Uma lista negra cada vez mais exagerada

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão acontece apenas no Dia Nacional da China, nem apenas no dia em que se celebra a transferência de soberania de Macau. Acontece também na altura em que se celebra o Dia do Trabalhador. Falo do facto de cada vez mais pessoas de Hong Kong serem barradas à entrada de Macau pelas autoridades. São, na sua maioria, políticos na região vizinha, membros do Conselho Legislativo (LegCo) e ligados à ala pró-democrática do território.

É cada vez mais ridícula e absurda a atitude das autoridades de Macau, que rejeitam a entrada dessas pessoas pela mesma razão. Estas “constituem uma ameaça à segurança interna de Macau”, e parece-me que não há uma examinação profunda sobre a possibilidade destas pessoas poderem, de facto, constituir uma ameaça a este pequeno território.

Nos casos mais recentes, a maioria dos visados vinham a Macau com a família, apenas para relaxar e passar uns dias de férias. No entanto, ficaram detidos durante horas na fronteira, acabando por afectar a viagem já marcada dos seus familiares.

Não entendo como é que Macau continua a ser chamado de “Centro Mundial de Turismo e Lazer” quando as autoridades nem sequer permitem a entrada de visitantes da região vizinha, mesmo com viagem e percursos marcados?

A situação piorou em relação aos anos anteriores. Em 2009, houve uma grande polémica quando vários deputados de Hong Kong quiseram vir a Macau para participar numa manifestação sobre a lei relativa à defesa da segurança do Estado. Outros quiseram vir a Macau manifestar-se junto dos dirigentes do Governo Central, e também acabaram por ser barrados na fronteira. O assunto chegou mesmo à Assembleia Legislativa e ao LegCo, tendo sido exigidas soluções sobre o assunto. Depois destes episódios, começou a acontecer o mesmo problema em pessoas que são jornalistas, académicos ou artistas.

Este tema tornou-se sensível e tornou-se regular ao longo dos anos, e é visível o aumento desta tendência. Mesmo que as autoridades se refiram à lei de bases de segurança interna para justificarem as proibições de entrada, ninguém considera esta situação racional.

Não há razões ou explicações, e as autoridades continuam a afirmar que se tratam de informações confidenciais, recusando também fornecer o número de pessoas que já foram proibidas de entrar em Macau.

Os factos mostram que o Governo de Macau agem de acordo com uma expressão conhecida em chinês, que, traduzindo para português, será qualquer coisa como: “quer esteja correcto ou errado, em vez de ter um omitido, prefere matar mil” (寧可錯殺一千,不可放過一人). Ou seja, as autoridades nunca admitem a existência de uma lista negra, mas esta parece estar cada vez maior.

Macau quer consolidar a sua imagem de um “bom neto” do Governo Central. Comparando com os últimos acontecimentos políticos de Hong Kong, Macau quer que o “avô” continue a cuidar bem dele e a dar-lhe mais apoio.

Existem opiniões sobre a necessidade de uma mudança das condições de entrada nos territórios por parte do Governo de Macau, e essas opiniões existem não só aqui como em Hong Kong.

Caso continuemos nesta direcção, vamos repetir a piada de ver um bebé de Hong Kong a ser barrado na fronteira por causa do seu nome. Se não mudamos este sistema, a imagem de Macau vai continuar a ser criticada e ridicularizada pelo mundo.

5 Mai 2017

Papel de embrulho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes de haver a licenciatura em Engenharia do Papel era tudo mais simples, mas também mais difícil. Um paradoxo para uma minoria pensante, uma inevitabilidade para uma maioria que, ver-se-ia mais tarde, afinal não se conformava, feliz e de papo vazio, com o que tinha. Era tudo mais simples para quem podia escolher, portanto. A engenharia era só engenharia e ainda não tinham inventado um número de opções que, ver-se-ia mais tarde também, tinham pouco ou nada de livre, apesar de se trasvestirem de democracia. Eram mentiras disfarçadas com papel de embrulho, laço de seda incluído.

Ainda assim, melhor do que antes. Haver caminhos para mais gente é sempre melhor do que vias exclusivas para meninos da mamã e meninos do papá, com as devidas excepções dos que lá chegavam por mérito, suor e talvez algum sangue. Sempre melhor do que antes, ninguém tem saudades do passado, o passado deve servir só para pensarmos, com cuidado, no que aí vem.

Na política, também houve um antes da licenciatura em Engenharia do Papel. Era um tempo em que tudo era mais simples e, mais uma vez, mais difícil. Não há simplicidade simples no mundo, ainda não se inventaram cursos para tirar as complicações do que os homens andaram por aí a complicar. Ainda assim, era tudo mais simples – não necessariamente melhor, mas ainda é cedo para certas avaliações históricas.

No tempo em que era tudo mais simples na política, havia a direita, a esquerda e o centro e as pessoas encaixavam num destes conceitos, mesmo que a maioria não soubesse exactamente o que era a direita, a esquerda e o centro. A verdade é que a política – a política de massas – tem tudo que ver com a personificação. E com as promessas que se fazem. Este era o tempo em que se distribuíam aventais e esferográficas e canecas e os eleitores faziam a festa, iam aos comícios, eram muitos os que saíam de casa porque aquilo era para ser vivido assim. A política não chegava aos calcanhares da bola mas não andava longe, gostava-se deste, não se gostava daquele, já havia empresários e gente com dinheiro à frente da política e na rectaguarda também, mas o grau de crença era diferente. Votava-se ao domingo, a seguir à missa. Era tudo mais simples, apesar de, depois, ser tudo mais difícil.

Hoje é tudo mais fácil, dizem-nos, e a gente acredita, porque só tem memórias das carrinhas de caixa aberta e os altifalantes, dos aventais e das bandeiras, mas não se lembra exactamente nem do que se gritava pela rua, nem do que escrevia no material de propaganda política. Mas hoje é tudo mais complicado também.

As licenciaturas em Engenharia do Papel puseram-nos a pensar. Não sei se pensamos bem, provavelmente não, que andámos a queimar pestanas na faculdade para nada, mas disseram-nos para irmos para lá e nós fomos. Ainda assim, pensa-se muito hoje em dia. Pensa-se muito e muito depressa, quase sempre de forma resumida, que as twitadas não permitem alongamentos no pensamento. Mas hoje sabemos todos quem manda em nós. E não gostamos de ninguém.

Vai daí, porque a esquerda e a direita e o centro continuam à esquerda, à direita e ao centro mas sem saberem exactamente o que é isto dos pontos politicamente cardeais, viramo-nos para as pontas porque elas é que são diferentes. Prometem um mundo novo, apesar de não distribuírem aventais de cozinha em carrinhas de caixa aberta. Garantem-nos que vão acabar com os banqueiros, com a finança e com a corrupção, e nós gostamos disso, porque até já nem sabemos em que conta depositar o salário. Excitamo-nos ligeiramente com esta ideia de que podemos ser anti-sistema, escrevemos duas linhas e temos duas discussões virtuais antes de irmos para a cama, no domingo não há missa mas é dia de eleições, votar no sistema nem pensar, mais do mesmo nem pensar, queremos é promessas novas, coisas novas, mesmo que tudo isso já exista desde que foi inventada a licenciatura em Engenharia do Papel e não nos tenhamos apercebido de quão amarelos são estes compromissos para uma nova era, mais à nossa medida.

Isto é assustador. O mundo quer-se novo e equilibrado, dentro e fora do sistema, e não é isso que está a acontecer. É o aqui e o agora, o vizinho não interessa, nós queremos os nossos problemas resolvidos e amanhã logo se vê. Amanhã já se viu que isto não pode ser bom, cabeças quentes não fazem a cruz no quadrado certo, a cruz de uns não é a cruz de outros, das cruzes que carregamos só sabemos nós. Ninguém quer saber, todos já sabem, todos já sabiam há muito tempo, eles é que estavam certos. Assustador mundo novo em que andamos, quase sempre, a fazer de papel de embrulho.

5 Mai 2017

Cristiano Portugaldo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]as viagens que tenho feito pela Ásia próxima (a Ásia próxima daqui, portanto), em todos os lugares há um nome com que os nativos se identificam quando lhes deixo saber a minha nacionalidade: Cristiano Ronaldo. Todos não, e não vos vou mentir; a Índia, onde o desporto mais popular é o intragável Cricket, o melhor jogador de futebol do mundo é relegado para segundo plano, até em termos de Portugalidade – Vasco da Gama ainda é o português com que muitos indianos ainda mais se identifica. De resto, seja no Cambodja, no Laos, no Vietname ou no Myanmar, qualquer adepto do desporto-rei ou pirralho que goste de dar uns toques na bola associa a palavra “Portugal” ao seu ídolo: é aquele país pelo qual Cristiano Ronaldo joga no mundial de futebol. De qualquer outra forma, nem nunca teriam ouvido falar de nós, ou pensavam que “ficávamos na Espanha”, como os broncos dos americanos. Mas têm alguma dúvida disso, meus caros?

Não é por acaso que Cristiano Ronaldo é a lenda, e ontem (madrugada de quarta-feira em Macau) encarregou-se de reforçá-la, assinando mais uma épica exibição na primeira mão da meia-final da Liga dos Campeões. Para quem não sabe ou não quer saber, esta Liga dos Campeões é a competição de clubes de futebol mais importante do planeta, e em tempos de (relativa) paz, e longe da era das lutas de gladiadores, é o palco onde se decide quem são os bravos entre os homens. Marcou mais um “hat-trick”, quebrou mais não sei quantos recordes, igualou outros tantos, marcou mais de 400 pelo Real Madrid, sei lá, para quem não se rende aos factos, renda-se pelo menos aos números. Estamos aqui a falar do melhor marcador de sempre da competição de clubes mais importante do planeta.

E foram golos de antologia, aqueles, dignos de constar de um eventual futuro museu da modalidade, numa distopia onde as guerras se substituíram ao futebol para eleger os maiores entre as nações. No primeiro sobe ao terceiro andar num cruzamento, enquanto o defesa que o marcava, um tal Savic, só consegue chegar ao segundo, não evitando que a redonda acabe no fundo das malhas da baliza de um tal Oblak (pelo nome até parece um oficial das SS, e para efeitos dramáticos digamos que faz de conta que é). No segundo e no terceiro demonstra toda a sua inteligência, qual mestre de xadrez, mas muito mais atlético, rápido e ágil. Uma bola que lhe salta à frente, e ele prepara um remate que fuzila o nefasto Herr Oblak; e depois uma outra em que recebe um passe que podia ter finalizado de calcanhar, mas prefere parar a bola e marcar um mini-penalty ao então moribundo guardião do Atlético de Madrid, e oficial nazi nas horas vagas. Nem é preciso gostar-se de futebol para apreciar isto como arte, minha gente.

Não surpreende que só Vasco da Gama possa competir com Cristiano Ronaldo como figura de proa de Portugal e dos portugueses; destes últimos, qual o que fez tanto ou uma décima parte para prestigiar o nome do país lá fora? Mas há quem não se convença, por incrível que pareça, e se a inveja está à cabeça dos motivos que levam a todo o desdém (ao ponto de se idolatrarem anões argentinos, numa súbita queda para o circo), outras razões para que se desdiga do nosso herói da bola incluem o facto de ter sido formado pelo clube rival. Em suma, tudo notas de rodapé, e não acredito que alguém nos confins do mundo que adora Ronaldo saiba sequer o que é o Sporting – os lagartos que me desculpem, mas é assim. A embirração chegou ao ponto de se protestar que se tenha atribuído o nome do jogador ao aeroporto do Funchal, na sua Madeira natal. Eu por mim rebaptizava o país inteiro com o nome do Cristiano Ronaldo, com uma breca. E fica já aí no título uma boa sugestão para o nome da nação. Agora, não sei é se o próprio CR7 nos dava essa honra. E sabem o que mais? Aposto que dava, como tem sempre dado tudo pelo nome do país cujas armas sempre orgulhosamente ostentou ao peito. Ele nunca pediu nada em troca, pois não?

4 Mai 2017

A sacrossanta soberania da Síria

“For the Foreseeable Future, No Government Will Be Able to Rule All of What Was the Modern State of Syria Assad’s forces, with external support, appear to have stalemated a fragmented rebel movement, but Assad will not be able to restore his authority throughout the country.”
“The Dynamics of Syria’s Civil War” – Brian Michael Jenkins

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda que nunca tenha sido articulada em termos tão rígidos, um dos objectivos principais dos Tratados de Vestefália, que foram assinados para pôr termo à Guerra dos Trinta Anos, em 1648, tinham como ideia basilar a de “nunca mais vir a acontecer”. Os termos dos tratados procuraram, em última análise, assegurar que o mundo pudesse estar para sempre livre do envolvimento de forças externas em conflitos internos, que tornaram a Guerra dos Trinta Anos tão prolongada e catastrófica. As numerosas intervenções estrangeiras na actual Guerra Civil Síria demonstraram, incluindo mais recentemente, os ataques de mísseis de cruzeiro pelos Estados Unidos, em 6 de Abril de 2017, que esta visão está a tornar-se cada vez mais ruinosa.

O mundo tem razão em diluir o poder da soberania desde 1945, no entanto, a presença e o impacto de intervenções estrangeiras repetidas na Síria lembra-nos, a razão pela qual a soberania foi concebida, e devemos quiçá, encontrar rapidamente um seu substituto. A Guerra dos Trinta Anos foi uma das mais sangrentas e destrutivas da história, com cerca de sete milhões e quinhentas mil pessoas mortas, devido às batalhas travadas e doenças, além das atrocidades do governo.

É de realçar que sendo um assunto predominantemente interno sobre a política e religião das províncias alemãs no Sacro Império Romano, a crise transformou-se numa guerra pan-europeia, que foi dominada pelas intervenções de potências estrangeiras. Essas intrusões, aconteceram principalmente, como resposta ao aumento e diminuição das fortunas dos vários lados, quando os protestantes pareciam estar à beira da vitória, sofreriam a oposição dos Estados Católicos externos, e quando os católicos prosperassem, seriam rejeitados por poderes Protestantes externos, e como resultado, o conflito arrastou-se em um ciclo aparentemente interminável de violência.

A imagem de uma miríade de exércitos estrangeiros marchando de um lado para outro pelo solo alemão, deixando a morte e a carnificina no seu caminho, resumem o conflito. O princípio central que emergiu dos Tratados de Vestefália no fim da guerra, foi a deliberação de que o príncipe de cada Estado, decidia que tipo de Cristianismo devia seguir no seu domínio. O tempo fez evoluir para a moderna soberania estatal como a conhecemos, com a sua crença de que os assuntos internos de um Estado estão exclusivamente sob a jurisdição do seu governo. Mas o fundamento subjacente à criação desse princípio é muitas vezes ignorado.

Os Tratados de Vestefália foram redigidos com a determinação de que a horrível saga, que a Alemanha tinha experimentado, nunca mais deveria ocorrer. Tendo em consideração essa ideia, o envolvimento militar de um Estado nos assuntos de outro seria considerado inaceitável, pelo menos parcialmente, para impedir que as potências estrangeiras alargassem as guerras civis, através de intervenções repetidas em nome do lado perdedor. O paralelismo entre as intervenções estrangeiras na Guerra dos Trinta Anos e a presença estrangeira na Síria são bastante claros.

A lista completa de incursões externas é muito longa. Durante os primeiros anos do conflito, quando os rebeldes ainda estavam a lutar para encontrar o seu caminho, os seus esforços foram assistidos pelo fornecimento de grandes quantidades de armas e outras ajudas pelo Qatar, Arábia Saudita, Jordânia e de vários outros Estados árabes. O arranjo foi formalizado em 2013, quando a Liga Árabe oficialmente aprovou o fornecimento de armas e financiamento para apoiar os grupos rebeldes. Os Estados Unidos e outros estados ocidentais, também forneceram quantidades limitadas de armas e ajuda não letal.

Os esforços foram parcialmente compensados pelo apoio limitado ao regime de Assad, pelo Irão, Rússia e Hezbollah, mas os rebeldes foram, no entanto, suficientemente reforçados para que pudessem estabilizar as suas posições e, mais tarde, pressionar o governo. A situação inverteu-se, no final de 2015, e as perspectivas militares pareciam tão sombrias para o governo sírio, que muitos especialistas previram o seu fim iminente. A Rússia, nesta fase, intercedeu mais fortemente para apoiar o regime de Assad, através do envio de conselheiros militares, desenvolvimento de ataques aéreos e o aumento de fornecimento de armamento e ajuda, permitindo ao governo recuperar gradualmente vantagem sobre os opositores.

Quando o governo sírio parece aproximar-se de um ponto em que a vitória pode estar quase ao seu alcance, os Estados Unidos intervieram disparando cinquenta e nove mísseis Tomahawk, e ameaçam com novas acções em um futuro próximo, o que promete trazer de novo, o equilíbrio de poder ao “status quo” anterior, uma vez mais, e mergulhar a guerra em um estado de indecisão e mudança. Os numerosos grupos internos apoiados externamente, continuarão a conflituar agressivamente uns contra os outros, causando ainda mais sofrimento humano, mas sem perspectiva de vitória para qualquer um dos lados.

Tais intervenções e o seu impacto, reflectem o mesmo modelo que levou a guerra civil na Alemanha a durar trinta longos e dolorosos anos, e não são só as actividades dos poderes externos na Síria que compartilham paralelismos com a Guerra dos Trinta Anos, mas também as motivações por detrás das suas acções. É de considerar que na Guerra dos Trinta Anos, os poderes externos não intervieram, apenas porque queriam defender os direitos políticos e religiosos de certas facções, mas também porque a guerra civil oferecia uma arena longe das suas terras, onde podiam demonstrar o seu poder na cena internacional, fazer valer as suas ideias estratégicas, e controlar as ambições dos seus rivais.

