Fa Seong A Canhota VozesParem de se sentir bem convosco próprios [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi só uma vez. Os governantes de Macau, sobretudo o chamado “secretário dos cinco anos brilhantes”, defendem que as medidas ou as actividades que o próprio Governo realiza “obtêm grande sucesso”, ou que “ganham bons comentários da maioria da população”, apesar de existirem várias opiniões ou criticas que revelam exactamente o contrário. É irritante observar que eles se sentem bem meramente consigo próprios, além de virem a público dizer que a maioria dos residentes também concorda com o que se passa. Antes de dizerem isso, não devem ter ouvido as críticas da sociedade, as que são difundidas nas redes sociais e nos meios de comunicação social, ou então apenas fazem ouvidos moucos. A harmonia é uma das características associada a Macau, à sua sociedade e às suas gentes, mas não é surpreendente que muitas pessoas prefiram ficar em silêncio sobre coisas que realmente não gostem, em vez de falarem dos problemas existentes. Olhando por aí, é fácil desmentir o que os dirigentes do Governo defendem de bom. A primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, que acabou esta semana, é o exemplo mais recente. O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, salientou aos jornalistas que o festival foi organizado com grande sucesso, que recebeu todas as mensagens positivas, tendo ainda falado da surpresa de muitos com o sucesso da realização do festival pela primeira vez. Não posso negar os bons comentários que foram feitos e que o secretário ouviu, mas não deve ter ouvido falar das outras opiniões de especialistas e espectadores de festival expressas nas redes sociais. Essas críticas falam de salas vazias na exibição dos filmes seleccionados no festival, em momentos onde apenas os realizadores de renome e os actores apareceram para falar do filme com apenas dez espectadores. Seria curioso saber o que eles pensaram nesse preciso momento. Quando eles pensavam que os filmes não foram suficientes para despertar a curiosidade das pessoas, para as levar a comprar bilhetes, veio a saber-se que, antes dos filmes começarem a ser exibidos, já os bilhetes estavam esgotados. Então para onde foram esses bilhetes? Para as personalidades VIP convidadas pela organização do festival? Para os funcionários e familiares? Pode ter acontecido o caso de que, muitos dos que queriam realmente ver os filmes não conseguiram comprar bilhete. Mas as críticas não ficam por aqui. Um espectador do filme “Gurgaon” partilhou a sua opinião à publicação “All About Macau”, sobre a ida de um grupo de 50 estudantes à sala de cinema, tendo-se deparado com a falta de legendas em chinês, o que levou a que não tenham usufruído do filme, pela falta de entendimento do mesmo. Os responsáveis por esta edição do festival não podem tapar os olhos a esta situação. Tratando-se da primeira edição, o Governo deve prestar mais atenção a todas as reacções, quer sejam elogios como críticas. Num território tão pequeno, se todos fizerem ouvidos de mercador às críticas existentes, a cidade morrerá aos poucos, porque onde não há críticas, não há melhorias.
Leocardo VozesOlongapo city [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau: para que se possa continuar permanentemente a amá-la, é preciso por vezes deixá-la, e depois de uma boa dose de “mordidelas do real” (reality bites, em estrangeiro) as reconciliações sabem sempre melhor. Esta terra não existe. Por isso sempre que se proporciona um tempo de férias superior aos três dias que compõem um fim-de-semana prolongado, convém dar um pulinho a uma das muitas exóticas paragens que temos mesmo aqui à mão de semear. O destino dos quatro dias da “ponte” entre o feriado do dia 8 e o fim-de-semana passado foi Olongapo, no arquipélago das Filipinas. Outra vez as Filipinas. Existe entre a maior parte da população de Macau mais ou menos informada uma noção completamente absurda de que as Filipinas “são um lugar perigoso”, e onde as probabilidades de se apanhar com um tiro vindo de direcção incerta. Com uma área três vezes maior que o território de Portugal continental e ilhas, e uma população de mais de 100 milhões, o país tem muito mais para oferecer do que a sua capital, Manila, que é o único lugar que não recomendo. A duas, três, ou se valer mesmo a pena cinco horas de carro daquela infernal cidade (conte com duas horas só para sair de Metro Manila, se chegar durante o dia) existem lugares paradisíacos, onde a festa não acaba na hora de se pagar a conta – divide-se tudo por seis, o câmbio da pataca – e até parece dado! Eu sei que é desagradável capitalizar os ganhos de uma economia desafogada como é a nossa às custas da miséria alheia, mas no fundo não é isso que TODA a gente faz? Falando do mais importante: Olongapo. A 174 km e 3 horas de automóvel de Manila encontramos a cidade de Olongapo – a sensação é a mesma de quando se conduz de Lisboa ao Algarve. O nome desta “cidade de 1ª classe, altamente urbanizada”, estatuto que adquiriu em 1983, deriva do tagalog “ulo ng apo”, ou “a cabeça do velho”, e tem origem numa velha lenda que não vou aqui contar por incluir decapitações e outras imagens pouco agradáveis. Durante os anos 60 e 70 foi considerada a “Sin city” das Filipinas, muito por culpa da base naval norte-americana estacionada na baía de Subic, que fez de Olongapo uma espécie de bordel privativo. A base foi encerrada em 1992, e as suas instalações aproveitadas para se criar a Subic Bay Freeport Zone (SBFZ), o “pulmão” da economia da cidade, que se transformou na 12ª mais populosa do país em pouco mais de uma década. Tirando a pequena nota histórica, o que procuramos quando vamos de férias em Dezembro para um lugar com sol e praia? Sopas e descanso, naturalmente, e em Olongapo a combinação das duas resulta na perfeição. Gostei de poder comer um “lugaw”, um primo filipino da canja, logo que cheguei na madrugada de quarta-feira, e numa loja quase ao lado do hotel. Apetece-lhe comer um bife da vazia às 5 da manhã? Em Olangapo pode-se comer isso e muito mais a qualquer uma das 24 horas do dia. Os “go-go bars” e os “gringos” pançudos e velhotes estavam lá, também, mas eram uma mera distracção no caminho da praia, ou de mais uma aventura pelo cosmopolita centro da cidade e os seus “shopping malls”. Olongapo estende-se por 8 km da costa de Subic, mesmo no sopé das montanhas de Zambales, de onde se ergue o Pinatubo, o maior vulcão do mundo ainda em actividade. Uma das suas erupções, em 1991, deixou Olongapo completamente coberta de cinza. Depois de tudo usufruir, a sensação com que se volta a Macau de um país como as Filipinas é a de um grande “e se…”. Riquíssima e diversificada em recursos naturais e humanos, minada até ao caroço pela corrupção, as Filipinas são o exemplo acabado de uma nação falhada, que tinha tudo para ombrear com o Japão e a Coreia no topo das economias asiáticas. O novo presidente do país, o controverso e inflamado Rodrigo Duterte, propõe resolver com pulso firme alguns dos maiores problemas com que o seu povo se debate. Enquanto isso vai criando outros muito piores que ficarão para resolver depois dele. Tem sido assim, nas Filipinas, desde o tempo em que os “yankees” faziam de Olongapo a sua “bitch”. Depois é só baralhar e voltar a dar.
