O amor leva-nos para casa

«Se um homem pobre vem pedir-te ajuda de manhã, ajuda-o. Se ele voltar à noite, ajuda-o de novo»
( comentário sobre o Génesis )

 

[dropcap]A[/dropcap]credito que as nossas acções possam voltar um dia em pura sensação banidas que sejam as imagens, numa outra forma e num outro “olhar” pois se nada fica ocluso, nada ficará também por experienciar no tecido das coisas e das suas intenções – e se o tal dia amanhecer cruel, ainda assim, nos recordaremos que a proposta foi de novo regressar a Casa.

Toda esta distância feita abismo de que se ocupam as gentes por manter de forma sitiada, é feita com muitos batendo à porta, e com outros tantos que o acaso faz brilhar pelo enigma das direcções felizes. Por vezes estamos exaustos, nada parece sobrar de nós que se possa doar ou mesmo partilhar, um sacrifício continuado quantas vezes nos impede de dormir, pois que noites há em que nos sentimos culpados e pequenos diante de nós mesmos. São os chamados pesadelos, essa decrescente massa sem visões salvíficas, são medos, são dolos…

Um labirinto esmaltado é a Cidade, a pedra é dura, e dura a cidade na pedra em nossa fixação e nela há sempre mendigos – passam como sombras entre nós que andamos circulando e temos pena de não lhe darmos mais – sentimos que nem sempre são pessoas tristes, mas abandonadas e errantes que querem coisas…

… talvez pequenas atenções como falar para não perderem a memória dos seus próprios sons, e comer, porque a fome só é perigosa para além daquele estado em que já não se sente. Vamos compreendendo que nunca são os mesmos, que a vida os abate em ciclo estreito e outros lhes seguem sonâmbulos nos mesmos locais onde deambularam, só nós somos os mesmos, os que vivem melhor e mais anos. Nós os que passam com intenção pelos locais, e sem fome, vemos o que se passa: «Não desdenhes de nenhum homem e não desprezes nenhuma coisa, porque não há homem que não tenha a sua hora e não há coisa que não tenha o seu lugar».

Nesta vida temos ímpetos para fabricar comportamentos sem brio de selectiva obscuridade, e fazemo-lo com a certeza de uma superior condição que muito prejudica o bem de todos, essa matéria testada e destacada não deixa de ser por si uma forma de miséria e cresce sempre que a desprotecção social avança, nestes tempos, erguido o nosso olhar, vemos a crescente cauda daquilo de que a nossa Humanidade se envergonha e que por razões aleatórias e alienadas não são observadas com respeito e sustentabilidade, ainda nos vem a reserva do bicho que somos: se a vida não dá para todos, que se fique então com a maior e melhor parte, uma natureza fétida que oprime e castiga, pois que a sabemos distante dessa indelével marcha do regresso – o inviolável centro – onde iremos por alas, e pode ser que à espera das almas não lustrais esteja a máscara dos actos destas coisas tão terrenas, onde a Casa fechará as suas portas aos que habitaram a Terra sem a memória de uma lembrança sagrada.

Se o amor partilhado foi esquecido, se aqueles que nos deixam prosseguem, se todo o abandono pode ser uma emboscada, é então necessário saber que dessas coisas já não precisamos e sem necessidade delas somos naturalmente mais livres, mas também mais vulneráveis, devendo então aparecer somente para a justiça breve daquilo que deverá ser acertado. Seria muito bom para alguns, outros não existirem, e esse medo das suas existências, traz-lhes a ruína da alma que agitada se move para o seu precipício. Criam os espectros que os atacarão mais tarde, depois não sossegam, têm vozes agrestes, dormem em sobressalto, carregam negrumes, inventam os danos, uma auto- sabotagem pois que todo o sobrevivente a si mesmo é uma forma batida sem correspondência com algum grito de salvação. Deles já não se abeiram os anjos para as ceias, esses momentos onde as horas são o legado da festa, que é o tempo dos amantes, e os cálices não se elevam amantíssimos na rota do entendimento.

A morte vem-nos buscar um dia de forma tão normal como foi a vida gratuita ao ter-nos alcançado, e aí, o terminus ditar-nos-á a estrada do retorno, ou não. Ficar enjaulado de novo na batráquia origem do verme equilibrista é a maior derrota que se pode infligir a si mesmo. Temos de saber que a vida conspira para nos ajudar, em cada dia isso acontece, em cada instante vemos a sua grande causa, em nenhum momento ela nos deixou a sós. Como não ver isto, pode ser ainda a treva atravessando o horizonte da alma dos Homens. E quando nos abalroa e destitui, faz ainda um trabalho de reconhecimento que devemos aproveitar como lição. Afinal, queremos apenas, e de novo, o Amor ( esse bem sadio que a doença de ser entristeceu) e a Casa de antanho onde deixámos intacta a forma eleita de cada um dos nossos destinos.

