a ser feitos esforços para concentrar o conflito, criando a ilusão de um confronto visível e uma solução baseada na força. Há, de facto, um antagonismo fundamental, mas que afasta o espectro da América, que é, talvez, o epicentro, mas em nenhum sentido a única incorporação, da globalização e o espectro do Islamismo, que não é a personificação do terrorismo, mas a globalização triunfante batalhando contra si. Nesse sentido, podemos falar de uma guerra mundial, não a Terceira Guerra Mundial, mas a Quarta e a única realmente global, uma vez que o que está em jogo, é a própria globalização. As duas primeiras guerras mundiais corresponderam à imagem clássica da guerra. A Primeira Guerra Mundial acabou com a supremacia da Europa e da era colonial. A Segunda Guerra Mundial acabou com o nazismo. A Terceira Guerra Mundial, que de facto ocorreu, sob a forma de guerra fria e dissuasão, acabou com o comunismo e a cada guerra sucessiva, avançamos para uma única ordem mundial. Actualmente, essa ordem, que praticamente atingiu o seu ponto culminante, encontra-se a lutar contra forças antagónicas espalhadas por todo o mundo, em todas as convulsões actuais. Uma guerra fractal de todas as células e singularidades, repugnantes sob a forma de anticorpos. Um confronto tão impossível de definir que a ideia de guerra deve ser resgatada de tempos a tempos por situações espectaculares, como a Guerra do Golfo ou a guerra no Afeganistão. Mas a Quarta Guerra Mundial está em outro lugar. É o que assombra toda ordem mundial e dominação hegemónica e se o Islamismo dominasse o mundo, o terrorismo elevaria contra si, pois é o mundo que resiste à globalização. O evento do World Trade Center, esse desafio simbólico, é imoral e é uma resposta a uma globalização que é imoral. Teremos então de ser imorais para compreender esta dinâmica? Se quisermos ter algum entendimento de tudo o que está a acontecer em termos de terrorismo têm de ir um pouco além do bem e do mal. Quando, tivermos um evento que desafie não apenas a moral, mas qualquer forma de interpretação, devemos tentar abordá-lo com uma compreensão do mal. Este é precisamente onde se encontra o ponto crucial, no total mal-entendido por parte da filosofia ocidental e do Iluminismo da relação entre o bem e o mal. Acreditamos ingenuamente que o progresso do bem, o seu avanço em todos os campos, como nas ciências, tecnologia, democracia, direitos humanos, corresponde a uma derrota do mal. Apenas poucos parecem ter entendido que o bem e o mal caminham juntos, como parte do mesmo movimento. O triunfo de um não oculta o outro, longe disso. Em termos metafísicos, o mal é considerado um acidente, mas esse axioma, do qual derivam todas as formas maniqueístas da luta do bem contra o mal, é ilusório. O bem não conquista o mal, nem o inverso acontece, pois são ao mesmo tempo irreduzíveis entre si e inextrincavelmente inter-relacionados. Em última análise, o bem poderia frustrar o mal apenas deixando de ser bem, ao apoderar-se de um monopólio global do poder, dando origem, por esse mesmo acto, a uma reviravolta de uma violência proporcionada. O universo tradicional, continha um equilíbrio entre o bem e o mal, de acordo com uma relação dialéctica que mantinha a tensão e o equilíbrio do universo moral, não sendo diferente da forma como o confronto dos dois poderes na Guerra Fria mantiveram o equilíbrio do terror, não havendo nenhuma supremacia de um sobre o outro. Assim que houve uma extrapolação total do bem (hegemonia do positivo sobre qualquer forma de negatividade, exclusão da morte e de qualquer força adversa potencial – triunfo dos valores do bem), esse equilíbrio ficou perturbado. A partir desse momento, o equilíbrio desapareceu, e foi como se o mal recuperasse uma autonomia invisível, começando a desenvolver-se exponencialmente, tendo em termos relativos acontecido na ordem política com o desaparecimento do comunismo e o triunfo global do poder liberal, pois foi nesse ponto que emergiu um inimigo fantasmagórico, infiltrando-se em todo o planeta, deslizando por toda parte como um vírus que brota de todos os interstícios de poder que e radicado no Islamismo. Mas o Islamismo era apenas a frente móvel em que o antagonismo cristalizava. O antagonismo está em todos os lugares e em cada um de nós. Então, é o terror contra o terror. É o terror assimétrico. E é essa assimetria que deixa a omnipotência global totalmente desarmada, em desacordo consigo, só pode mergulhar na sua lógica de relações de força, mas não pode operar no terreno do desafio simbólico e da morte, algo da qual já não tem ideia, que a apagou da sua cultura. Até ao presente, este poder integrativo conseguiu