O rei Gustavo II da Suécia, por exemplo, decidiu mergulhar-se no conflito, em parte porque temia que os seus rivais estrangeiros adquirissem demasiado poder se a facção católica na Alemanha saísse vitoriosa. A semelhança com a Síria é notável. A Arábia Saudita, por exemplo, possui genuína repulsa contra a opressão exercida pelo governo sírio contra o seu próprio povo. No entanto, também é motivado a apoiar os rebeldes pela realização estratégica de que o derrube do regime de Assad, seria provavelmente mudar o equilíbrio regional de poder. A Rússia, da mesma forma, em 2015, interveio em parte para lembrar ao mundo o seu grande estatuto de potência, estimular um dos seus poucos aliados e exercer maior influência na região.

Mais recentemente, apesar das reivindicações formais de ter atacado o governo sírio como punição pelo uso ilegal e desumano de armas químicas, o governo americano parece ter aderido à guerra por várias outras razões, e que incluem o desejo de mostrar a sua rivalidade com a Rússia à sua população, demonstrar a disponibilidade para usar a força militar como sanção contra os Estados que cometam atrocidades dos direitos humanos, e empregar armas de destruição massiva (uma ameaça não muito subtil contra a Coreia do Norte).

É sinal de que os Estados Unidos estão a rejuvenescer a sua posição como poder global, sob a batuta do novo presidente. A Síria, da mesma forma que a situação na Alemanha forneceu um motivo distante para que esses e outros estados estrangeiros se esforçassem por avançar nas suas políticas individuais, prejudicassem as dos seus concorrentes, comunicassem a sua força e resolução a outros Estados, e enviassem mensagens a audiências internas. Através da criação de uma versão inicial da soberania, os redactores da paz vestefaliana aspiravam criar um mundo mais seguro, em que o tipo de tragédia criado pela Guerra dos Trinta Anos poderia ser evitado para sempre.

Se nenhuma potência estrangeira tivesse sido autorizada a intervir na guerra civil alemã, a lógica provavelmente demonstraria que o conflito teria permanecido predominantemente local, e teria muito menos mortes e devastação. No entanto, séculos subsequentes demonstraram, quão errada foi esta solução. A norma de não interferência permitiu e até incentivou o mundo a ficar de braços cruzados, enquanto centenas de milhões de pessoas foram mortas pelos regimes fascistas, comunistas e outros ditadores, a fechar os olhos ao horroroso genocídio e às campanhas de extermínio dos governos nazi e japonês na década de 1930, até que forçarem a invasão de outros países, e desviar o olhar para o genocídio levado a cabo no Ruanda. Estes e muitos outros casos, demonstraram as insuficiências inaceitáveis do sistema vestefaliano, e a sua ênfase na não interferência. Simplesmente não podemos e não devemos viver num mundo, em que os tiranos podem cometer atrocidades contra o seu povo livremente, e sem consequências.

A resposta global às falhas do sistema vestefaliano, foi diluir a robustez da soberania e começar a cortejar o intervencionismo mais uma vez. Vários tratados internacionais, por exemplo, permitem que os Estados possam interceder nos assuntos de outros Estados, quando crimes internos de suficiente grandeza ou tipo tenham sido cometidos. Na sequência dos fracassos da manutenção da paz da ONU, na década de 1990, a Organização libertou as protecções concedidas aos Estados através da soberania, com a criação da “Responsabilidade de Proteger”, que é uma doutrina que concede um direito e um encargo sobre os Estados de intervir nos assuntos de outros Estados, quando determinados crimes são cometidos. Foi criado também um Tribunal Penal Internacional, que pode julgar suspeitos de violação dos direitos humanos quando o seu Estado de origem é incapaz ou não está disposto a fazê-lo. Dadas as terríveis atrocidades que foram cometidas ao abrigo da soberania e das suas protecções, o regresso ao princípio da sua inviolabilidade tem um sentido considerável.

Os Estados não podem ficar de braços cruzados enquanto o genocídio e outros crimes contra a humanidade são cometidos além das suas fronteiras, sendo ao invés, idóneos e obrigados a agir nestes casos, o que é certamente algo de valioso. No entanto, quando olhamos para a Síria, é difícil não ver a mesma mecânica que levou a Guerra dos Trinta Anos a ser tão demorada e prejudicial. A intervenção externa de potências estrangeiras está a prolongar e intensificar a guerra na Síria, assim como as forças externas fizeram na Alemanha, quase quatro séculos atrás.

A tentativa de solução para este problema que foi alcançado na Vestefália, levou a um sofrimento ainda maior, ao permitir que os ditadores abusassem dos seus súbditos, e é justo que a soberania não seja mais considerada sacrossanta. No entanto, isso não altera a existência do problema original que levou à sua criação em 1648. Ao adoptar a norma do intervencionismo, as maiores potências do mundo estão a redescobrir a razão pela qual foi banido na Vestefália há tantos anos. A soberania e o intervencionismo não são a resposta certa para o problema. É necessário e urgente encontrar uma melhor solução, ou então o povo sírio ainda pode enfrentar mais vinte e três anos de guerra e miséria.

4 Mai 2017

A morte do gangster

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 19 a televisão de Hong Kong difundiu a notícia da morte de Yip Kai Foon, conhecido como o Rei dos Ladrões. Yip morreu de cancro no Hospital Queen Mary.

Yip Kai Foon nasceu em 1961 em Haifeng, na China. Ganhou fama como gangster especializado no roubo de joalharias, que assaltava empunhando espingardas AK-47. Foi o primeiro assaltante a usar este tipo de armas em Hong Kong.

O seu primeiro assalto remonta a 1984. Yip e outros cinco cúmplices roubaram duas joalharias e arrecadaram 2 milhões de dólares de Hong Kong. Foi preso e considerado culpado de quatro acusações (duas de assalto, uma por cada uma das lojas, uma por posse de armas de fogo e outra por uso de arma para resistir à detenção). Foi condenado a 18 anos de prisão.

A 24 de Agosto de 1989 conseguiu evadir-se depois de ter simulado uma crise de apendicite e de ter sido transferido para o Hospital Queen Mary. Aí, atacou dois guardas na casa de banho com uma garrafa partida e conseguiu fugir numa carrinha estacionada à entrada do Hospital. Furtou o veículo e arrancou com os dois ocupantes lá dentro, um homem de 37 anos e o filho de seis. Depois obrigou o homem a tirar a roupa para ficar com ela. Saiu em Wong Chuk Hang e apanhou um autocarro. Presume-se que a seguir tenha apanhado um avião para a China continental.

A 9 de Junho de 1991, Yip e o seu bando, armados com AK-47s e com pistolas, assaltaram cinco ourivesarias situadas na “Dourada” Rua Mut Wah em Kwun Tong. Dispararam 54 tiros contra a polícia e fugiram com ouro e jóias no valor de 5,7 milhões de Hong Kong dólares.

Yip também esteve ligado ao roubo de duas joalharias em Tai Po Road e em Sham Shui Po, a 10 de Março de 1992. Dessa vez, o bando disparou 67 tiros contra a polícia e contra transeuntes. O produto desse assalto foi avaliado em 3 milhões de Hong Kong dólares.

Pensa-se que Yip também esteve envolvido no assalto a uma joalharia situada na Nathan Road, em Mong Kok. Neste assalto, na sequência de múltiplos disparos, uma mulher que ia a passar foi morta. Durante a perseguição que se seguiu, um dos assaltantes foi morto pela polícia; os outros lançaram o corpo para o meio da rua e conseguiram fugir de carro.

A polícia de Macau suspeita que Yip esteve envolvido no assalto ao Hyatt Regency Hotel, na Taipa, que ocorreu em Abril de 1994. Desta vez foram roubadas fichas de jogo no valor de 40 milhões de Hong Kong dólares.

Em 1995, Yip passou a actuar em Shenzhen e, em Janeiro desse ano, participou no rapto e no assassinato de um empresário de Tianjin e em Novembro na morte de um informador da polícia.

Estima-se que o total do produto dos seus furtos ascenda a 20 milhões de Hong Kong dólares (aproximadamente $2,576,920 de dólares americanos).

Mas a 13 de Maio de 1996 a carreira de Yip chegava ao fim, quando foi preso na sequência de um tiroteio na Kennedy Town. Nesta troca de tiros com a polícia Yip foi atingido na espinha dorsal e ficou paralisado da cintura para baixo. Dois polícias tinham surpreendido Yip e o seu bando numa travessa perto do cais. Tinham acabado de sair de um barco, e os agentes suspeitaram que fossem imigrantes ilegais e pediram-lhes a identificação. O resto do bando conseguiu fugir, mas Yip sacou de uma arma que trazia na mala e começou a disparar. Quando mais tarde testemunharam, os polícias disseram que o tinham exortado sem êxito a depor a arma. Yip continuou a disparar. Mas, de repente, a arma encravou. Um dos polícias disparou contra ele e a bala atingiu-lhe a coluna. Yip caiu de imediato e foi preso.

A bala que o atingiu nunca chegou a ser tirada porque os médicos perceberam que a remoção ainda ia provocar mais danos na espinha dorsal. Desde essa altura Yip ficou confinado a uma cadeira de rodas e a uma sentença para a vida. Foi condenado, no acumulado das acusações, a uma pena de 41 anos de prisão.

A detenção de Yip foi um caso espantoso. Como pudemos ver, cometeu vários assaltos e conseguiu sempre escapar. Mesmo quando foi preso em 84 acabou por se evadir. Nessa altura as pessoas achavam que era impossível prendê-lo. Acabaram por ser dois polícias, que não faziam ideia de ter perante si o Rei dos Ladrões, que o detiveram. E é preciso não esquecer que um destes agentes era um recém-graduado, acabado de sair da Escola de Polícia. Prender Yip nestas circunstâncias há-de ter sido qualquer coisa de inacreditável.

Depois do tiroteio Yip ficou paralisado. Mais tarde na prisão foi-lhe diagnosticado um cancro que o veio a matar. A fase final da vida de Yip foi muito triste. Preso, paralisado e a sofrer de cancro fatal. Nem sequer podia receber os cuidados da família. Duma certa forma, antes de morrer teve apenas por companhia a doença e os seus erros.   

Os chineses têm um ditado que diz, “O nosso destino decide-se numa dimensão invisível.” Talvez a forma como foi preso seja disso um sinal. O cancro, a solidão e o peso dos seus erros serão outro. Talvez, nas sombras onde vive, o destino ajude a lei a atingir o objectivo de manter a ordem e a justiça social.

Professor Associado do IPM

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

2 Mai 2017

A luta para passar o camelo pelo buraco da agulha      

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pós o Chefe do Executivo ter anunciado a data para a realização das eleições para a Assembleia Legislativa, a Comissão de Assuntos Eleitorais da AL entrou imediatamente em funções, tendo promovido recentemente uma série de sessões de esclarecimento sobre as suas funções e tarefas. Entretanto, no seguimento do início da actividade das Comissões de Candidatura, os candidatos à Assembleia têm multiplicado os esforços de propaganda para conquistarem o voto dos eleitores.

Na sessão da Assembleia da semana passada, que contou com a presença do Chefe do Executivo, constava da ordem de trabalhos a resposta a questões levantadas pelos deputados. Muitos dos representantes eleitos por voto directo não deixaram fugir esta oportunidade para darem voz às inquietações das populações. O entusiasmo que demonstraram pode ter sido motivado pela proximidade do acto eleitoral. Foi uma oportunidade de ouro para poderem criticar publicamente a ineficácia e o mau funcionamento do Governo, uma forma eficiente para conquistar a simpatia do público. Sempre que estamos em ano de eleições, o Governo da RAEM podia candidatar-se ao título de maior “fábrica de votos”. Os candidatos que quiserem alinhar com o Governo, têm sem dúvida mais hipóteses de ser eleitos.

Aparentemente as próximas eleições serão as mais competitivas de sempre. Os media vão tomando partido e nos últimos meses, para não dizer nos últimos anos, têm vindo a “fabricar” notícias para promover os seus favoritos, garantindo, no entanto, que os conteúdos das “notícias” não sejam de cariz publicitário nem promocional. Embora a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa tenha repetidamente apelado à auto-disciplina dos media, os grupos de comunicação social mais poderosos não vêem nestas recomendações força de lei e por isso elas acabam por ser ineficazes.

Uma cultura política evoluída tem de ter como primeiro objectivo o fim da corrupção. A última revisão da Lei Eleitoral concede poder à Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa para rejeitar candidatos que provadamente não apoiem a Lei Básica, mas não lhe concede poder para rejeitar candidatos ou grupos parlamentares que provadamente se envolvam em actos de corrupção eleitoral. Estes casos são, quando muito, encaminhados para os tribunais. Nas últimas eleições para a AL alguns casos identificados de corrupção foram levados aos tribunais. No entanto as decisões do juiz não influenciaram o resultado eleitoral, porque a corrupção nestas situações actua a diversos níveis e de forma a que seja muito difícil provar as ligações dos candidatos a estes esquemas menos limpos.

Sem uma supervisão adequada, que garanta o equilíbrio, é muito difícil realizar “eleições transparentes”. Independentemente da vontade dos agentes da lei a qualidade dos eleitores é outro factor que pesa bastante. Desde o regresso de Macau à soberania chinesa, as relações entre o Governo a as diversas Associações têm vindo progressivamente a estreitar-se. Numa cidade de 600.000 habitantes, existem 7.000 Associações registadas, facto que faz de Macau a “metrópole das associações”. Refém das relações entre as várias comunidades de interesses, a Administração fica dependente da cooperação entre as diferentes associações que, por seu lado, dependem do apoio do Governo. No quadro destas relações simbióticas, torna-se difícil identificar a corrupção eleitoral. Na altura das eleições, ou o Governo reforça a vigilância, ou as acções que se desenrolam ao abrigo das áreas mais nebulosas da lei vão continuar a acontecer. A última revisão da Lei Eleitoral, enfatiza o respeito pela lei em vez de enfatizar um forte empenho na identificação da corrupção eleitoral.

Perante um eleitorado dividido por interesses pessoais e um Governo incapaz de realizar uma verdadeira monitorização deste processo, ter eleições justas e independentes vai ser mais difícil do que passar um camelo pelo buraco da agulha. Mas os que acreditam num mundo melhor têm de continuar a lutar para que a cultura política de Macau possa progredir para um patamar superior.

1 Mai 2017

O sudoku

[dropcap style≠’circle’]1.[/dropcap] Já cansa a polémica em torno do Instituto Cultural e do relatório do Comissariado contra a Corrupção que deu conta de irregularidades no método de contratação de parte dos seus funcionários. Esta semana houve mais um episódio que ficou marcado por bastante falta de jeito para a comunicação e ainda uma maior falta de pudor por parte de quem presidente ao Instituto. Ontem, a tutela abriu mais um capítulo. Mas não é isso que me leva a escrever estas linhas.

Sendo defensora de iguais condições de trabalho para quem tem o mesmo trabalho, não consigo deixar de duvidar seriamente dos métodos de recrutamento centralizado que o Governo encontrou, apresentados como se tivessem apenas virtudes. Aplicam-se a todos da mesma forma e a justiça não é isso: é tratar o igual de modo igual, mas garantir que, para aquilo que é diferente, há uma solução diferente também.

A Administração tentou acabar com situações de injustiça junto dos seus funcionários. Muito bem. Criou concursos, inventou normas em nome da transparência e disto e daquilo. Numa cidade em que há demasiados primos e ainda um maior número de amigos, fica bem ao Governo tentar demonstrar que não existem favorecimentos de natureza familiar ou social.

Mas, ao criar regras demasiado rígidas no processo de contratação, a Administração corre o risco de não ser capaz de garantir que tem gente que dá conta do recado. O Instituto Cultural e os Serviços de Cartografia e Cadastro têm naturezas diferentes, funções diferentes e objectivos diferentes. Olhar para a função pública e achar que é tudo o mesmo é um enorme erro.

O Instituto Cultural vai perder em breve quase uma centena de pessoas. Presume-se – é o que nos dizem – que são pessoas que fazem falta para o normal funcionamento da entidade. Quem manda nela queixa-se de que não tem pessoal suficiente, que o trabalho aumentou muito nos últimos anos.

Vamos ver no que isto dá, mas é preciso começar a pensar que nem toda a Administração funciona das nove às seis, carimba os mesmos papéis todos os dias, lida com os mesmos assuntos todas as semanas. Há organizações dentro do edifício administrativo que não podem ser condicionadas pela burocracia extrema que alguém inventou – e muitos alimentam – em nome de um rigor que, quase sempre, não corresponde à verdade.

Independentemente da razão que o Comissariado contra a Corrupção tem em relação ao método de recrutamento dos trabalhadores que, nos próximos meses, vão ser corridos, o assunto já cansa. Curiosamente, morreu mais cedo a polémica em torno das recomendações feitas ao Ministério Público pela secretária para a Administração e Justiça, numa altura em que tinha já poder na cidade. Curiosamente, o assunto foi rapidamente esquecido. Um dia saberemos porquê.

2. Ainda a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa. Esta semana tivemos mais um episódio estranho protagonizado por esta estranha comissão que, em termos práticos, quer obrigar jornalistas a permanecer em silêncio durante o mês em que é proibida a propaganda eleitoral, quer obrigar os candidatos a fazerem reuniões e manifestações em surdina, quer obrigar as empresas de telecomunicações a apagarem comentários nas redes sociais que sejam entendidos como propaganda eleitoral.

De cada vez que a comissão faz tentativas de esclarecimento ou profere declarações sobre o que se pode ou não fazer, aumentam as minhas dúvidas sobre o verdadeiro papel do organismo. E aumentam as minhas dúvidas sobre o que deverei fazer no mês de Agosto.