Rui Flores VozesTábua rasa [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s declarações do presidente-eleito dos Estados Unidos da América (EUA) sobre a política de uma só China irritaram particularmente Pequim. As palavras usadas pelo porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros chinês são prova do grau de perplexidade. É fácil perceber porquê. Donald Trump acaba de questionar uma política norte-americana com mais de 37 anos. Trata-se de uma espécie de linha de força da política externa de Washington, que esteve na base da aproximação dos EUA à China, iniciada por Richard Nixon e os esforços diplomáticos de Henry Kissinger. Desde 1971, um ano antes da histórica visita do então Presidente norte-americano a Pequim, que todos os presidentes americanos têm defendido a política de uma só China. Embora só tenha sido articulada oficialmente em 1979, com a adopção pelo Congresso Norte-Americano da Lei das Relações com Taiwan (Taiwan Relations Act, TRA), a política tem sido quase integralmente respeitada e reafirmada nas declarações públicas dos governantes norte-americanos. A política estabelece que há apenas um governo legítimo que representa a China, o da República Popular da China. Foi nessa altura que os laços formais dos EUA com o governo nacionalista de Taipé foram cortados. No entanto, embora reconheça a política de uma só China, para Washington, o estatuto de Taiwan está por ser definido. Quanto a isso, a política norte-americana defende uma resolução pacífica. Como não se trata de um Estado soberano com o qual os Estados Unidos mantenham relações diplomáticas, a lei estabelece que tipo de relações podem ser estabelecidas com Taiwan. Ao longo destes 37 anos, isto tem permitido todo o tipo de trocas comerciais entre a ilha e os EUA, incluindo a venda de equipamento militar e de armas a Taipé. Aliás, a TRA é clara sobre o assunto: cabe ao congresso norte-americano determinar que tipo de assistência deve ser dada a Taiwan “para manter uma capacidade suficiente de autodefesa”. Trata-se pois de uma política dúbia. Ou, utilizando a linguagem que se encontra expressa, por exemplo, na recente Estratégia Global da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, trata-se de pragmatismo baseado nos princípios. Outros diriam que se trata de realismo puro e duro, dos interesses, das trocas comerciais. Mas isto é o que tem, de facto, marcado as relações entre Taipé e Washington. Ao nível das visitas formais de representantes norte-americanos a Taiwan, o seu número tem sido escasso, de facto. De acordo com o levantamento efectuado pelo Congressional Research Service, um centro de estudos que dá apoio aos congressistas norte-americanos na elaboração de legislação, entre 1979 e 2014 apenas seis representantes de Washington visitaram Taiwan. Entre 1979 e 1992 não há registo de qualquer missão a Taipé; as visitas começaram apenas em 1992 e entre 2000 e 2014 nenhum responsável político norte-americano veio até este lado do globo. Nenhum destes dirigentes é oriundo dos chamados sectores sensíveis da governação: negócios estrangeiros, defesa, política externa ou assuntos internos. São de áreas específicas da administração, como o comércio, transportes, pequenas e médias empresas ou ambiente. A política norte-americana quanto a uma só China tem sido na prática respeitada quase ao milímetro. O que não quer dizer que não haja vontade de a mudar. Apesar de ser uma pedra basilar das relações com Pequim, recordada esta semana pelo ministro dos Negócios Estrangeiros chinês (“A política ‘uma só China’ é a fundação do relacionamento saudável nas relações sino-americanas”, disse Wang Yi, na esperança que não venham a deteriorar-se), existe a intenção de mudar o conteúdo da TRA. Na tensão permanente que marca as relações entre o poder legislativo e o poder executivo nos EUA, há pouco mais de dois anos, um grupo de 29 membros da câmara de representantes escreveu a John Kerry sugerindo uma revisão da política que estava há mais de 20 anos sem ser alterada. As novas condições existentes em Taiwan, que havia passado por uma transformação estrutural, com a abertura democrática, permitiriam um outro tipo de relações com a ilha. Debalde. Apenas 21 Estados mantêm relações diplomáticas com Taiwan. Nações pequenas, fazendo parte, quase todas, do grupo de países em desenvolvimento económico, com as quais Taipé gasta 200 milhões de dólares norte-americanos em projectos de apoio ao desenvolvimento. É evidente que o conteúdo da política externa do Presidente Trump é ainda pouco claro. Mas as nomeações que tem feito pressagiam que tudo poderá vir a ser posto em causa. Por exemplo, no que diz respeito a Taiwan, Trump tem-se rodeado de pessoas, como um antigo embaixador de George W. Bush nas Nações Unidas, John Bolton, que advogam um outro tipo de relacionamento, menos próximo de Pequim. Donald Trump parece não querer deixar pedra sobre pedra no actual sistema internacional. Deu a entender isso na campanha eleitoral, quando insinuou uma retirada dos EUA da Europa, no âmbito da NATO, para desespero dos países que fazem fronteira com a Rússia; quando declarou que a Coreia do Sul e o Japão deveriam robustecer os seus orçamentos militares, mesmo recorrendo ao nuclear, para confrontarem a ameaça da Coreia do Norte; quando afirmou que com ele na Casa Branca a presença militar norte-americana seria reforçada no Mar do Sul da China. Estas primeiras declarações sobre política externa mostram que, de facto, a incerteza sobre o posicionamento dos EUA no mundo será a nota dos primeiros tempos da sua presidência. Uma espécie de caixa de pandora com consequências imprevisíveis.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesEvitemos a “quebra de palavra” [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]egundo noticiava no passado dia 5 o CHINAXIAOKANG.COM, um destacado membro do Governo de Hong Kong, o Secretário de Estado das Finanças, Zeng Junhua, ter-se-ia recusado a responder a algumas questões postas por escrito pelos deputados do Conselho Legislativo, Liang Guoxiong, Luo Xiaoli, Luo Guancong e Yao Songyan. A posição de Zeng estará relacionada com o processo administrativo movido pelo Governo de HK contra aqueles quatro deputados. Como é sabido, uma das funções do Conselho Legislativo é a monitorização do desempenho do Governo. Esta monitorização é principalmente feita através de interpelações orais. As interpelações escritas são usadas raramente, ao contrário do que acontece em Macau onde ambas as formas são frequentes. Como foi referido, a recusa de responder às interpelações está relacionada com o processo administrativo que o Governo moveu aos deputados. Há algumas semanas atrás, o Congresso Nacional Popular fez uma análise explicativa do artigo 104 da Lei Básica de Hong Kong. Nesta análise encontram-se indicações sobre a forma como o juramento de lealdade deve ser feito, o que valida um juramento, e em que circunstâncias pode ser aceite. De acordo com o espírito do documento, o Governo da RAEHK concluiu que os juramentos de lealdade destes quatro deputados eram inválidos e, desta forma, iniciou-se o processo administrativo. Se o Governo ganhar o processo os deputados serão afastados do Conselho Legislativo definitivamente. Dado que a legitimidade das suas funções está a ser posta em causa, parece razoável que Zeng tenha ignorado as questões que lhe colocaram. Mas a atitude do Secretário de Estado das Finanças foi severamente criticada no Conselho Legislativo. Os seus opositores não encontraram razões válidas para o seu comportamento. No entanto Zeng considerou que o silêncio, nestas circunstâncias, era a resposta adequada visto que as capacidades legais dos referidos deputados estão a ser postas em causa pelo Governo local. Zeng avançou que a omissão de resposta tinha sido aconselhada pelo Secretário de Estado da Justiça. Mas surpreendentemente, da parte da tarde, Zhang Bingliang, Secretário de Estado da Habitação e Transportes, manifestou a sua vontade de responder às questões dos quatro deputados, durante a reunião do sector da Habitação. Zhang afirmou que se a sua resposta não interferisse no processo administrativo, estaria disposto a dá-la. Esta mudança de posição oficial levou as pessoas a questionarem porque é que de manhã Zeng se tinha recusado a responder às perguntas. Estas posições contraditórias dos dois membros do Governo indiciam a forma como o Executivo está a lidar com este processo. O silêncio do Secretário de Estado das Finanças reafirma a convicção de que a capacidade legislativa dos deputados está a ser posta em causa. Responder-lhes seria reconhecer-lhes essa capacidade e desvalorizar o processo em curso. Para justificar esta posição Zeng alegou ter recebido “conselho legal para se manter em silêncio”. Mas, perante as críticas, o Governo da RAEHK reviu a sua posição e, na pessoa do Secretário de Estado da Habitação e Transportes, surge a vontade de responder “se a sua resposta não interferir no processo administrativo”. Desta vez o que se salienta é a não interferência no processo administrativo. E será que esta argumentação vai ser aceite em Tribunal? Provavelmente sim. No Direito Civil, existe uma figura legal chamada “Quebra de Palavra”, que basicamente obriga ao cumprimento da palavra dada. Se houver “quebra de palavra”, a parte lesada pode pedir uma indemnização. As preocupações do Governo de Hong Kong são compreensíveis. Se o Governo responder aos deputados, o Tribunal pode ser levado a crer que as suas capacidades legais estão a ser reconhecidas. Parece ser uma posição prudente. Mas quando muda de postura e afirma desejar responder “desde que não haja interferência no processo administrativo”, afigura-se-nos que está a agir de forma mais adequada, garantindo a função supervisora dos deputados e ao mesmo tempo não descurando o processo administrativo em curso. Do ponto de vista legal o silêncio é a melhor forma de evitar a quebra de palavra, mas do ponto de vista social não cai bem. O silêncio do Governo perante as questões dos deputados pode ser encarado como falta de respeito pelo Conselho. Neste caso, o equilíbrio entre a lei e o interesse público terá de ser remetido para um Conselheiro Jurídico.