A agonia da Europa

“Europe’s Economic and Monetary Union (EMU) today is like a house that was built over decades but only partially finished. When the storm hit, its walls and roof had to be stabilised quickly. It is now high time to reinforce its foundations and turn it into what EMU was meant to be: a place of prosperity based on balanced economic growth and price stability, a competitive social market economy, aiming at full employment and social progress. To achieve this, we will need to take further steps to complete EMU.”
“Why Europe Will Run the 21st Century” – Mark Leonard

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] actual crise da União Europeia (UE) torna dolorosamente evidente que a sua história deve ser repensada, reformulada e reescrita. Está em jogo mais do que simplesmente fixar o registo do que foi realizado. Ao mesmo tempo, vasta e paroquialmente, a pesquisa existente sobre a UE não apenas define os parâmetros intelectuais actuais do seu objecto, mas fornece também a linguagem que dá forma à discussão, estabelecendo os contextos de formulação de políticas, orientação da acção política e abertura de novas fontes de legitimidade. Trata-se de um acontecimento que envolve duas causas especiais.

A maior parte da literatura académica escrita sobre o assunto foi directa ou indirectamente financiada pela UE, pois durante a maior parte da sua vida, e mesmo até ao presente, foi também beneficiária da ideologia do europeísmo, ou seja, uma fé secular que é um agente ordenado do progresso humano. Os muitos estudiosos, comentaristas, variados especialistas, jornalistas e afins que passaram a maior parte das suas carreiras a fazer pesquisas na UE, são quase todos devotos do culto da Europa unida e para terem a certeza, podem muitas vezes ser críticos, e à luz dos acontecimentos actuais são mais do que anteriormente, mas apenas para melhor servir a causa.

Os que ainda duvidam são indesejáveis. Tais hereges ainda têm de fazer sérias incursões no legado da erudição da UE. Os fabricantes e agitadores em Bruxelas têm estado, e ainda estão, por detrás da empreitada maciça do estabelecimento intelectual e de forma simbiótica a tirar proveito. O mesmo não pode ser dito para os restantes dos cidadãos europeus. O laço entre os pensadores e os praticantes deve ser quebrado se quiserem fazer um progresso real na reforma da UE e no tratamento do seu legado.

É de recordar as três teorias influentes que têm sustentado a crença na UE como algo historicamente transcendental. Enquanto todas diferem fundamentalmente na interpretação do processo de integração, cada uma delas coloca um resultado teleológico semelhante, que é uma Europa Federal. Nenhuma delas tem muita aceitação. No entanto, um paradigma alternativo ainda não as substituiu. A mais antiga e proeminente entre tais abordagens conceptuais, é o funcionalismo, que sustenta que a integração europeia, uma vez posta em marcha, teria “efeitos secundários” que transportam de um sector económico ou político para outro, eventualmente permeando o corpo político. Poder-se-ia esperar que esse processo se movimentasse previsivelmente ao longo do tempo, mas nunca foi o caso.

O progresso foi, na melhor das hipóteses, esporádico e, na pior ausente por prolongados períodos. O autor da teoria funcionalista, elaborada na década de 1950, é o cientista político Ernst Haas, que mais tarde a repudiou. As recentes tentativas de reavivamento, apesar de desesperadas não tiveram praticamente qualquer resultado positivo. A segunda teoria, o intergovernamentalismo liberal, foi desenvolvida por outro cientista político, Andrew Moravcsik, no final da década de 1990, explicando o processo de integração como o resultado de acordos ideais entre actores estatais, e pouco tem a dizer sobre como as instituições operam, e nada menciona sobre os seus possíveis fracassos.

É contada uma história de sucesso, sendo difícil, à luz da actual situação da UE, levar a ideia a sério. A terceira abordagem reinante é um pouco diferente nas suas características. Tendo sido formulada no início da década de 1990 pelo historiador Alan Milward, sustenta que o processo de integração é entendido como um fortalecimento necessário e benéfico do Estado de bem-estar e tendo sido posteriormente elaborada, postula ainda, como as outras teorias que a UE não se vai transformar de uma ideia elitista em um projecto de massa.

A ligação entre as duas teses de Milward e os contornos da história real da UE e as suas predecessoras é apenas incidental. A fé profunda, permanente, difundida e ferozmente defendida de que o processo de integração se concretizará numa Europa social-democrática unida é o que sustenta tais ideias. As convicções são difíceis de morrer. As três desgastadas teorias, em percepções erradas, que imploram correcção e qualquer inquisição sobre a história da UE não farão nenhuma presunção triunfalista. Ao invés, reavaliará o passado da UE num esforço para descobrir o que houve de errado, como poderá ser corrigido e o que poderá vir a seguir. É preciso, desde o início, ver o sujeito de fora para dentro, em vez de, como antes, de dentro para fora.

O epifenómeno de forças históricas mais fortes, o crescimento e desenvolvimento da EU, ocorreu de forma exógena, por meio de motores internacionais de mudança, e intermitentemente por alterações nas relações de superpotência, e continuamente pela expansão aparentemente inexorável do comércio mundial, mediado por novos contextos económicos, políticos e organizacionais. Tal força, e não a UE, é a principal impulsionadora do processo de integração. A erosão gradual do poder inerente às instituições políticas nacionais e regionais, bem como a sua superação por mercados cada vez maiores e mais profundos, está intimamente relacionada com o fluxo crescente de importações e exportações.

O crescimento do comércio internacional reflecte o desenvolvimento de uma interdependência cada vez mais densa e complicada entre os Estados e as instituições corporativas, dentro delas e entre os mercados e as instituições. A tendência constituiu e continua a representar uma ameaça crescente para os construtores burocráticos do sistema da UE que, colocados à defensiva, levantaram interesses políticos num esforço inútil para impedir a torrente.

A Europa sofre com o resultado. Quanto aos argumentos, o original foi o cenário da Europa do pós-guerra, cujas características mais significativas foram o grande desenho americano, que trouxe o renascimento da Alemanha, bem como a Europa e a Guerra Fria. As razões seguintes resultaram da chamada mudança de regime monetário, ou seja, a desagregação na década de 1970 do sistema financeiro mundial de Bretton Woods, que havia sido criado nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial e estava ancorada no padrão dólar-ouro. O colapso deste sistema deu início a uma era neoliberalista, bem como, regionalmente, à espada de dois gumes conhecida como o Acto Único Europeu de 1986.

As suas sequelas tiveram como epílogo o mal concebido Tratado de Maastricht de 1992, que alegremente se comemora, o lançamento de um projecto constitucional imperfeito e a decisão fatal de adoptar o euro como moeda única. A revolução cibernética fornece o contexto para a actual crise na Europa, que conjuntamente com o renascimento da China e da Índia e o seu retorno ao desempenho de um papel cimeiro na história mundial, apresenta imensos desafios técnicos e geopolíticos a uma UE debilitada por uma perda de autoridade, métodos de operação arcaicos e mau julgamento. A adaptação da UE às mudanças, por vezes, impõe respeito, mas muitas das vezes o oposto, sendo por um lado, um poderoso motor de potente melhoria, mas por outro lado profundamente falhado, produto tanto da tomada da decisão humana errada e desenho institucional e operacional.

A história da UE não seguiu um curso prescrito nem foi moldada por um modelo único, ou mesmo vários deles. Sem uma constituição ou outro documento único de formação, mas sendo consequência de vários tratados e muitos entendimentos informais, não apresenta uma sólida estrutura. A complicar ainda mais a situação, a UE opera também de forma oportunista fora desses quadros, num terreno legal e institucional imaginário. O seu desenvolvimento pode ser caracterizado como tendo sido mutável, polimorfo e refractário.

A UE, como organização, alterou-se com o passar do tempo, assumiu formas diferentes e adquiriu novas funções, mas continua a ser obstinada e resistente à mudança. Essa mesma falta de forma pode, paradoxalmente, ser uma fonte de força a longo prazo. A UE já se reconstruiu anteriormente e poderá voltar a fazê-lo. Os mecanismos operacionais da UE estão envoltos numa confusão semântica pelo que são desnecessárias complexidades e ineficiências. A explicação do funcionamento do mecanismo de Bruxelas deve, sempre que possível, evitar uma linguagem incompreensível, ser cauteloso com as relações públicas e considerar inaceitável a desculpa oficial de que o abuso de significado é a consequência inevitável do carácter “sui generis” do projecto da integração.

A última hipótese é insustentável. A UE é uma organização internacional que, como outras foi criada num espírito utópico, estando sujeita às limitações da história e, portanto, falível. Ao avaliar os seus pontos fortes e fracos, não se deve apenas examinar a UE enquanto instituição, mas também os caminhos alternativos de desenvolvimento e o peso dos impactos. O seu lamentável estado actual não estava predeterminado, mas deve-se a uma história de pensamento mal-intencionado, atitudes nefastas, má formulação de políticas e inércia. A UE é produto de mentes e acções individuais, mas também de instituições dependentes, disfuncionais e ossificadas. Esse legado deve ser superado de alguma forma.

A UE pode ainda não estar morta, mas padece de doença a caminhar para a fase terminal. A sua sobrevivência, como no passado, exige, no entanto, uma adaptação rigorosa e até mesmo dolorosa às poderosas forças globais de longo prazo que fazem progredir o mundo. A reforma futura pode implicar uma mudança de atribuição, reestruturação e redução acentuada do poder e da influência da UE enquanto instituição. A história da UE não pode ser sobre metas atingidas, ou mesmo, como nas revisões recentes, metas adiadas, mas de declínio.

A UE tem um longo historial de intervenções políticas ao longo das grandes questões humanitárias e sociais, falhando cada vez mais na tentativa de as implementar, infligindo consequentemente maior dano. É um peso morto que deve ser levantado para que as culturas nacionais floresçam e a Europa recupere a confiança necessária para enfrentar os desafios do futuro. Os cidadãos europeus na sua maioria têm vindo a troçar das pretensões da UE, condenam as políticas já vacilantes ao fracasso e lançam uma avaliação pública da sua necessidade.

O escândalo da fraude da Volkswagen sobre padrões de emissões de diesel, expôs o vazio da reivindicação da Comissão Europeia, para servir como consciência do mundo sobre a política climática, e minou a sua credibilidade como regulador, e sobrecarregada por essa humilhação, a escalada da crise dos refugiados trouxe a agonia evidente da impotência da EU, num campo em que afirmou a jurisdição exclusiva, como seja a segurança interna europeia. Os terríveis atentados suicidas de 13 de Novembro de 2015, em Paris, chocaram os cidadãos dos Estados-Membros, trazendo-os para uma consciência dolorosa de que a política de Schengen de fronteiras abertas compromete a segurança pública.

Os atentados tiveram também implicações políticas de longo alcance, pois inverteram a política de informação científico tecnológica anti-americana da Comissão que era a ponta de lança do seu programa económico, em prol de uma melhor vigilância cibernética, porque necessitavam de novos e improdutivos investimentos maciços em vigilância e bem-estar, resultando numa delegação de facto do poder da UE aos Estados-Membros, revirou a opinião pública bruscamente para a direita, e desencadeou uma procura de alternativas para a Europa.

O destino da UE pode muito bem ser determinado pelo Brexit e consequente saída do Reino Unido. O que parecia improvável quando o primeiro-ministro Cameron prometeu um referendo sobre continuidade da Grã-Bretanha no bloco europeu, e não conseguiu das instituições europeia as concessões de longo alcance necessárias para aplacar um eleitorado cauteloso, foi a votação inesperada pelo abandono da UE. A saída do Reino Unido dividiu ainda mais a UE e pode descentralizá-la A saída britânica pode em tempo desencadear uma reconfiguração da União Económica e Monetária e deslegitimar o corpo de leis e regulamentos europeus conhecido como acervo comunitário. Vivemos um momento decisivo na história da Europa do após Segunda Guerra Mundial.

13 Fev 2017

Mulheres no topo, mas também em baixo

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje em dia há muitos casos reais e evidências que mostram que as mulheres têm mais habilitações do que os homens, sobretudo no mercado de trabalho. Muitas delas têm qualificações académicas mais altas, ocupando um maior número de cargos de destaque na carreira. Outras têm salários mais elevados em relação aos seus maridos, enquanto que muitas continuam a acreditar que ser mãe e dona de casa é um papel importante.

As razões são variadas. Pelo que observo, em Macau, nas escolas as meninas parecem ter mais vontade de estudar, são mais pacientes e concentradas na aprendizagem, enquanto que os rapazes tendem a ser mais activos e movimentados. Isto corresponde à ideia tradicional de comportamento muito presente na sociedade chinesa, que predomina ainda nas gerações dos avós e pais – as meninas são consideradas mais obedientes, enquanto os rapazes devem ser mais brincalhões. Claro que haverá excepções.

O que acabei de escrever pode muito bem ser um exemplo das conclusões de 2015 do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, sigla em inglês), onde participaram mais de 4400 estudantes do ensino secundário de Macau, nascidos após o ano de 1999. A avaliação mostra que tanto na literacia em ciência, como na matemática e leitura, as notas das alunas sempre são melhores do que as dos alunos. Os investigadores apontaram que embora essa disparidade de género tenha tido uma melhoria comparando com os anos anteriores, a realidade é que os desempenhos das raparigas ultrapassam quase sempre os dos rapazes.

Este fenómeno é interessante. Desde que me lembro, falar da desigualdade de género remete para a questão das mulheres serem consideradas mais baixas, mais fracas em relação aos homens, mas a realidade pode ser bem diferente. As mulheres podem ser muito mais capazes.

Sendo do sexo feminino, sinto-me orgulhosa de ver que, nos dia de hoje, as mulheres ocupam cada vez mais lugares importantes na sociedade, lugares iguais aos que são ocupados pelos homens, ou mesmo superiores. Por outro lado, sinto-me triste quando o lado mais comum abordado na desigualdade de géneros persiste, sobretudo nos casos em que os homens tratam as mulheres como se pertencessem a uma classe inferior. Não as tratam sequer como pessoas, ameaçam-nas, agridem, maltratam.

A implementação da lei da violência doméstica em Macau fez-nos perceber a existência destes casos pouco humanos e de maus comportamentos dos homens em relação às mulheres. A lei entrou em vigor há poucos meses, mas já foram noticiados sete casos onde as vítimas eram agredidas há vários anos.

Na maioria das vezes as vítimas são imigrantes do interior da China que conseguiram ficar a viver em Macau por casarem com um homem portador do BIR. Numa situação como esta as mulheres pensam que a sua vida depende do marido, devendo ser obedientes, mesmo que esteja em causa um sofrimento constante.

O surgimento de casos de violência doméstica noticiados nos meios de comunicação social mostra, por outro lado, a coragem que as mulheres conseguiram ter para denunciar as situações de que eram vítimas.

Tanto em lugares mais altos como mais baixos, continua a existir homens que descriminam e não compreendem, que consideram que as mulheres não devem ganhar mais dinheiro do que eles, que devem ficar em casa a tratar dos filhos. É crítico o facto de muitos homens continuarem a acreditar em conceitos tradicionais.

10 Fev 2017

Os desterrados

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]ouve um tempo, há suficiente tempo para ser um passado distante, que a Taipa ficava lá longe. As famílias iam de barco até ao outro lado do rio, em passeios de fim-de-semana que se assemelhavam a excursões ao campo, o verde campo. A Taipa era ali um mundo à parte, uma aldeola. Macau era o centro deste mundo.

Quem se portava mal, muito mal, ia para o desterro. O desterro era Coloane, essa ilha onde ainda era mais difícil chegar. Não havia istmo, nem casinos, nem Cotai, nem strip, e Las Vegas também não. Coloane era o destino dos leprosos que ninguém queria ver e dos larápios, dos funcionários públicos que se queria despromover por se terem portado menos bem. Coloane era quase o fim deste mundo.

As coisas entretanto mudaram. Os larápios e os malcomportados nem imaginam a sorte que tiveram por puderem viver junto do verde, perto do mar. Apesar dos insectos e de outra bicheza, é certo. O metro quadrado é agora muito mais caro na quase ex-ilha, quase ex-verde. Há autocarros com turistas que entopem o trânsito da vila.