Há um moralismo em quase tudo que dali vem: é o discurso ‘não é ilegal, mas não deve ser feito’. Em relação ao papel da comunicação social, deixam-se uns conselhos vagos sobre problemas concretos. Na vida de quem escreve todos os dias num jornal, estas dicas abstractas de como se ser bem comportado não me dizem nada. Só sei ler leis, nunca tive paciência para paternalismos.

A coisa será assim: dentro do período de proibição de propaganda eleitoral cabe a recta final – 15 dias – da actual legislatura. De acordo com a comissão liderada por Tong Hio Fong, juiz de profissão, não é suposto a comunicação social dar mais destaque a um candidato do que a outro e fazer apelos implícitos ao voto. Há deputados que são candidatos, muitos deles. Há candidatos que, enquanto deputados, vão dizer na Assembleia Legislativa, de forma implícita, que eles é que são bons. Os jornais vão dar mais destaque a um deputado-candidato do que a outro deputado-candidato, porque os jornais não fazem actas dos plenários – filtram o que entendem ser mais relevante. Os jornais estão tramados.

Assim sendo, resta perguntar à comissão o que prefere: que as páginas de Agosto normalmente reservadas a assuntos políticos sejam preenchidas com palavras cruzadas ou com problemas de sudoku. Sempre dá para os leitores passarem o tempo num Verão que se quer matar antes de ter nascido.

1 Mai 2017

25 de Abril já, ou tudo preso!

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão sei se os estimados leitores deram conta disso, mas foi dia 25 de Abril na passada quarta-feira, há dois dias. Ah, pois é. Foi dia vinte e cinco no mundo inteiro, de facto, mais cedo para uns do que para outros, mas no mundo que fala português (menos no Brasil), comemorou-se o 43º aniversário da Revolução dos Cravos, conhecido para os mais novos sobretudo como “aquele dia que é feriado, cabom”. Nem de propósito, foi dos mais novos que a TDM se lembrou, e foi Escola Portuguesa adentro fazer às angelicais criaturas que por lá proliferam fazer uma sacramental pergunta: o que é para ti o 25 de Abril. Uma versão adaptada do Bastos, “olha lá, onde é que tu estavas no 25 de Abril?”. Aqui as criaturas obviamente que simplesmente não estavam, e em muitos casos nem os respectivos paizinhos delas – olha eu aqui que não me deixo mentir.

As respostas foram do mais surreal que há, mas fiquei contente por saber que as criancinhas tentam explicar a coisa, pelo menos. Ah, e tal, ditadura. Ah, e tal, liberdade. Aqui não é feriado, que pena. Fiquei boquiaberto de espanto ao ouvir coisas do calibre de “o 25 de Abril aconteceu porque o Salazar não nos dava liberdade”, mais o Salazar para aqui, mais o Salazar para acolá, olha, até cheguei a ter pena do tirano beato de Santa Con…Comba. O senhor já tinha morrido quatro anos antes, ó meninos. A natureza encarregou-se disso, portanto como podem ver não há mal que sempre dure. A reportagem terminou com chave d’ouro, com a jornalista a perguntar a uma estudante do ensino básico “o que seria se não tivesse acontecido o 25 de Abril”, ao que a pequena retorquiu “estávamos todos presos!”. Toma lá que já abrilaste!

Ora bem, fiquei encantado com a criançada, a quem no meu tempo era muito mais difícil perdoar a ignorância – e havia burrice a rodos, se havia. O que não me encanta assim tanto é ver a quantidade de resmungões. Sim, resmungões, e nestas contas não entra a idade. Há por aí muito menino e menina que há 43 anos ainda andava a balançar entre o esquerdo e o direito a proferir chorrilhos de inanidades do tipo “antes é que se estava bem”, e “havia respeito, e não se viam as poucas vergonhas que se vêem agora por aí”, ou ainda “os pretos estavam todos em África” (menos o Eusébio e outros quadros especializados do desporto e das artes). Então vá lá, querem saber uma coisa: NÃO! É MENTIRA! Pela enésima vez: quem não gostou do 25 de Abril porque estava então ou estaria agora mais bem acomodado, paciência. É entre os tais resmungões que se encontram muitos destes desatinados com a vida, a quem a tal liberdade e democracia não lhe fez sair a sorte grande, então pronto, que se lixe, bardamerda para a liberdade e para a democracia. Que bonita figura.

Para mim foi porreiro pá, achei óptimo, como acho cada vez que se derruba a canalhada fascista e ditadora. Depois houve o PREC e mais não sei o quê – e depois, o que é que o 25 de Abril tem a ver com isso? Comemora-se o dia, não o que se fez depois com ele, umas vezes bem, quase sempre mal. E não é para isso que serve a liberdade, para se poder fazer asneiras à vontade, e eventualmente pagar por isso? É a outra face de ser recompensado por se fazer o bem, é a dialéctica da liberdade. Com Salazar, que desta vez foi “injustiçado” pela rapaziada da EPM é que não se fazia nada, meus amigos. Não vos quero maçar mais – e tinha pano para mangas – e assim sendo termino. Não sem antes desejar um feliz Dia da Liberdade para todos  os leitores do Hoje Macau. Sim, todos, mesmo os resmungões. Feliz 25 de Abril, ó chefe.

27 Abr 2017

O aquecimento global como desafio ambiental

“We will know only what we are taught; we will be taught only what others deem is important to know; and we will learn to value that which is important.”
Native American proverb

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Terra não herdámos dos nossos antepassados, mas sim tomámos emprestada dos nossos filhos. Este antigo e nativo provérbio americano e o que implica, soam actualmente, como se tornou cada vez mais óbvio, que as acções das pessoas e as interacções com o ambiente afectam não só as condições de vida, mas também as de muitas gerações futuras. Os seres humanos devem analisar o efeito que têm sobre o clima da Terra, e como as suas escolhas terão um impacto sobre as gerações futuras. Muitos anos antes, Mark Twain, disse que “O mundo todo fala sobre o clima, mas ninguém faz nada”, o que não é mais verdade.

Os seres humanos estão a mudar o clima do mundo, e assim o clima local, regional e global. Os cientistas dizem-nos que o ambiente é o que nós esperamos, e o clima o que obtemos. As alterações climáticas, ocorrem quando esse clima médio muda a longo prazo, em um local específico, uma região ou todo o planeta. O aquecimento global e as alterações climáticas são temas urgentes, de discussão diários nos meios de comunicação social, conversas e até mesmo nos filmes de terror.

Quanto significa de facto? O que representa o aquecimento global para as pessoas? O que deveria significar? são das questões mais importantes. O aquecimento global e as suas ameaças são reais. Tal como os cientistas desvendam os mistérios do passado, e analisam as actividades actuais, alertando que as gerações futuras podem estar em perigo. Há uma evidência esmagadora de que as actividades humanas estão a mudar o clima do mundo. A atmosfera terrestre pouco mudou nos últimos milhares de anos, mas actualmente, existem problemas em manter o equilíbrio.

Os gases de efeito estufa estão a ser adicionados à atmosfera a uma taxa alarmante. A partir da Revolução Industrial, nos finais do século XVIII e início do século XIX, as actividades humanas de transporte, agricultura, queima combustíveis fósseis e biomassa, eliminação e tratamento de resíduos, desflorestação, centrais eléctricas, uso da terra, e processos industriais, têm sido os maiores contribuintes para a concentração dos gases de efeito de estufa. Essas actividades estão a mudar a atmosfera mais rapidamente, do que os seres humanos enfrentaram alguma vez. Alguns pensam que aquecer a atmosfera da Terra por alguns graus é inofensivo e não poderia ter nenhum efeito sobre os seres humanos, mas o aquecimento global é mais do que apenas uma tendência de aquecimento ou arrefecimento.

O aquecimento global pode ter consequências ambientais, sociais e económicas imprevisíveis e de longo alcance. A Terra viveu uma idade de gelo de treze mil anos no passado. As temperaturas globais aqueceram depois cinco graus e fundiram as vastas camadas de gelo,  que cobriram grande parte do continente norte-americano. Os cientistas prevêem que as temperaturas médias podem subir sete graus durante este século. O que acontecerá com os restantes glaciares e calotes polares? Se as temperaturas subirem, como prevêem os cientistas, haverá menos água doce disponível, e um terço da população mundial, ou mais de dois mil milhões de pessoas sofrerão de falta de água.

A falta de água impedirá que os agricultores cultivem as terras e produzam alimentos, o que também irá destruir permanentemente peixes sensíveis e habitats de vida selvagem. À medida que os níveis do oceano subirem, o litoral e as ilhas serão inundadas e destruídas. As vagas de calor podem matar dezenas de milhares de pessoas e com temperaturas mais quentes, surtos de doenças se espalharão e intensificarão. Esporos de fungos ou mofos na atmosfera irão aumentar, afectando os que sofrem de alergias. Um aumento severo no clima poderia resultar em furacões semelhantes ou mesmo mais forte do que o Katrina, em 2005, que destruiu grandes áreas do sudeste dos Estados Unidos.

As temperaturas mais elevadas farão com que outras áreas, sequem e se tornem mecha para incêndios florestais maiores e mais devastadores que ameaçam florestas, vida selvagem e casas. Se a seca destruir as florestas tropicais, os combustíveis fósseis e a poluição da Terra serão afectados, prejudicando a água, ar, vegetação e toda a vida. Ainda que, os Estados Unidos tenham sido um dos maiores contribuintes para o aquecimento global, situa-se muito abaixo dos países e regiões, como o Canadá, Austrália e Europa Ocidental, a tomar medidas para corrigir o dano que tem sido produzido.

O aquecimento global é um conjunto multi-volume que explora o conceito de que cada pessoa é membro de uma família global, que compartilha a responsabilidade de corrigir esse problema. Na verdade, a única maneira de corrigi-lo é o trabalho conjunto em direcção a um objectivo comum. Um dos maiores contribuintes causados pelo homem para o aquecimento global, são os gases de efeito estufa, emitidos para a atmosfera através da queima contínua de combustíveis fósseis. Enormes quantidades de gases de efeito estufa, como o vapor de água, dióxido de carbono (CO2), metano, óxido nitroso e ozónio, são emitidos diariamente. Durante muitos anos, os Estados Unidos foram o maior contribuinte, mas a China e a Índia, devido às suas  revoluções industriais, tornaram-se o maior emissor de CO2 do mundo.

Os combustíveis fósseis, como o petróleo, gás natural e carvão, são as principais fontes de energia dos Estados Unidos, representando 85 por cento do consumo actual de combustível para fins de transporte, industrial, comercial e residencial. Quando os combustíveis fósseis são queimados, entre os gases emitidos, um dos mais significativos é o CO2, que é um gás que retém o calor na atmosfera da Terra. A queima de combustíveis fósseis, nos últimos 200 anos, resultou em mais de 25 por cento de aumento na quantidade de CO2 na atmosfera. Os combustíveis fósseis também estão implicados no aumento dos níveis de metano atmosférico e óxido nitroso, embora não sejam a principal fonte desses gases. O carbono negro é uma forma de poluição do ar em partículas, produzida pela queima de biomassa, cozimento com combustíveis sólidos e gases de escape diesel, e tem um efeito de aquecimento na atmosfera, três a quatro vezes maior do que o previamente calculado.

A fuligem e outras formas de carbono negro podem contribuir com até 60 por cento do actual efeito de aquecimento global de CO2, mais do que qualquer outro gás de efeito estufa, além do CO2. Nos últimos anos, entre 25 e 35 por cento do carbono negro na atmosfera global, provêm da China e da Índia, emitido pela queima de madeira e esterco de vaca nas cozinhas domésticas e pelo uso de carvão para aquecer as habitações. Os países da Europa e outros países que dependem fortemente de combustível diesel para o transporte, também contribuem com grandes quantidades. Desde que registos confiáveis começaram no final dos anos 1800 a ser efectuados, a temperatura média global da superfície terrestre aumentou entre 0.3 e 0.6 graus.

Os cientistas do “Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em língua inglesa)”, concluíram em um relatório de 1995, que o aumento observado na temperatura média global no último século, provavelmente, não será de origem totalmente natural, e que o balanço das evidências sugere que há uma ” Influência humana discernível no clima global “. O ar limpo também é essencial para a vida, boa saúde e qualidade de vida. Vários poluentes importantes são produzidos pela combustão de combustíveis fósseis e emitidos directamente na atmosfera, como o monóxido de carbono, óxidos de nitrogénio, óxidos de enxofre e hidrocarbonetos.

É de considerar também, as partículas suspensas totais (minúsculas partículas aerotransportadas de aerossóis com menos de 100 micrómetros [um micrómetro é de 1/1000 de milímetro], que constantemente entram na atmosfera, tanto por meio de processos industriais e veículos motorizados], e fontes naturais [de pólen e de partículas de sal]) contribuem para a poluição do ar, e os óxidos de nitrogénio e os hidrocarbonetos podem combinar na atmosfera, para formar o ozónio troposférico, componente principal da poluição atmosférica. As emissões de combustíveis fósseis são adicionadas à atmosfera por vários meios. O maior contribuinte é o sector dos transportes.

Os automóveis são a principal fonte de emissões de monóxido de carbono. Os dois óxidos de nitrogénio – dióxido de nitrogénio e óxido nítrico são formados durante a combustão. Os óxidos de nitrogénio aparecem como nuvens castanhas amareladas sobre muitos arranha-céus das cidades. Os óxidos de enxofre são produzidos pela oxidação do enxofre disponível em um combustível. Os hidrocarbonetos são emitidos de fontes humanas, tais como os escapes de automóveis e motociclos. O uso de combustíveis fósseis também produz partículas, incluindo poeira, fuligem, fumaça e outras matérias em suspensão, que são substâncias irritantes das vias respiratórias. A poluição do ar forma frequentemente a névoa acastanhada predominante, que foi denominada por nuvem marrom atmosférica. Esse nevoeiro com fumaça, está a causar efeitos ambientais sérios. É um perigo para a saúde pública, causando problemas respiratórios graves em todo o mundo.

O aquecimento global é o desafio ambiental mais urgente do século XXI. Devido à dependência contínua do mundo dos combustíveis fósseis como fonte de energia, os níveis de gases de efeito estufa, estão a aumentar constantemente na atmosfera e a aquecer a Terra. Se a acção correctiva não for tomada, as temperaturas continuarão a subir, causando a destruição mundial dos ecossistemas e a extinção das espécies. O maior contribuinte para o aquecimento da atmosfera é o uso excessivo de combustíveis fósseis para a produção de energia. Se não forem empregues tecnologias mais eficientes e limpas, fontes de energia renováveis, como a energia eólica, energia solar, células de combustível ou energia geotérmica, para substituírem os combustíveis fósseis, não haverá esperança de controlar o aquecimento global.

Os combustíveis fósseis são hidrocarbonetos, derivados de carvão e petróleo (óleo combustível ou gás natural) e são formados a partir de restos fossilizados de plantas e animais enterrados, que foram submetidos ao calor e à pressão na crosta terrestre durante centenas de milhões de anos. Os combustíveis fósseis também incluem substâncias como o xisto betuminoso e areias betuminosas, que contêm hidrocarbonetos que não são derivados exclusivamente de fontes biológicas, e referidos como combustíveis minerais. Actualmente, a maior parte da indústria do mundo desenvolvido depende fortemente de combustíveis fósseis para produzir a energia necessária ao fabrico de bens e serviços.

O calor derivado da queima de combustíveis fósseis, também é usado para aquecimento e convertido em energia mecânica para veículos e produção de energia eléctrica. A queima de combustíveis fósseis é a maior fonte de emissões de dióxido de carbono (CO2). Infelizmente, o seu uso está a aumentar constantemente. Um dos maiores dilemas que enfrentamos é que a China e a Índia, em 2012, na sua corrida para modernizar e industrializar, tinham um plano para construir mais de oitocentas centrais a carvão, e aumentar as emissões de CO2. A China desistiu da construção de 104 centrais a carvão.

Os combustíveis fósseis são compostos quase inteiramente de carbono, e quando são queimados, como em uma central a carvão ou na forma de gasolina, o carbono de que são compostos é libertado na atmosfera sob a forma de CO2. Os combustíveis fósseis mais comuns são o carvão, gás natural e petróleo. Outro gás fóssil, o gás liquefeito de petróleo (GLP), é principalmente derivado da produção de gás natural.

Segundo o último relatório da OMS, morrem anualmente 1,7 milhões de crianças de idade inferior a cinco anos por causas relacionadas com o meio ambiente. A redução dos riscos ambientais poderia evitar uma quarta parte dessas mortes. Entre os riscos ambientais encontram-se a poluição do ar, os produtos químicos e o deficiente fornecimento de água, o saneamento e a higiene. A minimização destes riscos é fundamental para proteger as crianças e alcançar os “Objectivos do Desenvolvimento Sustentável”.

As exposições a agentes ambientais começam na vida intra-uterina e podem ter efeitos para toda a vida. As crianças e adolescentes estão expostos a diversos perigos presentes nos ambientes em que vivem, aprendem e brincam. A poluição do ar é uma ameaça invisível para a saúde das crianças. A poluição do ar causa anualmente a morte de 570.000 crianças de idade inferior a cinco anos de idade, incluindo-se a exposição ao fumo do tabaco de terceiros e a poluição atmosférica do ar interior.

A poluição do ar pode afectar nas crianças a dificuldade de desenvolvimento intelectual, reduzir a função pulmonar e causar asma e criar as condições para o aparecimento de problemas futuros, como os diversos tipos de cancro, doenças respiratórias crónicas, doenças cardiovasculares e acidentes cerebrovasculares. A cada ano morrem de pneumonia cerca de 1 milhão de crianças. A metade desses casos está relacionada com a poluição do ar. Quando aprenderão a maioria dos países a legislar em conformidade com as instruções e relatórios da OMS?