em grande parte absorver e resolver qualquer crise e negatividade, criando, assim uma situação de desespero mais profundo (não só para os deserdados, mas para os privilegiados também, no seu conforto radical). A mudança fundamental agora é de que os terroristas deixaram de se suicidar sem nada em troca, pois produzem as suas mortes de forma eficaz e ofensiva, ao serviço de uma visão estratégica intuitiva que é simplesmente um senso da imensa fragilidade do oponente – uma sensação de que um sistema que chegou à sua quase perfeição pode ser inflamado pela menor faísca. Os terroristas conseguiram transformar as suas mortes em uma arma absoluta contra um sistema que opera com base na exclusão da morte, um sistema cujo ideal é o de nenhuma morte. Todo o sistema de morte zero é um sistema de jogo de soma zero. E todos os meios de dissuasão e destruição não podem fazer nada contra um inimigo que já transformou a sua morte em uma arma de contra-ataque. Os terroristas estão tão ansiosos por morrer como os demais cidadãos por viver, sendo este o espírito do terrorismo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO amor não escolhe idades [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á diz a sabedoria popular que o amor não escolhe idades, seja isso porque o amor pode vir a qualquer fase das nossas vidas ou porque as nossas preferências amorosas não se prendem única e exclusivamente por sujeitos da mesma faixa etária. Se o amor não escolhe idades, o sexo também não escolhe idades. Não me venham cá com lenga-lengas de que relacionamentos com parceiros mais velhos ou mais novos são reflexo de ‘recalcamentos’, má resolução de processos de vinculação ou que possam ser encarados como problemas psico-emocionais. Aconselho muita calma nesses julgamentos. Todos já reparam que o mais recente presidente francês tem uma esposa com mais 24 anos do que ele. Por causa disso, o Macron já foi acusado de ter um casamento de fachada porque é um homossexual não assumido – casado com uma mulher só para satisfazer as expectativas heterossexuais. O que é que é problemático nesta discussão? Para mim, nem é a homofobia associada, mas o facto de uma mulher de 60 anos ser automaticamente cunhada como não desejável – porque raio um homem se sente amorosa e sexualmente por uma mulher com rugas? Deve ser homossexual! Pois, a assumpção social não é a regra, felizmente. Olhemos agora para o mais recente presidente brasileiro, que tem uma esposa 43 anos mais nova do que ele. Alguém acha atípico? Nem pensar. Devem pensar que o dinheiro compra esposas belas, novas e jeitosas, mas ninguém dúvida da virilidade do homem, vulgo, da heterossexualidade do homem. Porque estar com uma mulher mais nova é mais natural do que estar com uma mulher mais velha. E assim o pessoal anda a julgar relacionamentos heterossexuais de acordo com as expectativas de beleza femininas. Porque, infelizmente, as mulheres (mais do que homens) têm um prazo de validade mais precoce. O que faz com que seja normal que homens com mais de 70 anos tenham mulheres jovenzinhas, mas o contrário seja mais criticado e duvidado até (!) – talvez seja altura de pôr essas ideias em causa, para paramos de encontrar homens que digam qualquer coisa como: ‘achei uma mulher de 50 anos sexy, o que é se passa comigo?’ Não se passa nada de errado com ninguém. Acho que ninguém dúvida que o cupido possa enviar umas setinhas românticas a casais com diferenças de idades de mais de 20 anos – e que possa haver paixão, tesão e desejo. Seja ele o mais velho ou ela a mais velha, sejam casais heterossexuais ou homossexuais. Os desafios, é que são uns quantos, sim. Os julgamentos do sociedade alheia podem não ser muito simpáticos – são mais vezes reprovadores que outra coisa. Os ditos ‘especialistas’ em relacionamentos cunham certas constelações relacionais como trágicas à partida. Mas na minha humilde opinião, o que me parece desafiador num relacionamento entre dois seres com uma grande diferença de idade (quasi-geracional) não se prende tanto com questões de maturidade-imaturidade (que todos sabem que não depende da idade). Por mais que os membros de um casal possam ser feitos um para o outro e encaixem na perfeição na forma de ser e de serem, uma pessoa de 25 anos e uma pessoa de 40 anos podem perspectivar objectivos de vida diferentes – e isso pode ser problemático. Se antes era dado adquirido que todos trabalhavam para terem uma casa, puderem casar e ter filhos, hoje em dia a imagem não se pinta bem assim, e a panóplia de possibilidades e de estilos de vida multiplicam-se. E as constelações, até as mais perfeitas, podem partir-se, por não estarem em sintonia com o que um e o outro querem fazer. Imaginem lá uma mulher de 35 anos a querer ter filhos com um homem de 25, que se calhar não se sente tão capaz de se aventurar na paternidade? O amor não escolhe idades, mesmo. E o amor também não escolhe tão acertadamente trajectórias de vida semelhantes e/ou momentos que possam estar em mais sintonia. Para além disso não há mais nada, nem daddy issues, nem complexos de Édipo mal resolvidos. Descompliquem!
