O amor

[dropcap]M[/dropcap]uito para lá do afecto e da compaixão, o amor implica abnegação, desinteresse pessoal, altruísmo condimentado por paixão de concretização urgente. O amor persiste para além da lógica, faz correr o sangue e torna o oxigénio cada vez mais doce a cada inspiração.

O amor não se ensina, não se impõe, não se decreta, não se sente por obrigação, não se legisla, não conhece restrições de normas ou submissão a regulamentos. O amor não ameaça, não se força, muito menos se reveste de punições para castigar a falta de correspondência. O amor não se institui através do medo, aliás, é impossível amar algo que se teme. Muito pelo contrário, o amor é um espaço de liberdade, feito com vontade, nascido do mais íntimo espaço de liberdade individual e materializado numa dimensão partilhada de prazer e afinidade profunda.

Apesar de implicar devoção, o amor não se confunde com devoção, muito menos instituída por doutrinas, credos ou ideologias. Esse tipo de amor é somente amor-próprio, luta pela sobrevivência do ser face ao ambiente, um simulacro sem ternura que pretende evitar a penalização para a falta de apego ao sistema, que procura favores que satisfaçam a barriga, o bolso e nunca o coração. Por exemplo, um deus que exige amor e que castiga por não se sentir amado, ou suficientemente venerado, é um cárcere mitológico, mesquinho de um ego-maníaco, um problema do foro psiquiátrico com poder destrutivo.

Leopold von Sacher-Masoch nasceu em 1836. Além de gastar o seu tempo com a prática amorosa do jornalismo, escreveu “A Vénus das Peles”, romance que descreve um tipo de amor conceptualmente semelhante ao amor dogmático, mas muito mais aprazível e livre no consentimento. Imbuído por paixões socialistas e humanistas, Leopold escreveu a derradeira carta de amor ao masoquismo, alargando o espectro brutal do divino marquês, liberto pela Revolução Francesa, para uma dimensão de deleite absoluto do subjugado.

Ao legado de Sade, Leopold acrescentou a possibilidade de se amar a dor, de se retirar prazer da punição, de se desejar o chicote a lacerar a carne mais que um afago sentimental. Este tipo de amor é exclusivamente interpessoal, sem aplicação na relação entre indivíduo e Estado, nem entre crente e Deus, nem noutra dimensão que não envolta a intimidade. Não se pode ser íntimo com o partido, com a empresa, com o Estado, com o dogma.

O amor inspira epopeias heroicas, horrores psicóticos, devaneios de poetas, é um sentimento que induz à criação de todo o tipo, que acrescenta pujança, força brutal à pessoa que o sente, é uma injecção de coragem capaz de derrubar todos os muros do mundo. Em contrapartida, é vulnerabilidade extrema, paixão selvagem, arrepio na pele, susceptibilidade de onde nasce uma violência que pode destruir tudo à sua volta. Fogo que alastra do interior e incendia o mundo inteiro.

Amor é sentir elação ao ver felicidade nos olhos da pessoa amada. Jamais um humano sentirá tal coisa face a uma lei, política, projecto ideológico ou confessional. Só quem nunca amou poderá pensar assim, só depois de se transpor a fronteira do humanismo em direcção a um plano maquinal se pode pensar assim. Só com um coração repleto de terror se pode pensar e viver assim.

Nunca um discurso político, uma bandeira, um hino, espicaçou um hipotálamo a segregar oxitocina, jamais levou a um orgasmo, em ocasião alguma fez suspirar alguém pelo aperto terno de um abraço. A menos que se confunda amor com a parafilia do fanatismo. Um fanático pode pensar que se aproxima do amor ao reler vidrado um panfleto ou manifesto, pode julgar-se apaixonado enquanto comunga em homilia ou participa numa peregrinação. Sentir unidade, solidariedade, comunhão com o próximo é uma deriva humana, faz parte de quem somos enquanto espécie gregária que aprendeu a sobreviver graças ao esforço colectivo. Mas isto não é amar, é simplesmente viver em sociedade. Esta elementar noção deveria ser das coisas mais fáceis de entender fora do quadro clínico da psicopatia. Mas se os vossos amplexos de anca e respiração ofegante estiverem para aí dirigidos, se se virem na eminência de desejar fazer amor com um programa político, evangelho, ou ideal patriótico, por favor, para o vosso e nosso bem, usem protecção.

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