27 Abr 2017

Um “elefante branco” sempre problemático

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] metro ligeiro tornou-se um alvo de crítica por parte dos políticos, um motivo de piada nas conversas dos cidadãos, e uma ironia que reflecte o desempenho do Governo. Depois de tantas prorrogações de prazos e derrapagens orçamentais, podemos finalmente ver que o segmento da Taipa está a ganhar forma.

Ainda assim, duvido se este “elefante branco”, que já gerou despesas na ordem das 11 mil milhões de patacas, possa efectivamente começar a circular daqui a dois anos, como está previsto.

Mesmo que esta meta seja cumprida, percebemos que o funcionamento deste sistema de transporte poderá representar um grande encargo financeiro. Pelo que percebi das explicações do Governo sobre a proposta de lei do sistema de transporte de metro ligeiro, cuja consulta pública acabou de terminar neste mês, nas estações do metro não estão reservados espaços para o funcionamento de restaurantes, cafés ou lojas de retalho.

Isso significa que o Governo ou a empresa gestora só poderá obter receitas através da publicidade e das tarifas cobradas aos passageiros, e já foi dito que os preços dos bilhetes serão baixos. O secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo do Rosário, afirmou que os custos do funcionamento do metro ligeiro não são baixos, então deve estar preparado para suportá-los.

Não me parece adequado que as estações do futuro metro ligeiro sirvam apenas para a chegada e partida das carruagens, pois essa não é a prática comum de muitos países. Nas estações de metro de todo o mundo há lojas de roupas e restaurantes, espaços onde se vende artesanato ou com mostras culturais.

A justificação até pode ser o facto dos espaços serem reduzidos, mas não acredito que nas estações não caibam diversas lojas. Isso poderia ajudar à diversificação do turismo e dos visitantes que apanham o metro. Poderia ainda facilitar à concretização de outro tipo de negócios e, através disso, o Governo poderia ganhar receitas.

O metro ligeiro representa sempre problemas e preocupações. Mas, ao menos, já podemos imaginar a realidade de ver o metro ligeiro a funcionar na Taipa. Acontece que, quando perguntamos ao Governo qual será o funcionamento do sistema de transporte em concreto, a resposta é sempre que é cedo para discutir o assunto. É difícil não duvidar da forma como vai ser gerido este gigante das obras públicas.

Faltam apenas dois anos para que a primeira linha de metro ligeiro funcione em Macau, mas se olharmos para os procedimentos administrativos que faltam concluir, parece-me que uma discussão concreta sobre a sua operacionalização deveria ser feita já. O Executivo não está a ter a percepção da velocidade do projecto.

No ano de 2019 termina o mandato do actual Chefe do Executivo e dos cinco secretários, incluindo o de Raimundo do Rosário. Este já afirmou que não quer continuar no cargo. Se os trabalhos relacionados com o metro ligeiro não ficarem definidos dentro deste mandato, é preocupante pensar que o funcionamento deste meio de transporte possa mais uma vez ficar afectado devido à mudança de Executivo.

Terminou a consulta pública, e já sabemos que, novidades, só depois do Governo terminar a análise das opiniões e a elaboração do respectivo relatório.

 

26 Abr 2017

A menoridade e a doação de órgãos

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] semana passada o site de notícias SCMP de Hong Kong, anunciou que a jovem Michelle, de 17 anos, solicitou à Autoridade Hospitalar de Hong Kong autorização para ser submetida a exames médicos, porque queria doar parte do fígado à mãe. Michelle só completa 18 anos daqui a três meses – a idade legal para se poder ser doador. A mãe de Michelle, Tang Kwai-sze, cujo fígado deixou praticamente de funcionar, estava na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Queen Mary, em Hong Kong, entre a vida e a morte. Se não se encontrasse com urgência um doador compatível, poderia ter apenas alguns dias de vida.

Mas, de repente, o milagre aconteceu. Ah Yan, uma jovem de 26 anos residente em Hong Kong, voluntariou-se para doar parte do fígado a Tang. A operação, que teve lugar no passado dia 13 e durou 13 horas, foi bem-sucedida. Na altura em que este artigo foi escrito, Tang e Ah Yan encontravam-se bem.
Este caso desencadeou um debate em Hong Kong em torno da doação de órgãos. Nesta cidade o Regulamento de Transplante de Órgãos Humanos impede a Autoridade Hospitalar de efectuar transplantes de órgãos de menores. Segundo o Regulamento, não existem excepções. A lei é rigorosa para proteger os menores. Os doadores têm de ter pelo menos 18 anos.
Kwok Ka-ki, médico e deputado do Civic Party, afirma que a lei de Hong Kong está a atrasar os processos e não vai ao encontro da posição oficial do Governo, que encoraja a doação de órgãos. Na Escócia não existe limite de idade para doadores e em Alberta, no Canadá, os menores são autorizados a doar órgãos e tecidos.
No entanto, este assunto é muito questionável. A lei pretende proteger os menores quando impede que existam doadores com menos de 18 anos. Michelle tem 17 anos e 9 meses. Está a três meses de completar os 18. Em termos de idade a diferença é praticamente nula. Além disso a destinatária da sua doação seria a mãe. Alguém com quem tem uma relação muito estreita. Michelle expressou a sua vontade perante a opinião pública de doar parte do fígado para salvar Tang. Neste caso não pode haver suspeitas de pressão psicológica. Só podemos concluir que Michelle desejava salvar a mãe por vontade própria. A doação era uma forma de afirmação de amor filial.
No entanto, devemos compreender que a lei é a lei. “18 anos” é a idade mínima legal para se ser doador de órgãos. Com esta idade existe maturidade legal. A pessoa tem capacidade de tomar decisões e é responsável pelas suas acções.
Desta forma podemos concluir que, se Michelle fosse autorizada a doar parte do fígado a Tang, não só seria ilegal, como se veria privada de protecção jurídica.
A lei em Hong Kong é diferente da de Macau. Em Macau, os menores não podem assumir qualquer responsabilidade pelos seus actos. A responsabilidade civil está totalmente a cargo dos pais. Contudo, em Hong Kong, têm autonomia para tomar algumas decisões legais. Podem, por exemplo, celebrar contratos de compra e venda de bens destinados ao seu consumo. Esta possibilidade está consignada na secção 4 do Regulamento de Compra e Venda.
De acordo com a jurisdição do Direito Comum, o menor é protegido por diversos mecanismos. O exemplo típico é o que se refere ao casamento. Se um menor se casar, dentro de um certo prazo, pode anular a união após completar os 18 anos. E que duração tem esse prazo? A lei não específica. Varia de caso para caso. Mas o casamento de um menor está dependente da autorização paterna.
Outro exemplo é a criação de uma sociedade comercial. Se um menor for sócio de uma empresa comercial terá de beneficiar da sua parte dos lucros, mas, caso haja prejuízos, não será responsabilizado pela sua parte das perdas, o único responsável será o sócio adulto.
A mesma lógica vai aplicar-se se um menor comprar acções ou propriedades. É por este motivo que as seguradoras de Hong Kong não aceitam cobrir negócios que envolvam sócios menores. Para o fazerem todos os envolvidos terão de ter mais de 21 anos.
Podemos assim constatar que, perante o sistema jurídico de Hong Kong, os menores têm algumas capacidades, mas não a capacidade plena para tomar decisões legais. Para proteger os seus interesses, a lei estabelece alguns limites. A doação de órgãos encontra-se para lá desses limites.
No entanto, o Governo da RAEHK anunciou que irá proceder a uma consulta pública sobre esta matéria. A possibilidade de os menores doarem órgãos vai ser debatida no seio da sociedade de Hong Kong. Para já, ninguém sabe quais vão ser as conclusões deste debate. Mas uma coisa será certa, mesmo que os menores venham a ser autorizados a doar órgãos, essa autorização vai estar restrita a situações muito especiais. A protecção aos menores consignada na lei não poderá ser afectada por um novo regulamento.

25 Abr 2017

Saúde Feminina

dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara este exercício reflexivo tentarei de alguma forma pensar na saúde sexual feminina no debate médico contemporâneo, onde a medicina convencional está muitas vezes em conflito com as ditas medicinas alternativas. Não sou pessoa para defender um discurso anti-científico. Nada disso. Mas apresentar-me-ei aqui como alguém que se sente perdida nesta encruzilhada que pode ser a tensão entre a medicina tal como a conhecemos e a medicina holística e de prevenção, em particular, quando falamos do sexo feminino.
A saúde sexual feminina tem como especialidade médica a ginecologia. Qualquer mulher de qualquer idade verá com regularidade um médico assim que se tornar sexualmente activa. Este médico irá sentá-la numa geringonça, que é uma cadeira, e inspeccionará a vulva, a vagina e o colo do útero. Todos estes detalhes do órgão reprodutor feminino serão analisados para determinar a sua saúde e normalidade. Quantas de nós não visitou a especialidade com queixas de desconforto, com corrimentos esquisitos ou dores estranhas? Lá somos vistas, medicadas e, se tudo correr bem, não precisaremos de voltar tão cedo. Só na nossa próxima sessão de rotina anual. Até aqui, tudo bem. Não fosse a minha surpresa de nunca me terem informado exactamente como posso manter as minhas partes femininas saudáveis. Em qualquer outra especialidade poderão informar-vos de preferências alimentares, exercícios ou outros cuidados a ter. Em relação à saúde sexual feminina, será que há uma educação aberta, bem informada e clarificada do que devemos e não devemos fazer?
Estes recantos femininos podem ser completos desconhecidos para quem os detêm. O desconforto em falar das nossas partes mais íntimas faz com que seja difícil falar abertamente de como manter o nosso sexo saudável – ou de como evitar irritá-lo. Uma perspectiva mais holística de saúde vos dirá uma data de coisas, até que o vosso nível de stress pode afectar a forma como a vossa vagina se sente (mas tudo é afectado pelo stress, não é?). Trata-se de um ambiente tão delicado, um ecossistema tão bem coordenado que temos que ter cuidado em não perturbá-lo. Se a vagina tem poderes de auto-limpeza, isso só é verdade se ela conseguir encontrar o seu equilíbrio para tal.
O que é que pode irritar as partes íntimas? (1) Roupa demasiado justa e, especialmente, de materiais sintéticos são má ideia. A delicada pele vulvar não será capaz de respirar de forma apropriada, e poderá provocar alergias e outros problemas. (2) Duches vaginais são desapropriados, colocar líquidos lá para dentro poderá perturbar toda a dinâmica. (3) As vulvas é que precisam de uma lavagem regular e cuidada, que deve ser feita com sabões sem cheiros, sem cores. Quanto mais simples, melhor! (4) Ter sexo sem estar devidamente lubrificada é puro masoquismo. Para evitar rupturas de tecido, ou dor em geral, verifiquem se estão em situação ideal para penetração e, se for preciso, peçam ajuda ao amigo lubrificante que é para isso que ele serve. (5) Cuidado com as depilações. Em outras ocasiões tentei reforçar que o look natural de pêlos púbicos são provavelmente a solução mais saudável, mas para quem quiser aparar, ou cortar por completo, recomenda-se que troquem de lâmina regularmente para evitar o desenvolvimento de infecções em pêlos encravados.
A medicina convencional já começa a alertar-nos para algumas destas práticas, mas as medicinas alternativas vão para além destas recomendações e propõem receitas caseiras para situações regulares de mau-estar vaginal. Existem neste momento algumas modas alternativas para prevenir e/ou curar vaginites, e que têm gerado alguma controvérsia. Fala-se em banhos de vapor, tratamentos feitos com iogurte, alhos ou vinagre. A Medicina Tradicional Chinesa, por exemplo, também nos ensina que não devemos ingerir alimentos frios durante a menstruação para prevenir dores. Tudo isto parece-nos bem – mas os ginecologistas convencionais parece que não acham muita graça a estas sugestões dizendo que não há evidência científica para defendê-las. Sim, alhos provavelmente não são boa solução para curar o que quer que seja, por isso não os experimentem! Porque apesar de tudo, há muitas pessoas por aí que não sabem o que dizem. Mas há outras que até sabem, acerca do vinagre, por exemplo: uma colher de sopa de vinagre de cidra em um litro de água poderá ajudar a aliviar o desconforto vulvar provocado pela candidíase. Fica a dica da semana.
Eu sou da opinião de que a saúde feminina seria muito mais interessante se não houvesse uma tensão entre medicinas. Esta tensão existe porque a natureza de cada uma delas não se alinha numa ideologia/paradigma. Especialmente quando falamos de saúde feminina, que ao longo da história da ciência foi gentilmente posta em desvantagem em relação a outras áreas. Em geral, a saúde nunca foi/é um tópico fácil porque envolve processos biológicos, fisiológicos, psicossomáticos e emocionais que ainda ninguém percebeu muito bem como se relacionam, mas que estamos por descobrir.

25 Abr 2017

A tentação de ser Deus

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om o bombardeamento da base aérea de Shayrat na Síria justificado por terem sido mortas crianças vítimas de um alegado ataque químico – aparentemente a substância utilizada teria sido o gás sarin –, Donald Trump cedeu à tentação de se fazer passar por Deus. O Deus justiceiro, omnipresente, que pune quando alguém não segue os mandamentos sagrados. A ideia de que Bashar Al-Assad passou uma linha inaceitável, uma linha de não retorno, seria a razão de ser da retaliação dos Estados Unidos da América. A retaliação estaria pois fundamentada. Na narrativa que acompanhou o ataque, repetida quer por Trump quer pela diplomacia norte-americana, estava aberta a porta para um envolvimento mais empenhado de Washington no afastamento de Assad do poder. Seria essa uma espécie de condição sine qua non para a paz. Cedeu à tentação, mas rapidamente lhe passou.

A banalização dos eventos e uma certa incapacidade de reagir complica particularmente a actividade de quem pretende executar a justiça, seja ela divina ou dos homens. Responder de uma forma justa a todas as situações injustas é um problema muito complexo a quem se atribui a si próprio as funções de Deus. Mas o problema de Deus Trump (ou de qualquer outro empenhado em vingar o Direito Natural é um problema de coerência. E de consciência, bem entendido. O Deus Trump (ou outro qualquer) não pode deixar de actuar em situações parecidas.

Mas, pouco mais de uma semana depois do alegado ataque com gás sarin em Khan Sheikhoun, em território controlado por rebeldes, terão morrido nos arredores de Aleppo, também na Síria, mais outras 126 pessoas, entre as quais estariam pelo menos 68 crianças. Segundo o relato da imprensa internacional, não terá sido utilizado nenhum componente químico contra a população civil. O atentado que levou Donald Trump a intervir terá provocado a morte a 89 pessoas, entre as quais 33 crianças. Num conflito em que as Nações Unidas deixaram de contar o número das vítimas mortais quando terá chegado às 400 mil pessoas – noutro exemplo claro de que a banalização dos acontecimentos leva à saturação de quem tem a obrigação de agir.

No entanto, a descrição deste novo atentado, nos arredores de Aleppo, a 15 de Abril, como que passou ao lado da grande imprensa. A narração do que se passou está em sítios como o da BBC, mas não obteve a visibilidade de outros eventos do conflito sírio. Num momento em que se estava a proceder à retirada de pessoas de bairros cercados por rebeldes, um outro autocarro, carregado de explosivos, avançou contra o comboio de deslocados. O facto de que esta facilitação da passagem de habitantes de diferentes bairros ter sido acordada directamente entre o governo e os rebeldes também não merece muitas linhas na imprensa internacional. O ataque não foi reclamado por nenhum dos vários grupos do complexo conflito sírio. E levou a que a evacuação destes bairros fosse interrompida por quase uma semana.

O verdadeiro problema destes filhos de um Deus nenhum em que se transformaram os sírios, abandonados à sorte de estarem vivos, é que já ninguém liga. Nem mesmo a chamada imprensa internacional, outra entidade que procura ser imparcial, justa e honesta. Isso é cada vez mais evidente.

A imprensa internacional tem dedicado grande atenção aos primeiros 100 dias de Donald Trump na Casa Branca, como que tentando caracterizar o que se pode esperar dos outros três anos e nove meses da sua presidência. Destes três meses iniciais e depois de um ataque massivo a uma base aérea na Síria, que, segundo a narrativa norte-americana, terá destruído 20 por cento da capacidade da força aérea de Assad, e do uso da mãe de todas as bombas no Afeganistão, o que se pode concluir é que Trump não parece ter a vontade de desempenhar o papel de Deus.

O discurso, a certeza, é que ele quer um papel cada vez menor para os Estados Unidos no mundo. Isto foi apenas uma distracção. A certeza de que Trump se enganou quando quis representar o papel de Deus veio pelo próprio Presidente norte-americano. O primeiro-ministro italiano foi a Washington sugerir um envolvimento maior dos Estados Unidos na Síria, para contribuir para o fim do conflito, e a resposta que levou foi um rotundo não, alegando que os EUA já desempenham demasiados papéis no mundo. O que estes primeiros meses demonstram é que a imprevisibilidade, a incerteza, a errância vão ser a marca de Donald Trump. Um Presidente mais preocupado em aparecer no prime time do que em definir políticas ou princípios que honrará nas relações internacionais.

24 Abr 2017

A boa vontade é necessária para unir

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pós Carrie Lam ter sido eleita para o cargo de Chefe do Executivo de Hong Kong, o Cardeal John Tong Hon da Diocese da cidade enviou-lhe uma carta de felicitações, manifestando esperança que o próximo Governo possa promover avanços no processo democrático e na salvaguarda da liberdade religiosa. Na carta, o Cardeal John Tong Hon afirma que “a Igreja Católica continuará a reger-se pela “doutrina social da Igreja”, estabelecida pelos diferentes Papas, a qual realça a importância das eleições democráticas como pilar do exercício do poder político”. Expressa ainda o desejo que Carrie Lam possa “fazer avançar o processo democrático em Hong Kong durante os cinco anos do seu mandato, no sentido de alcançar o derradeiro objectivo: a participação universal”. Declara também que a Diocese Católica de Hong Kong “tem desejado desde sempre manter uma parceria positiva e colaborante com o Governo local em benefício da comunidade” e espera que o Governo possa “escutar as opiniões dos diferentes partidos para, em conjunto, promover a solidariedade e o progresso da sociedade de Hong Kong”.