Também a Taipa sofreu alterações com a construção da ponte que tem o nome de um antigo governador. Modificou-se de tal maneira que já não se vai de barco, de aldeia não tem nada, fizeram-se mais duas travessias e pensa-se agora numa quarta. Há prédios como cogumelos, obras como polvos, cheias de tentáculos, e o metro quadrado é mais caro do que na península, sobretudo se for a olhar para ela.

As ilhas deixaram de ser o fim do mundo, apesar de Macau continuar a ser o centro, até porque é na península que está o poder. O território cresceu, as pessoas acomodaram-se no buraco disponível, sem terem especial consideração pela centralidade. Macau, o território, esticou e ganhou novas características demográficas. Parece, porém, que o passado distante das ilhas continua presente na cabeça de alguns.

Esta semana, as autoridades policiais decidiram desviar para a Taipa o trajecto de uma marcha lenta de veículos que estava programada para Macau. A ideia do protesto deste sábado era chegar perto da representação do poder – a sede do Governo e a casa da Assembleia Legislativa –, e não da piscina olímpica ou do estádio do território. Assim sendo, os organizadores da manifestação sobre rodas decidiram cancelar o evento.

É curiosa a proposta de percurso feita pela polícia. A um sábado, dia em que não se trabalha, há que entupir a Taipa e não Macau. Os menos bem-comportados que fiquem pelas ilhas que aqui, na cidade, não queremos disso. Nem sequer tem grande importância haver obras em literalmente todas as ruas da Taipa, o que não sucede no percurso proposto pela organização. O que interessa mesmo é libertar as ruas da península de gente que pode ser um perigo à imagem de Macau, cidade harmoniosa sempre muito preocupada com quem a visita. E um bocadinho a marimbar-se para quem vive nela.

Tiveram sorte os organizadores. Uma marcha lenta em Coloane e ninguém dava por ela – corria-se o sério risco de ser confundida com um casamento. O campus universitário na Ilha da Montanha também seria uma boa alternativa: sem vivalma naquelas avenidas e jardins, ninguém dava por ela e não se corria o sério risco de ser confundida com coisa alguma.

O Governo de Macau tem, em termos gerais, sérias dificuldades em lidar com a dissonância. Quer-se longe quem discorda. As manifestações são uma coisa muito desagradável, uma chatice, as pessoas andam aí pela rua a gritarem contra quem decide. O que é bom é o sossego. Por isso é que também se bate com a porta no nariz dos vizinhos de Hong Kong que têm outras ideias, não venham eles doutrinar o povo de cá, com panfletos e livros lá de outros sítios do mundo, muito distantes.

Não, a Taipa já não é o desterro, as notícias não chegam por telegrama com vários dias de atraso, o mundo mudou e o modo como se lida com a contestação também. Quanto mais se deixa engrossar o coro do protesto, pior. Há que abraçar a discordância. Em nome da harmonia e coisa e tal.

10 Fev 2017

Ases e aselhas

[dropcap style≠’circle’]1)[/dropcap] Tem-se falado nos últimos dias em Macau da possibilidade do território poder vir a tornar-se alvo preferencial de agentes do terrorismo internacional, e tudo por causa “do Trump”. Em causa está a proibição de entrada nos Estados Unidos imposta pelo seu novo Presidente a sete países conotados com o terrorismo, que poderão assim escolher os interesses norte-americanos na RAEM para futuros ataques. Ora bem, como devem saber tenho um bocado de pudor em relacionar actos de terrorismo – um conceito muito abrangente – com as suas motivações, sejam elas de carácter religioso, nacionalista (IRA e ETA, para citar dois exemplos), ou outro qualquer, portanto para mim Macau corre o mesmo risco que outro lugar qualquer no mundo, com ou sem americanos à mistura. Contudo o tipo de atentados de que se fala, em larga escala, será algo de bastante improvável; é preciso não esquecer que o território está rodeado pelo espaço marítimo, terrestre e aéreo da R. P. China, onde mal passa uma mosca, quanto mais um eventual kamikaze. E mais uma coisa: se na fronteira são barrados professores baixinhos, carecas e velhinhos, e até as celebridades de países tidos como mais “exóticos” chegam a ficar retidas uma ou mais horas, estão com medo de quê, afinal. Surrealista mesmo é a análise que se faz da capacidade das forças de segurança de um enclave no sul da China com pouco mais de 20 km2 em responder a um eventual ataque concertado de grupos paramilitares com células um pouco por todo o mundo. Suponho que tivesse sido brincadeira, nada mais do que isso.

2) O que pode considerar quase um acto de “terrorismo” (eu disse que era “um conceito muito abrangente”, não foi?) é a alegada “sorte” de uma jogadora que passou por Macau durante o Ano Novo Lunar, e “sacou à casa” alguns milhões de patacas, ao ponto de influenciar as receitas daquela concessionária durante o respectivo período. Não sei até que ponto esta história é verdadeira, mas o casino chegou mesmo a alertar a concorrência para a “sorte” da senhora, que ficou assim referenciada como…bem, uma “sortuda”, enfim. No fundo aquela jogadora fez tudo mal; o ideal teria sido que perdesse tudo o que tinha até ao último centavo, fosse obrigada a prostituir-se para poder voltar a casa, e sem que antes não passasse mais umas quantas vezes pelo casino, iludida pela possibilidade de “recuperar o que perdeu”, e como muitos devem saber, às vezes nem isso lhes chega para aprender a lição. Pode-se dizer mesmo que esta turista não “sentiu Macau”. Not welcome anymore.

9 Fev 2017

Dois minutos e meio

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara antecipar quão próximo estará o mundo de um conflito nuclear de larga escala – de destruição total –, há 70 anos que uma associação norte-americana de cientistas avalia os perigos existentes, tendo em conta os avanços tecnológicos e a forma como os armamentos nucleares têm evoluído (e outras armas de destruição maciça e ameaças generalizadas à humanidade), e anuncia quantos minutos faltam para o fim disto tudo. Pois bem, o Doomsday Clock, o relógio do julgamento final, avançou 30 segundos este ano. Está agora a apenas dois minutos e meio para a meia-noite – para a hora da explosão.

O anúncio foi feito nos últimos dias de Janeiro, em Chicago. Segundo esta associação de cientistas atómicos (Science and Security Board Bulletin of the Atomic Scientists), estamos pois mais próximos do apocalipse. Uma das principais razões citadas para este avanço foi a eleição de Donald Trump e as declarações erráticas do então candidato presidencial – o anúncio foi feito poucos dias depois da tomada de posse do milionário de Nova Iorque e não terá tido grandemente em conta a actividade frenética do novo inquilino da Casa Branca. Aliás, pelo que temos visto nestes primeiros dias da Presidência Trump, o relógio deverá continuar a aproximar-se da meia-noite nos próximos 12 meses.

Este avanço fez o relógio do juízo final aproximar-se 30 segundos de um tempo onde só ainda esteve uma vez. Em 1953, na sequência dos testes efectuados com bombas de hidrogénio, primeiro nos Estados Unidos da América e depois na União Soviética, a associação determinou que faltavam então apenas dois minutos para a catástrofe global. O relógio tem oscilado entre os sete minutos para a meia-noite, quando a associação publicou o seu primeiro “bulletin”, em 1947, e os 17 minutos de 1991, quando a União Soviética chegou oficialmente ao fim e as duas principais potências atómicas começaram a reduzir os seus armamentos nucleares. A associação foi constituída em 1945 por alguns dos cientistas envolvidos no Manhattan Project, que criou as primeiras bombas atómicas, que não conseguiam manter-se à margem das consequências do seu trabalho.

Donald Trump não é o único responsável pelo avanço ruidoso do ponteiro dos segundos. Mas contribuiu para isso. Os cientistas, no artigo em que justificam a colocação do relógio nos dois minutos e meio para a meia-noite, explicam que o resultado da sua análise é multidisciplinar. A equipa que faz esta avaliação anual – que inclui cientistas de áreas tão variadas como a oceanografia, meteorologia, relações internacionais ou física, entre outras – olha para as tendências de longo prazo que afectam a humanidade, como o aquecimento global ou a proliferação de armas de destruição maciça ou as ameaças resultantes dos avanços tecnológicos emergentes, como as que terão interferido com a campanha eleitoral norte-americana e as notícias falsas que circulam nas redes sociais. Sem um acompanhamento próprio e políticas que procurem diminuir o impacto destas “campanhas”, será a própria democracia que sairá afectada. Com consequências imprevisíveis para o sistema global.

O mundo pós-II Guerra Mundial, construído em torno dos princípios da economia de mercado, dos direitos humanos e da democracia, está a ser questionado como nunca o foi nas últimas sete décadas. Um dos sinais mais recentes desse ataque foi o anúncio recente da União Africana de retirar os Estados-membros do tratado que instituiu o Tribunal Penal Internacional (a estrutura das Nações Unidas que lida com os crimes contra a humanidade e genocídio). Valores tidos como seguros, como marcas do progresso da humanidade, estão a ser postos em causa. E não apenas por Trump.

É evidente que os minutos deste relógio imaginário não são rigorosos. São meramente indicativos. Não há certezas no campo da futurologia, não fosse o futuro uma ciência incerta. Há, no entanto, tendências, índices, factos. Os minutos são pois uma imagem, uma declaração sobre o estado de saúde do mundo, um manifesto sobre a permanente tensão que caracteriza as relações internacionais. E devem ser lidos em perspectiva, comparados com os dados dos anos anteriores. Este ano estamos a viver uma situação que, no seu quadro geral, demonstra que o mundo está mais perigoso. Sinal que explica, por exemplo, porque é que tantos homens de negócios norte-americanos, empresários, muitos que fizeram fortuna com as tecnológicas em Silicon Valley, estão à procura de casas na Nova Zelândia para se mudarem para lá caso isto vá tudo pelos ares (a The New Yorker acaba de dedicar um longuíssimo artigo àquilo que os super-ricos estão a fazer para se preparar para o dia seguinte).

O mundo – as relações entre Estados, aquilo a que comummente se designa as Relações Internacionais – é como uma entidade orgânica que está em busca do equilíbrio. Não é estável, está em permanente agitação, ora para um lado ora para o outro, para manter o equilíbrio. Como o trapezista na corda, que a qualquer momento parece que vai cair, as relações internacionais estão em permanente tensão. Qualquer alteração das peças deste puzzle gigantesco tem pois influência nas outras todas, que têm de se adaptar, reposicionar, recolocar.

O que se vê é que o equilíbrio à escala global está muito instável, mais do que estava antes da eleição de Trump. Veja-se por exemplo a própria União Europeia que, tendo em conta a incerteza que vem do outro lado do Atlântico, juntou no passado fim-de-semana em Malta os chefes de Estado e de governo para discutir o futuro da própria União. O novo Presidente norte-americano, ao questionar tudo o que até agora era certeza, trouxe às relações globais uma dose excessiva de imprevisibilidade, que fez aumentar a tensão entre todos. Nos tempos que correm, o bater das asas de uma qualquer borboleta num qualquer ponto perdido do globo pode provocar uma reacção em cadeia de dimensões cataclísmicas. É essa a lógica que está por detrás do avanço do relógio para os dois minutos e meio antes da meia-noite.    

9 Fev 2017

O nascimento do Ou Mun ian

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om o esboroamento do mundo antigo, alterou-se substancialmente o conceito de identidade, seja nas relações estabelecidas no corpus social, seja no interior daquilo a que ainda chamamos indivíduo. Se no passado as identidades estavam fortemente referenciadas e de algum modo amarradas a um núcleo duro, constituído por geografias limitadas, famílias, fratrias, religião e países, não padecendo por isso de grande possibilidade de oscilação, o mundo contemporâneo criou para a identidade um outro recorte do real. Ela é hoje uma função instável, com pouca substância, na medida em que constantemente se refaz na conjugação espaço-tempo, em cada lugar e a cada momento de tensão e de confronto. Não deixa por isso de ser um dos mais importantes conceitos, uma das mais eficazes ferramentas, na compreensão das motivações profundas de um grupo humano. Convém, no entanto, assimilar que não podemos hoje falar de identidade no mesmo quadro mental do passado. Estamos agora perante um conceito que de modo nenhum se refere a algo de fechado, ilhéu, defensivamente encerrado em concha autista. Pelo contrário, as identidades deverão ser concebidas como abertas, existentes porque comunicantes, em constante estado de desagregação e de reagregação, em interminável confronto com outras identidades, variáveis, mutantes, guerreiras; afinal ao ritmo da cultura no século XXI.

É também a esta luz que teremos de ler a identidade de Macau, até porque a sua sobrevivência enquanto tal prende-se fundamentalmente com a existência ou não de uma identidade – como temem os negativistas que apregoam a zhuhaificação. Advirto que não pretendo utilizar uma perspectiva académica, não situando por isso este texto no domínio da sociologia, da antropologia ou de qualquer outra ciência dita social ou humana. Para isso, precisaria de outros dados, de outro espaço, francamente de uma investigação que não se baseasse unicamente na observação quotidiana do que me rodeia – como aqui acontece, mas também no rigor dos números, em citações elefantinas e nas evidências das estatísticas.

E contudo… Identidade. Questão chave para Macau na medida em que estamos num espaço cercado, espécie de ilha cujos habitantes terão razões histórico-culturais para assumir uma identidade diversa do que os rodeia, dispositivo produtor de sentidos únicos e entrançados genealógicos. Questão uma e outra vez sublimada talvez exactamente por mexer em terrenos nem sempre pacíficos, admissíveis, raras vezes salubres. Repare-se que Macau é designado em mapas franceses e outros como a presque-île, o que não deixa de ser curioso.

Identidade. O tema recalcado, cujo debate foi sempre atirado para essas calendas que, admitamos, a acontecerem é só porque estamos na China onde o tempo tem uma dimensão mais que bíblica. E é pena. Limito-me, portanto, a constatar empiricamente uma mudança que considero interesante.

Passo a descrever o contexto. Quando aqui cheguei, no princípio dos anos 90, toda a pessoa de etnia chinesa nascida em Macau, quando interrogada sobre a sua origem, respondia ser “Tchong-ko ian” (uma pessoa da China). Quanto aos macaenses, chamavam-se “Tou-seng” (filhos da terra), entre outros nomes, de uso interno, que especificavam o grau rácico ou social. Já os portugueses da República, vulgo reinóis, eram conhecidos em cantonense por epítetos de vários géneros, que por pudor me escuso reproduzir. Certo é que a palavra Macau não aparecia, na língua chinesa (Ou Mun), para formar uma palavra que designasse as gentes de Macau. Ou seja, pessoas de Macau, claramente “Ou Mun ian”, não existiam.

Desde logo considerei este dado algo de muito singular e até parte da estranha identidade deste espaço. Então a larga maioria dos habitantes de uma cidade, de um quase Estado, não se reconhecem enquanto tal? Não se designam a si próprias enquanto tal? Que razões profundas criam uma situação dete tipo? Trata-se de um fenómeno efémero, passageiro, ou algo de verdadeiramente enraizado na matriz cultural desta gente? Invoquei as migrações recentes, mas isso não me satisfazia porque chineses que estavam em Macau há várias gerações tinham o “Tchong-ko ian” na ponta da língua. Nunca consegui responder de forma organizada a este tipo de perguntas. Por outro lado, a diferença em relação a Hong Kong se não era abissal rondava o profundo.

Claro que, na minha opinião, a situação não era favorável à manutenção futura da memória da cidade e um dos trabalhos a fazer seria precisamente estudar o assunto e mesmo intervir no sentido de fortalecer uma identidade que parecia extremamente pulverizada e repartida. Lembro-me de, por exercício lúdico, tentar encontrar um evento histórico que conseguisse unir todas as comunidades de Macau e não ter conseguido. O governo de então nunca se preocupou com o tema. Estava estabelecido, numa espécie de consenso silencioso, que uma das partes mais consistentes da identidade de Macau era não se interrogar sobre si própria. Como se, como pinta Goya, a razão engendrasse monstros. Ou talvez o verdadeiro receio fosse que eles saíssem debaixo do tapete.

A vida continuou. A RAEM surgiu. Macau passou a ser governado pelas suas gentes. O jogo foi liberalizado e nunca mais pararam de aumentar os seus lucros. A China tornou-se na maior fonte de turistas, sobretudo depois do aparecimento dos vistos individuais. A cidade, o quotidiano, as relações, mudaram. E as pessoas? E o seu interior? A visão que têm de si mesmas? Será que mudaram também?

É verdade. Tenho de confessar a minha inicial surpresa quando comecei cada vez mais a ouvir chineses de Macau a definirem-se como “Ou Mun ian”. E o mesmo se passa com jovens macaenses, cuja tendência parece ser abandonarem o “Tou seng”. Ou seja, a usarem a cidade de Macau, a RAEM, como referência identitária. Agora já não dizem com a mesma inevitável regularidade que são “Tchong-Ko ian”, mas sim pessoas de Macau. Que razões estarão por detrás desta mudança, que tem sido gradual embora inesperadamente acelerada? O que estará a levar as gentes de Macau a reconhecerem-se enquanto tal, quando dantes remetiam a sua identidade para a Grande China? As respostas não podem ser simples. Deixo apenas algumas pistas.

Em primeiro lugar, poderemos considerar a influência da propaganda governamental, assente no princípio “um país, dois sistemas” e no seu derivado “Macau governado pelas suas gentes”. Ora a verdade é que, sobretudo o segundo slogan, pode ter tido algum efeito, na medida em que atribui às pessoas de Macau um papel na condução da suas vidas, permitindo portanto uma identificação entre ser de Macau e específicos direitos sobre a sua própria existência. Não é realmente importante que as pessoas de Macau efectivamente tenham uma participação cívica mas a existência dessa possibilidade, que dantes não era sentida pela esmagadora maioria das pessoas de etnia chinesa, pode causar efeitos identitários.

O aumento da consciência cívica que o advento da transferência de soberania inevitavelmente trouxe a grande parte da população poderá desempenhar um papel (reconheço que menor) na mudança do dispositivo identitário.

Em segundo lugar, poderemos considerar o aumento exponencial de turistas do continente chinês e a constatação prática das, por vezes gigantescas, diferenças culturais que os separam da gente local, apesar de pertencerem ao mesmo país. Perante a quase imposição dos valores pan-chineses em Macau, do reforço paternalista e desnecessário do patriotismo e a própria invasão de sucessivas moles humanas, com quem os locais não se identificam nem tomam como modelo, é natural que se dê uma reacção local de reforço identitário.

De notar que as diferenças entre os chineses que nos visitam e os chineses de Macau são realmente profundas, nomeadamente ao nível dos hábitos alimentares, da língua, da religião, do modo de relacionamento em grupo, da maneira como entendem o mundo. É certo também que existe muito em comum. Nalguns casos, tanto como entre um português e um húngaro ou um esloveno, o que não é pouco. Tal facto só advoga a favor da diversidade natural de um país da dimensão da China, não deixando contudo de se manifestar no aparecimento de identidades locais e regionais, factores de enriquecimento cultural e de grande potencialidade futura.

Em terceiro lugar, teremos de contar com o factor geracional. Ou seja, não importa tanto estarmos agora perante uma terceira geração de pessoas já nascidas e criadas em Macau, mas sim o facto da RAEM enfrentar o mundo global e não ser já uma sociedade indefinida como a que existia no pré-handover. Pessoas cuja ligação ao continente chinês é valorizada e desvalorizada consoante o contexto. Pessoas que, independentemente do grau de educação, cresceram num espaço em plena mutação e indubitavelmente excitante, pleno de horizontes promissores, cada vez com mais nome internacional.

Nasceu, portanto, o Ou Mun ian. Bem vindo seja. Nas suas costas reside não apenas uma cidade, mas toda a História, toda a Cultura, todo o relato de um encontro que, também ele, não cessa de se desfazer e de se refazer, marcando o novo ritmo das múltiplas identidades que, num determinado espaço e momento, constituem a identidade de Macau.

8 Fev 2017

Reedições lamentáveis

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 31 de Janeiro o website “www.miamiherald.com” anunciava que “A interdição de Trump choca o mundo e dá origem a uma batalha legal”. Avançava ainda, “durante a campanha muitos dos eleitores que elegeram Trump apoiaram entusiasticamente o anúncio do cancelamento temporário da entrada em território americano de cidadãos oriundos de países muçulmanos, até implementação de um controlo de segurança das fronteiras mais rigoroso. Estes apoiantes afirmam que Trump provou ser um homem de palavra.”

Na sequência desta promessa Trump assinou uma ordem executiva a 27 de Janeiro, onde se afirmava, “… a suspensão do Programa de Admissão de Refugiados durante 120 dias e a interdição de entrada nos Estados Unidos de cidadãos oriundos de sete países predominantemente muçulmanos criou ondas de choque em todo o mundo, provocou reacções políticas internas e desencadeou manobras legais ao mais alto nível.

A interdição temporária de entrada nos EUA aplica-se a cidadãos do Iraque, Síria, Irão, Sudão, Líbia, Somália e Iémen. A ordem também determina a proibição por tempo indeterminado da entrada de refugiados sírios.

A súbita implementação desta ordem executiva trouxe perturbações tremendas a imensas pessoas em trânsito. Viajantes de todos os tipos, turistas, estudantes, imigrantes e residentes regressados de férias, ficaram retidos nos aeroportos à chegada aos Estados Unidos.”

A 30 de Janeiro, a mais alta representante do sistema jurídico americano, a Procuradora-Geral interina Sally Yates, apontada para o cargo pela Presidência Democrata, deu instruções ao Departamento de Justiça para que não se cumprisse a ordem executiva. Em carta dirigida a este Departamento, afirmava:

“Pelo que sei até agora, não estou convencida de que o apoio a esta ordem executiva seja compatível com as minhas responsabilidades e tenho dúvidas sobre a sua legalidade.”

Trump destituiu Yates e nomeou para o cargo um procurador federal, o veterano Dana J. Boente. Boente é o Procurador Geral do Distrito Leste da Virgínia. No próprio dia em que Yates tinha travado a ordem de Trump, 30 de Janeiro, Boente deu ordens ao Departamento de Justiça para a sua execução. Boente ocupará o cargo de Procurador Geral interinamente até à tomada de posse do Senador do Alabama, Jeff Sessions.

Os media apresentaram versões diferentes de Yates e da sua destituição.

“Ms. Yates, como muitos outros detentores de cargos oficiais, foi apanhada de surpresa pela ordem executiva e passou um fim de semana angustiado a tentar encontrar resposta adequada à situação, afirmaram dois membros do Departamento de Justiça. Ms. Yates considerou demitir-se, mas não quis deixar para o colega que lhe sucedesse a resolução deste dilema.”

“A ordem de Ms. Yates representou uma crítica significativa do representante de um dos mais altos cargos oficiais ao Presidente em funções e é, de certa forma, uma reedição do famoso caso que ficou conhecido como o “Massacre de sábado à noite”. Aconteceu em 1973, quando o Presidente Richard M. Nixon destituiu o Procurador Geral por este se ter recusado a despedir o advogado de acusação do caso Watergate.”

Enquanto Presidente, Trump tem poder absoluto para designar e destituir quem entender. Mas neste caso a destituição parece ser muito problemática.

No dia 31 de Janeiro Trump escreveu no Twitter:

“Os Democratas estão a retardar as designações para o meu Gabinete apenas por razões políticas. Não fazem mais nada senão obstruir. Queriam um Procurador Geral pró-Obama.”

E qual foi a reacção dos media americanos a estas declarações? Criticam sobretudo as novas políticas de imigração criadas por esta ordem executiva, a demissão de Yates é tratada como uma questão secundária. Se Trump tiver fortes razões para convencer a opinião pública de que agiu correctamente, no que diz respeito à emissão da ordem executiva e à demissão de Yates, então o caso fica encerrado. Mas como as novas políticas de imigração são questionáveis, então a ordem executiva e a destituição de Yates também o são. Até ao final de Janeiro Trump não tinha apresentado nenhum argumento válido, capaz de impedir muitos americanos de continuarem a contestar estas medidas.

Do ponto de vista duma relação laboral os patrões devem ter poder absoluto para despedir os empregados. Mas Yates alega que reagiu a uma ordem inconstitucional e ilegal que recebeu do “patrão”, o Presidente dos Estados Unidos. Não dar seguimento a uma ordem ilegal parece ser uma boa razão para não acatar as decisões dos patrões. Trump resolveu o conflito com a demissão de Yates e a sua substituição por Boente e a coisa parece ter funcionado porque não teve de prestar contas à opinião pública. Mas aqui não estamos só a falar de uma relação laboral, a demissão de um Procurador Geral dos Estados Unidos é obviamente uma questão política. A demissão termina o exercício da função, mas não acaba com o problema político. Esta é a grande diferença entre gerir uma empresa e gerir um País.   

Este assunto vai subir para análise do Supremo Tribunal e ficamos à espera da sua decisão quanto à legalidade da ordem executiva. Quando a resposta vier saberemos se Yates tinha ou não tinha razão para ter procedido como procedeu.

“Os peritos afirmam que a interdição gira em torno de questões fundamentais como a autoridade do Presidente no controlo de fronteiras e no facto de haver descriminação contra os muçulmanos. A Lei Federal confere ao Presidente o poder de impedir a entrada “de quaisquer estrangeiros” que “possam prejudicar os interesses dos Estados Unidos.” Mas a mesma lei proíbe a descriminação de imigrantes com base na nacionalidade ou no local de nascimento.”

A reacção de Yates deve merecer admiração. Não teve medo de perder a sua posição e defendeu a Lei, e este é precisamente o espírito que um Procurador Geral deve ter. A natureza da Lei não é o uso da força, mas sim o uso da verdade e da lógica para persuadir o Tribunal a tomar a decisão justa. É a forma de resolver uma disputa pacificamente. Se o Procurador Geral se deixar amedrontar todos os cidadãos americanos serão prejudicados.

Segundo os media, Yates não quis deixar a resolução do dilema ao seu sucessor. Yates demonstrou a sua lealdade ao povo americano. Os jornais já se referem a este caso como “O Massacre de sábado à noite II”, o que é positivo para Yates. A Procuradora demonstrou ter todas as qualidades que alguém na sua posição deve ter.   

Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

7 Fev 2017

Galos

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]em-vindos ao ano novo do Galo. Não fosse o galo o melhor calão para pénis da língua inglesa e esta dedicatória aos galos erectos não existiria.

Os galos estão no coração do imaginário masculino e em muitas culturas são símbolo de masculinidade. Estes galos, preciosos adereços pendurados, em tempos embrionários foram coisa nenhuma. Agora falos de tão grandiosa beleza e arquitectura, urinam e ejaculam alternadamente, apesar de uma abertura por igual. O objecto de tão grande desejo sexual julga-se simples e complexo, simples em funcionamento mas complexo nos significados que gerações de homens procuram: à procura do sentido do pénis.

Grande ou pequeno, relativo em tamanho, o pénis erecto tem o potencial de surpreender no seu crescimento, ou, por vezes, nem tanto. Se há mistérios da vagina, há mistérios do pénis se assim os quisermos entender ou até explicar… Há teorias infindáveis sobre a pluralidade de tamanhos, sobre como aumentar, ou acidentalmente diminuir! Mas não vale a pena tentar prever absolutamente nada, não há tamanho de sapatos, nem tamanho de mãos que possam garantir o tamanho do objecto penetrador. Há quem diga que fumar fá-lo (falo) diminuir…

As bolas, uma mais pendurada que a outra, revestidas de um tecido mais ou menos farto, permitem a temperatura ideal para que as gónadas se ocupem das criação das criaturinhas que correm rápido, cheias de energia, à procura de ovócitos para fecundar. Das estimadas 7000 ejaculações de uma vida masculina, os nossos amiguinhos espermatozóides procuram companhia ideal para gerarem vida – diria que 99,99% das vezes sem sucesso. O sémen, o liquido viscoso dos deuses, rico em vitamina C e aminoácidos para garantir a mobilidade ultrasónica dos nossos transportadores de cromossomas, espirra com vigor para dentro – daquilo que a mente masculina assim desejar. Se o sabor muda consoante a dieta? Muda. Ao que parece o consumo de carne vermelha pode estragar um pouco o aroma do nosso elixir do sexo – o elixir do orgasmo masculino.

O orgasmo masculino pode ser curto comparado com o orgasmo feminino mas é o triunfo de beleza sexual. O jacto tão clarificador, não engana absolutamente ninguém de que o prazer foi atingido. Os homens tremem ao sabor da pulsante necessidade de se moverem até à saída da última gota. Os caminhos para lá chegar são mais que muitos: as áreas de excitação do órgão sexual masculino estão na ponta da sua varinha, no períneo,  a área entre os testículos e o ânus, e na próstata. Tudo passíveis de carinho, amor e muitas massagens, tal como o resto do corpo.

Um artefacto de 28.000 anos foi encontrado com uma clara forma fálica. Em pedra polida, era muito provavelmente usado no auxílio sexual, ou mesmo como decoração. Como as mulheres carregam os bebés, artefactos de mulheres hiper-sexualizadas são muito mais comuns de serem encontrados, mas um pénis? Muitíssimo raro. Isto sugere que o nosso tão prezado galo tenha estado fora do spotlight durante demasiado tempo. Se há um enfoque exagerado no corpo feminino até em tempos contemporâneos? Há. Se precisamos de mais falos simpáticos nas nossas vidas? Precisamos.

Bem dito ano do Galo que veio reforçar (se bem que talvez somente na minha fantasia) a importância do pénis nas nossas vidas. São precisos uns galos cantadores de vigor e desejo para satisfazer perspectivas femininas de igualdade também. Não me interpretem mal, nunca estaria a pregar a favor de uma filosofia de ‘satisfaz o teu homem’: satisfaçam-se um ao outro.

6 Fev 2017

Perspectivas para o Ano do Galo                      

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m primeiro lugar, quero desejar a todos saúde e prosperidade para este Ano do Galo. Os antigos chineses acreditavam desde tempos ancestrais que o galo possuía cinco virtudes, o dom da literatura, faculdades militares, bravura, benevolência e fiabilidade. Mas, hoje em dia, raras são as pessoas possuidoras destas virtudes. Na minha opinião, a atribuição destas virtudes ao galo era uma forma de satirizar a desumanidade do Homem. Desde o regresso à soberania chinesa, Macau e Hong Kong passaram por muitas mudanças, no entanto do ponto de vista político não se registaram quaisquer progressos. Espero que as alterações a este nível se comecem a manifestar a partir da segunda metade do Ano do Galo!

Em 2012 Henry Tang Ying-yen e Leung Chun Ying foram candidatos às eleições para Chefe do Executivo de Hong Kong. Mas só devido à actuação dos grupos de pressão pró-China, o candidato eleito conseguiu evitar a embaraçosa situação de ser escolhido para o cargo com menos de 50% dos votos. Depois de Leung Chun Ying ter assumido o poder a expensas alheias, não tentou unificar as várias facções do campo pró-regime, originadas pelas eleições. Em vez disso, manteve uma governação nepotista, autocrática e de estilo ditatorial que ainda criou mais cisões na sociedade de Hong Kong. Se olharmos para as reformas constitucionais teremos de salientar que, embora a Decisão de 31 de Agosto de 2014 (o método para seleccionar do Chefe do Executivo no 4º mandato em 2012, que se mantém em vigor para o 5º mandato de 2017) tenha sido tomada pelo Governo Central da China, Leung Chun Ying não se esforçou por apresentar ao poder central uma proposta que reflectisse a vontade da opinião pública de Hong Kong quanto a esta matéria. Limitou-se a curvar-se perante os pontos de vista dos membros do Governo Central e ignorou o sentimento das pessoas de Hong Kong. Daqui resultou o insucesso da reforma constitucional na mobilização das consciências políticas locais. E na sequência destes acontecimentos, Leung Chun Ying não tentou sequer pacificar a população depois das forças policiais terem lançado gás lacrimogéneo sobre manifestantes. Optou, em vez disso, por levantar a questão “da independência de Hong Kong” e por enfatizar os problemas internos da cidade agitando o fantasma da cisão nacional (da China). Quis eliminar todas as forças de oposição, servindo o Governo Central e criando condições para a sua reeleição. Podemos afirmar que a recente decisão que tomou de retirar a candidatura à reeleição foi resultado de procedimentos errados da sua parte. Se o resultado do próximo escrutínio para a eleição do Chefe do Executivo não for determinado pela livre vontade dos membros da Comissão Eleitoral de Hong Kong, mas sim pela manipulação de bastidores, que deu lugar à eleição do antigo Secretário da Administração, não irá haver paz na cidade. Resta-nos saber se o Governo Central terá aprendido a lição das eleições de 2012 e, se será ou não capaz de se abster de interferir no processo eleitoral de 2017. Disso irão depender a estabilidade e a prosperidade futuras de Hong Kong.