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA Psicanálise [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo teorizado complexifica-se na sua diversidade ideológica, e reduz-se a uma possível doutrina. Estas ideias e experiências do sexo bebem um pouco daquilo que sabemos e daquilo que experimentamos, que depois se misturam em discursos ricos e especializados sobre o tema (isto para dizer que no que toca a sexo, especialmente, a ideologia não é o único preditor para a forma de como ela é sentida e imaginada). A psicanálise trouxe uma perspectiva do sexo a domínio público, e só por isso (independentemente do seu conteúdo) foi recebido com algum choque/fascínio – ou recusado de todo. A este discurso estavam associadas não só perspectivas do sexo mas perspectivas psicoterapêuticas que em muito contribuíram para a forma como percebemos a doença mental hoje em dia, e o sexo tornou-se conceito chave da psique humana. Com a grande praga histérica do séc. XIX, médicos tentavam perceber o que é se passava com a mulheres, que entravam em grandes estados de ansiedade, irritabilidade e tendências ‘promíscuas’. Até então julgavam que elas padecessem de um mal físico – o seu útero estaria fora de controlo. Não é por acaso que histeria vem do termo grego hiteros, que quer dizer útero. Desde a antiguidade clássica que se entendia a explosão emocional feminina como uma desconexão do útero e das suas necessidades, ou seja, o útero era uma entidade própria e potencialmente problemática, e por isso, o foco do problema. Um tratamento possível (mas extremo) era uma histeroctomia. Mas Freud veio mudar o paradigma ao reforçar a condição psíquica/mental do conflito sexual, sendo esta a principal razão para a manifestação histérica. A cabeça é que devia ser tratada, não o órgão reprodutor per se. Com o desenvolvimento de terapias do foro ‘psico’, assim fundou a psicanálise, que incluía uma teoria do desenvolvimento humano que girava em torno da sexualidade. E assim um neurologista se tornou psicanalista. Já se passaram mais de 100 anos desde que estas ideias psicanalíticas vieram a público, e o imaginário sexual que fora descrito continua entre nós, presente e activo. Na gíria popular ouvem-se conceitos de especificidade psicanalítica: fala-se de recalcamentos, líbido, mecanismos de defesa, ego, inconsciente, complexo de Édipo. Mas sempre me perguntei sobre qual seria a ‘lição’ retirada desta teorização para forma como o sexo (e o género) é entendido hoje em dia. As teorias feministas têm a dizer uma ou outra coisa, já que a linguagem psicanalítica sobre as mulheres veio atrasar tentativas de emancipação ao longo da história. Problemas: (1) define um estado de inveja do pénis como parte do desenvolvimento psicossexual feminino (2) entende que a satisfação sexual é alcançada através da penetração vaginal, única e simplesmente (3) define a condição feminina através da maternidade (4) considera que tudo fora do comportamento ‘normal’ feminino da época, é automaticamente problematizado. Entre outros. Claro que tudo isto acontece como uma pescadinha de rabo na boca. As ideias psicanalíticas vieram reforçar ideologias heteronormativas, e as ideias (expectativas) heteronormativas da sociedade em geral reforçaram teorias e perspectivas académicas. Não sou especialista em psicanálise para poder espremer outras considerações acerca das consequências reais da psicanálise. Surpreende-me, contudo, que seja uma perspectiva psicológica muito popular na cultura pop, encontramo-la nos filmes, nas artes plásticas, na música ou na literatura. Dá que pensar o que a psicanálise poderá ainda dizer sobre nós, como sociedade, e da nossa forma de pensar o sexo. Talvez somente mergulhando nos meandros simbólicos e inconscientes do sexo contemporâneo poderemos ver uma inveja do pénis ainda – ou o medo da castração masculina. Talvez ainda possamos assistir ao desejo do filho de matar o pai por ciúmes da mãe, ou dos ciúmes da filha, chamado complexo de Electra. Pode ser que nos recantos do nosso inconsciente ainda faça sentido que o sexo vaginal de penetração seja o único tipo de sexo que nos satisfaz e que nos dá sanidade. Talvez nada disto faça sentido e a sexualidade permanece como sempre foi, um mistério.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA vida pública americana “An evil group of men has always wanted to rule the entire world. In the past conquest has failed to achieve this, due to the resulting outrage and awareness of the enemy. In our present time evil groups are trying a subtle but effective way to rule. This is to gradually infiltrate and delude the masses into accepting their ideas.” “True Conspiracies” – Richard Hole [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] maioria das novas complexidades globais reflectem conflitos de longa data sobre recursos naturais, interesses económicos ou antigas rivalidades políticas. Um mundo entrelaçado parece ter um maior número e intensidade de disputas sobre práticas e relações comerciais ou políticas nacionais, o que desestabiliza os laços entre países e gera conflitos sociais, económicos e políticos. No entanto, parte dessa agitação reflecte novas fontes de imprevisibilidade. Por exemplo, existem estados falidos ou áreas desgovernadas, em muitos locais, ao redor do mundo. Uma série de locais, especialmente em África e no Médio Oriente, têm governos sem autoridade e incapazes de limitar o comportamento agressivo. As redes criminosas e organizações informais ganharam poder e são capazes de controlar ruas, bairros ou até sectores inteiros de países, afectando tanto as relações internacionais, quanto a política interna, e testam os limites do comportamento convencional. Os conflitos religiosos entraram numa fase sinistra, igualmente, pois, deu-se o surgimento do fundamentalismo, em cada uma das três religiões monoteístas do mundo, judaísmo, islamismo e cristianismo, complicando a geopolítica. É de concordar com Michael Walzer, quando afirma no seu livro “The Paradox of Liberation: Secular Revolutions and Religious Counterrevolutions” que uma batalha épica está a ocorrer entre as forças da modernidade e da secularização versus aqueles que acreditam que essas forças são absolutamente erradas. O conflito religioso assume uma variedade de formas em locais diferentes, em que as divergências sobre o papel das mulheres, a homossexualidade e a permissividade cultural permeiam muitas tensões regionais e globais. A tecnologia digital complicou a política global, acelerando as comunicações, e alterando os padrões tradicionais de interacção social e económica. Os avanços nas comunicações tornam mais fácil do que nunca o trabalho dos descontentes pela organização. O que costumava serem disputas locais, podem vir a ser virais e espalharem-se rapidamente pelo mundo, através de meios de comunicação sociais e tecnologia digital. Os canais de comunicação internacionais puseram pessoas de origens e interesses diversos, em contacto virtual, notavelmente íntimo, uns com os outros, em uma era de globalização. As diferenças que anteriormente poderiam ser encobertas, ou até mesmo ignoradas, agora entram no espaço pessoal de cada indivíduo, e forçam-no a pensar sobre desastres naturais, conflitos políticos ou turbulências sociais a milhares de quilómetros de distância. O resultado é muitas vezes um aumento da ansiedade, sentimentos doentios e tensões globais, não sendo apenas os assuntos globais que se tornaram incertos, pois da mesma forma que as situações têm estado em mudança contínua na cena internacional, acontecimentos surpreendentes