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesA Torre do Inferno [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 14 deste mês, o website da BBC divulgava uma notícia sobre um incêndio que tinha acabado de deflagrar em Londres. A Torre Grenfell, situada no Norte de Kensington, estava a arder. No dia 19, um porta voz do Governo veio comunicar que se presumia que o número de vítimas mortais ascendesse a 79, 74 das quais estavam desaparecidas, estando 5 cadáveres já identificados. Este incêndio já é considerado o mais grave de sempre no Reino Unido desde que há registos conhecidos, ou seja, desde o início do séc. XX. A Torre Grenfell foi renovada em 2016. Foram instaladas novas janelas e foi colocado um revestimento de alumínio sobre as placas de isolamento térmico que, supostamente, se destinava a embelezar o edifício. Os peritos afirmaram que este revestimento pode ter estado na origem da propagação muito rápida do incêndio. O espaço que existia entre o revestimento e as placas de isolamento criou uma espécie de chaminé por onde o fogo alastrou. A cobertura ardeu e derreteu, o que prova que era feita de material inflamável. No dia 23, a Superintendente Fiona McCormack comunicou que a polícia tinha provas de que o incêndio não tinha origem criminosa e que teria começado com a combustão de um frigorífico, modelo Hotpoint FF175BP. McCormack acrescentou que, “As amostras do revestimento recolhidas para análise chumbaram em todos os testes de segurança.” A investigação prossegue para a apurar responsabilidades pelos crimes de homicídio por quebra de normas de segurança. Por enquanto ainda é cedo para apontar culpados. No entanto, se se vier a provar de forma inequívoca que o revestimento de alumínio esteve na origem da propagação incontrolável do incêndio, os seus fabricantes virão a ser acusados. Será também acusado de cumplicidade quem contratou esta empresa e decidiu revestir o edifício com o referido material. É sabido que essa responsabilidade pende sobre a construtora. Neste caso poderá a construtora ser acusada de homicídio? À luz da lei do Reino Unido, a resposta é “sim”. No Reino Unido, e não só, um homicídio pode ser considerado voluntário ou involuntário. Considera-se homicídio involuntário quando as mortes são provocadas por irresponsabilidade ou negligência. Neste caso é muito provável que se estabeleça uma acusação de homicídio involuntário, devido à utilização de materiais altamente inflamáveis para o revestimento do edifício. Segundo a lei inglesa, o responsável directo e o indirecto respondem pela mesma acusação. Ou seja, quer o fabricante quer o construtor estão sujeitos à mesma pena. O responsável da construtora estará pessoalmente sujeito a acusação idêntica. A figura jurídica que suporta esta acusação é designada por “desconsideração da personalidade jurídica empresarial” e permite responsabilizar as pessoas que estão por trás da empresa e, desta forma, obrigá-las a cumprir a lei. Se uma empresa for acusada de um crime, mas os seus responsáveis não forem, a punição não fará sentido porque a empresa não é uma pessoa real; responsabilizar as pessoas que a dirigem é a única forma de prevenir o crime. Esta tragédia é um aviso claro para Macau e para Hong Kong quanto ao perigo do uso dos revestimentos de alumínio em edifícios. Ninguém quer assistir a casos idênticos. A prevenção é sempre o melhor remédio. É necessário tomar medidas imediatas para garantir que este material não venha a ser usado. Macau é uma cidade pequena. Se uma situação destas aqui viesse a ocorrer, é fácil imaginar as consequências que teria. Sabe-se que no edifício Wing On em Hong Kong foram usados estes materiais. Será bom que o seu proprietário e quem o administra tomem medidas para evitar uma tragédia. No entanto, parece que ainda não é chegada a altura de legislar sobre a utilização de revestimentos de alumínio na construção. Teremos de escutar as opiniões dos peritos em segurança, das construtoras e do público em geral antes de ser tomada a decisão final. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Blog:https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog E mail:legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk