A incompetência

[dropcap]O[/dropcap] ego de Macau passa cheques que a sua capacidade intelectual não tem como cobrir. Eu vivo desse desequilíbrio. Sou soberana neste reino de inaptidão, o fio condutor, a inábil tintura que corre pelas artérias da cidade tingindo tudo com uma espécie de fuligem negra.

Qualquer tarefa se torna numa odisseia digna da pena dos poetas, homens que destilavam liberdade por todos os poros e que só através da loucura e da intoxicação escaparam à mundana incapacidade com que pintei tudo e todos (Olá, Pessanha!).

Imprimir um documento com três páginas é algo que implica a intervenção de um técnico especializado e um requerimento para a NASA. Carimbar um papel, que cumpre todos os absurdos requisitos da máquina, é algo que carece de santíssima bênção do topo da pirâmide hierárquica. A impertinencia de pedir um esclarecimento é visto como uma ofensa à reinante ociosidade. Como se diz em cantonês, “Hea”! Algo que vai muito além do bom e velho desleixo e que é um dos pilares de Macau.

O meu grande aliado é o medo de errar, de fazer má figura, o pavor de assumir a responsabilidade por actos que são naturais face à incumbência profissional. Assim se esbanja habilidade na cidade dos talentos. Ninguém, em lado nenhum, nunca soube nada! Os políticos podem dizer o que quiserem que ninguém liga ou reage, poucos reportam, ainda menos se interessam. Se vos pedem documentos incertos numa repartição pública, coisas que talvez venham a dar jeito para olear a máquina, certificados que podem dar sorte no holístico andamento do processo, isso é Macau.

Sou uma das heranças dos portugueses, que não deixaram apenas pastéis de nata, catolicismo, calçada, poesia e esperma em ventres asiáticos. Sou mais que isso. Sou indolência e vacuidade, absoluto pavor do erro e da voz alta do patrão.

Sou a porta escancarada para a corrupção, por afinidade ou negligência. Terreno fértil para a perfídia, facilitismo e adulteração da lei, morte da decência e de tudo o que devia ser sagrado na terra da harmonia. Sou o incentivo ao crime, das mais altas esferas aos mais humildes funcionários, a perversão e o oposto dos grandes mantras oficiais de pureza e amor aos governados.

Multiplico-me como uma praga num ecossistema onde funcionários são promovidos pelo simples facto de não estarem mortos. Um percurso onde o mérito não tem lugar e é visto como uma pedra na engrenagem da coisa pública, a tal “res” que fica no rés-do-chão do funcionalismo.

Sou invencível também entre as novas vagas pós-coloniais de portugueses que aqui chegam prenhes de inteiros reinados, carregando sem esforço egos morbidamente obesos.

Chego a todos os domínios. Instalações de gás que são hinos à fuga, ruas que se remendam como meias rotas, janelas com caixilharia desproporcional face ao vazio na parede, taxistas que não conseguem encaixar o conceito de cliente, médicos que colocam nas mãos dos doentes importantes decisões terapêuticas. A minha obra está em todo o lado.

Sou a falta de preparação dos alunos que por aqui estudam, a ignorância de que houve guerras mundiais, Tiananmen, rock n rol e blues do outro lado do mundo. Sou a cegueira numa terra que beneficiou de uma luxuosa abertura no contexto regional. A lengalenga das “vantagens singulares” de Macau e do posicionamento político gentilmente concedido pelo País ao abrigo do santíssimo princípio “um país, dois sistemas”.

Tudo muito bonito e imaterial, um castelo de areia se não fossem os biliões nascidos nas mesas dos casinos. Estas são as matrizes na terra onde tudo é permitido na sombra, enquanto a face se mantém intacta à superfície, sustentada em discursos puritanos proferidos pelos meus soldados.

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