têm manchado a política doméstica dos Estados Unidos, durante as duas últimas décadas, incluindo a falhada remoção do presidente, Bill Clinton, os ataques terroristas de 9 de Setembro de 2001, a “Grande Recessão”, a eleição de um presidente afro-americano, Barack Obama, uma mulher e um socialista democrático candidatos a presidente e vice-presidente, Hillary Clinton e Bernie Sanders, respectivamente, um bilionário populista que desejou ser eleito presidente, Donald Trump, e conseguiu no banalizado sistema eleitoral americano, com menos de mais de dois milhões votos populares que a candidata derrotada, e a morte misteriosa de um juiz, Antonin Scalia, em um Supremo Tribunal fortemente dividido. Esses eventos ilustram quanta turbulência política tem havido nos últimos anos nos Estados Unidos. No período pós – Segunda Guerra Mundial, muitos observadores encararam o progresso, como a melhor descrição da política americana. É a perspectiva de que as mudanças em pequena escala e a evolução gradual representam a regra, ao invés da revolução ou desenvolvimento em grande escala, e como essa ideia parecia descrever os processos políticos reais e as virtudes das mudanças em pequena escala, os analistas consideraram-na o paradigma dominante dos últimos cinquenta anos. A mudança ocorre lentamente porque muitos factores sociais, políticos e institucionais, limitam a transformação em larga escala. Durante duas décadas a política americana tornou-se mais exagerada e polarizada e, como resultado, as soluções propostas tornaram-se mais radicais, porque a negociação e o compromisso não estão na moda. Algumas das realidades que desestabilizaram a ordem internacional, e ampliaram o conjunto de possíveis acções, também são aparentes no seio da América, sendo de registar, que grandes forças abalaram os fundamentos sociais e políticos da sociedade civil e afectaram um amplo conjunto de áreas. Os desenvolvimentos políticos tal como a revolução Reagan em 1980 colocaram o país em um curso mais conservador em termos de política. As eleições de 1994 acentuaram essa tendência, e puseram os republicanos como responsáveis pela Câmara dos Deputados, pela primeira vez em quarenta anos. Após esse resultado, o Partido Republicano, durante dezoito dos vinte e dois anos seguintes, usou esse poder para tentar reduzir a dimensão do governo e os programas de bem-estar social. A “Grande Recessão” derrubou o controlo exercido pelo Partido Republicano durante algum tempo, renascendo com inesperada e inusitada força, propulsionada pela vitória de Donald Trump. Os Estados Unidos elegeram o seu primeiro presidente afro-americano em 2008 e deram-lhe uma grande maioria Democrata na Câmara dos Deputados e no Senado, que usou para promulgar leis abrangentes, que estimularam a economia, regularam grandes instituições financeiras e transformaram os cuidados de saúde americanos. O sucesso do Presidente Obama gerou uma reacção intensa, permitindo que os republicanos voltassem a tomar o controlo do Congresso, e bloqueassem quase todas as suas iniciativas subsequentes. Tais tipos de balanços generalizados no poder político, que levam a dramáticas iniciativas políticas, passaram a ser comuns. A formulação de políticas abrangentes em grandes organizações está muito em voga durante a presente era. Os últimos anos foram marcados por grandes mudanças na política fiscal, regulação financeira, alterações climáticas, traduzido em um acordo histórico com a China sobre a redução das emissões de carbono, e um forte aumento nas taxas de imposto de rendimentos aos mais ricos, como parte das negociações “penhasco fiscal”. Os esforços legislativos para adoptar uma reforma migratória abrangente falharam, devido a um impasse político-partidário, mas o presidente Obama respondeu, implementando grandes mudanças, através de uma ordem executiva, embora tenha sido desafiado em tribunal, e como é uma situação de alcance global, uma variedade de forças permite mudanças internas, de base ampla. Há um sentimento largamente compartilhado de que as todas as situações estão a ser debatidas nos Estados Unidos, criando um apetite, em todo o espectro político, para acções mais substanciais. Os políticos de esquerda e direita defenderam propostas tão amplamente divergentes, quanto a proibição dos muçulmanos de entrarem nos Estados Unidos, devido à preocupação com o terrorismo, privatizando a Previdência Social, abolindo a Receita Federal, reestruturando ou até mesmo abandonando a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), afastamento dos acordos de comércio internacional e fornecimento de ensino gratuito a todos os estudantes. A natureza das coligações partidárias durante grande parte da história americana desencorajou o radicalismo e promoveu negociações e compromissos. Os modelos antigos falavam sobre o eleitor mediano, como o principal objecto da competição partidária. A ideia era de que a opinião pública se assemelhava a uma curva em forma de sino com a maioria das pessoas no centro político, e minorias à esquerda e à direita, respectivamente, pelo que em tal situação, a estratégia política vencedora era clara. Os candidatos devem visar o centro, propor medidas moderadas que pareçam convenientes, e comprometerem-se com a outra parte a governar e aprovar legislação. Tal processo abrandou o ritmo da política, e tornou o incrementalismo uma descrição precisa da mudança de política. Nos últimos anos, porém, a luta por eleitores centristas deu lugar, a jogar, para a base extrema em ambas as partes. A baixa participação eleitoral e eleitorados polarizados faz os candidatos determinarem que muitas vezes, faz mais sentido, mobilizar eleitores de esquerda ou de direita do que jogar ao centro. Muitos candidatos e activistas partidários preferem apelos que gerem excitação, ao invés de propostas complexas ou matizadas, que reafirmam o estado existente. Além disso, os doadores, que se tornaram cada vez mais vitais para o processo político, por causa dos enormes custos das campanhas, muitas vezes, têm pontos de vista mais extremos do que o eleitorado como um todo, e assim ajudam a empurrar os candidatos para os limites mais extremos. A percentagem de democratas e republicanos na Câmara dos Deputados que tinham registos de voto centrista entre 1951 e 2013, num estudo da Universidade de Harvard, demonstrou que no início desse período, quase 60 por cento dos representantes em cada partido, tendiam a votar em posições moderadas. Por volta de 2013, porém, o número de democratas moderados caiu para 13 por cento, e dentro do Partido Republicano quase desapareceram completamente. No Congresso e em muitas legislaturas estaduais, aqueles que estão dispostos a cruzar as linhas partidárias e apoiar compromissos bipartidários são vistos como traidores à causa. É especialmente o caso entre os republicanos, desde o surgimento do Tea Party em 2010. Os conservadores indignaram-se com o rápido crescimento da dívida pública e o aumento da despesa pública, entre outros males conhecidos, organizados para retomar o futuro e retornar aos valores do passado. Mas o colapso da moderação, também ocorreu no lado democrata, como foi demonstrado pelo apoio surpreendentemente forte, dado ao socialista Bernie Sanders, no processo de nomeação de 2016. O resultado em ambos os partidos, foi de que os políticos de muitas listras, apresentaram propostas para uma mudança radical e resistiram fortemente às propostas do lado oposto. Muitos legisladores querem pensar em grande e produzir mudanças dramáticas na política, encorajados pelos eleitores aborrecidos com a diminuição da sua fortuna ou motivados pelas suas visões negativas do governo. O estudo da Universidade de Harvard, mostrou existir uma ligação forte entre a ruptura económica e o extremismo político. Um exame dos padrões de votação no Congresso e as perdas de postos de trabalho, demonstra que as áreas mais atingidas pelos choques comerciais, eram muito mais propensas a moverem-se politicamente para a extrema-direita ou para a extrema-esquerda. As mudanças nos meios de comunicação de notícias promoveram também mudanças principais na esfera política, pois, com poucas excepções, os meios de comunicação fragmentaram-se em câmaras de eco concorrentes, que dizem às pessoas o que querem ouvir, com base em pesquisas de mercado e não em valores jornalísticos sérios. Além disso, muitos indivíduos, especialmente os jovens, não dependem da comunicação social, para a sua informação diária. Em vez disso, recebem notícias, ou o que percebem como notícias, através de redes sociais e plataformas digitais. O resultado é um sistema de media que, com demasiada frequência, afasta as pessoas em vez de as unir. O discurso público acaba por se basear mais nas opiniões do que nos factos, e há pouco acordo sobre os desafios que a América enfrenta.