Em Macau a Comissão dos Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa já está oficialmente constituída e terá um papel determinante para garantir que as eleições venham a ser justas e transparentes, mas para isso terá de se empenhar num combate eficaz à corrupção eleitoral. Comparado com Hong Kong, Macau é politicamente mais imaturo, já que a classe dirigente e os políticos em geral não se empenharam na educação cívica das populações, o que resultou na apatia política das gerações mais jovens. A implementação dos 15 anos de educação gratuita apenas conseguiu garantir 15 anos de escolaridade, mas falhou o objectivo de levar os jovens a absorver os princípios nos quais a educação se sustenta. O desenvolvimento anormal do conceito de ecologia política em Macau levou a uma deformação social. As próximas eleições de Setembro para a Assembleia Legislativa irão determinar o destino da cidade, através do uso do direito de voto. Se esta campanha continuar a ser dominada pelas más práticas de suborno, (oferta de refeições e mantimentos), ou benefícios (viagens, presentes, compensações monetárias), Macau irá a caminho da perdição.

A economia determina as condições de sobrevivência dos povos, mas a política deve dominar a economia. Se os macaenses quiserem alterar o status quo, devem deixar de se queixar e tomar medidas que lhes permitam conduzir a mudança. Terão de participar activamente na discussão dos temas de interesse social, aprender a distinguir o verdadeiro do falso e votar pelo futuro de Macau.

3 Fev 2017

O desigual

 

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ascemos todos irremediavelmente iguais. É uma verdade que não agrada a todos, bem sei, mas é um facto incontestável. Nascemos iguais no desamparo da separação do ventre, na solidão do corte do cordão umbilical, na necessidade extrema de aconchego, na insaciável necessidade de pele. Só na morte voltamos a experimentar semelhante condição de igualdade. Também ela é solidão, mesmo que haja outras mortes à nossa volta.

Nascemos inevitavelmente iguais, mas o problema acontece logo depois, na tesoura que nos corta a protecção e no pano que nos embrulha. Apesar de sermos muito iguais no acto de nascer – mesmo com todas as diferenças físicas que partilhamos uns com os outros –, há quem seja envolvido no único farrapo disponível. E depois há quem tenha um lençol lavado e uma manta quente. Deixamos de ser todos tão iguais.

A desigualdade vai acontecendo ao longo da vida. Pais, sem pais, com educação, sem ela. Religião, sem religião, pão, sem pão, saúde, sem ela. A desigualdade é uma cena tramada essencialmente para aqueles que são mais desiguais do que os outros, porque reduz a hipótese do sonho. Olhamos para os nossos filhos, pequenos, e imaginamos que terão o mundo ao alcance do que quiserem dele. Aos filhos de quem vive na guerra resta, com sorte, a sobrevivência.

No meio de um mundo profundamente desigual, há boas almas que lutam pela igualdade. Deixam os lençóis e as mantas quentes em que nasceram para estarem ao lado daqueles que, nascidos iguais, tiveram o azar dos acontecimentos. Ou o azar da cor da pele. Ou o azar da religião que passou a maldita. Boas almas também não faltam entre os que levaram com toda a desigualdade possível: têm um farrapo a mais do que o vizinho e, por terem essa fortuna, partilham-na com quem precisa dela. É assim que sucede desde que se escreve a história.

E desde que a história se escreve que há loucos e que há gente com os princípios ao contrário. Quando um louco tem os princípios ao contrário, assume contornos assustadores. Quando um louco tem os princípios ao contrário e, qual cereja podre em cima do bolo, é também ignorante, aqueles que estão em seu redor devem ter cuidado, muito cuidado.

Desde que se escreve a história que loucos deste género chegaram ao poder, muitas vezes de forma legítima, por vontade da maioria popular. Quando se sentam na cadeira do poder, pouco ou nada interessa por que razão ali se instalaram, uma vez que já se esqueceram. E como são loucos, fazem o que lhe dá na gana, contornam obstáculos e derrubam opositores, calam as vozes de protesto e iludem os apoiantes com algum pão e uma dose substancial de espectáculo. Nos povos em que a maioria pouco mais tem, ao nascimento, do que um farrapo a embrulhar o corpo, os loucos costumam permanecer no poder; nos sítios onde a maioria tem, pelo menos, um lençol limpo, o caso costuma ser outro. Mas não existe uma regra, diz-nos a história desde que é escrita.

Há um homem no poder do mundo, neste momento, que desconhece que todos nós, quando nascemos, somos irremediavelmente iguais. Não é o único a pensar assim – o que não falta é gente por aí com o mesmo pensamento quadrado, ideias que chocam com os ângulos da forma geométrica e dali não saem. Todos nós conhecemos pessoas assim, por esse mundo fora e neste mundo aqui dentro também. Os imigrantes do Sudeste Asiático são menos gente. Os migrantes da China Continental são menos gente também. Os muçulmanos são isto. Os judeus são aquilo. Os judeus foram sempre muita coisa, consoante os anos em que a história se escreveu, e os muçulmanos também. E os católicos e os budistas e todos os outros, os brancos, os menos brancos, os pretos, os mulatos, os de olhos rasgados e os de olhos menos rasgados. É o que nos diz a história desde que é escrita e eu acredito nela.

O problema acontece porque temos um homem com poder no mundo que junta loucura, princípios ao contrário, ignorância e uma extraordinária influência em termos globais. É um homem que não sabe que a diferença entre os homens é uma questão de cor, pelo que somos todos iguais nessa desigualdade. E que a verdadeira diferença, a mais importante de todas – a impossibilidade de sonhar com a igualdade – só existe por causa de homens mais ou menos como ele.

Desde que a história se escreve que os homens revelam uma enorme incapacidade de aprender com a história que se escreveu. Quero acreditar que, desta vez, será diferente. E que tudo aquilo que leio não passará de uma experiência muito breve de um louco que nasceu igual a mim, morrerá com igual solidão, mas a vida dele fez-nos desiguais, não pela cor laranja que exibe e que eu não tenho, mas por lhe terem acontecido princípios ao contrário e uma ignorância que toca no azar a poucos.

3 Fev 2017

Um grande galo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que deseja você para este Ano Novo Lunar? Está aí o último dia do Ano do Macaco, e à meia-noite os panchões anunciam a chegada do Ano do Galo. Parece mentira que já tenham passado doze anos desde o anterior Galo. Tantas aventuras fantásticas que vivi, e que doces memórias guardo desse magnífico galináceo, e em todas elas estava plenamente consciente que “isto só me está a acontecer porque estamos no Ano do Galo”.

Agora falando a sério – ou talvez não. Nesta altura a televisão vai à rua saber o que querem os cidadãos para este Ano Lunar que amanhã começa. Os portugueses ainda confundem isto com o Natal, ou com o nosso Ano Novo, e dizem que querem “paz”, “saúde” e outras inaninades. Quem se interessa realmente por essas coisas, e quer saber o que se deve fazer e o que não se deve fazer por altura do Ano Novo Lunar para evitar que um mau Galo lhe cante. Este ano, e apenas por acaso, tropecei num artigo do Yahoo! News intitulado “As 10 principais superstições do Ano Novo Lunar”, que vou ter o prazer de partilhar aqui, numa versão adaptada. Para quem teve a paciência de ficar a ler estes cinco parágrafos cheios de “palha”, é agora finalmente recompensado. E afinal quais são as dez superstições e tabus deste festival que mais devemos ter em conta, nem que seja apenas para evitar ofender os nativos? Aqui estão elas:

Limpeza da casa. Deve ser realizada ANTES do Ano Novo Lunar, até à véspera e não no primeiro dia, como alguns sugerem. Dessa forma afasta-se o azar que ficou do ano anterior, e que assentou em forma de poeira, e recebe-se o novo ano com a casa “limpa”. Antes da meia-noite do último dia do ano cessante, convém guardar os utensílios de limpeza, quer vassouras, esfregonas, panos ou espanadores num local fechado. Para quem acredita mesmo nestes miasmas do outro mundo, o melhor mesmo é deitá-los fora e comprar uns novos.

Panchões. Voltamos, portanto, ao fascínio da cultura chinesa pelos explosivos. Os estalos produzidos pelos panchões são uma forma de anunciar a chegada do novo ano, e nada como fazer um estardalhaço do caraças para que todos saibam, mas também servem para afastar os “maus espíritos”. Compreendo que os chineses não queiram entrar em detalhe sobre este assunto, especialmente com os estrangeiros, mas estes maus espíritos a que se referem é apenas um mau espírito – o Nian Shou!

Linguagem e atitude. Os chineses acreditam que a forma como correr o primeiro dia do ano, assim será o ano inteiro. Assim não é nada recomendável discutir, entrar em conflito, dizer obscenidades, transmitir pensamentos ou ideias negativas, falar de morte, doenças ou contar histórias sobre fantasmas, ou mencionar algo relacionado com os maus espíritos. Nesse dia devem ser todos bonzinhos, fazer votos de prosperidade, desejar saudinha e andar bem disposto (mesmo que lhe doa um dente). Este é um tabu levado muito a sério pelos chineses, e por acaso reparei como nos dias que antecederam o Ano Novo, os meus colegas tornavam-se bastante cautelosos e pouco receptivos a entrar em conflitos ou polémicas, e abstinham-se de fazer comentários depreciativos de qualquer espécie. Se tiver alguém a quem precisa de dizer “das boas”, pode sempre aguardar pelo terceiro dia do ano, que é reservado às discussões e quezílias entre amigos, cônjuges e familiares.

Lavar o cabelo. Os chineses têm por hábito não lavar o cabelo ou a cabeça no primeiro dia do ano, de modo a não sacudir as energias positivas que chegam da Lua. Portanto da mesma forma que se limpa a casa, a lavagem da cabeça deve-se realizar antes da chegada do ano.

Não usar cor preta. O preto é a cor (ou a ausência da cor, como preferirem) associada com a morte, portanto a evitar no dia da chegada do novo ano. Atenção a este detalhe, ó Carlos Morais José.

Hora de dormir/longevidade. Esta é talvez a superstição mais interessante. Na noite da chegada do novo ano, é suposto toda a gente ir dormir tarde, mesmo as crianças. Existe uma crença que nessa noite, enquanto as crianças estão acordadas estão a  “guardar a vida” dos pais, e portanto quanto mais tarde forem para a cama, mais tempo os pais vivem. Se nesse dia o seu filho ou filha se quiserem ir deitar cedo, se calhar anda um Nian do fundo do mar atrás de si. O melhor é ir comprar uns panchões, nunca se sabe.

Não chorar. Quem chorar no primeiro dia do ano, vai chorar o ano inteiro, e por isso os pais evitam castigar as crianças, mesmo que elas façam algumas travessuras. Mas aqui pode-se dar um contra-senso; remeto ao ponto anterior por exemplo: e se a criança chorar porque está rabugenta de sono, pois ficou a pé até às cinco da madrugada para que os pais vivam mais? E já agora o ponto nº 3: e se a criança conta histórias de fantasmas, disser palavrões ou desejar que a família toda morra? Questões a levantar ao oráculo mais próximo.

Loiça partida. Não se deve começar o ano com loiça partida, rachada ou lascada, pois isso dá azar. No último dia de cada ano certifique-se da integridade de pratos, travessas, potes, canecas, etc., e se necessário vá às compras.

Cortes. Esta pode apanhar os mais distraídos: dá azar cortar seja o que for durante o período do Ano Novo, pois isto pode-se reflectir na sorte e na fortuna. Torna-se complicado ter isto em mente, pois pode aparecer um pacote de leite que seja necessário abrir cortando uma das pontas, ou uma malha na roupa. O melhor mesmo é não levar esta regra muito à letra.

Vermelho. O vermelho é a cor da sorte, da prosperidade, da fortuna e tudo mais, por razões que já expliquei acima e que têm a ver com o tal Nian. Por isso é comum observar o vermelho vivo nas indumentárias, nas decorações nos envelopes de “lai-si”, em tudo o que esteja relacionado com o Festival. Para quem não gosta de vermelho, pode optar pelo amarelo-ouro, que também se aceita, a regra de ouro é esta: vermelho, bom; preto, mau. Entendidos? Uhn? Carlos Morais José? Ok.

E depois há tudo aquilo que já se sabe: não oferecer livros, que em chinês têm uma sonoridade semelhante ao da palavra “perder”, comprar sapatos, pela mesma razão, mas neste caso o som é semelhante a uma interjeição de dor, e uma dica que vos deixo que aprendi por experiência própria: não tocar em alguém que esteja à mesa do jogo, nem que seja apenas mah-jong. Quanto aos “lai-si”, os tais envelopes vermelhos que contêm dinheiro “abençoado” e que se começam a distribuir esta semana, a regra é simples: os casados dão aos solteiros, os ricos dão a toda a gente, e as crianças recebem de todos. Pode dar “lai-si” à vontade, pois como naquela canção dos Beatles, “o amor que você recebe é igual ao amor que você dá”. KUNG HEI FAT CHOI!

Artigo escrito a 26 de Janeiro

2 Fev 2017

Trump it

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]oderão pensar que sou antiquada, démodé, fora do tempo: gosto de homens que sabem ser cavalheiros. Assim como gosto de mulheres a sério, aprumadas. Com isto não quero dizer que não compreenda o disparate e que dele não participe. Na vida há espaço e tempo para tudo, incluindo para o palavrão que, dito na hora e no local certos, tão bem faz à alma, por ser purificador ou, pelo menos, bastante analgésico.

Mas escrevia eu que gosto de cavalheiros. Isto não tem que ver com desigualdade de género, antes pelo contrário. O meu entendimento de cavalheirismo implica, antes de mais, que os homens respeitem as mulheres. E respeitem os compromissos. Respeitem os outros. Por isso são cavalheiros. Também as mulheres a sério, as que são aprumadas, respeitam os homens. E respeitam os compromissos. E respeitam os outros. O respeito é mesmo muito bonito.

O cavalheirismo é uma forma de vida, de pensar, de estar, de agir com os outros e para com os outros. É uma forma de se ser social. Devemos aos cavalheiros o facto de termos uma sociedade mais ou menos organizada. Foram eles que fizeram o favor de nos estruturarem, para que seja possível a convivência mínima. Há mulheres a sério que também contribuíram neste processo, apesar de serem em número inferior ao desejável. Mas não é isso que agora interessa.

O cavalheirismo é, por norma, acompanhado de gentileza, uma qualidade mais ou menos em desuso para ambos os sexos. Cavalheirismo e gentileza são, porém, características que não se devem confundir. O que hoje me importa mesmo é o que o cavalheirismo tem de tão especial e o que, na ausência dele, irremediavelmente se perde.

Há exactamente uma semana, assisti em directo à tomada de posse de Donald Trump, o estranho ser que, de candidato a candidato alvo de muito e merecido gozo, passou a Presidente da maior economia mundial. Aquilo que deveria ser uma festa teve contornos fúnebres, pelas expressões de quem lá esteve, pelo clima que se percebia no ar, pelos protestos que aconteceram à mesma hora. Pelo discurso que fez, pelo tom do discurso que fez, por aquilo que anunciou, pelo modo como se comportou. A semiótica das palavras é importante, como é importante a semiótica das imagens.

Donald Trump é a antítese do cavalheiro. Não vale a pena elencar aqui o que ele já fez, desfazendo; ou o que desfez, existindo. Para quem dúvidas tivesse, numa semana demonstrou de que farinha é feito. Não passa de um vendedor de banha-da-cobra pintado de dourado, um homem que imagina que basta querer para que o poder lhe responda aos desejos. Quem o apoia ainda não percebeu o que vai acontecer, mas talvez um dia destes avance no discurso e ouça o que se seguiu ao ‘American first’ que tantos orgasmos mentais provocou naquele eleitorado babado de contentamento.

É cedo para imaginar o futuro, mas certo é que o que vem por aí não será coisa boa. É dar tempo ao tempo, sendo que o tempo não será longo. As alucinações, como é sabido, vêm e vão, sendo que há remédios vários para elas.

Mas, até lá, é esta a realidade e não vai soltar-nos. Como se dá o caso de vivermos todos no mesmo mundo, o que acontece lá longe também nos interessa, porque o mundo vai sendo feito de muitos equilíbrios, de jogos de poder que devem seguir regras comuns. Neste momento, ninguém sabe exactamente quais são, mas todos nós vemos o que se está apostar.

Quero acreditar que, um dia destes, a coisa resolve-se, de uma forma ou de outra. Mas até lá temos a antítese do cavalheiro na Casa Branca. Como não sabe ser cavalheiro, como não passa de uma espécie de humano que, infelizmente, não beneficiou das vantagens de uma educação para o cavalheirismo, Donald Trump faz o que lhe dá na real gana, nas mais variadas dimensões da sua desinteressante mas insistente existência.

Um dia destes, o mundo muda outra vez mas, até lá, muito será desfeito, para entretenimento das agências de notação financeira, para a desgraça de muitos e o regozijo de outros tantos. O problema é que a figura que está ali no topo, na abertura dos noticiários, no centro do mundo, esparramado num sofá na Casa Branca, não é um cavalheiro. E como não é um cavalheiro, alinhou o discurso e os actos pelo nível subterrâneo, que é onde vivem os seres cujos olhos não têm qualquer préstimo.

A contaminação do estilo será a pior consequência de todas. Donald Trump é a antítese do cavalheiro.

1 Fev 2017

Consenso na gaveta

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap]s leituras sobre as razões para a vitória de Donald Trump seguem-se agora as análises sobre o que representam as prioridades estabelecidas pelo 45.º presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Trump não quis deixar espaço para interpretações dúbias sobre o que pretende fazer no cargo: logo no primeiro dia, mandou apagar todas as referências ao aquecimento global no website da presidência e anunciou a retirada dos EUA da Parceria Trans-Pacífica (TPP, na sigla inglesa, o acordo de comércio com os países da orla do oceano Pacífico) e o fim do Obamacare.

Sobre a primeira questão, Donald Trump soube melhor do que ninguém dizer aos americanos o que eles queriam ouvir. A campanha eleitoral é sobretudo isso: dizer. Já há muito que deixou de ser um debate, uma troca de ideias ou de propostas. A campanha política, do ponto de vista dos candidatos, não pretende esclarecer ninguém, procura acima de tudo corresponder às expectativas dos potenciais votantes. Aliás, quanto menos esclarecer, melhor. E Trump esclareceu pouco. Não explicou, por exemplo, como quer tornar os EUA grandes outra vez; não falou das consequências para as empresas norte-americanas do facto de os Estados Unidos se irem fechar sobre si-próprios; nem tão-pouco do efeito para os interesses globais dos EUA de uma menor contribuição de Washington para a paz e segurança mundiais.

As primeiras medidas que tomou na esfera internacional (no que diz respeito ao envolvimento dos EUA no combate ao aquecimento global e ao fim da participação dos EUA na TPP) não deixam de ser sinais – e a política faz-se de sinais – inequívocos, aliás, de que os EUA não vão estar tão presentes na cena internacional. Há oito anos, por exemplo, Barack Obama também utilizou uma estratégia comunicacional semelhante, tendo assinado na mesma Sala Oval a ordem executiva que determinava o encerramento de Guantánamo, num claro contraste com a política seguida até então pelos Estados Unidos no combate ao terrorismo internacional, preconizada por George W. Bush.      

Na verdade, por consequência da governação de Barack Obama, os Estados Unidos estão hoje maiores – utilizando a terminologia “Trumpiana” – do que estavam quando o antigo senador de Chicago chegou à Casa Branca. O estado geral da economia norte-americana melhorou nos últimos oito anos. O Produto Interno Bruto cresce constantemente desde 2010. A taxa de desemprego, por exemplo, caiu de perto dos 10 por cento, em 2010, para abaixo dos 6 por cento, no ano passado. É evidente que, devido à deslocalização de fábricas para mercados em que o custo do trabalho é menor e aos avanços tecnológicos que tornam redundante a presença de pessoas no processo de produção, existe desemprego no chamado Midwest, o conjunto de estados que constitui a América fabril. E foi aqui que os homens brancos pouco qualificados foram votar em massa em Donald Trump, assegurando-lhe a vitória no colégio eleitoral. A eles, sem explicar como, prometeu-lhes arranjar novos empregos.

Em relação à segunda parte da questão, os efeitos para o sistema político internacional do isolacionismo anunciado por Trump, a mais significativa é que a cartilha de Washington, quer para o desenvolvimento humano quer para o sistema político, está a ser colocada na gaveta. O liberalismo económico e o liberalismo político estão a sofrer um ataque sem precedentes. Apesar de todas as críticas de que foi alvo ao longo dos anos, das experiências alternativas como a que está em vigor na China, com o modelo de intervenção económica do governo central (o chamado “consenso de Pequim”), não deixa de ser extraordinário que o consenso de Washington esteja a ser posto de parte pelo próprio país que o inventou e que o universalizou.

Num artigo brilhante intitulado “Liberalism in Retreat: The Demise of a Dream”, publicado na mais recente edição da Foreign Affairs (Janeiro-Fevereiro), Robin Niblett, director de um dos think tanks mais reputados do mundo, a britânica Chantham House, o Instituto Real de Assuntos Internacionais, perspectiva que a principal consequência para o mundo da eleição de Donald Trump e da implementação de políticas proteccionistas a par da retirada dos EUA de instrumentos multinacionais é o enfraquecimento da ordem liberal que tem marcado o mundo desde 1945.

As instituições internacionais criadas no final da II Guerra Mundial e nos anos 1950 (como o embrião da União Europeia) tinham como objectivo principal o progresso humano. Para o alcançar, preconizavam um mundo de mercados abertos, democrático, de respeito pelos direitos humanos. Todos estes valores haveriam de chegar um dia a todos os cantos do mundo. As Nações Unidas estiveram sempre na vanguarda da imposição global destes princípios, ao tentarem garantir a aplicação de uma agenda liberal, quer económica quer política, nos diversos países onde estão presentes missões políticas ou de manutenção de paz.

Esta visão do mundo tem, no entanto, caído por terra. Sofreu um abalo tremendo com a crise financeira, económica e social que começou em 2007-2008 e que levou às intervenções internacionais na República da Irlanda, em Portugal e na Grécia. O respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais é cada vez mais ténue, mesmo em Estados-membros da União Europeia, como a Hungria ou a Polónia, e questionado no que aos refugiados diz respeito. A democracia não é manifestamente o sistema político que garante como nenhum outro o desenvolvimento humano – Pequim e o seu capitalismo de características chinesas retirou da pobreza extrema 800 milhões de pessoas, segundo a contabilidade do insuspeito Banco Mundial. Os mercados só devem ser abertos até ao limite dos interesses do país em causa. No fundo foi isso que Donald Trump veio clarificar, com a clareza própria dos populistas: “America first!”

Como conclui Nibblet, as democracias são resistentes e esta conjugação de mercados abertos e de direitos humanos poderá persistir. Mas, por ora, tudo indica que vai passar uma temporada na gaveta.

26 Jan 2017

A China no Ano do Galo

“Chinese economy is faced with downward pressure as many other countries are now. However, China’s 1.3 billion population has offered a giant market with various buffer zones for the world’s economy and enormous consumption demands for its recovery. China imports goods worth $3.2 million from other countries in every 1 minute; and one in every 10 products exported around the world is bought by China. Just imagine, if every Chinese person buys products or service worth $100 from your country, $130 billion are generated in bilateral trade.”
CIPG Digital Media Center, January 17, 2016

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Ano Novo Chinês começará, tendo como regente o Galo, a 28 de Janeiro de 2017 e terminará a 15 de Fevereiro de 2018, marcando o final do ano do Macaco. O Galo é o signo da madrugada e do despertar. O triunfo e o êxito só aparecerão após muito trabalho e paciência. Assim, neste novo Ano Novo Chinês que se aproxima, a economia chinesa adaptou-se a uma nova normalidade em 2016, caracterizada pelo excesso de preocupações relativas ao crescimento do PIB, reforma estrutural dirigida à oferta, política monetária e ao Renmimbi (RMB), entre muitas outros factos e situações.

O próximo Ano Novo Chinês está a poucos dias de se iniciar e a grande questão é a de saber fundamentalmente, como será o desempenho da economia chinesa, existindo desde logo seis sectores que merecem a máxima atenção. Apesar da pressão descendente, o crescimento económico da China estabilizou-se em 6,7 por cento nos três primeiros trimestres de 2016, desmentindo os rumores de uma dura aterragem.

Os políticos chineses, em 2017, vão continuar a dar prioridade à estabilidade, dado que o Partido Comunista da China irá realizar o seu XIX Congresso Nacional, em Pequim, durante a segunda metade do ano. Os economistas prevêem um pouso suave da economia chinesa, e assinalam que a política fiscal pro-activa continuará a desempenhar um papel positivo. O sólido crescimento da China será garantido, quer por um forte potencial de crescimento, como por políticas de controlo macroeconómico.

O crescimento do investimento imobiliário e as vendas diminuirão, mas o efeito negativo será compensado pelo investimento em infra-estruturas. A Conferência Central de Trabalho Económico tem realizado a pesquisa do progresso, mantendo a estabilidade, que é o tema principal do trabalho económico, comprometendo-se a estimular um progresso significativo na reforma estrutural direccionada à oferta. É de crer que a China melhorará o seu sistema económico básico, e acelerará as reformas para delegar competências e optimizar os serviços.

É de crescente importância a reforma estrutural dirigida à oferta e as políticas de controlo macroeconómico, sendo que o crescimento estável da China não poderá ser conseguido sem reformas, que nunca terão sucesso se não forem controladas. Observando a partir de uma perspectiva global, a vantagem da China reside na sua ampla margem de manobra para realizar as necessárias reformas. A China espera realizar reformas fundamentais em empresas públicas, tributação, finanças, solo, urbanização, segurança social, educação ecológica e abertura.

A política monetária da China será prudente e neutral de acordo com a Conferência Central de Trabalho Económico. É pouco provável que no Ano do Galo, haja uma flexibilização monetária significativa e a política monetária poderá mudar, deixando de apoiar tão drasticamente o crescimento para evitar riscos. É de esperar que o banco central opte por instrumentos, tais como acordos de recompra e facilidades em empréstimos a médio prazo, para garantir a liquidez e evitar um crescimento excessivo do crédito.

A política monetária da China será determinada pelo objectivo de crescimento económico anual do governo, sendo de esperar uma crescente inflação, a subida das taxas de juros nos Estados Unidos e um yuan mais fraco, o que reduzirá o espaço para a flexibilização. O RMB tem registado agudas desvalorizações desde Outubro de 2016, causando preocupações no mercado. Todavia, é de descartar a possibilidade de quedas persistentes, e acreditar que a China pode gerir o impacto, mesmo se ocorrerem alterações nas taxas de câmbio maiores que o esperado.

É de considerar que não existe precedente para um país com o maior superavit em conta corrente no mundo, uma taxa excepcional de crescimento do PIB, abundantes reservas internacionais e restrições de capital, venha a sofrer uma depreciação significativa da sua moeda. O sólido progresso económico da China determina que o RMB irá manter a sua robustez contra outras moedas, considerando a recente debilidade, como uma correcção da excessiva valorização anterior.

É de esperar que o RMB termine a série de perdas na primeira metade do ano. O sector imobiliário, sendo um factor crucial do investimento em activos fixos, irá ser vigiado de perto pelo seu efeito no crescimento económico. O mesmo deveria acontecer em Macau onde as flutuações de carácter especulativo têm sido díspares, com um aumento geral de 32 por cento nos preços por metro quadrado das casas em Dezembro de 2016, quando comparado com o mesmo mês de 2015.

A China contará com regras mais severas para a compra de casas a fim de travar a especulação e a revisão do aumento de preços, pelo que a venda de propriedades crescerá a ritmo menor. Todavia, é de esperar que a urbanização da China apoie a procura de casas e mantenha um sólido crescimento do mercado. O principal órgão legislativo da China aprovará uma discutida lei de imposto sobre imóveis que fará aumentar o custo da especulação. É provável que o governo continue com as políticas imobiliárias diferenciadas para lidar com a divergência do mercado, entre as grandes e as mais pequenas cidades.

A economia mundial enfrenta uma lenta recuperação, com uma população em envelhecimento e uma larga diferença de riqueza, entre outros obstáculos a longo prazo. A China, por contaste, ainda que viva uma desaceleração, registou um invejável crescimento entre 6,5 e 7 por cento e continua a ser um poderoso motor a nível global, e neste contexto, o mundo depende cada vez mais da China para fazer face aos obstáculos que se apresentarão.

A China, apesar das invectivas de Donald Trump, terá um papel ainda maior no impulso da globalização. Tal como as maiores economias do mundo, os laços económicos entre a China e os Estados Unidos, merecem maior atenção, pois é provável que a decisão de Donald Trump de apelidar a China como manipulador de moeda e impor grandes tarifas alfandegárias contra os seus produtos, venha a criar uma enorme incerteza e a gerar efeitos negativos.

A nível global há que relembrar que nos princípios desta década, a corrente central de pensamento nos países centrais e em outros grandes actores internacionais, imaginava a consolidação de uma nova ordem internacional, assente sobre três pilares básicos. A hegemonia dos Estados Unidos apoiaria a paz internacional e o contínuo avanço da democracia liberal. O modelo de sucesso de integração continental, seria a contribuição da União Europeia (UE), o que poderia, eventualmente, ser imitado em outros locais.

A Rússia em declínio, uniria forças com a China, que continua a crescer, reconhecendo ambas as vantagens oferecidas aos seus países, em serem parte deste mundo concebido pelas potências ocidentais. Mas vai começar o mandato presidencial de Donald Trump, e a sua declarada intenção, é de que os Estados Unidos abandonem muito do seu esforço global e se concentrem em resolver os problemas de fronteira. Esse é o sentimento dominante na maioria dos americanos.

A Europa parece estar à deriva. A UE golpeada pelo Brexit, o destino do euro e os milhões de imigrantes que chegam, fez perder de vista boa parte do projecto original e não há nada de novo, que enriqueça e substitua a actual versão. Quanto à Rússia está demonstrada a sua política de ingerência e ocupação, pela invasão da Crimeia e no Médio Oriente.

A China não pertence ao Tratado Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), assinado em Auckland, a 4 de Fevereiro de 2016, e do qual fazem parte os Estados Unidos, Japão, Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Peru, Malásia, México, Nova Zelândia, Singapura e Vietname, representando cerca de 40 por cento do PIB mundial, um terço das exportações mundiais e abarca um mercado de oitocentos milhões de pessoas, e apesar dessa ausência avança para impor o seu domínio sobre os mares que a rodeiam, e têm deixado bem claro que não aceita a estratégia americana, e que a pode desafiar com sucesso. Esta mudança não aconteceu de um dia para o outro, pois existiam muitos sinais que a prediziam, ainda que quase sempre aconteçam despercebidos.

A crise financeira global de 2007-2008 que ainda faz sentir os seus efeitos, revelou fraquezas e limitações do actual modelo capitalista. A UE teve a sua sacudidela com a crise do euro e da zona euro. A China nunca deixou de crescer e assumir maiores parcelas no comércio e poder mundial. A novidade agora é um novo tipo de nacionalismo. A “América Primeiro” promete um recuo da globalização e uma concentração no isolacionismo.

A Rússia, com uma economia fraca, mas ainda com poderosos recursos militares, e quer uma desforra do “Império dos Czares”, depois da humilhação sofrida após a queda da União Soviética. A China, o “Império do Meio”, a maior economia do mundo até o século XVII, quer ressuscitar e deixar para trás a humilhação de ocupações sucessivas do seu território durante mais de cem anos. Todas estas nações, até agora actores de segundo plano, procuram definir um novo modelo de relações internacionais que, obviamente, seja mais favorável aos seus interesses nacionais do que o actual.

O Ano do Galo irá assistir ao enterro da velha ordem e à exigência de uma nova, que especialmente considere o novo estatuto da China como uma superpotência global, sendo que em futuro próximo, este novo mundo multipolar terá que encontrar um novo equilíbrio.

25 Jan 2017

Directrizes para 2017 em Hong Kong

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s linhas de acção do Governo de Hong Kong para 2017 foram anunciadas esta semana. Foi decidido o cancelamento do apoio do Fundo de Providência Obrigatório (Segurança Social) às empresas, para fins de indemnização de funcionários. Estas indemnizações poderiam efectuar-se ao abrigo do Long Service Payment – LSP (Compensação por termo de Contrato Prolongado) ou do Severance Payment – SP (Indemnização por Despedimento).

Actualmente, tanto o empregador como o empregado contribuem com 5% do valor do salário para o FPO, entrando mensalmente neste Fundo um total de 10% do salário de cada pessoa, a ser aplicado na saúde e na reforma. Em Hong Kong as pessoas reformam-se aos 65 anos.    

O SP foi pensado para compensar pessoas que trabalham para a mesma entidade num mínimo de dois anos consecutivos e que são dispensadas por extinção do posto de trabalho, ou simplesmente demitidas. A extinção do posto de trabalho acontece quando:

O empregador encerra, ou pretende encerrar, o negócio;

O empregador cessa, ou pretende cessar, a actividade nas instalações onde o empregado prestava serviço;

As expectativas do negócio relacionadas com a função que o empregado exerce cessam ou diminuem.

“Despedimento” enquadra-se no ponto 3. Considera-se despedimento quando, o funcionário trabalha menos do que:

metade dos dias normais de trabalho durante quatro semanas consecutivas; ou

um terço dos dias normais de trabalho durante 26 semanas consecutivas.

No entanto, se o empregado não receber o seu salário referente ao período mencionado, considera-se que foi despedido pelo patrão.

O LSP é a garantia do trabalhador ao abrigo da Lei do Trabalho. Define-se como a compensação devida a quem tiver exercido funções numa empresa por um período mínimo de cinco anos consecutivos, sem que tenha havido justa causa para o despedimento nem extinção do posto de trabalho. Nestas circunstâncias o empregador deverá indemnizar o funcionário, excepto se o funcionário:

morrer, ou

se se demitir por razões de saúde

se reformar por ter atingido ou ultrapassado os 65 anos.

Quer as indemnizações tenham por base o LSP ou o SP, o cálculo é feito a partir da seguinte formula:

(média dos salários dos últimos meses x 2/3) x número total de anos de serviço= valor total da indemnização

Antes do anúncio da Linhas de Acção Governativa para 2017, o valor acumulado nos Fundos LSP e SP provinha das contribuições sobre os salários. Ou seja, quando era necessário indemnizar o empregado o patrão não pagava do seu bolso, recorria sim a estes fundos da Segurança Social. Mas se as novas medidas forem implementadas os empregadores terão de pagar as compensações às suas custas.

Estas medidas vão obviamente lesar os interesses da classe patronal. Para amenizar o conflito, o Governo da RAEHK avançou duas sugestões:

reduzir as indemnizações do trabalhador. Como já vimos, o empregado podia ser compensado numa proporção de 2/3. Mas agora, o Governo pretende reduzi-la para 1/2.

Seria criado um fundo governamental para ajudar ao pagamento destas indemnizações. Foi sugerido que este Fundo estaria operacional dentro de 10 anos. Passado este período, o patronato terá de suportar o pagamento das indemnizações e deixar de contar com ao Fundo de Providência Obrigatório.      

Mas a criação deste fundo governamental não é o suficiente para satisfazer a classe patronal. Alguns empresários alegam ter de pagar duas vezes pelos empregados. Estas queixas são facilmente compreensíveis.

Quem mais sai a perder com estas medidas é o trabalhador, porque a indemnização será reduzida de uma proporção de 2/3 para 1/2.

Não há dúvida que terminar com a contribuição da Segurança Social para estes Fundos compensatórios é uma boa medida. porque a inflação em Hong Kong é altíssima e desta forma as verbas da Segurança Social não poderiam de futuro vir a assegurar as pensões de reformas. Estas medidas previstas nas Linhas de Acção Governativa para o corrente ano, a serem implementadas, não agradarão nem a patrões nem a empregados.

As verbas do Governo de Hong Kong provêm sobretudo das taxas sobre os salários, não existe uma actividade principal que lhe garanta rendimentos. Estas medidas que incidem sobre o emprego terão sérias consequências. Ao contrário de Macau, que tem como negócio central a indústria do jogo e que tem assegurada uma fonte de rendimento suficiente. Este é o mérito de um negócio único. Mas os negócios únicos têm um inconveniente. Se abrandarem, todos serão afectados.

Provavelmente a única forma do Governo da RAEHK resolver esta situação é passar a participar nos pagamentos das indemnizações, através dum fundo governamental e não das contribuições para a Segurança Social. No entanto, se seguir por esse caminho, o Governo pode comprometer a sua situação financeira pois é sabido que o Governo de Hong Kong não é rico. Se a implementação destas medidas estiver em consonância com os princípios enunciados nas Linhas de Acção Governativa, pensamos que serão políticas bem-vindas.

Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
24 Jan 2017

A marcha das mulheres

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]inguém sabe ao certo se se trata de um momento de catarse episódico ou de uma tendência ideológica em ascensão. No dia 21 de Janeiro convocaram-se as mulheres deste mundo para uma marcha que se pensava não ser mais necessária, mas ainda é. As senhoras com muitos anos de experiência andavam por lá com cartazes: ‘Não acredito que ainda tenho que manifestar-me por isto’. Porquê? Porque a maior potência mundial elegeu um Presidente que faz questionar certos valores contemporâneos. Tal como uma criança de 10 anos afirmou, ao ser entrevistada nas ruas de Washington DC, o Presidente eleito não dá o melhor exemplo de como as mulheres deverão ser tratadas.

É-me difícil ficar indiferente a estas questões. São anos de luta e de consciencialização para que a desigualdade de género seja esmiuçada ao tutano e que desapareça de uma vez por todas. Surpresa das surpresas: ainda constitui um dos maiores desafios da humanidade. Se nos últimos 200 anos tem-se lutado por maior respeito e mais direitos para as mulheres, estas causas continuam a fazer sentido hoje em dia. Esta marcha das mulheres mostrou-nos que o activismo ainda existe, e que nós ainda temos armas para mostrarmo-nos descontentes.

Fiquei muito comovida ao ver as imagens de gerações de mulheres acompanhadas pela família e amigos. Aviões e autocarros cheios de mulheres e homens com barretes cor-de-rosa de orelhinhas de gato em peregrinação para um espectáculo de descontentamento social. Acreditar que as mulheres merecem um papel social diferente ao que é proposto hoje em dia e que merecem oportunidades para alcançarem tudo aquilo que quiserem, não é conversa especial de feministas. É uma conversa para todos aqueles que acreditam numa sociedade mais justa, igualitária e capaz de ser solidária.

Ao mesmo tempo, foram expostas exigências que são praticamente universais. As mulheres têm direito a ser as senhoras donas do seu corpo, têm o direito a ter as mesmas oportunidades que todos, têm direito a serem tratadas com respeito. Mas se há temas que são claros como água, há outros que não são. Ser a favor da legalização do aborto é ser a favor da escolha de poder abortar: é ter o total controlo do nosso corpo, ter direito a informação reprodutiva e ao planeamento familiar. Penso que isso seja claro. Mas o que é que quer dizer ter as mesmas oportunidades? Em especial, o que significa respeitar as mulheres?

Pela minha experiência, cada vez mais me apercebo que as opiniões divergem grandemente, apesar da causa ser a mesma. O cliché é de que tudo é relativo: mas é preciso ouvir com atenção as definições e redefinições que as pessoas fazem sobre o que é respeito, por exemplo. Isto é só um exercício de reflexão do dia-a-dia feminino. Mas se para a maioria é óbvio que é extremamente ofensivo um sujeito gostar de se vangloriar por poder agarrar uma mulher pela sua genitália, do que é que pensamos sobre homens que mandam piropos na rua ou que ficam especados a olhar só porque alguém está a usar uma mini-saia, por exemplo? Será que podemos falar de uma má objectificação feminina e de uma ‘boa’?

Eu, por exemplo, mantenho uma posição muito clara de como gostava de ser respeitada, e isso passa por querer poder dançar numa discoteca em paz e não ser incomodada constantemente por homens, ou poder usar uma mini-saia porque está calor e porque me sinto bem assim, ‘boa’ objectificação feminina é coisa que para mim não existe. Contudo, quem sou eu para definir universalmente o que quer que seja? Há mulheres que gostam de sair à noite e de ser admiradas – pode ser bastante empoderador. Há quem goste de ser interpelada para que a sua beleza seja elogiada (com classe, não à construção civil). Há pessoas para todos os gostos.

O respeito passa muito mais por aí, o respeito passa por perceber que há tendências diferentes. O respeito é ouvir e escutar com atenção as necessidades e vivências não só de um grupo como um todo (neste caso, as mulheres), mas as necessidades individuais também. Porque não existe uma fórmula perfeita para como estas coisas são vividas, mas é especialmente importante reconhecer estas idiossincrasias. Apesar de uma marcha ter o poder unificador de um conceito, de uma causa, ter a capacidade de lutar, de mostrar a força colectiva, nunca se esqueçam de cada uma de nós. Nós temos cores diferentes, ideias diferentes, experiências diferentes. Nós temos as pussies de ferro e ninguém nos vai parar.

24 Jan 2017

A não aceitação é egoísmo

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á quando andava na escola secundária ouvia os professores dizerem que com a educação não existe distinção entre as várias classes sociais. Compreendi desde logo o conceito e confesso que independentemente da classe social a que pertence o aluno, este pode ser educado sem que exista discriminação. Parece-me, no entanto, que esta ideia não se verifica na realidade.

Ultimamente deparei-me com uma notícia que me fez franzir o sobrolho: um inquérito sobre a forma como os pais avaliam as escolas, as vagas e os professores de educação especial. Senti-me descontente com os resultados, que vão contra tudo o que escrevi no parágrafo anterior.

Publicado pela Associação de Estudo do Ensino Especial de Macau, o inquérito mostrou que 73 por cento dos inquiridos considera que as vagas nas escolas de educação integrada não são suficientes, enquanto que 90 por cento acredita que as escolas que não participam no plano de educação inclusiva deveriam fazer parte dele, sobretudo as escolas privadas. Uma boa parte dos pais considera que, como algumas escolas ainda não disponibilizam uma educação integrada, as vagas estão mal distribuídas.

O que mais me tocou foi uma triste realidade revelada pelo inquérito. Alguns pais disseram que, quando os seus filhos são diagnosticados como tendo necessidades educativas especiais, são as próprias escolas que aconselham esses alunos a mudarem de escolas, pois estas não oferecem uma educação inclusiva.

Quem tem algum conhecimento nesta área sabe bem que é uma pena que este tipo de alunos não possa estudar nas escolas às quais se habituaram, sendo um desperdício mudarem de estabelecimento de ensino onde aprendem com outros portadores de deficiência. As suas capacidades podem muito bem ser maiores, basta apenas serem acompanhados pelos professores adequados.

Suponho que as escolas regulares, sobretudo as mais famosas, bem como os seus professores, considerem sempre que o ideal seja ensinar os bons alunos e os obedientes, e também todos aqueles que não sofrem de autismo ou deficiência mental.

Escolas e professores são os elementos mais importantes no processo de crescimento dos alunos. É egoísmo se as escolas não tentarem aceitar aqueles que têm necessidades educativas especiais, sobretudo na fase em que eles mais precisam de integrar grupos com alunos sem problemas, por forma a obterem os conhecimentos necessários e a aprenderem a viver da mesma maneira que os outros.

É duvidoso que existam escolas que só aceitem bons alunos para manter a sua reputação e agradar aos encarregados de educação. Se todas as escolas mantiverem esse egoísmo e não aceitarem os alunos com necessidades educativas especiais, então de quem é a responsabilidade? As crianças não nascem assim por vontade própria, são vulneráveis e as mais facilmente esquecidas.

É impossível ter os mesmos métodos para todos os alunos, mas pode-se e deve-se maximizar a igualdade, não só com medidas mas também com o pensamento. Uma educação igualitária faz parte das responsabilidades das instituições de ensino.

Concordo com a opinião da académica Ana Correia concedida ao Jornal Tribuna de Macau, onde disse que as escolas subsidiadas pelo Governo não deveriam rejeitar alunos com necessidades especiais. Estas não deveriam, portanto, ter a alternativa de aceitar ou não aceitar, deveriam aceitar todos, desde que tivessem acesso às condições essenciais.

Os pais dos chamados filhos normais também deveriam deixar de lado os receios e as preocupações desnecessárias, pois têm de compreender e aceitar que os filhos devem conviver na escola com outras crianças que possuem dificuldades de aprendizagem.

23 Jan 2017

Um pesar doentio

Xinhua News Agency | Sun, 2017-01-08 MACAO, Jan. 8 (Xinhua) — Chui Sai On, chief executive of China’s Macao Special Administrative Region (SAR), on Sunday expressed his deep sorrow for the passing of former Portuguese president Mario Soares and great condolences to his family.
Soares had deep relations with Macao and he would be remembered forever, Chui said, noting that Soares had visited Macao three times. (…)
Xi expressed deep grief over the passing of Soares and his heart-felt condolences to the relatives of the former president.
The Chinese president hailed Soares as a great statesman and an old friend of the Chinese people, who had made great contributions to the establishment of China-Portugal diplomatic relationship and its growth, as well as the settlement of the Macao issue.
China pays great attention to developing relations with Portugal, and is willing to work together with the Portuguese side to enhance cooperation in different fields, and further promote bilateral ties, Xi added. (…)”  (XINHUA NEWS AGENCY, 10/01/2017, 22:11:47)
Chinese Premier Li Keqiang on Tuesday sent a message of condolences to his Portuguese counterpart, Antonio Costa, over the death of former Portuguese President Mario Soares.
On behalf of the Chinese government and the Chinese people, Li expressed deep grief to the Portuguese side and extended sincere condolences to Soares’ family.
Soares was a highly respected statesman in Portugal and made great contributions to China-Portugal friendship and cooperation, Li said. (…)” (XINHUA NEWS AGENCY, 10/1/2017, 22:37:52)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a sequência do falecimento de Mário Soares, homem de Estado, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Primeiro-Ministro e Presidente da República portuguesa, que entre outras coisas nomeou os últimos três governadores de Macau, isto é, aqueles que prepararam e conduziram a transferência de administração de Macau para a R. P. China, José Pereira Coutinho, deputado da Assembleia Legislativa, achou por bem apresentar um voto de pesar pelo falecimento daquele português.

Tratava-se de através dessa forma singela, aliás prática normal nos parlamentos dos estados civilizados, de homenagear alguém que em vida foi importante pelas suas acções, enquanto político e homem de Estado, manifestando o reconhecimento pelo seu papel, pela amizade, a solidariedade e o acompanhamento na dor àqueles que acabaram de sofrer a perda.

À partida, nada faria prever aquilo que aconteceu. Em especial, depois do Presidente chinês, do Primeiro-Ministro da R.P.C. e do próprio Chefe do Executivo da RAEM terem transmitido as suas condolências, a sua “profunda tristeza” (“deep sorrow”) e “profunda dor” (“deep grief”) pelo falecimento de Soares, aproveitando a ocasião para sublinharem o seu papel no aprofundamento das relações com a China e com Macau, enaltecendo o seu contributo para a resolução de uma questão legada pela história, que era a questão de Macau.