Acredito que para Carrie Lam a solidariedade e o progresso em Hong Kong devem ser absolutamente prioritários. Logo após a eleição declarou que a resolução das divisões sociais era o primeiro ponto da sua lista de prioridades. Se tentarmos identificar a origem destas divisões e os motivos que conduziram ao “Movimento dos Chapéus de Chuva”, percebemos que existe uma relação directa com decisões tomadas pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional em relação à reforma constitucional de Hong Kong, feita a 31 de Agosto de 2014. Estou convencido que para ultrapassar estas divisões Carrie Lam terá de ser capaz de levar a bom termo a agenda que deveria ter sido cumprida enquanto chefiava a Secretaria da Administração. Esta tarefa requer a capacidade de escutar as diferentes facções, sob o beneplácito do Governo Central.

Quando Leung Chun-ying foi eleito Chefe do Executivo de Hong Kong, declarou que não ia tomar partido, não favoreceria as posições do “Campo Leung” (o seu próprio campo)” nem as do “Campo Tang” (a facção de Henry Tang Ying-yen)”, iria sim focar-se no bem-estar da população de Hong Kong. No entanto, não foi a isso que assistimos. Os campos políticos da cidade viram-se divididos como nunca, sob a liderança de Leung Chun-ying. A divisão política produz enormes impactos sociais. É preciso ir para além das palavras para unir as pessoas e é necessário ter boa vontade para ganhar a sua confiança, de forma a que os partidos políticos possam negociar num clima de calma.

Agora que as eleições para a chefia do executivo, estão concluídas em Hong Kong, em Macau estão a caminho as eleições para a Assembleia Legislativa. Embora o sistema eleitoral possa não ser o mais perfeito, oferece um enquadramento que proporciona a participação política. Os eleitores podem usar o seu voto para escolher os candidatos. Desde que o processo decorra num clima de justiça e equidade, quem perde não pode objectar os resultados das urnas e não se corre o risco de perturbação social.

Quer Hong Kong quer Macau são Regiões Administrativas Especiais da China. O conceito de “Um País Dois Sistemas” foi feito à medida destas duas regiões’ com contextos únicos do ponto de vista histórico e social, com realce para a solidariedade e o progresso. Se a divisão se enraizar na sociedade, não será benéfico para a unificação da China.

É preciso tempo e cooperação para a sociedade de Hong Kong recuperar. Em Macau o progresso social vai depender da existência de imparcialidade e de justiça. Se o processo eleitoral for encarado como um teatro político que leva a cena um argumento escrito pelo Governo Central, então a noção de “Um País Dois Sistemas” aplicável a Hong Kong e a Macau, será apenas nominal. Se os cidadãos das duas regiões permanecerem indiferentes à política, é previsível que fiquem repulsivamente obedientes, perdidos na multidão ou que abandonem as cidades. É preciso ir muito além das palavras ocas de sentido para ultrapassar as divisões sociais e alcançar o progresso. A suspeita tem de ser substituída pela confiança se quisermos unir forças que garantam o desenvolvimento social. Só desta forma é possível delinear uma sociedade harmoniosa.

21 Abr 2017

A maior democracia do mundo

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]oltei no Domingo de uma semana de férias na Índia, onde fiquei dois dias em Nova Deli, três em Varanasi, à beira do rio Ganges, e mais um dia e meio na capital, antes do regresso a este “same same” – faz sempre bem mudar de ares de quando em vez. Só que desta feita não foram as habituais “férias de luxo na miséria dos outros”, nem tanto mais ou menos um relaxante e reparador interlúdio do quotidiano. Digamos que foi antes um “partilhar da miséria alheia”. Se me perguntarem se gostei, vou dizer que sim, claro, mas não vou recomendar. Não é tudo “lindo”, e uma maravilha, antes pelo contrário. Eu gostei porque sou um tipo esquisito, a atirar para o excêntrico.

Na Índia está bem à vista dos olhos tudo o que há a lamentar naquele país, o segundo mais populoso do planeta depois da China: o lixo, a pobreza, as gritantes insuficiências em termos de estruturas que possam dar uma vida decente a toda a população. Sendo que ali vigora um regime de governo parlamentar eleito por sufrágio directo e universal, posso dizer que estive na maior democracia do mundo. Tecnicamente é assim, e pensarem-se em medidas de controlo da natalidade não faz sentido. Afinal que democracia é essa onde não se pode ter o número de filhos que se quiser? Ali o melhor é ter uns nove ou dez, pois se morrerem metade, ainda se fica com a descendência assegurada. Valha isso o que valer àquela pobre gente. Estava ainda no carro a caminho do minha sede em Deli, e deparei com um aviso em inglês por cima de um muro de arame farpado, onde se lia: “Propriedade privada. Os intrusos serão ABATIDOS”. Isso mesmo, ou “trespassers will be shot”, na versão original. Realmente, na maior democracia do mundo o melhor mesmo é resolver as coisas da forma mais simples, do que recorrer a tribunais por algo de tão pífio como entrar em propriedade privada. Já pensaram o que seria se centenas de milhões de pessoas tivessem a noção de que poderiam processar alguém, do que simplesmente limpar-lhe o sebo?

O que também não faz falta e só atrapalha são as regras de trânsito. Na Índia não há uma, duas ou três faixas de rodagem – há as que calharem, desde que sejam na direcção certa. É preciso ter atenção mesmo quando se anda pelo passeio, pois existe a possibilidade de se pisar num cão, em bosta de vaca, ou em alguém a dormir no chão. Na Índia é normalíssimo encontrar pessoas a dormir na rua, e não se pode aqui sequer aplicar o conceito de “sem abrigo”. Pode ser que ainda haja por lá quem considere que estes “têm sorte”; se estão a dormir, é sinal que estão vivos. Quantos às vacas na via pública, sim, confirmo: vacas em toda a parte, e contem com isso se estiverem a pensar em lá ir. Contudo são falsos os relatos que dão conta de comboios paralisados devido à presença de uma vaca nos carris, ficando os passageiros a depender da vontade do ruminante em sair dali para fora. Na eventualidade disto acontecer (e não é de todo improvável), enxota-se o animal e ele vai embora. Reparei que a Índia não é um mau sítio para se nascer vaca ou cão, pois tudo o que fazem é comer lixo e dormir. E lixo é coisa que ali não falta.

Mas deixarei agora Deli de lado, e vou falar de Varanasi, a outra capital da Índia, mas esta espiritual. É uma cidade à beira do Ganges, e conta-se que foi nela que o príncipe Siddharta decidiu mudar de vida, e passou a ser conhecido apenas por “Buda”. Eu chamaria-lhe uma espécie de cruzamento entre Fátima e Meca, mas “on acid” e aberto 24 por dia todos os dias. Uma coisa completamente louca, um “hippie trail” que só visto. Varanasi foi fundada por Lorde Shiva, um dos elementos da santíssima trindade hindu, e que passava o dia “a fumar marijuana e a beber veneno”, e à conta disto “era azul”. As pessoas que morrem envenenadas pela picada de uma cobra “ficam azuis”, assim me contaram. Por falar em morrer, é ali mesmo no leito do rio Ganges que se realizam diariamente cremações de mortos, cujas cinzas são deitadas na água. Excepção feita a um grupo de casualidades, onde se inclui a lepra, onde nesse caso o cadáver é simplesmente deitado ao rio. Não, não vi nenhum cadáver a flutuar nem nada que se parece. Aquele é um dos maiores rios do mundo, sabiam?

Assim sendo, da Índia tirei algumas conclusões pessoais; eis um povo que vive a sua democracia, a maior do mundo, alimentada pelo veneno da religião e da idolatria, que não deixa ninguém azul, mas antes conformado. Vigora ainda hoje, em pleno século XXI, um sistema milenar de castas, que determina que a percentagem da população que nasça no seio de determinada casta  considerada “impura” esteja condenado a pedir esmola ou limpar latrinas, mal saia do ventre maternos. Os colonizadores britânicos acabaram com muitas práticas consideradas “barbáricas” pelos indígenas, mas curiosamente não tocaram nesta, que é está em prática de forma bem evidente – porque será?

Adorei a Índia, mas mais uma vez, não recomendo a ninguém. Já agora, comida é óptima, um “must” para os aficionados. E não, não contraí nenhuma doença tropical, apesar dos 42º sequinhos que se aguentavam bem melhor que os vinte e qualquer coisa ensopados de Macau. Que nem é democracia sequer, quanto mais a maior do mundo.

20 Abr 2017

É favor sair

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 12 o website“https://people.com/human-interest/united-airlines-apology-forcably-removing-passenger-twitter-reacts/” divulgava uma notícia que começava assim:

“… Acaba de ser publicado um vídeo assustador onde se vê um passageiro ensanguentado a ser arrastado para fora de um dos aviões da United Airlines…”

A notícia reporta-se a um caso ocorrido nos EUA dia 9 deste mês, no avião nº. UA3411 da companhia aérea United Express Airlines. O que aconteceu naquele avião foi algo de terrível. O passageiro David Dao foi expulso violentamente do avião na sequência de se ter recusado a ceder o lugar que ocupava.  

A companhia ofereceu uma indemnização até 1.000 dólares e estadia paga num hotel, aos passageiros que libertassem os lugares de que precisava. E isto porque quatro funcionários da companhia precisavam de viajar com urgência naquele avião que já estava lotado. Mas como ninguém se voluntariou para sair, a companhia escolheu ao acaso quatro passageiros. Um deles era David Dao que se recusou a abandonar o lugar, alegando que tinha pacientes à espera em Louisville. Nessa altura a polícia de Chicago foi chamada para o obrigar a sair do avião. 

Na segunda-feira, Oscar Munoz, Director Executivo da United, publicou a sua versão da situação no Twitter da companhia.

 “Peço desculpa por termos tido de reacomodar estes passageiros. A nossa equipa está a colaborar com as autoridades e a preparar um relatório detalhado sobre a nossa perspectiva dos acontecimentos. Estamos também a estabelecer contacto com este passageiro para vermos com ele a melhor forma de resolver a situação.”

No entanto a história tem outra faceta. No email que a companhia dirigiu aos funcionários, nesse mesmo dia, podia ler-se,

“Dao criou problemas e teve uma atitude agressiva.” 

Na sequência da divulgação mediática deste acontecimento, o preço das acções da United Express caiu 5%. Na terça-feira Oscar Munoz veio declarar, 

“Os terríveis acontecimentos que tiveram lugar a bordo do nosso avião desencadearam em todos nós reacções de raiva, ira e frustração.” 

“Pessoalmente partilho todos estes sentimentos e, acima de tudo: lamento profundamente o sucedido.” “Como todos vocês, continuo a sentir-me perturbado pelo que se passou no avião e apresento as minhas mais sinceras desculpas ao passageiro que foi forçado a sair e a todos os que estavam a bordo.” “Ninguém deve ser tratado daquela maneira.”

“Quero que saibam que vamos assumir todas as responsabilidades e corrigir o mal que foi feito.”

 Este pedido de desculpas foi alvo de duras críticas. Foi considerado por muitos como “desculpas de mau pagador”. A companhia aérea Royal Jordanian aproveitou a situação inteligentemente e publicou no Twitter 

“Gostaríamos de vos recordar que nos nossos voos é estritamente proibido arrastar pessoas para fora do avião.”

Mas toda esta situação tem vários aspectos obscuros. Em primeiro lugar, nos EUA, o limite máximo das indemnizações em casos semelhantes é de 1.350 dólares. Neste caso a United Express só ofereceu um máximo de 1.000 dólares. Porque é que não ofereceram o valor máximo previsto? Em segundo lugar, os quatro funcionários da companhia precisavam dos lugares com urgência porque tinham de se apresentar ao serviço no dia seguinte. Nesse caso porque é que a companhia não lhes alugou um carro que os levasse ao seu destino? Porque é que fizeram questão que fossem naquele voo? Ficámos a saber pelos media que a viagem de carro duraria apenas cinco horas. Em terceiro lugar o avião esteve três horas parado na pista. Sem dúvida que as taxas que a companhia teve de pagar ao aeroporto aumentaram imenso. Porque é que a United suportou este custo e não quis reembolsar os passageiros com a indemnização máxima?

Se virmos o vídeo que foi feito por um dos passageiros, podemos verificar que quando David foi agarrado pelos polícias estava aos gritos. Mas quando foi arrastado para fora do lugar deixou de gritar. Este comportamento não parece normal. A conclusão lógica é que deve ter desmaiado. Será que os polícias lhe bateram na cabeça ou terá sido atingido acidentalmente? Porque é que tinha o nariz a sangrar? Cerca de dez minutos depois David voltou ao avião. Não parava de repetir,

 “Tenho de ir para casa.” 

O que é que lhe aconteceu depois de ter sido arrastado para fora do avião? E porque é que voltou? Porque é que os polícias não o acompanharam quando regressou a bordo? O vídeo não responde a estas perguntas.

 

David contratou dois advogados para processar a United Express Airline e a Polícia de Chicago. A resposta a estas perguntas será fundamental para o processo. É provável que a companhia e a Polícia de Chicago tenham de vir a arcar com a maior parte da responsabilidade. A possibilidade de David ganhar este processo é bastante elevada. Para salvaguardar as aparências a United pode vir a subir o valor da indemnização e tentar desta forma encerrar o assunto. 

Professor Associado do IPM

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Jazz

19 Abr 2017

O populismo étnico em marcha

“Populist leaders like Donald Trump, Marine Le Pen, Norbert Hoffer, Nigel Farage, and Geert Wilders are prominent today in many countries, altering established patterns of party competition in contemporary Western societies. Cas Mudde argues that the impact of populist parties has been exaggerated. But these parties have gained votes and seats in many countries, and entered government coalitions in eleven Western democracies, including in Austria, Italy and Switzerland. Across Europe, their average share of the vote in national and European parliamentary elections has more than doubled since the 1960s, from around 5.1% to 13.2%, at the expense of center parties. During the same era, their share of seats has tripled, from 3.8% to 12.8%. Even in countries without many elected populist representatives, these parties can still exert tremendous ‘blackmail’ pressure on mainstream parties, public discourse, and the policy agenda, as is illustrated by the UKIP’s role in catalyzing the British exit from the European Union, with massive consequences.”
“Trump, Brexit, and the Rise of Populism: Economic Have-Nots and Cultural Backlash” / Harvard Kennedy School – Ronald F. Inglehart and Pippa Norris

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] voto britânico para abandonar a União Europeia (UE) e a eleição do presidente Donald Trump nos Estados Unidos deixou muitos surpreendidos no passado ano. O economista e comentarista irlandês, David McWilliams, denominou 2016, como “o ano do outsider”. As previsões apontam que 2017 não será diferente, com eleições importantes que irão ocorrer por toda a Europa e muitos viram as eleições holandesas de 15 de Março de 2017, como “o primeiro grande teste” do que está por vir.

O líder do Partido para a Liberdade (PVV, na sigla em língua holandesa) de extrema-direita Geert Wilders tinha proclamado uma “primavera patriótica” que podia aumentar as pressões sobre uma sitiada UE. O político holandês islamofóbico viveu sempre rodeado por fortes medidas de segurança, tendo por mais de uma década, passado a maior parte do tempo num refúgio desconhecido, ou em uma ala do Parlamento fortemente guardada. Este esquema de segurança, durante vinte e quatro horas, que raramente permitia a saída à rua, e para assistir a alguns eventos da campanha eleitoral, teve de deslocar-se em uma caravana de veículos blindados, devidos às constantes ameaças de morte, que recebe de extremistas enfurecidos pelas suas declarações contra o Islão, comparando o “Alcorão” ao livro “A Minha Luta” de Adolfo Hitler.

O grande tema é de questionar a ideia de que as eleições holandesas marcaram o início de uma “primavera patriótica”, ou seja, a de que o povo retomará o controlo da elite a nível nacional e europeu. Até agora, a Europa dificilmente desempenhou qualquer papel na campanha eleitoral holandesa. Mesmo Geert Wilders pareceu afastar-se da questão. O co-investigador Stijn van Kessel no “projecto 28+perspectivas sobre o Brexit: um guia para as negociações com múltiplos intervenientes” da Universidade de Loughborough elaborou os dados que mostravam que os holandeses não queriam um “Nexit”. Além disso, outras questões prevaleceram na campanha.

O tema mais dominante foi a economia holandesa e, em particular, a questão de saber que política prosseguir em tempos de superavit orçamental e baixa taxa desemprego. A economia é tipicamente, um tema que os políticos holandeses gostam de ligar à UE, acrescentados dos motes de “muita burocracia”, “somos pagadores líquidos” e “não mais dinheiro para a Grécia”. Mas, nesta campanha, os políticos ligaram-se à questão do que é importante para a sociedade holandesa, como o do dinheiro extra que deveria ter uma maior taxa de participação para a criação de mais empregos, reforma do sistema de saúde, investimento nas políticas de alterações climáticas e melhoria do sistema educacional.

O outro tema abrangente é o que constitui a identidade holandesa no modelo da globalização. Uma “primavera patriótica” pressupunha debates sobre a identidade nacional, ameaçada por elites cosmopolitas e pressões externas. No entanto, na actual campanha eleitoral, a discussão pareceu ter sido mais matizada, centrada na redefinição da identidade nacional, sem necessariamente rejeitar a imigração e a integração europeia. Por exemplo, o líder do Partido Democrata Cristão (CDA, na sigla em língua holandesa) enfatizou os símbolos nacionais, trazendo a ideia dos alunos cantarem o hino nacional nas escolas.