Isabel Castro VozesPernas curtas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é a primeira vez que escrevo sobre o assunto, mas aqui vai, de novo: prefiro a realidade, mesmo sabendo que, muitas vezes, cheira mal e de imediato faz pior, do que a suave mentira, feita de delicadas penas mas com pernas demasiado curtas para chegar, sequer, às Portas do Cerco. A realidade é chata, incomoda, mas é ela que nos dá chão; a mentira, agradável ao toque, é sinónimo de queda, de doloroso trambolhão. A culpa é das pernas curtas. Num mundo ideal, não nos andávamos aí a enganar uns aos outros. Dizíamos as coisas e pronto: porque seria esse o ponto de partida da nossa educação, ninguém ficaria particularmente chocado com a verdade. Mas crescemos todos com aquela mania de que temos de ser jeitosinhos, mansinhos, queridinhos. A menina não diga isso, a menina não faça aquilo. A menina esteja aí quietinha nesse cantinho, não chateie, não fale, não respire. Esta coisa da estúpida verdade e da amorosa mentira não é, sequer, uma questão cultural. Há coisas em que somos todos inacreditavelmente parecidos. É um problema mais ou menos universal que encontra tradução plena na política: aquele momento em que nós, gente, nos vemos com todo o poder para mentir. Raimundo do Rosário voltou a Macau e não embarcou na retórica do costume: começou por explicar que não é político, apesar de ter assumido um cargo político. Avisou que fica por um mandato, que é mais ou menos a mesma coisa que dizer que não está para isto e que não está interessado em mais. Ao longo destes dois anos de mandato, tem dito várias vezes que não faz milagres, que há problemas, que não se resolvem os pecados por actos e omissões do passado de um dia para o outro, e que lhe falta gente para trabalhar. O secretário para os Transportes e Obras Públicas não é homem de figuras de estilo: diz e está dito. Esta semana explicou, na Assembleia Legislativa, que não é Deus. A afirmação isolada do contexto seria, no mínimo, estranha. Sucede que os seus interlocutores são estranhos. Ao contrário de Raimundo do Rosário, gostam de metáforas e de dizeres populares na retórica política. Mesmo os mais agrestes são macios, levezinhos, preferem a piedosa mentira à verdade que faz cócegas. Como não sabem lidar com o discurso directo, como não encaixam as respostas de quem não lhes promete um vamos-ver, vamos-fazer-um-estudo, vamos-analisar-a-sua-sugestão-senhor-deputado, tolhem-se. Mas o recolhimento não é silencioso nem reflexivo: é altamente dotado de imaginação. O metro, essa ficção científica que Raimundo do Rosário herdou: depois da sugestão da substituição do sistema de metro ligeiro na península por um monocarril, todas as ideias são possíveis. Com um jeitinho e não muita imaginação, alguém irá propor carruagens decoradas com a Hello Kitty e um percurso especial até ao Canídromo, com um espectáculo assegurado por animais amestrados a bordo. Todas as sugestões são possíveis e toda a gente quer inventar alternativas, soluções mágicas para uma questão que só o tempo pode resolver. O metro, esse ovo de Colombo à la Macau: vivi no Porto na altura em que estava a ser feito o metro da cidade. O Porto é uma cidade muito muito antiga, muito muito acidentada, com ruas estreitas e outras menos estreitas, com pessoas que concordam com certas coisas e com pessoas que concordam com outras e com pessoas que não concordam com coisa alguma. O Porto decidiu fazer um metro, as obras não foram fáceis, eu passava horas dentro de um carro para fazer um percurso que, antes do início do projecto, me dava dez minutos ao volante. Saí do Porto farta de obras de um metro em que não cheguei a andar enquanto lá vivi e, poucos meses depois, estava a ouvir um governante a falar do metro que queria fazer em Macau. Catorze anos depois e ainda sem metro, há quem ache que pode inventar uma linha melhor, fazer um metro mais giro, descobrir a solução para todos os problemas. São os políticos das almofadas, que nos querem felizes e a andar ternamente ao engano. Depois, há um secretário que diz que não sabe, não promete e não é Deus. Para que não haja ilusões. A realidade é desagradável mas as mentiras, essas, são mesmo chatas e cheiram muito, mas muito pior.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesAs consequências do Motim 1-2-3 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] debate em torno das questões das diferentes áreas de governação, que se prolongou por vários dias, está finalmente concluído. Para além das sessões de interpelação oral, todo este processo assemelhou-se mais a uma conferência de imprensa do que outra coisa. Com esta sessão foram encerrados os debates da 5ª Assembleia Legislativa. Mas é possível que em 2017 venhamos a ouvir o mesmo grupo de deputados na Assembleia, porque a “Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau”, ainda em revisão, dificilmente poderá deter a corrupção eleitoral. Os ricos e poderosos continuam a desfrutar de absoluta vantagem no processo eleitoral. As provisões recentemente introduzidas na “Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau” vêm reforçar o controlo da liberdade de expressão, o que evidentemente coloca em desvantagem as novas gerações da oposição. No entanto, estas novas disposições não foram contestadas por nenhuma das bancadas do hemiciclo. Há alguns dias atrás fui com alguns membros da Associação de Novo Macau à Assembleia entregar um manifesto de objecção às novas adendas, mais especificamente no que diz respeito à alínea em que se diz que “os candidatos à Assembleia Legislativa devem declarar o seu apoio à Lei Básica e demonstrar a sua lealdade à Região Administrativa Especial”. A nossa acção destinou-se a chamar a atenção do público para a crescente redução de liberdades. Embora sabendo que será muito difícil que o Governo venha a retirar estas adendas, acreditamos que é necessário ter a coragem de lutar contra as “impossibilidades” e que essa deve ser a atitude de todos os combatentes pela democracia. No fundo é pôr em acção as palavras do famoso filósofo chinês Hu Shih (1891-1962), “Antes morrer por falar do que viver em silêncio”. O que está a acontecer actualmente em Macau está directamente relacionado com os incidentes do “Motim 1-2-3”. Quando estes episódios terminaram, há 50 anos atrás, Macau tornou-se um local onde só passaram a ter lugar na política pessoas com um certo tipo de pensamento. A grande centralização do poder e a monopolização da informação impediram a transformação da estrutura social. A RAEM queixa-se frequentemente de falta quadros qualificados. Mas a razão para que isso suceda prende-se com o facto de muita gente ser excluída das posições de decisão e portanto haver pouco por onde escolher. Para assinalar o 50º aniversário do “Motim 1-2-3”, diversas organizações realizaram em conjunto três eventos nos dias 3 e 4 de Dezembro. Os meios de comunicação social chineses deram pouco ou nenhum destaque aos acontecimentos. No entanto perguntamos o que levará o “campo patriótico” a evitar conotações com o “Motim 1-2-3”? Será certamente o carácter político do “Motim 1-2-3”! Alguns dos intervenientes que falaram nestes eventos comemorativos pensavam que esta revolta não tinha sido encorajada pela Revolução Cultural. Mas é inegável que se não fosse a movimentação decorrente da Revolução Cultural, o conflito despoletado pela construção da escola na Taipa não se teria transformado numa luta de grandes dimensões. Claro que quando grupos de manifestantes empunhando o livrinho de “Citações do Presidente Mao Tsé Tung” se dirigiram ao Palácio do Governador, tornou-se inevitável que os protestos se tivessem transformado em confrontos. Antes de 1966 Macau era um local muito agradável para se estar no mês de Outubro. No dia 1 tínhamos as comemorações do Dia Nacional da China. Logo a seguir, no dia 5, comemorava-se a Implantação da República Portuguesa. Dia 10, eram as comemorações do Dia Nacional da República da China (Taiwan). Salvas de artilharia faziam-se ouvir e a cidade ornamentava-se de bandeiras patrióticas. Mas depois do “Motim 1-2-3” de 1966, as forças do Kuomintang (Partido Nacionalista) foram retiradas de Macau e a influência da Igreja Católica diminuiu. Aos poucos, Macau foi ficando sob a influência de frentes políticas que utilizavam nas suas manobras slogans como “amor à Pátria, amor a Macau”. Após o regresso de Macau à soberania chinesa, em 1999, estas frentes tornaram-se o reflexo do próprio Governo de Macau. Uma sociedade deve ser um fórum de troca e debate de diferentes pontos de vista. Quando as pessoas vivem em locais onde não devem fazer análises nem ter um pensamento independente, acabam por ficar semelhantes a robots. A História não se repete! As consequências do “Motim 1-2-3” fizeram-se sentir e os macaenses transformaram-se em actores secundários na cena política. Quando numa sociedade não existe pluralismo de pensamento não pode existir diversidade de desenvolvimento. Para mitigar todos estes factores negativos, podemos encarar as eleições do próximo ano como um ponto de viragem. Mas isso vai depender dos eleitores e de haver ou não vontade para exigir reformas radicais.
Mário Duarte VozesA Propósito de Barragens de Maré [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o ano de 1953, a Holanda foi fustigada por inundações de uma magnitude de que não havia memória, que dizimou vidas e bens a que nenhuma nação poderia ficar indiferente. Da memória nacional fazem parte documentários desses acontecimentos e também o discurso de uma rainha emocionada, que prometeu a toda a nação que o mesmo nunca mais voltaria a acontecer. No parlamento holandês aprovaram-se seguidamente moções que visavam canalizar grande parte dos recursos nacionais para essa prioridade. Disso resultou uma campanha de iniciativas chamada as Obras do Delta, que engloba uma extensão de lagos interiores e de canais, complexamente interligados, que resultam principalmente de três rios internacionais que desaguam na Holanda. Obras que se traduziram no alteamento de diques e na construção de robustas barragens marítimas. Ou seja traduziram-se essencialmente em infra-estruturas. No decorrer dos anos a Holanda ganhou tal confiança nas suas protecções que, presentemente, a maior parte dos recursos económicos nacionais reside e concentra-se em zonas que seriam necessariamente fustigadas por inundações, caso essas protecções não existissem. Ou seja, zonas que presentemente são de alta vulnerabilidade e de alta exposição, face aos recursos que aí se acumulam e ao número das pessoas que aí residem. Por outro lado, e à medida que essa confiança aumentava, as novas gerações perderam capacidades, nomeadamente a resiliência humana, i.e. a capacidade dos humanos conviverem com o imprevisto, o transtorno, a perturbação do quotidiano e de serem capazes de se manterem funcionais nessas situações. Em verdade, o estilo da vida que tendencialmente se divulga nos media, e que para muitos serve de referência no quadro das suas aspirações, é de que tudo está assegurado, que nada de imprevisto poderá acontecer e, se por acaso acontecer, está coberto pelo Estado ou por seguros, ou a culpa é necessariamente de alguém. Foram os primeiros avisos do aquecimento global e da consequente subida do nível dos mares e oceanos que na Holanda lançou o alarme sobre esse cenário de segurança. Ou seja, a possibilidade de os parâmetros que definiram as defesas perfeitas da Holanda já poderem ser outros e as mesmas já não serem mais seguras. Por outras palavras, a possibilidade de o clima e as suas manifestações não serem estacionários, i.e. de poderem variar em parâmetros diferentes dos estabelecidos estatisticamente. Ou seja, um verdadeiro ovo de Colombo para quem conheça os ciclos da terra ou admita que a dimensão da humanidade não se resume aos nossos dias. Mas também uma possibilidade que inspirou uma mudança radical de estratégia que passa também pela recuperação das qualidades de resiliência da população em conviver com a perturbação, nomeadamente conviver com cheias. Admitiu-se que o cenário de guerra ao clima poderia não ser a solução mais ajustada, senão mesmo derradeiramente inglória, como inglório poderia ser altear diques ou construir barragens cada vez mais fortes, eternamente ou permanentemente, para assegurar um quotidiano imperturbável. Mas a mudança desta vez não poderia ser centralizada no Estado, mas necessariamente disseminada. Disso resultou a adopção de novas rotinas. Os espaços térreos dos edifícios não guardam bens valiosos nem albergam actividades que não podem ser perturbadas, por exemplo, postos de polícia, cuidados médicos ou centros de operação de emergências. Nesses espaços os materiais não se danificam com a água, os circuitos eléctricos correm pelo menos a 1m de altura do chão e as soleiras das casas permitem montar dispositivos estanques para que a água não entre. Sacos de areia voltaram a ser um utensílio de casa. As caves passaram a ser construídas como verdadeiros submarinos, com portas estanques que permitem isolar sectores em caso de inundação, dispondo de uma escapatória própria. Algumas passaram a ser bacias de retenção, para que possam inundar antes de outros espaços inundarem, permitindo um intervalo de tempo para resgate ou para escapamento. Circulações de emergência elevadas servem de escapatória em caso de cheia, da mesma maneira que caminhos de evacuação nos edifícios, conduzem pessoas a pontos de refúgio em caso de incêndio. Marcam-se níveis nas paredes dos edifícios que alertam a população do nível a que a água pode chegar e ninguém leva a mal que alguém entre de galochas num restaurante elegante, para um almoço de negócios, num dia de cheia. Mas alteração de circunstâncias que determinou também novas estratégia de soluções infra-estruturais. As inundações de zonas urbanas junto a rios eram na maior parte das vezes consequência de espaços naturais de inundação terem sido suprimidos aos rios. Disso resultou a necessidades de disponibilizar novos espaços de inundação, não necessariamente os mesmos originais, para que se pudesse guardar temporariamente a água das cheias, e se poupasse as cidades, programa a que se chamou “Espaço para os Rios”. Já no caso das cheias dos estuários, por resultarem de condições de maré que se resolvem na maior parte dos casos em meio dia, a possibilidade de guardar temporariamente essa água, por algumas horas, permite adiar a inundação. Nos estuários, uma inundação adiada é, na maior parte das vezes, uma inundação evitada. No que se prende com as zonas costeiras o risco crescente resulta da regularização dos rios que já não transportam a areia necessária, que o mar distribui ao longo da costa e o vento possa construir dunas. Disso resultou a necessidade de compensar o fornecimento de areia à costa, em locais identificados por adequadas para que, a partir daí, as coerentes marítimas distribuam essa areia ao longo da costa e se formem dunas. Programa a que se chamou “trabalhar com a natureza”. Ou seja, intervenções que tendo características infra-estruturais, não têm o impacte, nem o carácter de guerra à natureza, antes de colaboração com processos naturais que hoje se conhecem melhor. Mas mudanças de estados de coisas, no que se prende com a gestão territorial, também não são estranhas à RAEM. Em verdade, no passado, a construção de aterros por enchimento, em vez de construções palafitas, passou a ser vista como preferível porque estreitavam os canais e isso aumentava a velocidade do caudal e a limpeza dos fundos. Ou seja, a possibilidade de dragagens menos frequentes para assegurar a navegabilidade desses canais. Mas a questão da inundação natural do delta pelo chamado “prisma de maré”, ou seja, o volume de água salgada que entra nos rios em cada maré alta, não era necessariamente constrangimento porque, a montante do Rio das Pérolas, havia espaço suficiente para essa água salgada, ou já salobra, se espraiar. Pese algum prejuízo para culturas, ou para os pontos de captação de água potável. Mas foi o grande surto de expansão urbana da província do Guandong o ponto de rotura para as zonas mais baixas da RAEM, quando esses ajustamentos naturais deixaram de ser possíveis. Todos os terrenos de inundação, que permitiam ao “prisma de maré” se espraiar no delta, foram ocupados com aterros. Esses aterros foram construídos a cotas mais elevadas para que o volume de água se acomodasse numa largura de canal mais estreita. Naturalmente, toda a vulnerabilidade se transferiu para os aterros mais antigos, por esses serem mais baixos, ou seja o Porto Interior. Por isso, a necessidade de barragens de maré no Delta, que sem dúvida constituirá entrave para qualquer ressurgimento desejável de tráfego fluvial, é infra-estrutura que pode ser necessária, mas que não deve servir para que se possa continuar fazer mais do mesmo em âmbito de gestão territorial e do meio hídrico, ou que dispense integração com outras medidas urgentes. Na falta de outras soluções, as barragens de maré no Delta são mera declaração de guerra à ecologia, tendo por pressuposto que a magnitude das munições do oponente (a maré), no futuro, será a mesma e só essa. Qualquer cooperação regional não será sensata se se nortear apenas por soluções de infra-estruturas, pondo de lado a coordenação territorial conjunta da bacia hidrográfica, das áreas, dos níveis e das modalidades de aterros a construir. Nomeadamente, aterros feitos por enchimento, em vez de estruturas palafitas, que só contribuem para a ocupação e estrangulamento do Delta, onde se concentra tanto a água da maré de jusante, com a água dos degelos de primavera a montante, por vezes as duas em simultâneo. Aterros que fazem uso de volumes exorbitantes de areia, cada vez mais dispendiosa, e que muitas vezes faz falta nos sítios de onde é retirada.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]er sexo não qualifica ninguém a uma licenciatura, muito menos um mestrado em sexo. A aprendizagem é perpétua. Como anda o pessoal a aprender, re-aprender e a explorar o sexo? Pornografia, sabemos nós bem, não é grande demonstradora da realidade sexual. Nem os filmes mais populares são grandes exemplos de como relacionamentos se desenvolvem. Permitam-me uns devaneios sobre a questão sexual mundial, e de quem gostaria de viver num mundo melhor. Poderei alertar-vos, contudo, que meu pessimismo é lixado para estar com ansiedades adolescentes de mudança. A ansiedade optimista não anda a marcar pontos ultimamente, está bastante fraquinha. Li algures que quanto mais sexo tiveres, mais próximo de Deus te poderás sentir. Se é verdade ou não, não me interessa, mas achei uma perspectiva interessante. Eu acho que o sexo pode ter algo de divino, sim. Porque é pessoal e colectivo ao mesmo tempo, há cuidado, amor e protecção connosco próprios e com os outros, e o poder de estar num momento preso, sem grande percepção de tempo ou espaço. Poder estar ali. E se não houver esta ligação de imediato, há uma procura, uma aprendizagem colectiva daquilo que nos faz bem e nos deixa confortáveis. De muito verdade que essa é a nossa dificuldade contemporânea, aprender a gostar de nós próprios e dos outros de uma forma tranquila (se quisermos extrapolar para todas as áreas da nossa vida). No man is an island! Já dizia o outro. E de facto, por mais que tentemos ser eremitas, há uma natural tendência em querer ter relações humanas de todo o tipo. Não é por acaso que o maior mal contemporâneo é a solidão. Sexo, que é essa experiência tão repleta de mindfulness, focada no acto sensorial, nem sempre é percebida como esta terapia ‘divina’ entre o self e o outro. Daí que me pergunto continuamente, não deveriam haver mais workshops, tertúlias, conversas, programas de televisão, que pudessem tratar de sexo como ele deve ser tratado, como o sexo é? Quem diria que o sexo, o prazer, a procriação ou o nascimento fossem tópicos tão polémicos que não permitissem uma conversa franca e segura sobre aquilo que nos preocupa. E assim cair em práticas atrozes que magoam, afectam a saúde mental e perpetuam desigualdades sociais. O desespero é imenso quando vemos o crescimento de práticas conservadoras de protecção que só escondem a informação que deveria estar ao acesso de todos, independentemente da idade, orientação sexual, religião ou etnia. O dia 1 de Dezembro foi o dia Mundial da Luta contra a Sida. Esta vírus de taxa de transmissão muito ligada à prática sexual (apesar de haver outras formas de contagio) põe o sexo no centro das atenções, apesar de não ser um problema estritamente sexual. É um problema social, de classes, de desigualdades o acesso a cuidados médicos. Isto é só um exemplo de como às vezes falar sobre sexo é na verdade falar em muitas outras coisas que lhe estão intimamente ligadas. Não é novidade para ninguém que o mundo é de uma complexidade incompreensiva. O véu de vergonha que o sexo leva por aí, garanto-vos eu, só atrapalha quando queremos dar os nomes certos às coisas certas. Por isso é complicado explicar uma sexualidade segura sem risco de infecções, quando se tenta evitar falar sobre sexo por completo. Tantas coisas que deveriam ser mudadas que não dependem de mais ninguém do que de nós próprios. Relacionamentos abusivos, discriminação de género, mutilação genital, agressão sexual, não são problemas que estão longe de nosso alcance. No que toca a sexo, não há grandes diferenças entre o mundo dito ‘desenvolvido’ e ‘por desenvolver’. Não se iludam: as mulheres não têm direitos ‘suficientes’, nós não somos abertos o ‘suficiente’, não se fala sobre sexo o ‘suficiente’. No que toca ao sexo e aos nossos corpos há tanto ainda para aprender. Nem as televisões, a pornografia, as séries sensacionalistas conseguem fazer jus ao sexo. Se não o entendem, procurem-no. O sexo é a forma mais íntima de ser, e não há nada de errado com isso.
Isabel Castro VozesBateu, está batido [dropcap style≠’circle’]I[/dropcap] Leiam, leiam até ao fim. Ele tem nove anos. Ele tem nove anos e há dias, quase todos os dias, em que não percebe bem onde está, que mundo é este. Eles falam alto, os adultos, falam muito e não o percebem. Ele também tem dificuldade em se perceber. Há coisas que faz e que não queria fazer. Arrepende-se muito depois, mas só depois. Na altura, nas alturas, não sabe onde está. Ele bate noutros miúdos de nove anos, nas miúdas também. Não se defendem tão bem, as miúdas. Mas ele não pensa nisso. Tem nove anos e aos nove anos há dias em que não percebe muito bem quem é. Foi assim na semana passada. A campainha tocou, saiu da sala, ele tem dias em que não gosta da escola, tem dias em que não gosta de ninguém. Bate nuns miúdos no recreio. Neste recreio há espaço para estas coisas acontecerem. Quase nunca há ninguém a ver e ninguém o agarra. Ninguém o agarra. Bateu nuns miúdos e numas miúdas, o sexo não interessa, bateu, está batido. É assim que acontece, ele só tem nove anos e sabem lá os outros o que lhe passa pela cabeça, os sonhos e os pesadelos em que se movimenta. O pior veio depois. Na sala. Os outros. Os outros miúdos e miúdas de nove anos. Ele ouviu dizer que ia sentir na pele o que andou a fazer aos outros miúdos. Ele não sabe bem se as palavras foram mesmo estas, mas foi isso que percebeu. E os miúdos bateram-lhe. Uns não queriam. Ninguém queria. Ele também não quer bater mas bate. Bateu, está batido. Bateram-lhe. E havia pernas grandes a assistir. Ele tem dias em que não percebe os adultos: estava um adulto a comandar a vingança. Estava um adulto a dizer bate, bate. Bateu, está batido. Ele não sabe bem o que é a vingança. E não percebeu que lição é esta, não está nada escrito no quadro, a miúda não lhe quer bater, mas está a bater-lhe, a miúda foi para casa a chorar. Ele não sabe que lição é esta: a mãe diz-lhe para ele não bater. Aquelas pernas daquele adulto são tão grandes quanto as pernas da mãe dele. E aquelas pernas têm uma boca que diz o contrário, bate, bateu, está batido, ele não percebe que lição é esta, toda torta, só ouve que é para bater com mais força. A mãe não está ali. Ele tem nove anos. [dropcap style≠’circle’]II[/dropcap] Eles não têm nove anos. Eles não têm nove anos. Têm muitos. Não cabem nos dedos das duas mãos. Nem nos dedos das duas mãos mais nos dedos dos dois pés. São grandes, enormes. Andam em carros e têm casas e têm filhos. Têm filhos com muitos anos e têm filhos com nove anos. Têm filhos com nove anos e alguns chegaram a casa a chorar. Vinham da escola com a lição torta. Tinham um conto para contar e, apesar de ser quase natal, não havia renas nem trenós nem meninos jesus em palhinhas deitados. Sabem todos o pinheirinho e as outras músicas todas