Para os que pedem, façam-no em segurança, pois serão saciados. Para os mendigos, o nosso Amor primeiro para que assim sejam salvos das garras da indiferença e da humilhação. As coisas mais bonitas, essas, ficarão sempre por contar, mas nem por isso deixarão de ser registadas como um legado de manifestações transversais de uma profunda compaixão por tudo o que vive. No emaranhado das intenções as coisas sonegam-se e nem sempre já existe entendimento para a gravidade dos factos mencionados, mas é preciso chegar como se chega a Casa, descalçar os sapatos, abraçar alguém, dormir, e saber que partindo disto tudo, iremos continuar. Que sejam então belos os caminhos.

 

A caridade é maior do que os sacrifícios oferecidos no altar, mas a bondade é ainda maior do
que a caridade.
Rabi Nahman de Bratislava

10 Set 2019

O amor

[dropcap]M[/dropcap]uito para lá do afecto e da compaixão, o amor implica abnegação, desinteresse pessoal, altruísmo condimentado por paixão de concretização urgente. O amor persiste para além da lógica, faz correr o sangue e torna o oxigénio cada vez mais doce a cada inspiração.

O amor não se ensina, não se impõe, não se decreta, não se sente por obrigação, não se legisla, não conhece restrições de normas ou submissão a regulamentos. O amor não ameaça, não se força, muito menos se reveste de punições para castigar a falta de correspondência. O amor não se institui através do medo, aliás, é impossível amar algo que se teme. Muito pelo contrário, o amor é um espaço de liberdade, feito com vontade, nascido do mais íntimo espaço de liberdade individual e materializado numa dimensão partilhada de prazer e afinidade profunda.

Apesar de implicar devoção, o amor não se confunde com devoção, muito menos instituída por doutrinas, credos ou ideologias. Esse tipo de amor é somente amor-próprio, luta pela sobrevivência do ser face ao ambiente, um simulacro sem ternura que pretende evitar a penalização para a falta de apego ao sistema, que procura favores que satisfaçam a barriga, o bolso e nunca o coração. Por exemplo, um deus que exige amor e que castiga por não se sentir amado, ou suficientemente venerado, é um cárcere mitológico, mesquinho de um ego-maníaco, um problema do foro psiquiátrico com poder destrutivo.

Leopold von Sacher-Masoch nasceu em 1836. Além de gastar o seu tempo com a prática amorosa do jornalismo, escreveu “A Vénus das Peles”, romance que descreve um tipo de amor conceptualmente semelhante ao amor dogmático, mas muito mais aprazível e livre no consentimento. Imbuído por paixões socialistas e humanistas, Leopold escreveu a derradeira carta de amor ao masoquismo, alargando o espectro brutal do divino marquês, liberto pela Revolução Francesa, para uma dimensão de deleite absoluto do subjugado.

Ao legado de Sade, Leopold acrescentou a possibilidade de se amar a dor, de se retirar prazer da punição, de se desejar o chicote a lacerar a carne mais que um afago sentimental. Este tipo de amor é exclusivamente interpessoal, sem aplicação na relação entre indivíduo e Estado, nem entre crente e Deus, nem noutra dimensão que não envolta a intimidade. Não se pode ser íntimo com o partido, com a empresa, com o Estado, com o dogma.

O amor inspira epopeias heroicas, horrores psicóticos, devaneios de poetas, é um sentimento que induz à criação de todo o tipo, que acrescenta pujança, força brutal à pessoa que o sente, é uma injecção de coragem capaz de derrubar todos os muros do mundo. Em contrapartida, é vulnerabilidade extrema, paixão selvagem, arrepio na pele, susceptibilidade de onde nasce uma violência que pode destruir tudo à sua volta. Fogo que alastra do interior e incendia o mundo inteiro.

Amor é sentir elação ao ver felicidade nos olhos da pessoa amada. Jamais um humano sentirá tal coisa face a uma lei, política, projecto ideológico ou confessional. Só quem nunca amou poderá pensar assim, só depois de se transpor a fronteira do humanismo em direcção a um plano maquinal se pode pensar assim. Só com um coração repleto de terror se pode pensar e viver assim.

Nunca um discurso político, uma bandeira, um hino, espicaçou um hipotálamo a segregar oxitocina, jamais levou a um orgasmo, em ocasião alguma fez suspirar alguém pelo aperto terno de um abraço. A menos que se confunda amor com a parafilia do fanatismo. Um fanático pode pensar que se aproxima do amor ao reler vidrado um panfleto ou manifesto, pode julgar-se apaixonado enquanto comunga em homilia ou participa numa peregrinação. Sentir unidade, solidariedade, comunhão com o próximo é uma deriva humana, faz parte de quem somos enquanto espécie gregária que aprendeu a sobreviver graças ao esforço colectivo. Mas isto não é amar, é simplesmente viver em sociedade. Esta elementar noção deveria ser das coisas mais fáceis de entender fora do quadro clínico da psicopatia. Mas se os vossos amplexos de anca e respiração ofegante estiverem para aí dirigidos, se se virem na eminência de desejar fazer amor com um programa político, evangelho, ou ideal patriótico, por favor, para o vosso e nosso bem, usem protecção.

12 Ago 2019