O líder do Partido de Esquerda Verde (GL, na sigla em língua holandesa), enfatizou uma cultura inclusiva de tolerância e diversidade. Além disso, é muito provável que Geert Wilders seja marginalizado após a derrota sofrida nas eleições. Primeiro, a maioria dos partidos declarou que não quer cooperar com o seu partido e pessoa. Em segundo lugar, uma semana antes das eleições, as últimas sondagens, também sugeriam que não iria ter o número elevado de votos que foi previsto algumas semanas antes, e que se veio a confirmar. Isso não significa que as suas ideias estejam a ser ignoradas, tal como aconteceu com frequência na história política holandesa, em que os partidos tradicionais já haviam adoptado alguns dos seus discursos populistas, e até mesmo nacionalistas sobre questões como a imigração e a integração europeia.

A título de exemplo, em termos de valor nominal, as suas ideias parecem ser menos dignas, apesar de a identidade ter sido uma questão fundamental durante a campanha eleitoral, e que lhe pode ser atribuída, curiosamente, na trilha da alegada “primavera patriótica”, um contra-movimento que parece estar a surgir. A ascensão da direita populista é muitas vezes vista como um processo linear, começado com o Brexit e a eleição de Donald Trump, e continuado durante as eleições no continente europeu. Mas confrontados com as ideias populistas de direita de Geert Wilders, são um conjunto de crenças que realçam a diversidade e a abertura para influências externas, sendo mais visivelmente ilustrado, pelo crescente apoio ao Partido Democratas 66 (D66, na sigla em língua holandesa), que é progressista, liberal-social e radical democrata e o GL.

A tendência semelhante na França e na Alemanha é notória, onde, respectivamente, o pro-europeu Emmanuel Macron e o ex-presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, estão a ter ganhos inesperados nas sondagens. Ambos, também sublinham as ideias de abertura e de tolerância, e a necessidade de cooperar a nível europeu. As urnas confirmaram a vitória do actual primeiro-ministro, o liberal de direita Mark Rutte, e revelaram que Geert Wilders, o candidato racista e antieuropeu que chegou a liderar as sondagens, não obteve tanto apoio como se esperava. Depois do Brexit e do êxito que representou a vitória de Donald Trump, o populismo xenófobo enfrenta, assim, a sua primeira derrota no Ocidente.

As eleições holandesas não conduziram ao início de uma “primavera patriótica” da extrema-direita populista europeia, mas sim a um reequilíbrio da política europeia. Todavia analisadas mais profundamente as eleições holandesas, vimos que ao entardecer do dia das eleições, os meios de comunicação social de todo o mundo, anteciparam uma vitória não apenas para o Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD, na sigla em língua holandesa) liderado pelo actual primeiro-ministro Mark Rutte, mas uma vitória para a política racional, liberal, enquanto elogiavam a derrota esmagadora dos nacionalistas étnicos de Geert Wilders.

O líder do VVD, de uma forma mais sóbria, em um discurso proferido depois de aparentemente o seu partido ter ostensivamente triunfado, declarou que os holandeses disseram não ao tipo errado de populismo. Mas esta é uma interpretação equivocada. Neste ano de eleições, que indicará se a UE pode sobreviver num futuro próximo, a eleição holandesa recebeu uma atenção indevida da imprensa mundial. Na sequência do Brexit, da vitória de Donald Trump, um referendo holandês e a quase um ano da eleição presidencial austríaca e meses do referendo constitucional italiano, o foco dos meios de comunicação sobre a Holanda tem sido compreensível, mas também tem sido distorcido pelos eventos de 2016.

O Brexit, a vitória presidencial de Donald Trump e os referendos foram escolhas binárias do “Candidato A” versus “Candidato B”, ou simplesmente “Sim” versus “Não”, e conjuntamente com o crescente domínio anglo-americano dos meios de comunicação internacional, ou pelo menos dos meios de comunicação transatlânticos, no seguimento de Donald Trump e da caótica política do Reino Unido, isso resultou no facto da comunicação social estrangeira, examinar as eleições holandesas através de uma lente distorcida. A eleição holandesa não era binária, mas multipolar. A comunicação social na análise política e no sistema de dois partidos e dualismo de Sim/Não, enfatizaram a possibilidade do PVV vencer as eleições.

Os mesmos meios de comunicação, em segundo lugar, apresentaram a eleição como uma derrota para o PVV e o seu líder. No entanto, nada poderia estar mais longe da verdade. O líder do PVV não perdeu em um sistema binário, anglo-americano, antes ganhou em um sistema multipolar europeu. Os dois partidos governamentais da Holanda perderam. O VVD do primeiro-ministro, Mark Rutte, perdeu oito assentos, enquanto o Partido Trabalhista (PvdA, na sigla em língua holandesa) de Lodewijk Asscher, vice-primeiro-ministro, passou de 38 assentos para 9 assentos, perdendo de forma assombrosa 29 assentos. No rescaldo do tropeço do VVD e da derrota do PvdA, o partido que estava mais preeminente era o PVV.

Apenas onze anos após a sua criação, o PVV é o segundo maior partido na Holanda. Não voltou ao seu auge de 2010, mas o desafio para a VVD de outros partidos e a derrota do PvdA, levaram a menor margem eleitoral do PVV a uma posição muito mais evidente. A ascensão do GL desafia o apelo do PVV, especialmente entre os jovens eleitores urbanos que, na Holanda, país altamente urbanizado, formam uma parcela substancial do eleitorado. Mas, ao mesmo tempo, o GL suprimiu o suporte do VVD. Enquanto o PVV e o GL, conjuntamente com o D66, não poderiam ser mais distintos em termos de políticas, mas compartilham uma característica comum que preocupou o líder do VVD, pois eram evidências do mesmo fenómeno visto nos Estados Unidos e no Reino Unido, em que os eleitores se sentem desiludidos com os principais partidos formados no rescaldo da II Guerra Mundial, e voltam-se para os partidos mais novos, que oferecem uma lufada de ar fresco, em relação a uma ordem política, ideológica e económica estabelecida e aparentemente estagnada.

O motivo adicional de preocupação é que nas grandes áreas metropolitanas da Holanda o PVV apresenta-se como o partido que reunia as maiores preferências, ou o segundo partido a nível nacional, e de forma preocupante, próximo do VVD. O surgimento do PVV, como partido dominante em Roterdão, põe uma séria questão quanto à ilusão dos meios de comunicação social, nas cidades holandesas como bastiões do liberalismo racional. O político que ganhou mais em termos de derrota dos seus inimigos, foi Geert Wilders. A maior causa de preocupação, é os complexos mecanismos de formação de uma coligação.

O governo anterior VVD – PvdA viu apenas duas partes a lutar para apaziguar uma população holandesa que está cada vez mais cansada de austeridade e diminuição dos benefícios sociais. A nova coligação liderada pelo VVD deve ser formada por quatro, talvez até cinco, partidos, que até agora se uniram principalmente na sua oposição ao PVV, e tendo ganho, é apenas uma questão de tempo, antes de enfrentar as duras realidades que representam os entendimentos políticos e da aparente derrota do inimigo comum, que cria brechas entre os diferentes partidos.

O período da lua-de-mel terminará rápido. A formação e gestão de uma coligação multipartidária será um desafio significativo para o líder do VVD, e não é de forma alguma claro como um governo tão diferente em ideologia, prioridades políticas e opiniões de uma UE em apuros, seja capaz de reagir à economia, com uma potencial vitória da Front Nationale na França, uma possível mudança para a direita na Alemanha, em Agosto, ou outra crise da zona do euro ou crise migratória, após a ruptura das relações UE – Turquia, mais acentuada depois da vitória do “SIM” no referendo turco de 16 de Abril de 2017.

As crises cada vez mais parecem não só inevitáveis como iminentes.Enquanto a ténue coligação do líder do VVD luta para lidar com os problemas da Holanda e responder a forças económicas externas, Geert Wilders encontrar-se-á em uma posição política forte, e como nenhum outro partido trabalhará com o PVV terá um papel desprezível face à nova coligação, destacando toda a sua inépcia e disputas, enquanto se banha na imunidade das críticas inevitáveis do governo, ou seja, uma imunidade concedida pelo seu isolamento da formulação de políticas.

O líder do PVV, em uma ironia sombria, ainda que tenha perdido assentos, continua com uma base eleitoral sólida, que o torna mais seguro que o líder do VVD e os seus aliados de coligação, sendo capaz de defender uma insatisfação anti ordem estabelecida, enquanto se autentica mais na ordem estabelecida. Até ao final de 2017, é provável que vejamos o líder do VVD e os aliados de coligação a enfrentarem uma crescente hostilidade por parte de uma população holandesa decepcionada e frustrada por politiquices, enquanto Geert Wilders prega a mensagem repetitiva mas mediática dos eternamente marginalizados e de hipócrita mártir político. É certo que isso está longe de ser certo.

Os holandeses não vão entrar numa “primavera patriótica” e Geert Wilders cometeu sérios erros, especialmente na sua recusa em se envolver com os meios de comunicação de massa.Mas se aprender com esses erros, irá garantir uma enorme posição como figura popular de proa, canalizando a frustração e a decepção pública para uma coligação de rangedores.E porque é altamente provável que uma disputa em curso entre a Holanda a Turquia, caracterizada por invocações repetidas dos dias mais sombrios da “Nova Ordem”, só vai aumentar ainda mais, depois do referendo de 16 de Abril de 2017, e Geert Wilders terá mais condições de aproveitar o desapego e a desilusão holandesas. para atrair o esquecido, o desapontado, o contrariado e o temeroso com sua bandeira.

A eleição holandesa não representou a derrota do populismo étnico. Na melhor das hipóteses, é uma vitória pírrica para o último bastião da ordem estabelecida. Na pior das hipóteses, é um sinal de um eleitorado desencantado que expressou a sua infelicidade com o “status quo”. A esse respeito, as eleições holandesas não são diferentes do Brexit e das eleições americanas. Não são uma vitória para o liberalismo, nem uma vitória para o racismo, mas uma vitória para a frustração, raiva, ansiedade e ressentimento. É uma vitória que não merece um elogio, mas um lamento ao contrário do afirmado pelos líderes europeus, com o Presidente da Comissão Europeia, como porta-voz de tão peregrina ideia.

19 Abr 2017

Dia de beijos

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 13 de Abril foi o dia internacional do beijo! Há quem diga que na verdade é no dia 6 de Julho, mas que raio interessa? Não precisamos de muitas desculpas para celebrar os beijos uma, duas, três, as vezes que quisermos por ano.

Durante estes dias houve uma divulgação das fantásticas razões pelas quais deveríamos beijar cada vez mais. Há beijos para todos os gostos e vantagens de saúde para todos os gostos também. Incentivamos espalha-beijos (se consentidos!) para dias de primavera mais felizes e um sistema imunitário mais forte. Aliás, um estudo de 2003 mostra que beijar o vosso mais que tudo durante 30 minutos poderá ajudar a diminuir os sintomas de renites alérgicas. Alguém sofre de alergias de primavera? E mais, beijar queima calorias (poucas, umas 4 ou 5 calorias) e obriga o movimento de muitos músculos faciais. As trocas de saliva previnem as cáries e estimulam o sistema imunitário (a troca de bactérias põem o sistema a funcionar). Beijar também faz com o nosso sistema endócrino liberte aquelas hormonas felizes que nos relaxam e que melhoram a nossa vida.

Este dia foi criado para não nos esquecermos que o beijo, para além da sua formalidade social e de muitas vezes ser considerado um pró-forma de sexo, pode ser apreciado por si só, na sua simplicidade e singularidade. Um momento de intimidade que poderia ser igual a um outro qualquer, mas que se caracteriza pela proximidade dos lábios e das línguas. Os bons beijos são longos – fazem parar o tempo, o espaço e prendem-nos a uma realidade única de proximidade com o outro. Claro que pode sempre continuar por actividades de trocas (ainda) mais marotas. Sexo sem beijos é possível mas acho que concordarão que não é o melhor. Consciente ou inconscientemente sabemos das vantagens das trocas de saliva e do toque de línguas sedosas e húmidas.

A origem do beijo ainda não é clara e os antropólogos atiram com várias teorias. Uma delas é de que o beijo veio de alguma coisa parecida ao que os pássaros fazem aos filhos, passar a comida através da boca, outros dizem que desenvolveu-se através de um ‘snifar’ social que rapidamente se tornou num toque de boca, porque deve saber muito melhor enrolar a boca no outro do que o nariz (será que isso explica o beijo à esquimó aka inuit?). Outros falam em instinto, na naturalidade do acto, como se estivéssemos programados para beijar. Toda a normalidade que é o amor e a intimidade passa por descobrirmos o beijo e de o explorarmos a nosso bel-prazer. Claro que o beijo é um bom cartão de visita para conhecermos o outro melhor. Se os olhos são a janela da alma, o beijo na boca é uma ponte para entrarmos num mundo partilhado pelos dois. Por mais ou menos romântico que o vosso primeiro beijo tenha sido, de certeza que se lembram dele com alguma clareza. A surpresa que será sentir o toque das línguas pela primeira vez, e gozar uma ligação etérea de prazer.

Na esfera pública, os beijos têm uma visibilidade mais reduzida (daí a importância dos dias internacionais) e nem sempre foram bem aceites. Os beijos podem ser considerados perversos. Já foram proibidos em vários países e em várias épocas e até foram censurados nos tempos áureos do cinema. O beijo do ecrã não podia durar mais do que x tempo, não poderia envolver língua e não poderia ser dado na horizontal. Agora já assistimos de tudo, e cada vez mais o beijo na boca começa a ser bem recebido, até em público. Porque se na China era difícil identificar um casal de apaixonados, já vemos, ainda com alguma timidez, alguns sinais de carinho em público, ainda que a norma seja deixar os beijos (e a intimidade) em privado.

 

18 Abr 2017

A poluição atmosférica como agente mortal

“The economy is a wholly owned subsidiary of the environment. All economic activity is dependent upon that environment with its underlying resource base.”
US Senator Gaylord Nelson on first Earth Day

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] poluição do ar, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, é actualmente a principal causa de morte, mas trata-se de uma mensagem que ainda não foi captada, conscientemente, pelas mentes dos decisores políticos em todo o mundo. O movimento de poluentes não respeita fronteiras políticas, e mata inocentes. O mais doloroso é as alterações climáticas que estão a colocar um enorme desafio para prever o movimento de poluentes. As decisões tomadas com base em estudos de modelos e legislações não estão a produzir o resultado desejado, pois existe sempre uma lacuna entre teoria e a prática.

As questões ambientais mudam de um lugar a outro, e de tempo a tempo. As questões ambientais são de cariz local e global. A compreensão das questões ambientais é necessária para se encontrarem soluções. Os problemas de poluição atmosférica mudaram ao longo de um período de tempo. As questões como a nuvem marrom atmosférica, as alterações climáticas, os poluentes atmosféricos perigosos, a neve preta/lamacenta, que não foram discutidas durante algumas décadas, ganham actualmente, importância.

A poluição é originária da palavra latina “Pollutus”, que significa “sujo ou pouco claro”. A poluição do ar pode ser definida, como a condição atmosférica, em que as substâncias estão presentes em concentrações superiores às normais, para produzir efeitos significativos nos seres humanos, animais, vegetação ou matéria. O ar que respiramos é o recurso natural mais importante, e que nos permite sobreviver. A composição do ar continua a mudar constantemente, devido às emissões naturais, bem como às produzidas pelo homem para a atmosfera. A atmosfera terrestre é uma camada de gases retida pela gravidade.

O ar seco, em média, consiste em 78,09 por cento de azoto, 20,95 por cento de oxigénio, 0,93 por cento de árgon e 0,039 por cento de dióxido de carbono, em volume. Também estão presentes constituintes menores como o metano (CH4), ozónio (O3), dióxido de enxofre (SO2), dióxido de azoto (NO2), óxido nitroso (N2O), monóxido de carbono (CO), amoníaco (NH3) etc. Estes constituintes variam de lugar para lugar devido à mudança nas condições atmosféricas. Os constituintes do ar sobre o mar não são iguais aos do litoral. O ar da litoral mar pode não ter as mesmas concentrações de constituintes como o ar do deserto.

O ar da costa será dominado pelo vapor de água e o ar do deserto terá mais poeira suspensa. A espessura da floresta amazónica, da mesma forma, terá mais vapor de água e compostos orgânicos voláteis enquanto o ar acima do depósito de resíduos sólidos é provável que tenha mais metano e amoníaco. A baixa concentração de poluentes atmosféricos não significa que possa haver negligência, se considerarmos o exemplo do chumbo, que está presente na atmosfera em camadas, tendo sido a quantidade total em 1983 e na década de 1990, estimada em cerca de trezentas e trinta mil toneladas e cento e vinte mil toneladas, respectivamente.

As emissões totais de fontes naturais foram de cerca de duzentas e vinte mil a quatro milhões e noventas mil toneladas por ano. Quando o sistema solar se condensou a partir da “nebulosa primordial”, que não é mais que nuvens interestelares de gás e poeira, a situação não era tão complexa como actualmente, e a poluição do ar não era um problema. Acreditava-se que a atmosfera primitiva do planeta era uma mistura de dióxido de carbono, nitrogénio, vapor de água e hidrogénio. A atmosfera inicial do planeta reduziu ligeiramente a mistura química, em comparação com a atmosfera presente, que é fortemente oxidante e com o lapso de tempo, camadas distintas da atmosfera foram formadas com características distintas.