Recorde-se que em todos os momentos a R.P.C. enfatizou a forma exemplar como a transição foi conduzida e a questão de Macau resolvida, pelo que seria da mais elementar justiça que a Assembleia Legislativa de Macau, pela iniciativa de Pereira Coutinho, do seu presidente ou de qualquer outro deputado, a começar pelos nomeados pelo Chefe do Executivo, tomasse a iniciativa de apresentar esse voto de pesar.

Estranhei, pois, quando ao final do dia de ontem (16/01/2017) ao ouvir as notícias me apercebi de que o voto de pesar apresentado pelo deputado Pereira Coutinho na sessão plenária da Assembleia Legislativa de Macau fora votado por apenas 20 deputados, de um universo de 33, e que daqueles que votaram só 13 o fizeram favoravelmente. Ou seja, menos de 40% dos deputados da Assembleia Legislativa de Macau votou favoravelmente o voto de pesar por Mário Soares. E, coisa nunca vista em relação a um morto que foi só o mais importante homem de Estado português do pós-25 de Abril,  o único a quem Portugal concedeu, desde 25/04/1974, um funeral com honras de Estado, o voto de pesar conseguiu reunir cinco manifestações contra e fez com que faltassem à votação tantos quantos os que entenderam votar favoravelmente o pesar (13 deputados). Gostasse-se ou não do cavalheiro, Soares foi um dos que teve um papel mais decisivo para que a transição de Macau se processasse em termos susceptíveis de aplauso internacional e em termos que cimentassem a credibilidade dos Estados envolvidos no plano das relações internacionais.

Para além das inexplicáveis ausências e votos contra, houve duas abstenções. Quanto a estas verificar-se-á que vieram de deputados ligados à Associação dos Operários (Kwan Tsui Hang e Lei Cheng I). Abstiveram-se mas podiam também ter votado contra, visto que os cinco votos contra também vieram todos de sectores tradicionais ligados aos interesses comerciais, ao empresariado mais conservador, às associações de operários, aos moradores, à associação de educação e das mulheres e às ricas e poderosas associações de beneficência, como as do Hospital de Kiang Wu e da Tung Sin Tong.

Compreendo que para quem cresceu e singrou no obscurantismo, à sombra dos poderes tradicionais, enredado e prisioneiro de um sistema semifeudal como este que ainda hoje vigora nas margens do Rio das Pérolas, seja difícil compreender o significado das sinceras mensagens de condolências enviadas a Portugal, aos seus representantes e ao seu povo, pelo Presidente da R.P.C., pelo Primeiro-Ministro Li e pelo Chefe do Executivo da RAEM.

Mas mais aberrante e inexplicável é entender o que leva o presidente da Assembleia Legislativa, que é membro do 12.º Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular, a abster-se e o  Vice-Presidente, Lam Heong Sang, a votar contra.

Eu não quero pensar que aquela gente que votou contra e a que se absteve num voto de pesar de tão grande significado afectivo para as relações entre Portugal e Macau e entre aquele país e a R.P.C. não tenha percebido que em causa não estava a revogação da lei eleitoral ou a marcação de eleições por sufrágio directo, mas apenas uma coisa tão simples quanto um voto de pesar. Uma manifestação de dor, de sofrimento e de solidariedade para com um povo amigo.

Mas ainda mais censurável foi a atitude dos treze deputados que resolveram arranjar outra coisa para a fazer à hora da votação, entre os quais quatro deputados nomeados, mais cinco vindos do sufrágio indirecto e quatro do sufrágio directo. De alguns destes já se sabia que o seu apego a Macau, à amizade luso-chinesa, e o seu apregoado patriotismo tinham tanto de sincero quanto têm de amor às patacas, aos dólares ou a qualquer outra moeda cuja cotação esteja em alta e seja susceptível de entrar nos seus bolsos. Mas quanto a outros ficará apenas a marca da ingratidão e da hipocrisia. O morto serviu enquanto serviu os seus interesses. Enquanto lhes propiciou honrarias, negócios, obras e contratos. Agora que morreu já não serve.

Tanto quanto me apercebi não houve sequer sugestões de alteração na redacção do voto ou nos seus fundamentos, de maneira a que pudesse haver consenso na hora de votar e não fosse transmitida para o exterior a triste imagem (mais uma) que deixaram.

O voto de pesar que a Assembleia Legislativa de Macau aprovou com 13 ausências, 5 votos contra e 2 abstenções ficará para sempre registado como um dos mais tristes episódios daquela casa que durante tantas décadas foi um símbolo da autonomia de Macau e da vontade das suas gentes.

Hoje, a Assembleia Legislativa de Macau não passa de uma câmara anódina de composição de interesses sectoriais, onde a vontade e os interesses do povo de Macau ficam à porta para não perturbarem os interesses das elites instaladas que vivem à conta da sua exploração e consideram que a perpetuação de sistemas iníquos de injustiça e afronta aos seus cidadãos serve os interesses da R.P.C.. Não serve. E para além de não servir opõe-se ao que é pretendido pela R.P.C. para Macau.

Na fotografia que fica não é a R. P. C. que sai mal. Porque foram eles, deputados, e não a R.P.C., que não compreenderam o sentido do voto de pesar. Foram eles quem faltou na hora da chamada, quem votou contra e quem se absteve. Foram eles que quiseram ser mais papistas do que o Papa. Podiam ter manifestado a sua discordância, esclarecido as suas razões. Uma vez mais preferiram o silêncio e a fuga. Com isso mostraram quão falsas são as suas próprias juras de fidelidade a Macau e à amizade luso-chinesa. E como não são representativos nem dos interesses da população em geral, que preza a relação com Portugal e muitos estão-lhe agradecidos, em especial a Soares, por lhes ter proporcionado a oportunidade de viverem em Macau, evitando que fossem recambiados quando não tinham documentos para aqui permanecerem, nem as comunidades residentes com raízes macaenses e portuguesas, que não poderão deixar de encarar a atitude daqueles senhores deputados como mais um sinal de ingratidão.

Não para com Mário Soares, mas para com os portugueses em geral. Para com o povo português e para com todos os que falando português aqui vivem, trabalham e contribuem para a riqueza e diversidade de Macau. Mesmo os portugueses que não votaram ou que podem ter ficado com razões de queixa do Mário Soares político não deixarão de sentir esse voto de pesar que a A.L. aprovou como um voto pastoso e de falsa dor na hora de ser transmitido. Um voto de pesar doentio e sem qualquer significado, sinal de uma maior miséria moral como a que diariamente, até nestes pequenos gestos, se abate sobre a RAEM.

20 Jan 2017

Grande anestesia é o hábito       

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]lguns pais estacionam as motas nos passeios quando vão buscar os filhos à escola. Há pouco tempo uma transeunte denunciou um estacionamento ilegal a um polícia que estava nas imediações. No entanto o agente afirmou que a zona onde os veículos estavam estacionados não lhe pertencia. Acrescentou ainda que, tanto quanto lhe era dado ver, as motos não estavam a bloquear a passagem, até porque tinha acabado de ver um grande grupo de estudantes a passar sem dificuldade, só tiveram de contornar os motociclos. Portanto, não lhe parecia grande problema. Todos os dias muitos pais estacionam as motos para irem buscar os filhos à escola. No entanto o polícia informou a transeunte que, se mesmo assim, quisesse apresentar queixa, poderia ligar para o Departamento de Trânsito ou que ele o poderia fazer em seu nome. Se a senhora decidir avançar com a reclamação, os proprietários dos veículos terão de pagar uma multa e, na pior das hipóteses, ver as suas motos apreendidas. Nesta situação, não podemos acusar o polícia de irresponsabilidade, porque cumpriu o seu dever e esteve atento ao que se passava à sua volta. Se for necessário culpar alguém, terá de ser a transeunte. E isto porque nunca ninguém se queixou dos estacionamentos ilegais, nem os estudantes, nem os professores, nem a escola, considera-se que estas situações fazem parte do seu dia a dia. Quando se trata de colégios caros, então para além das motos, temos também grandes carros, alguns deles de funcionários do Governo, estacionados ilegalmente em frente aos portões de entrada. E como os habitantes de Macau já estão acostumados a estas situações, a maioria considera-as naturais. Os poucos que ainda se indignam acabarão por desaparecer se tudo continuar na mesma.

Vejamos agora outro exemplo. Na paragem da Praça de Ferreira do Amaral estão funcionários cuja função é fazer com que as pessoas façam fila para entrar nos autocarros. No entanto, quase ninguém obedece. Os lugares reservados para idosos, deficientes, grávidas e crianças, são sempre ocupados por quem não precisa. Os idosos já se habituaram a ir em pé porque não querem arranjar discussões. O “ladrão” dos lugares reservados está geralmente de olhos fechados, ou vai a fazer uma soneca, ou a ouvir música de auscultadores postos, ou a jogar um joguinho no telemóvel. Todos têm uma coisa em comum, não dão por nada que se passa à sua volta. Por seu lado o condutor vai concentrado na condução, e deixa que os passageiros resolvam as questões entre si. Este fenómeno das “mentes letárgicas” tornou-se parte integrante da vida em Macau. Mas é tempo de acabar com estas práticas “inquebrantáveis”.

Em Macau as pessoas aceitam o que têm. Só quando os seus interesses são postos em causa é que protestam um pouco. Ninguém quer saber se não existe controlo do afluxo crescente de turistas, as pessoas só se queixam dos engarrafamentos e das ruas congestionadas. O Governo distribui anualmente dinheiro aos residentes para lhes adormecer os espíritos e fazê-los esquecer os aumentos constantes das rendas de casa, para não falar do valor dos apartamentos para venda, inacessível à maior parte das bolsas. Para acordar as pessoas em Macau é necessário mudar-lhes os hábitos. E para mudar os hábitos é necessário alterar o estilo de vida fácil, de um conforto sufocante, sob o risco de entrarem num coma prolongado que irá sobrevir a uma situação continuada de “mente em estado letárgico”.

Segundo os dados publicados pela Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, existiam mais de 300.000 eleitores recenseados em Macau em finais de 2016, o que representa um aumento de 30.000 eleitores em comparação com 2012. Estes números terão certamente impacto nas próximas eleições para a Assembleia Legislativa, agendadas para Setembro próximo. Mas se os padrões de comportamento habituais não se alterarem, a prática de comprar votos através da concessão de favores é que continuará a determinar quem é eleito. Numa pequena cidade como Macau, com relações interpessoais muito próximas, as pessoas acostumadas a uma vida confortável optam por fechar os olhos a problemas de ordem social, desde que não sejam demasiado evidentes ou demasiado sérios. Este género de “tolerância” não é benéfico para o progresso social. Se esta situação se mantiver, toda a cidade poderá ficar refém do populismo o que será um caminho sem retorno.

Os hábitos formam o nosso carácter e o nosso destino é determinado pelo nosso carácter. Temos de alterar as nossas práticas se quisermos mudar Macau. Temos de nos interessar e ser participativos para a sociedade mudar e evoluir. 2017 vai ser o ano para nos livrarmos dos maus hábitos!

20 Jan 2017

Soares (outra vez)

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]indo de onde vem, não surpreende. Mas ainda assim ofende, fica mal, é de lamentar. É um gesto pequenino, completamente desnecessário, que chega a ser insultuoso. Há quem entenda que é tão insignificante que nem valerá a pena perder tempo a falar – ou a escrever – sobre ele. Terá razão quem pensa assim, mas é uma forma de encaixar a realidade diferente da minha. Por mais que conheça as personagens, por mais que saiba o que significam, há momentos – muitos, talvez em demasia – em que não consigo passar ao lado de tão rasteira forma de estar na vida.

Esta semana, por iniciativa do deputado José Pereira Coutinho, foi submetido a apreciação na Assembleia Legislativa um voto de pesar pela morte de Mário Soares. Surpreendentemente, ou não, houve quem tivesse votado contra. Foram cinco os deputados que decidiram chumbar a homenagem ao antigo Chefe de Estado e primeiro-ministro português. Além disso, duas deputadas decidiram abster-se, aquela forma de voto que, em certas situações, é estranha, de tão híbrida que pode ser.

Ao contrário do que é hábito naquele plenário, os cinco que fizeram acender a luz vermelha mais as duas companheiras não fizeram declaração de voto. Assim sendo, não se ficou a saber, naquela sala, de onde vem a amargura destes deputados, todos eles com ligações às duas associações mais tradicionais com representação no órgão legislativo: os Kaifong e os Operários.

Mas já lá vamos. Antes, a própria postura da Assembleia Legislativa. Foi necessário um deputado propor um voto de pesar porque o órgão não tomou uma iniciativa nesse sentido, o que só lhe ficaria bem e iria na linha do que aconteceu um pouco por toda a parte, a começar por Pequim e a acabar no Chefe do Executivo de Macau. Ho Iat Seng não se terá lembrado de semelhante gesto, Pereira Coutinho não se esqueceu e ainda bem: deu aos colegas a possibilidade de saírem compostinhos no retrato.

Mas houve quem não estivesse interessado em semelhante fotografia de grupo. Este jornal tentou perceber a razão do sentido de voto dos Kaifong e a falta de pudor não poderia ter sido maior: houve quem tivesse votado contra simplesmente porque o voto de pesar pela morte de uma pessoa – repitam, o voto de pesar pela morte de uma pessoa – foi proposto por aquele deputado e não por outro qualquer.

Entre os que disseram não à intenção de Pereira Coutinho esteve o vice-presidente da Assembleia Legislativa, um homem que só conheço do que leio e que não me inspira curiosidade. O vice-presidente do órgão legislativo votou contra o voto de pesar pela morte de uma pessoa – repitam, o voto de pesar pela morte de uma pessoa – e, claramente, tem uma certa falta de noção do que representa o cargo que, por certo, tão orgulhosamente ostenta no seu cartão-de-visita.

Depois, o resto. Os Kaifong e os Operários, a esquerda e a esquerda menos esquerda, o comunismo da mãe-pátria que já nem sequer são capazes de identificar, as cartilhas que já leram mas não perceberam, o diabo a quatro e o raio que os crucifique porque não têm qualquer interesse, não há uma ideia política que dali venha, acham-se políticos porque alguém os pôs lá – na maior parte dos casos, os amigos das associações a que pertencem –, mas nem o regimento da Assembleia onde se sentam conhecem. Não interessam.

No entanto, quase todos eles têm idade suficiente para se lembrarem da Macau dos outros tempos, aquela que eu só conheço das histórias que se contam. Os que não têm anos de vida para saberem o que era Macau no final dos anos 80 e início dos anos 90, têm pais e avós e primos e tios a quem podem perguntar.

Mário Soares teve um papel importante para Macau quando a China era ainda um mundo dentro do mundo, uma realidade à parte, uma nação que vivia sobre ela própria. Mário Soares, diz quem cá estava, teve um papel importante para que 50 mil ilegais que escaparam à fome na China passassem a ter documentos no território.

Muito provavelmente, alguns destes deputados sem grande interesse pelo passado, que Macau para eles só existe há 17 anos, beneficiaram, directa ou indirectamente, do modo como Mário Soares reagiu à questão da legalização. Com toda a certeza, estes deputados têm alguém que lhes é próximo que beneficiou do processo de legalização. Com toda a certeza, por causa deste episódio e de outros a que já assistimos, todos estes deputados têm uma enorme dificuldade em lidar com o passado de Macau – que, por falar nisso, não lhes pertence.

Mas nada disto interessa: aprendi cedo, e senti na pele mais tarde, que o nascimento e a morte são momentos que exigem todo o respeito. Só o pode demonstrar quem sabe o que isso é.

