O Reencarnador

[dropcap style≠’circle’]r[/dropcap]e·en·car·na·ção, substantivo feminino. Acto ou efeito de reencarnar. Reassumir a forma humana. O termo, de origem latina, significa literalmente “voltar a entrar na carne”. Pitágoras usava a expressão “metempsicose” quando se debruçava na trigonométrica nova existência. “Metempsicose” resulta da soma do quadrado das partes “meta” (mudar) e “empsykhoun” (introduzir a alma em), para se referir à “hipotenúsica” ideia da transmigração de almas de um corpo para outro. Longe de querer mergulhar no mundo místico das religiões, ou nos domínios do espiritismo, proponho um exercício de esquizofrenia nesta página. Todas as semanas a minha carne receberá a presença de alguém que conte algo sobre Macau e o Mundo. Convido-me a vestir a pele de indefinidos terceiros, a ver a realidade com os seus olhos, a sentir as suas dores, a partilhar as suas alegrias, terrores e esperanças.

Esta página destina-se à ocupação post-mortem de uma defunta narrativa, à canalização de espíritos através do poder invocativo das palavras. Sei que vou errar, essa é a única humana certeza que tenho antes de enfrentar esta tarefa. No entanto, comprometo-me, numa espécie de juramento agostiniano, a não perseverar no diabólico equívoco.

Confesso que ser outro, representar algo no papel, afigura-se uma aliciante promessa de improváveis aventuras. A reencarnação é, afinal, o labor supremo da imaginação, a via essencial da arte representativa, do teatro, da literatura, do devaneio que faz correr a alma em direcção ao insondável. A derradeira fuga ao ego.

Pretendo recorrer, o melhor que conseguir, ao engenho do mimetismo como instrumento em prol da racionalização, da busca da paz trazida pela compreensão, da lucidez que se materializa a partir de um lugar de absoluta e difusa esquizofrenia. O mais afastado possível da segunda vida do perdido Norman Bates e de todos os loucos que habitam a ficção e a realidade. Isto apesar de Macau proporcionar, por razões que desconheço, condições perfeitas para a loucura germinar, como um habitat natural perfeito para o cultivo de um sortido variado de psicopatias. Afinal, todas as terras têm os seus respectivos punhados de loucos, como que um número mínimo requerido de Joanes por unidade geográfica vicentina. A sensação de excesso de demência por metro quadrado em Macau, talvez, se deva ao apertado abraço da densidade populacional, o sufoco metropolitano pode muito bem empolar essa percepção. Erasmo de Roterdão teceu um elogio protestante a esse desígnio da psique humana, como uma forma de tornar Roma mais longe no mapa espiritual. Bem, talvez já esteja a cair no fácil abismo do erro, é muito humanamente possível.

Mas hoje, neste meu primeiro acesso, encontro-me destituído de papel a encarar o ainda estagnado carrossel identitário. Um corpo vazio, receptáculo por preencher, como esta e outras tantas futuras páginas. Aqui me apresento, caros leitores, em registo interno, totalmente assumido e nu. O meu nome é João Luz, nasci há 38 anos e 8 meses em Setúbal. Tenho pouco mais de sete meses de Macau e uma sede imensa de clareza e compreensão. Esta é a minha desfloração, a perda da virgindade em matéria de crónicas de opinião assinadas. Espero conseguir expressar a minha percepção da forma mais fiel possível aos personagens que vou representar neste palco de papel. Eles serão o veículo para exorcizar Macau e o Mundo, segundo as minhas lentes, de acordo com o meu palato.

A minha pena presta-se a traduzir para palavras as ruelas e os becos da cidade, os fantasmas do Porto Interior, as meninas que mercantilizam deleite, a opulência gorda do poder, o esmorecer de forças dos despojados. Quero abarcar tudo nesta página, torná-la a minha cruz pessoal de reflexão, o derrame de caleidoscópicas miríades de pensamentos no melhor português que conseguir conjurar no mais curto espaço de tempo. Quero o impossível e ser tudo, ao mesmo tempo, já, imediatamente. Anseio com júbilo a entrada em cena da primeira personagem. Já pressinto as pressagiosas pancadas de Molière a ecoar secas e premonitórias num horizonte próximo.

Por hoje serei apenas o “reencarnador”, o vazio, o ciclo por completar depois da morte e antes do retorno à vida. Na próxima semana serei outro.

 

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