A troposfera é a camada mais baixa de atmosfera que se estende da superfície da terra até dez a quinze quilómetros de altitude, dependendo do tempo e latitude. A estratosfera está posicionada apenas, acima da troposfera, e estende-se entre onze e cinquenta quilómetros. Na estratosfera, a temperatura aumenta com a altitude, de sessenta graus negativos na base até zero graus no topo. A mesosfera, situa-se justamente acima da estratosfera, estendendo-se entre cinquenta e oitenta quilómetros de altitude. Os vaivéns espaciais orbitam nesta camada da atmosfera. Devido à diminuição do aquecimento solar, a temperatura diminui com a altitude na mesosfera, sendo zero graus na base, e noventa e cinco graus negativos no topo. O topo da mesosfera é a região mais fria da atmosfera.

A termosfera é a última camada da atmosfera, situando-se a oitenta quilómetros acima da exosfera. Na termosfera, a temperatura aumenta com a altitude, à medida que os átomos dessa camada são acelerados pela radiação solar. A temperatura na base da termosfera é de noventa e cinco graus negativos, sendo de cem graus a cento e vinte quilómetros, e de mil e quinhentos graus na parte superior. A ionosfera estende-se entre cinquenta e cem quilómetros cobrindo parcialmente a mesosfera e a termosfera. Tem variação diurna e sazonal, pois a ionização depende do Sol e da sua actividade. A poluição do ar, desde a sua descoberta, tem sido um problema. O “Ar pesado de Roma”, em 61 A.D. foi registado pelo filósofo romano Séneca.

O rei Eduardo I, em 1273, proibiu a combustão de carvão em Londres. Na década de 1280, as pessoas usavam carvão como combustível em processos como o calcário e metalurgia, levando à poluição do ar que continha fumo preto, bem como óxidos de enxofre. O final do século XVIII e início do século XIX viram mudanças dramáticas no fabrico, agricultura, mineração, produção, bem como nos transportes. A invenção da energia eléctrica no século XIX, resultou na sua distribuição em 1880, despedindo-se do carvão. O exemplo muito famoso de poluição do ar,  foi a formação de poluição em torno da cidade de Los Angeles durante a década de 1940, que levou à aprovação da primeira legislação ambiental estadual nos Estados Unidos. A “Lei de Controlo da Poluição do Ar”, foi promulgada nos Estados Unidos, em 1955, sendo a primeira legislação ambiental federal do país.

O petróleo, mais tarde, na década de 1960, ultrapassou o carvão como fonte de energia primária. O uso extensivo do óleo conduziu às emissões, onde quer que os veículos circulassem. A revolução industrial do pós-século XVIII, fez a economia mudar para a fabricação baseada em máquinas, em muitos dos países desenvolvidos. A mecanização das indústrias têxteis e das técnicas de fabrico de ferro aumentou a procura de combustível, e a sua poluição atmosférica nas áreas de tais actividades. Os desenvolvimentos no século XIX levaram à segunda revolução industrial. A actividade da construção civil viu também a mudança no material, assim como, na tecnologia. A invenção do cimento, substituiu as paredes de barro, e o aumento da procura de cimento levou a emissões desse sector. Os mercados europeus e americanos estavam saturados, abrindo-se os mercados asiáticos aos veículos, apesar de existir um enorme desequilíbrio, pois as pessoas pobres viajam em cima de autocarros ou camiões, enquanto as pessoas ricas circulam em carros individuais, como acontece na Índia, Paquistão e muitos outros países. Enquanto a crise económica na Grécia teve como resultado a redução da poluição do ar, a China testemunhou uma dramática explosão da qualidade do ar na última década.

A análise dos dados da rede de monitorização criada pela OMS e pelo PNUMA, em cinquenta cidades, e trinta e tinta e cinco países desenvolvidos e em desenvolvimento, mostra que nos últimos quinze a vinte anos, as lições de experiências anteriores nos países agora desenvolvidos, ainda necessitam de ser assimiladas. A poluição do ar em vinte das vinte e quatro megacidades, apresenta níveis que têm graves efeitos sobre a saúde. O aumento da população nos países em desenvolvimento no futuro, com a falta de controlo da poluição do ar, irá piorar em muitas outras cidades. No início da década de 1970, quando o rápido crescimento na Europa, levou a poluição ambiental a níveis inusitados, apesar de em 1952 a poluição de Londres, ter  sido a causa de cerca de quatro mil pessoas, estava fresco na memória a “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano” realizada em Estocolmo, em 1972, que tinha por objecto a fundação da cooperação internacional neste domínio, seguida de um conjunto de medidas que visavam reduzir a poluição do ar.

A “Convenção sobre a Poluição Atmosférica Transfronteiriça a Longa Distância”, foi assinada pelos países da “Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa (CEE-ONU, ou UNECE, na sigla inglesa) ”, a 13 de Novembro de 1979. A UNECE é uma das cinco comissões regionais da ONU, dependentes do “Conselho Económico e Social (ECOSOC) ”. A UNECE é um fórum, em que os cinquenta e seis países da Europa, Ásia central e a América do Norte se reúnem, para elaborar as ferramentas da sua cooperação económica. O “Protocolo de Helsínquia” de 5 de Julho 1985, tinha por objectivo reduzir as emissões de enxofre ou dos seus fluxos transfronteiriços, em pelo menos 30 por cento nos países da UNECE. Todas as decisões de negócios afectam o ar e a atmosfera. Tal como a água que é purificada, embalada e o preço fixado, o ar puro igualmente, será fixado um preço. Há bares de oxigénio, desde 1990, abertos em muitas partes do mundo para fornecer oxigénio aos clientes.

No entanto, apesar da necessidade urgente de políticas e legislação rigorosas sobre a poluição do ar em várias partes do mundo, o controlo da poluição do ar ainda não é uma prioridade política, em comparação com os negócios e a economia em muitas partes do mundo, e como resultado, a poluição é continuada de uma forma ou outra, e muitas das formas nem sequer são monitorizadas e controladas. Ao longo dos anos, apenas alguns poluentes atmosféricos convencionais tais como o SO2, NO2, partículas, O3 etc., são monitorizados pelos investigadores e pelas autoridades de controlo da poluição. Os poluentes, como os “Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs)” foram negligenciados no passado, mas  recentemente são monitorizados continuamente, devido aos seus graves efeitos sobre a saúde. Os poluentes orgânicos, bem como os poluentes inorgânicos do ar causam doenças mortais, e a sua monitorização é muito importante para os seres humanos e meio ambiente. Enquanto muitos países em desenvolvimento levaram a questão a sério, outros só quiseram satisfazer a comunidade internacional.

Ainda que as legislações ambientais tenham entrado em vigor em todo o mundo, a capacidade das instituições competentes para a sua monitorização foi limitada, principalmente devido à insuficiência de conhecimentos e capacidade de pesquisa e de aplicação da lei.Muitas instituições tinham muito poucos recursos humanos e orçamentos limitados para monitorizar. A ausência de especialização, levavam a uma monitorização inadequada, selecção imprópria do local e metodologia de amostragem, bem como efectuavam uma análise pobre.Muitas instituições continuam a deparar-se com recursos humanos insuficientes e sem preparação técnica, sendo a média de um a dez técnicos e cientistas para um milhão de habitantes.

O que torna a poluição atmosférica mais difícil em comparação com outras formas de poluição é a sua complexidade, pois ao contrário da água que pode ser contida num recipiente para um estudo fácil, é difícil simular a configuração atmosférica num laboratório. Além disso, a aerodinâmica na superfície da terra não pode ser facilmente explicada pela matemática, como ocorre na natureza. Uma variedade de factores como a radiação, atrito, fluxo padrão, reacção química, influência por configuração biológica, alterações climáticas, mudança de estilo de vida, novas invenções, modificações sociais, direito da terra, atitude do povo, fisiologia das pessoas, transformações económicas da região em conjunto, são responsáveis pelo cenário em um determinado momento e por uma determinada razão.

A poluição do ar, devido à complexidade do problema, não foi completamente compreendida por muitos países em desenvolvimento e não é uma prioridade. As questões como a má governação, baixa capacidade de pesquisa, analfabetismo, corrupção, conflitos nacionais/internacionais e a instabilidade política, têm muitas vezes causado a fraca atenção à poluição do ar, apesar de sete milhões de pessoas morrerem anualmente, segundo a OMS, devido à poluição do ar em todo o mundo. Apesar da magnitude do problema, a perda de vidas e riqueza devido à poluição do ar é invisível para muitos governos. O analfabetismo entre os cidadãos, também é motivo para não se queixarem da poluição.

O uso de recursos humanos para outras funções como eleição/recenseamento/desporto, também é uma das muitas razões para a má implementação da legislação ambiental. Muitas instituições de aplicação da legislação ambiental em grande número de países, estão mais preocupadas com as despesas em termos financeiros, ao invés do controlo de poluição, como seja a apropriação indevida de recursos financeiros que pode levar o funcionário responsável a ser punido com uma pena de prisão. Por outro lado, a poluição não contabilizada não é de modo algum tão grave, como a apropriação financeira indevida. As leis ambientais também podem ser usadas de forma abusiva para arrecadar fundos ou causar prejuízos aos adversários das pessoas no poder. As questões, causas, factores de influência e impactos da poluição do ar podem ser atribuídos a muitos agentes que não são quantificáveis. A corrupção entre os governantes, baixa ética entre as indústrias, falta de disponibilidade de tecnologia, incapacidade de adoptar novas tecnologias e a baixa capacidade de pesquisa afligem muitos países. Apesar do entusiasmo demonstrado por muitas organizações internacionais para apoiar a causa, muitas vezes é negado ou mal adoptado pelos países beneficiários.

As principais fontes de poluição são o processo de combustão, indústria, transportes, eliminação de resíduos, uso de agro químicos e a respiração de organismos vivos, e nenhuma dessas fontes pode ser evitada, uma vez que se destinam à sobrevivência dos seres humanos. Para além destas fontes, outras como o incêndio acidental, tempestades de vento, desastres naturais, educação/pesquisa, decomposição de matéria morta, guerras, explosões, utilização de explosivos, eventos desportivos, testar/praticar o uso de armas de guerra, lançamento de satélites, erupções vulcânicas, construção, produção de metano em campos de arroz devido à biodegradação, demolição de edifícios, metano gerado por animais ruminantes durante a digestão dos alimentos, pintura, processamento de grãos, erosão do solo e desintegração de rochas/minerais, aumentam a poluição.

Os sectores de serviços como saúde, informática e subcontratação de processos de negócios, também contribuem com poluentes atmosféricos ao usar equipamentos, ar condicionado e transportes. A libertação de agentes patogénicos dos estabelecimentos de cuidados de saúde, criação de animais, abate e pesquisa pode ser muito mais prejudicial, em comparação com os poluentes convencionais. Ao contrário da guerra e do crime, a poluição do ar geralmente ocorre de forma lenta, levando anos até que o impacto real seja visível, como os desastres de Chernobil e Bhopal, que foram amortecidos pela memória de pessoas devido a outras questões quentes de maior interesse individual.

11 Abr 2017

Obsessão pelo telemóvel e outras faltas de respeito

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 30 de Março o website “Ming Pao” anunciou que Alvin Cheng Kam-mum tinha sido preso por desacatos em tribunal. Recebeu uma pena de três meses. Alvin é vice-presidente de um dos partidos políticos de Hong Kong, o Civic Passion.

Inicialmente Alvin tinha comparecido em tribunal por não ter respeitado uma Ordem de Injunção emitida em 2014, que proibia a ocupação ilegal de Mongkok. Mesmo depois da proibição, Alvin permaneceu em Mongkok a liderar os manifestantes.

Alvin foi representado por Gerord McCoy, dirigente da Ordem dos Advogados. Durante o julgamento, o juiz Andrew Chan interrompeu subitamente McCoy e dirigiu-se a Alvin nos seguintes termos,

“Não se importa de parar de jogar no telemóvel enquanto está no tribunal? O tribunal tem autoridade para lhe apreender o telemóvel. Acha que tem liberdade para entrar e sair quando lhe apetece? Como é que eu posso acreditar na sinceridade do seu arrependimento pelas infracções que cometeu?”

O juiz acabou por condenar Alvin a três meses de prisão após ter proferido estas palavras.

Este caso é insignificante, mas tem grandes implicações. Hoje em dia os telemóveis tornaram-se parte da vida de todos nós, sobretudo dos mais novos. Todos os jovens, tenham a idade que tiverem, jogam nos telemóveis. É absolutamente invulgar ver um jovem sem telemóvel.

Os telemóveis foram concebidos para comunicarmos, mas actualmente as suas funções excedem largamente a simples comunicação. Podemos ver vídeos, jogar jogos electrónicos e até trabalhar através do telemóvel. Mas se virmos bem, quantos jovens usarão estas plataformas para estudar ou trabalhar?

Há duas semanas tiveram lugar em Macau os Exames de Admissão Conjunta. Foi um dos maiores acontecimentos no campo da educação, porque foi a primeira vez que se realizaram em simultâneo nesta cidade exames para admissão em quatro universidades, com o programa do ensino secundário muito mais unificado.  É previsível que num futuro próximo o exame de admissão dê acesso a mais universidades e que o programa do ensino secundário conheça mais etapas de unificação. Esta unificação irá combater os programas individuais de cada escola, uma situação que deve ser evitada.    

Analisemos agora os comportamentos dos estudantes submetidos a este exame. Não vamos falar de resultados, mas sim de atitudes e expectativas. Estariam entusiasmados? Aparentemente, não.  É fácil de verificar que os telemóveis foram um problema. A maior parte dos alunos não desligou o telemóvel depois de entrar na sala de exame. Sempre que o telefone tocava atendiam. Também se podia ver alguns a jogarem nestes aparelhos. Parte dos alunos falava com amigos através do Wechat ou de outras aplicações. No entanto, tinham à sua frente a folha de exame. Não pareciam dar-se conta de que os examinadores podiam desconfiar que estavam a falar sobre as perguntas do exame. Esta situação pode conduzir a uma desclassificação e ao impedimento de entrar numa sala de exames. Mas mesmo assim os jovens insistem nestes comportamentos. Será que não se apercebem que estão a desrespeitar a instituição escolar?

Alguns estudantes mascavam pastilha elástica durante o exame e recusavam-se a deitá-la fora. Outros iam à casa de banho logo a seguir a terem entrado na sala de exame. Aparentemente não faziam ideia que, devido ao secretismo do exame, é proibido ir à casa de banho depois da entrada na sala.

Este género de comportamentos parece indiciar que a nova geração não sabe respeitar o próximo.  O relacionamento normal com os outros é um problema sério para estes jovens. O telemóvel deixou de ser uma ferramenta de comunicação e passou a ser uma plataforma de jogos. Torna os jovens mais auto-centrados e aprisionados no seu próprio mundo. Se isto continuar, não vão aprender a relacionar-se com as outras pessoas.

Mas a questão do telemóvel também passa pelo local de trabalho. Alguns empregadores reportaram alguns casos curiosos que passo a descrever:

Temos o caso de uma pessoa que se ia candidatar a um emprego. No entanto, antes da entrevista, pediu que lhe enviassem fotos do escritório para ver se as condições lhe agradavam. Se fosse o caso, ia à entrevista, se não fosse não ia.

Vejamos ainda a história do empregado que se despediu através duma mensagem para o telemóvel do patrão. Ou seja, não se deu ao trabalho de ir ao escritório cumprir as formalidades necessárias ao despedimento, nem passar trabalho aos colegas. Em vez disso pediu ao patrão que lhe enviasse os documentos de rescisão.

Outro exemplo: o patrão pede ao empregado para resolver um problema informático. O empregado responde que o assunto se resolve descarregando umas aplicações no telemóvel. Mas não pensa que alguns dos seus colegas podem não estar familiarizados com o uso do telemóvel nestas situações. Esta forma de resolver o problema só iria beneficiar alguns, não resolvia o problema de todos.

Face a estas situações, é fácil compreender porque é que o juiz condenou Alvin a três meses de prisão. Se não ensinarmos os jovens a usar os telemóveis de forma adequada, os problemas vão continuar a acontecer.

Professor Associado do IPM   

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

11 Abr 2017

O sexo dos insectos

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo dos insectos ensina-nos que não podemos confundir o que é normal do que é natural. Se o natural é o biológico e lógico do mundo animal, parece que os insectos estão a desafiar alguns conceitos de género, e a praticar tipos de sexo muito particulares. Parece que o normal para as criaturas de seis pernas não é o que uma mente pouco reflexiva pudesse assumir – porque está presa em conceitos de ‘naturalidade’ ocas.

Há alguma facilidade por parte dos biólogos em estudar estas criaturas (são baratas, de fácil acesso)  e de tomar algumas conclusões relativamente ao funcionamento humano. Aliás, para os mais aficionados na matéria, estas criaturas apresentam aquilo que seriam comportamentos de amor, zanga ou reconciliação, com um cérebro minúsculo e com a ausência de hormonas como as nossas – alguma coisa faz com que estas miniaturas consigam funcionar de uma forma tão organizada. Mas como os insectos são feios e como temos muito medo deles, temos alguma dificuldade em antropomorfizarmo-los e aprender o que quer que seja com eles.

A proposta de Marlene Zuk no seu livro Sex on Six Legs: Lessons on Life, Love, and Language from the Insect World é de que temos que parar de recusar o que são propostas de normalidade dos insectos, e quiçá aprender alguma coisa com eles.