20 Jan 2017

É um mundo cão

[dropcap style≠’circle’]1) C[/dropcap]irculou pelas redes sociais no início da semana um vídeo que dava conta de um caso de maus tratos a animais, que indignou qualquer pessoa de bem, e deixou as associações dos direitos dos animais à beira de um ataque de nervos. Nas imagens recolhidas por um amador (aparentemente) da janela da sua casa, vê-se um indivíduo a espancar brutalmente um cão do terraço de um edifício anexo, durante cerca de um minuto. Mais tarde veio a saber-se que o agressor é um agente da Polícia Judiciária, e aparentemente fora do seu horário de turno, naquele que deve ser o seu  “remanso do lar” – lá se foi a desculpa de que o animal estava a ser interrogado, e mostrava-se pouco disposto a colaborar com as autoridades. Nem por acaso, e logo para azar do actor principal daquela fita, ainda no ano passado a AL aprovou (finalmente) uma lei que criminalizou a “biqueirada ao cachorro”, uma exótica e bizarra forma local de lidar com o “stress”. A PJ abriu um inquérito, e veio muito oportunamente condenar a conduta do seu agente (e é preciso não esquecer a tal leizinha, pois…). Acho mal e acho bem – o comportamento do agente, e a prontidão da resposta por parte das autoridades, respectivamente. Isto de molestar criaturas de sangue quente está completamente “off”, e ao contrário do oficial do GP de Macau que enxotou à vassourada um cão que se atravessou na pista durante os treinos, aqui “não havia nexexidade” nenhuma.

2) Por falar em AL, o deputado José Pereira Coutinho apresentou na última terça-feira no hemiciclo um voto de pesar pelo desaparecimento de Mário Soares, figura inalienável dos últimos 40 anos da História de Macau, e da transição do território para a R. P. China em 1999. Achei a ideia boa, mas não gostei da “entrega” por parte do sr. deputado;  leu mal, depressa, atabalhoadamente, ignorando quase por completo a pontuação. Podia estar nervoso, cansado, não interessa, pois logo a seguir o quadro ficou completamente borrado: o voto foi aprovado com 13 votos a favor, cinco contra, e duas abstenções. Quanto a estas últimas, quem acha que a intensidade da ordem de trabalhos da AL (?) não deixa tempo para sentimentalismos, tem todo o direito a ser tótó, mas…votar contra? Um voto de pesar por uma pessoa que faleceu, e que nunca lhes fez qualquer mal – antes pelo contrário – e…votam contra?!?! Não me surpreendeu que tenha vindo dos sectores patrióticos cá do burgo, mas…para quê? Quem é que lhes encomendou o sermão? Parece que a memória é mesmo curta, e que nem ainda há nem dois meses um outro elemento do órgão legislativo local ficou com um enorme “melão” depois de uma demonstração de “patriotismo” durante uma visita ao continente, e que não agradou ao seu destinatário. E sabem porquê? Porque sois ricos. Não “marxistas”, e muito menos revolucionários. E no caso da AL, devem o estatuto a…Mário Soares, entre outros. Ó, a ironia. E que Pátria é essa que estes patrioteiros idealizam, onde nem se respeitam os mortos?

19 Jan 2017

A qualidade no sucesso da empresa

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os dias de hoje a implementação de um Sistema de Qualidade e consequente certificação em normas de qualidade já não constitui um desafio impensável para a maioria das empresas. São agora inúmeras aquelas que já deram este passo.

Dependendo da estratégia de cada empresário para a sua empresa – é perfeitamente legítima (e necessária à economia) a existência de empresas que não têm como objectivo evoluir e, para estas um SGQ como o certificado pela família de normas ISO 9000 constitui, efectivamente, um encargo desnecessário – é quase unânime a percepção que um Sistema que apoia o sucesso da Organização na satisfação dos seus clientes, libertando recursos que podem ser usados noutras iniciativas, constitui um salto essencial para o crescimento sustentável de uma empresa.

É que o esforço das empresas gasto em actividades não produtivas pode, em alguns casos, chegar a 80% do esforço total. É um enorme esforço dispendido em actividades inúteis ou ineficazes – é aqui que os Processos para a Qualidade tentam agir e assegurar o registo de tudo o que é relevante para que eventuais problemas sejam detectados atempadamente e se aprenda com a experiência.

No entanto, o mundo está sempre em mudança. Depois de anos de aperfeiçoamento de processos de optimização e monitorização de produto, o que falta então a cada empresa fazer, enquanto organização, para resistir a um mundo que nunca foi tão competitivo e tão rápido, e que obriga a um esforço cada vez maior para manter e fazer crescer o seu negócio?

A resposta pode residir simplesmente nestes dois pontos:

  • A adaptação dos processos ao ambiente em que se insere o negócio da organização;
  • Pensar menos em soluções técnicas ou tecnológicas para os problemas, pois estas incidem sobre cada problema em particular e não às suas origens comuns, e pensar mais em agir sobre a cultura e valores da organização.

Alguns pensamentos orientais apregoam uma série de passos que são necessários percorrer para que cada indivíduo possa atingir a plena realização pessoal. Que tal estender este conceito às organizações, adaptando-o à sua Cultura e Valores? Este foi um exercício defendido pelo Dr. Gary Cort, na altura presidente do TC 176 – a comissão que zela pela manutenção e revisões da família ISO 9000 – num seminário que o autor destas linhas assistiu no Porto em finais de 2013, intitulado “A Qualidade e o Futuro”.

Seguindo esta filosofia, poder-se-ão aplicar às organizações oito princípios, como oito degraus que serão necessários subir, conquistando passo a passo o “nirvana”. São eles:

Passo 1Mente positiva: O estado de espírito positivo que permite olhar para o futuro, fomentando a curiosidade constante em evoluir, resultando numa maior flexibilidade da organização em adaptar-se ao ambiente em que se insere.

Passo 2Corpo são: manter a saúde da organização, como se fosse um organismo humano, que quanto mais saudável, mais capacidade tem para resistir a doenças. Numa organização, isto manifesta-se numa maior resiliência para ultrapassar tanto as dificuldades do dia a dia, como obstáculos inesperados.

Passo 3Relações equilibrados: manter a organização unida, fomentando o relacionamento equilibrado entre as pessoas e equipas. Evitar que equipas trabalhem em “roda livre”, cada uma com os seus próprios objectivos, desperdiçando energias que podiam ser aplicadas a transmitir mais força a um mesmo rumo.

Passo 4Sentido da Vida: agir sobre a Missão da organização de modo a que tenha um sentido, no mais abrangente significado do termo. Isto vai-se reflectir na motivação dos seus colaboradores, abrindo caminho à constante inovação e flexibilidade da organização.

Passo 5Inspiração: Decorrente do passo anterior, uma cultura inspirada e inspiradora de novas ideias e acções será extremamente positiva para o desenvolvimento da organização.

Passo 6Contribuição: uma organização, como somatório da capacidade dos seus colaboradores ganhará se fomentar que todos sintam vontade de contribuir para o seu crescimento

Passo 7Sustentabilidade: Todos os princípios anteriores tiveram de ser percorridos para se chegar até aqui. Que instrumentos as empresas e organizações detêm para garantir a sustentabilidade da sua posição no negócio e no mundo? Mais uma vez, o principal instrumento sobre o qual todos os outros princípios incidiram: a cultura da organização.

Passo 8Legado: O resultado final da aplicação de toda esta filosofia. O que fica depois de desenvolvida a actividade da empresa, depois da interacção da empresa com o meio onde se insere. Afinal, o que a empresa passou para os outros e para o futuro?

Eis o que poderá ser a chave para as empresas vencerem os desafios da competitividade no mundo actual: agir sobre a própria cultura e valores, transmiti-la aos seus colaboradores e envolvê-los de modo a que todos se mantenham comprometidos com ela e sigam o mesmo rumo. E assim diferenciar-se da sua concorrência.

18 Jan 2017

A polémica do Museu II

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a semana passada discutimos a construção da sucursal do Museu do Palácio de Pequim em Hong Kong. O anúncio da construção do edifício foi feito depois da assinatura do memorandum entre o Governo da cidade e os responsáveis do Museu do Palácio, sem consulta pública. Este arranjo teve em vista assegurar a construção da sucursal do Museu em Hong Kong. A perspectiva de virmos a ter um Museu em Hong Kong é positiva, e deve ser apoiada. Mas a forma como o assunto foi tratado é questionável.

A polémica não ficou encerrada com a comunicação da construção do Museu. No passado dia 7 o website de Hong Kong, “South China Morning Post”, publicava um artigo onde se afirmava que o arquitecto responsável pelo projecto, Rocco Yim Sen-kee, já tinha sido contratado antes do anúncio oficial da construção do complexo, feito pela Secretária Carrie Lam Cheng Yuet-ngor.

Podíamos ainda ler,

“A Autoridade Administradora do West Kowloon Cultural District contratou … Yim em Junho (de 2016) para determinar se, no local, … poderia ser construído um complexo multifuncional, que pudesse acolher exposições, convenções, espectáculos e dependências destinadas a um museu, e foi-lhe pedida a apresentação de uma planta do projecto.”

“Posteriormente, em Novembro de 2016, o conselho administrativo aprovou a designação de Yim … para a função.”

O artigo continuava,

“Yim deu início ao projecto cerca de seis meses antes da comunicação de Carrie Lam.”

A “Rocco Design Architects”, a empresa de Rocco Yim Sen-kee, que foi escolhida como consultora para os planos arquitectónicos do Museu, já tinha começado a trabalhar nas plantas do complexo no passado mês de Junho (2016), cinco meses antes da reunião do Conselho de Administração, levada a efeito para aprovação do empreendimento. Foi também por esta altura que Yim foi formalmente indigitado.”

Os detalhes do contrato entre Yim e a Autoridade para o West Kowloon Cultural District foram também divulgados,

“A Autoridade para o West Kowloon Cultural District tratou este projecto com “um secretismo sem precedentes, tendo recorrido durante a fase inicial ao nome de código “Projecto P” para o designar internamente.”

“A FactWire, citando fontes, divulgou que a planta foi deliberadamente dividida em partes, para que as pessoas que trabalhavam no projecto não ficassem a par da estrutura global do Museu.”

“As fontes acrescentaram que o plano era “absolutamente secreto”, completamente diferente de qualquer outro em que já tinham trabalhado, e o primeiro com um nome de código.”

Os legisladores de Hong Kong não ficaram satisfeitos com todo este secretismo em torno da construção do Museu. Tanya Chan, do Partido Cívico, declarou,

“Vou interpelar Lam para que explique porque é que Yim começou a trabalhar com tanta antecedência.”

A nomeação de Yim para arquitecto do Museu do Palácio de Pequim está também a dar muito que falar. Como é que esta nomeação se processou? Porque é que foi escolhido? Quanto é que vai receber? Estas serão algumas das questões que os legisladores irão colocar. Estão em causa a justiça e a imparcialidade. Se o Governo der o seu apoio a escolhas à margem dos procedimentos correctos, abre as portas à arbitrariedade. Passa a ser uma questão de “gostos” ou de “não gostos”. Um procedimento com estas premissas não tem qualquer relevância. Neste caso, podem levantar-se suspeitas junto da opinião pública de que o Governo favoreceu a candidatura de Yim. Vai ser muito difícil, quer para o Governo quer para Yim, explicar a situação, mesmo que não tenha havido má intenção de nenhuma das partes. Neste caso os fundos para financiar a construção do Museu vieram do Jockey Club de Hong Kong, não são dinheiros públicos; mas mesmo assim não é suficiente para acabar com as suspeitas.

É sabido que os legisladores têm o poder de debater qualquer assunto de interesse público ao abrigo do artigo 73(6) da Lei Básica de Hong Kong. Podem também convocar pessoas envolvidas para testemunhar ao abrigo do artigo 73(10) da mesma Lei, através de uma Ordenança do Conselho Legislativo (Poderes e Privilégios). Se os legisladores acabarem por convocar a secretária Carrie Lam, Yim e outras partes envolvidas para prestar declarações, será muito constrangedor e muito prejudicial para Hong Kong.

Esperamos que o Museu do Palácio de Pequim possa vir a ser construído em Hong Kong e que os procedimentos correctos se mantenham.

Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
17 Jan 2017

Power Rangers da Fantasia

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]elhor ou pior, dependendo da vossa geração, o pessoal deve ter ouvido falar dos Power Rangers. Eles são uns super heróis de uma série de entretenimento juvenil onde há cinco jovens que vestem um fato (cada um de uma cor diferente) e salvam o mundo das desgraças que por aí andam. Lembro-me de ver os power rangers naquelas idades em que queremos ser os heróis do mundo também – lembro especificamente de brincar que tinha um relógio onde podia comunicar com os meus parceiros (já antecipava um smartwatch!) e lá íamos nós salvar donzelas e cavalheiros em desespero.

Ora, caiu-me nas mãos aquelas pérolas da literatura cor-de-rosa, que permite aconselhamento sexual e amoroso, o caso de um rapaz a queixar-se que só poderia fazer amor ao fim-de-semana, quando o genérico dos Power Rangers tocava na televisão. A música de entrada dos Power Rangers, para este rapaz, é um turn on instantâneo e exclusivo – daí a limitação temporal. Nunca ninguém saberá da veracidade destes casos tão particulares, nem é o meu objectivo descobri-lo. Para este rapaz o imaginário dos Power Rangers é tudo o que ele precisa para a satisfação sexual. À primeira vista parece-me um pouco limitativo, se considerarmos a panóplia de cenários sexualmente interessantes que existem por aí. Mas não deixa de ser uma reacção honesta ao sexo. O que é que tu gostas? Da música dos Power Rangers.

As fantasias sexuais são isso mesmo, o poder de expressar e reconhecer a nossa sexualidade de forma honesta, ainda que, por vezes, fique somente pelo mundo das ideias. A nossa imaginação é riquíssima em cenários, posições e possibilidades, ainda que o dia-a-dia rotineiro não permita uma fertilização desta nossa imaginação sexual. Mas é preciso cultivá-la, pela nossa saúde sexual, precisamos de cultivá-la e tentar entendê-la em todo o seu esplendor. Porque a fantasia pode caracterizar-se de várias formas. Pode ser íntima e privada, a ser imaginada em momentos de masturbação – que podem ser momentos importantes até quando se vive em casal. Não há mal nenhum em querermos a privacidade das nossas fantasias… Contribui para o mistério. Ninguém precisa de saber tudo sobre ti, sobre o teu sexo, os/as parceiros/as podem estar perpetuamente a tentar descobri-lo. Tal como a fantasia pode ser o completo oposto, pode ser partilhada pelos dois, as fantasias individuais podem tornar-se vossas, recriadas em conjunto.

Mas às vezes, porque as fantasias são tão íntimas, temos medo que não sejam bem vistas e que não sejam entendidas. No que toca ao sexo é muito fácil patologizar tudo e todos que parecem cair nos meandros da não-‘normalidade’. Como eu tenho vindo recorrentemente a escrever, o normal nunca é (nem deve ser) categoricamente definido. Caso assim seja, o sexo, que ainda por cima é pouco discutido, estaria limitado a casais heterossexuais em posição de missionário. Contudo, graças à nossa imaginação tão rica, e à nossa vontade de explorar os limites da sexualidade humana, o sexo normal é um espectro de possibilidades. Tal como com o nosso amigo que gosta muitíssimo da música do genérico dos Power Rangers.

Continuo a reforçar que não há fórmulas feitas para a realização das fantasias de cada um. Nós nunca saberemos onde a nossa imaginação pode ir – por isso não vale muita pena seguirmos listas de fantasias genéricas. Mas há quem julgue que sim, que consegue descobrir uma lista de fantasias prototípicas para a satisfação geral. Sexo não é uma checklist que temos que ir riscando à medida que envelhecemos. Um menage à trois não é a fantasia de todos! Apesar de ser bastante prevalente em rapazes (com a fórmula 1 boy + 2 girls, pergunto-me, porque será?).

A sexualidade é uma forma de expressão como o amor é uma forma de expressão, nem quero ser presunçosa ao dizer que é uma forma de expressão artística. Talvez o sexo seja a inspiração mais visceral – mais básica – que podemos ter. Julgo que a fome não produza grande coisa, talvez tratados político-sociais do que a fome é. Mas o sexo sente-se, fantasia-se e cria-se. Dá vontade de fotografar corpus nus, de entrar no mundo fantástico do desejo, de perceber a sexualidade humana nas formas mais puras de beleza e de estética. Ou o sexo pode ser tão simples como a música do genérico dos Power Rangers.

17 Jan 2017