As moscas, as abelhas, os louva-deus, os gafanhotos, as joaninhas ou os escaravelhos têm estilos de vida diferentes do que a nossa visão antropocêntrica poderá esperar – ao ponto de confundir muitos pensadores (e isto aconteceu durante a antiguidade clássica) com a ambiguidade dos papéis de género que os insectos apresentavam. Todos já sabem que uma colmeia é uma monarquia matriarcal, com uma chefe de estado feminina. O que o senso comum e as visões populares preconizam é que as abelhas trabalhadoras são machos – quem faz o trabalho, e desenvolve a vida da colmeia – quando na verdade são fêmeas. A autora do livro, bióloga, tem a sensibilidade de uma cientista social ao pensar porque raio é que a assumpção primária é de que as abelhas trabalhadoras são machos? E ninguém se informa, ou corrige, que as abelhas são na verdade, fêmeas (e responsáveis pela criação de um terço da nossa comida)? Também é o caso das formigas onde os soldados são as fêmeas, para grande surpresa do mundo em geral. Mundo geral esse que cresceu com filmes e series de animação onde as abelhas e formigas eram traduzidas a um mundo antropomórfico masculino (a excepção será talvez os que viveram a sua juventude nos anos 80 e que cresceram com a ideia d’A Abelha Maia). Claro que este tipo de confusão não é o fim do mundo, e provavelmente não passa de pura ignorância. Conseguimos, contudo, ter alguma noção sobre o nosso desconhecimento dos nossos companheiros invertebrados e do nosso viés em assumir que certas ideias são masculinas, quando que não deveriam haver receios em vê-las como femininas.

Os insectos-fêmea têm poderes extraordinários na forma como procriam. Imaginem: estas criaturinhas podem copular com múltiplos machos e escolher o esperma que desejam de facto fecundar – aliás, podem guardá-lo para depois. O esperma só é utilizado quando ela quiser pôr ovos, seja isso daqui a uma hora, semanas ou meses depois do contacto sexual. Os machos tiveram que desenvolver mecanismos evolutivos para se protegerem destas estratégias que dão poucas garantias que a sua carga genética seja passada a outras gerações. Por isso é que os insectos têm pénis com picos, ganchos, i.e., mais parecem um canivete suíço, para certificar que o seu esperma se torne no vencedor.

Estas curiosidades e outros detalhes da vida sexual dos insectos podem ser pesquisadas e analisadas no livro que foi a minha inspiração da semana, e também por essa internet fora. Podem deixar-se levar pelo mundo verdadeiramente fascinante do que são formas naturais de envolvimento e desenvolvimento sexual, que compõem uma possibilidade infinita de formas sexuais alternativas. É óbvio que não me pus a escrever a pensar que os homens deveriam ter um pénis a assemelhar um instrumento de guerra, não acho que exista uma lição de facto para ser aprendida – nada do que os insectos fazem poderíamos repetir em casa! Mas, quer queriam quer não, toda a investigação à volta do sexo dos insectos ensinam-nos acerca dos seus mecanismos evolutivos, e das tão criativas formas de desenvolvimento – e de inclusão! Porque no mundo fantástico dos insectos temos colónias compostas por maiorias arrebatadoras femininas, observamos comportamento homossexual e temos exemplares hermofroditas. Tudo de forma normal e muito natural.

11 Abr 2017

O regresso dos neo-cons

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ataque norte-americano à base aérea de Shayrat na Síria, como retaliação a um alegado ataque químico que terá morto um número indeterminado de civis, é um sinal de que a política externa norte-americana, ao contrário do que havia prometido o candidato presidencial Donald Trump, vai ser interventiva. Mais do que imprevisível, a Presidência Trump está a tornar o mundo um local mais perigoso. Após parecer que, afinal, Bashar Al-Assad seria tolerado pelo novo inquilino da Casa Branca, Donald Trump faz uma reviravolta e deixa claro que o governo sírio pisou o risco ao recorrer alegadamente a armamento químico.

Ora, sem verificação independente sobre o que verdadeiramente terá ocorrido na passada terça-feira em Khan Sheikhoun, território sírio controlado por rebeldes, em que um alegado ataque químico terá provocado a morte a dezenas de civis – alguns relatos falam em 89 vítimas, incluindo 33 crianças e 18 mulheres –, as diferentes partes do conflito foram construído a sua própria narrativa. Afinal, a guerra faz-se também pela forma como se comunica. E cada qual aproveitou o ataque para reforçar a sua posição contra o outro.

Se, por um lado, Trump justificou o ataque levado a cabo pelas forças norte-americanas como uma medida retaliatória justa, o governo sírio diz que não recorreu a armamento químico contra a sua própria população, que se tratou apenas da libertação de um produto químico armazenado pelos rebeldes, após um ataque aéreo específico a um arsenal rebelde.

Por outro lado, se a Rússia – principal aliado de Assad – apareceu ao lado do governo sírio, validando a construção da realidade apresentada por Damasco, já o Reino Unido apontou o dedo a Moscovo, acusando-o de ser também responsável pela morte de civis. Acto contínuo, Boris Johnson cancelou a visita à Rússia.

A narrativa construída passou – naturalmente, sublinhe-se – pelo “uso” do chamado mainstream media. A CNN, por exemplo, não deixou de salientar que a maior parte dos líderes europeus e mesmo “caseiros” apoiavam a decisão unilateral norte-americana. A cereja no topo do bolo era o apoio declarado de Hillary Clinton.

A Russia Today (RT) procurou contra-atacar recorrendo a Ron Paul, antigo candidato presidencial norte-americano, que sublinhou que o realismo dos neo-conservadores está de volta a Washington.

O momento da resposta também tem de fazer parte da análise. Ao proceder ao bombardeamento da base aérea de Shayrat, nos arredores de Homs, quando estava a decorrer a cimeira com Xi Jinping, Donald Trump não quis deixar grande espaço para imaginação sobre o que pode fazer com a Coreia do Norte. Aliás, caso analistas mais distraídos não tenham percebido o alcance da nova política externa norte-americana, neste fim-de-semana, a marinha norte-americana fez avançar vários navios de guerra, incluindo o porta-aviões Carl Vinson, para a península coreana.

O que é facto é que o Conselho de Segurança das Nações Unidas está bloqueado no que à guerra na Síria diz respeito. Apelar a uma reforma do órgão da ONU responsável pela paz e segurança no mundo não parece que vá contribuir para um termo imediato do conflito sírio. Não é possível imaginar-se que num futuro próximo China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia aceitem que outros possam bloquear decisões do Conselho de Segurança. É difícil imaginar, por exemplo, que a China, embora mantenha uma relação estreita com a Índia no âmbito dos BRICS, aceite um dia que Nova Deli venha a fazer parte do grupo dos P5. As dúvidas sobre o conteúdo dessa reforma são imensas. Por exemplo, perguntar-se-ia, além do Brasil, que outro país deveria aceder ao estatuto de todo-poderoso no Conselho de Segurança? A África do Sul, outros dos BRICS, ou a Nigéria, país que há muito é um dos grandes contribuintes para o departamento de manutenção de paz da ONU?

Aos olhos daqueles que vêem que, após mais de seis anos de conflito, a ONU não conseguiu chegar a um consenso para a paz na Síria, a decisão de atacar agora o regime de Assad poderia – tendo em conta o número de vítimas civis – ser uma acção justificada. Mas com o envolvimento russo na Síria, forçar a saída de Assad poderá ter consequências muito mais vastas do que apenas contribuir para uma possível solução para um conflito no Médio Oriente.   

Por tudo isto, na reunião de urgência do Conselho de Segurança da passada sexta-feira, o representante permanente da Bolívia lembrou a ida àquele mesmo órgão, em 2003, de Colin Powell, apelando ao apoio dos outros 14 estados-membros para a intervenção no Iraque e apresentando “provas” que depois se revelaram falsas. Por tudo isso, e com os neo-cons a dominarem a agenda, fica a dúvida sobre a efectiva intenção de Trump. Ao fim de três meses no poder, longe estão já as declarações de não envolvimento americano nos conflitos do mundo. 

10 Abr 2017

Manifesto

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onfesso. Há alturas em que apetece atirar o teclado contra a parede. Não que seja dada a violências. Nada disso. Apetece-me, isso sim, ter um pretexto para não escrever – a falta de teclas, a falta de letras –, pegar no casaco e na mala, bater com a porta. A senhora tem de compreender que. Cansa-me o discurso de apelo à compreensão. Não há nada para compreender.

Presumo que noutras profissões em que haja uma relação directa com a função pública, as coisas se processem mais ou menos da mesma forma. O senhor tem de compreender que. Mas não sei de outras profissões, só sei da minha que é a que tenho todos os dias e que, paradoxalmente, diz respeito, de forma mais ou menos directa, a toda a gente.

Nos outros sítios do mundo que não Macau, os jornalistas existem porque as pessoas têm o direito a serem informadas. Se querem ser informadas, isso já é outra conversa, são as opções de cada um. Em Macau, os jornalistas existem porque são uns chatos, umas pessoas que decidem ir trabalhar ao cair da noite e escrevem assim uns textos ou dizem umas coisas em frente a umas câmaras. No essencial, os jornalistas são uns chatos. Fazem tantas perguntas. Os senhores têm de que compreender que. Não temos de compreender nada mais além do que temos de saber para que os outros também saibam.

Desabafo. Desculpe-me o desabafo, mas diz-lhe respeito. É para si que escrevo, mesmo que não me queira ler. É uma estranha insistência, eu sei, achar-se que há um assunto que merece ser estudado, descodificado, clarificado. E escrito. Porque ainda não atirei o teclado contra a parede, o teclado branco na parede branca, tudo branco, continuo a escrever a preto.

Inventou-se há uns anos que cada serviço público devia ter funcionários com a missão de aturar os jornalistas. A ideia era boa. Era mesmo. Mas são esses que me pedem paciência. Alguns nem isso fazem, porque não respondem, ignoram-me. Os pobres aturam os jornalistas sem perceberem porque é que aturam os jornalistas. Ninguém lhes explicou que está constitucionalmente consagrado o direito à informação. Ninguém lhes disse que informar é um dever, não um favor que se faz. Às tantas alguém lhes disse qualquer coisa do género, no meio de muitas outras coisas como folhas a preencher por causa de horas extraordinárias e outros assuntos mais importantes, muitas burocracias e códigos e folhas e tretas do género. Escapou-se-lhes a parte do dever. A senhora tem de compreender. Não compreendo nada, porque não trabalho para um arquivo. As notícias escrevem-se hoje, não daqui a um mês.

Há uns tempos, a propósito da dificuldade que a Administração tem em perceber a importância dos timings da comunicação, ofereci-me para, na condição de jornalista, explicar a quem tem a missão de aturar a imprensa como é que as coisas se fazem deste lado. Para que tivessem a ideia que nunca ninguém lhes deu. Para que percebessem que os apelos à compreensão são contraproducentes. A minha oferta era em regime pro bono, uma coisa informal, sem powerpoints, nem discursos. Talvez ganhassem eles e talvez ganhasse eu, talvez ficássemos todos a ganhar.

O meu interlocutor riu-se. Olha que engraçada que ela é, tem cada ideia mais peregrina, onde é que já se viu numa terra cheia de gente inteligente e culta e cheia de experiências, e de MBAs e PhDs e canudos de várias formas e feitios, vir agora uma jornalista, um ser que acorda tarda, toca viola durante o dia e escreve uns textitos à noite, querer partilhar o que quer que seja com a elite de mui oficiais relações públicas.

Passaram-se uns bons anos desde a minha extravagante proposta e continua tudo mais ou menos na mesma. A senhora tem de compreender. E eu não compreendo coisa alguma, que pecados e omissões não são a minha área vocacional. Não compreendo que se fechem as portas a quem informa e procura fazê-lo na posse do maior número de dados, da forma mais correcta.

Não compreendo também que se feche a porta a uma associação de jornalistas que pediu esclarecimentos sobre a lei eleitoral, diploma que levou com alterações que alguém decidiu que também se aplicam aos jornalistas. Não compreendo que se diga que não há tempo. Gente tão ocupada esta. Pior, não compreendo que se tente passar um atestado de estupidez a quem fez o pedido de esclarecimentos. De cada vez que se fala no assunto, dizem-nos que já houve uma sessão para o efeito. Ora, foi essa sessão que deu origem às dúvidas. Mas já houve uma sessão. Mas há dúvidas. Mas já houve uma sessão. Mas há dúvidas. Não interessa. Os senhores têm de compreender.

Há dias em que apetece atirar com o teclado contra a parede. Branco no branco, letras no chão, pedaços de plástico finamente desenhados que deixarão de ser produtivos, transformados em lixo. Não sosseguem, não respirem de alívio. Teclados é o que não falta.

7 Abr 2017

Os B.P.S.

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ostumava o meu pai dizer que “à mesa não se fala de religião ou política”. Mas de futebol tudo bem, falava-se pelos cotovelos. Na ressaca de mais um “derby”, disputado no último Sábado entre o Benfica e o Porto, resolvi hoje de um mal que afecta os portugueses de um modo geral: a clubite.

Se os benfiquistas são seis milhões (é bem possível, a julgar pela quantidade de gente deprimida no país), os restantes quatro milhões são do Porto e do Sporting. São os BPS (benfiquistas, portistas e sportinguistas), que constituem 99.9% da população portuguesa – os outros 0.1% são uma margem de erro. Mesmo os que se dizem adeptos dos outros clubes, do Guimarães, do Braga, do Belenenses, e mesmo os orgulhosamente insulares da Madeira, são uns enormíssimos BPS camuflados. Basta ver os jogos do tipo Braga-Benfica, ou Penafiel-Porto, se acabam 2-2, metade dos adeptos no Estádio festejam os quatro golos, sendo que a outra metade pertence a um BPS inimigo – os BPS são os expeditores da glória desportiva. Um adepto de Setúbal que garanta a pés juntos que só gosta do seu “Vitórria”, é lá no fundo um BPS recalcado que sofre com um deles todos os fins-de-semana. A Taça de Portugal é um bom exemplo disso. Lembro-me há uns anos um dirigente de um clube dos escalões secundários ter dito em vésperas de receber um dos grandes que “queria vencer para ajudar o Benfica”.
O clubismo é um cancro nacional. Separa os melhores dos amigos, gera discussões bacocas entre colegas, é só do que se fala quando não há nada para falar (e quase sempre não há!). Qualquer BPS mais pacato começa a levantar a voz e o dedo quando fala de futebol com um BPS rival. Ao contrário das religiões, que não se enfrentam todos os fins-de-semana em busca de um troféu (pelo menos não nos mesmos moldes), aqui a rivalidade é renovada a cada jogo, a cada semana, a cada título. Cada um dos BPS é especial na sua maneira de ser.
O benfiquista é o mais orgulhoso. Há benfiquistas de toda a espécie e feitio: ministros, advogados, trolhas, domésticas, beatas, arrumadores, tudo. Há benfiquistas alentejanos, beirãos, portuenses, do Minho até Timor, como dizia o outro. O Benfica é a United Colors of Benetton do clubismo lusitano. Podem ser óptimas pessoas, boazinhas, porreiríssimas, mas passam-se dos carretos quando alguém fala mal do seu clube. Todos sabem de cor os hinos do Benfica, têm em casa um pratinho que diz “quem não é do Benfica não é bom pai de família”, arrepiam-se quando revêm imagens do Eusébio e do Rui Costa a chorar. Produzem resmas de poesia e prosa de casca grossa para definir “o que é ser benfiquista”, que começa quase sempre por “é uma chama imensa”. São tão agressivos quanto os portistas, têm ambos mau perder, e isto porque ambos pensam que existe uma guerra norte-sul, em que a deslocação para cada um dos campos de batalha se faz de carro em pouco mais de duas horas.

Os portistas são gente desconfiada (“este morcone não é do Norte, carago), orgulhosa, que um dia arregaçou as mangas e resolveu pôr um fim ao domínio da capital. São os anti-imperialistas do clubismo. Olham para o Benfica de cima, e riem com tom sarcástico das coisas que os acusam. Para o portista, que ri na cara do perigo, “as contas fazem-se no fim”. E têm sabido fazer bem as contas. Pinto da Costa aparece assim numa aura estranha, de santidade como o Papa, de revolucionário como Che, de padrinho como Vito Corleone com um culto da personalidade a fazer lembrar Mao. Orgulham-se do terreno que foram conquistando nas últimas décadas, e estão convencidos que “até em Lisboa há portistas”. Enganam-se. Haver há, os que emigraram. Os outros são sportinguistas arrependidos, uns BPS à parte, que são anti-Benfica.

Os sportinguistas são, dos três, os mais simpáticos. Têm orgulho de ser do Sporting, consideram-se uma elite. São os tais “netos de visconde” de que o Octávio Machado falava. Quando penso num sportinguista tipo vem-me à ideia um indivíduo calvo, sorridente, técnico de informática, com um autocolante “salvem as baleias” no PC e outro “Bebé a bordo” no Fiat. São os BPS que mais filosoficamente aceitam a derrota, e não entram em grandes euforias quando ganham, porque afinal, “é normal”. São uma malta que sabe estar na vida. Sendo os mais simpáticos, são também os mais permissivos, e talvez por isso nunca ganham, coitados. Simpatizam com o Porto “quando ganha títulos em vez do Benfica”. Para eles ver o Benfica perder é um prazer indiscritível. Dizem com a maior das calmas e com um desportivismo latente que “o Porto é melhor clube português dos últimos 30 anos”, mas secretamente desejam que os BP (Benfica/Porto) se matem, esfolem e auto-destruam. O seu mote é “quem espera sempre alcança”.

Outra palermice que os adeptos gostam de reafirmar é que “são BPS, mas são portugueses e querem que os outros ganhem na Europa”. Mentira. Na hora da verdade o visceral ódio vem logo ao de cima. Basta observar este ano a novela entre Porto e Benfica por um lugar na Liga dos Campeões. Mas nos outros países é assim, porque havia Portugal de ser diferente? Na Espanha os adeptos do Barça ficam furiosos quando o Real Madrid vence um troféu europeu, e vice-versa.

Mesmo na selecção nacional o clubismo dita as suas regras. São os BPS cada um a puxar a brasa à sua sardinha, a achar que devem ter mais jogadores do seu clube na selecção de todos nós. Culpam árbitros, dirigentes, políticos e outros pelas derrotas. Têm uma lista negra de responsáveis pelos seus fracassos, e não se importavam de ver “toda a gente na cadeia” para poder festejar as vitórias para que, afinal, muitos nada contribuíram.

6 Abr 2017