de cor nas várias línguas que se ouvem naquela escola, mas não era isso. Era a lição torta. Ele tem nove anos. Sabes, aquele que bate. Bateu, está batido. Disseram-me para lhe bater. Eu não queria, pai. Ela não queria, pá. Sabes, aquele miúdo do costume. E eu bati-lhe, pai. Ela bateu-lhe, pá. Ele tem nove anos mas é complicado. Nem vale a pena falar no assunto. O assunto não é meu, não me diz respeito. Os outros que resolvam a coisa, eu cá sei de mim e dos meus. Ele tem nove anos mas é complicado. Deixe lá isso, já se sabe como é, estas coisas passam, não foi bem, não se esteve bem, mas andamos aqui todos há muitos anos, as coisas são assim, amanhã logo se vê. Ele tem nove anos mas é complicado. As pessoas são todas complicadas, não é? Um dia eles, amanhã nós, toda a gente tem dias difíceis mas eu não sou assim, cá em casa está tudo em ordem, ele chorou mas não faz mal, também chora no cinema, deixe lá isso, deixe tudo como está. Ele tem nove anos e é complicado, como complicadas são as sombras do mundo de adultos em que vive. Não saias da frente que me destapas, se me viro e tu não te viras ao mesmo tempo vêem-se as minhas costas no teu peito, sombras que somos sempre, sombras que nos protegemos, sincronizadas, no silêncio. Este silêncio poluído. Ele tem nove anos e um dia destes já não tem, já tem mais, isto ainda lhe passa, ou então não, um dia destes até se vai embora, nós continuamos todos por cá e é deixar estar tudo como sempre foi, somos todos amigos, isto é tudo tão bonito, tão bonito, é pinheirinhos e o natal vem aí, esqueça lá isso que não interessa a ninguém. Ele tem nove anos. Leiam, leiam tudo outra vez.
Hoje Macau VozesPor uma EPM com paredes de Vidro Por uma Escola Portuguesa de Macau progressista e inovadora, com valores humanistas, e que proporcione uma aprendizagem global, preparando os alunos para os desafios e a complexidade do Século XXI, conscientes dos seus direitos e deveres cívicos… [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou um pai descontente e inconformado com uma escola que, na sua génese, era avançada, até pela qualidade da “matéria prima” que trabalha (os nossos filhos), abundância de recursos e condições de trabalho. Mas que se deixou ultrapassar de forma inquestionável, quer em termos organizativos, quer na objectividade mensurável nos ditosos “Rankings”, como se reflectiu no afundanço de 175 posições em 2015 (237ª posição em 500), pela generalidade das Escolas Públicas Portuguesas, geridas de forma eficiente, eficaz, transparente e responsável. Não quero ferir susceptibilidades, quero, outrossim, ser mobilizador e focar a vossa atenção nas propostas que temos para a APEP e para a EPM. A disputa dos órgãos sociais da APEP é secundária e acessória. O que nos trás aqui são expectativas positivas, é o futuro de uma Escola que se constrói diariamente… e que não pode parar por autocomprazimento e orgulho de se dizer “excelente”! Que queremos mais focada na aprendizagem do que na avaliação! Entendemos que faz todo o sentido que os pais estejam representados de pleno direito na gestão duma Escola que, sendo privada, tem uma origem, função e orçamento eminentemente públicos. Que estejam vigilantes, influenciem e façam progredir a mesma, fazendo repensar os procedimentos, a oferta educativa e extra-curricular. Somos de opinião que há um excessivo corporativismo derivado do carácter “monolítico” da Direcção da Escola (constituída exclusivamente por membros do seu corpo docente), o que não lhe dá as competências de gestão que reputamos essenciais e imprescindíveis para assegurar que a mesma se pauta por critérios de eficiência e eficácia. Assim defendemos uma gestão multidisciplinar, com um gestor profissional, escolhido por concurso. Este deverá gerir com eficiência, maximizando os recursos disponíveis e implementando urgentemente um necessário controlo interno, transparência e responsabilidade na gestão. Um docente, a coadjuvar o Director, também admitido por concurso, em que a antiguidade não seja o critério de escolha, mas a formação e as competências de liderança. que se ocupe da parte pedagógica. Transitoriamente temos um perfil: experiente, mas ainda jovem, vigorosa, elegante, sedutora e com capacidade de liderança para mobilizar o corpo docente para superar os desafios que a escola enfrenta. Assim para a APEP propomos: Que seja possibilitado a todos os pais e encarregados de educação da EPM se associarem de forma voluntária, e sem custos, promovendo uma alteração ao regulamento de jóias e quotas para um valor simbólico de 1 pataca/mês. Esperamos assim, suprimindo os constrangimentos financeiros e administrativos, conseguir atingir a plenitude do universo de pais, congregando-os e chamando-os a vida associativa. Para tanto solicitaremos a introdução de um novo campo no boletim de matrícula da EPM que, mediante a mera selecção dicotómica, autorize a Escola a ceder os dados pessoais do encarregado de educação a APEP, com a mera aposição da assinatura. Simplificando o procedimento. Criação de uma Hot-Line que permita aos pais comunicarem com o membro da Direcção em escala, durante a hora de expediente através de mensagem escrita –Whatsapp, Viber, Wechat ou email – e possibilitando um atendimento programado por voz através do número já existente 66989675 e email da APEP. Uma aposta inequívoca na Provedoria dos Pais, centralizando a resolução dos seus problemas de forma personalizada, oportuna e atempadamente pelo órgão de gestão. Planeamento e gestão prévios de actividades extra-curriculares que não possa ser oferecida pela EPM em primeira linha: áreas das artes, das letras, línguas e desporto colectivo, em parceria com outras instituições públicas ou privadas da RAEM, mas sempre sem lucro para a associação, reflectindo o custo para o associado o custo real descontado os apoios que seja possível obter. Continuação do estímulo da reciclagem de livros e uniformes Para a Escola Portuguesa de Macau esperamos conseguir através de consenso com a Direcção da Escola e Conselho de Administração da Fundação: Implementar uma plataforma informática que permita o acompanhamento da vida escolar dos nossos educandos – Google Classroom – interagindo professores, alunos e pais; Implementar um Observatório Escolar que permita o acompanhamento da aprendizagem através dos resultados dos testes em termos estatísticos – media de negativas por disciplina, ano e turma, de modo a obter uma monitorização consistente das aprendizagens, numa perspectiva formativa e reguladora do ensino. Valorizar o corpo docente da EPM promovendo a publicitação da formação académica e pedagógica dos mesmos na página da EPM, com email personalizado para comunicação da comunidade com os mesmos. Se uma boa parte deles já têm essa informação disponível on-line em plataformas como o Linkedin não antevejo compreensível qualquer tipo de perplexidade ou resistência por parte de pessoas bem formadas académica e pedagogicamente. Pugnar pela publicitação dos avisos de abertura relativos a concursos de professores e que sejam previamente publicitados também os critérios de selecção e estimular a contratação de professores novos com formação recente (até para contrabalançar os que já têm uma longa experiência de ensino, a medida que estes se forem aposentando). Promover um diálogo regular com a Fundação Escola Portuguesa de Macau, com auscultação dos pais previamente a qualquer medida estruturante a tomar. Pretendemos uma APEP activa e mobilizadora, que esteja sempre pronta a auscultar e a congregar a opinião dos pais e a ser uma incansável provedora dos interesses dos mesmos. Encaramos a próxima Assembleia Geral com a tranquilidade de quem só pode ganhar: ou a glória da vitória que assumiremos com humildade e lealdade as propostas do nosso programa, ou a honra da derrota com o fair play e a liberdade readquirida, na certeza do dever cumprido, esperando que, ainda assim, as ideias que defendemos possam vir a ser implementadas, por úteis e necessárias ao devir da Escola Portuguesa de Macau. Faço um apelo à Vossa participação na vida associativa da APEP de modo a permitir que os anseios dos pais e encarregados de educação sejam considerados na comunidade educativa. Mais caladinhos ou empenhados o que está em causa é necessário esse esforço de perder algumas horas por ano, de modo a dar força à APEP. Não votar, ou delegar n´outrem, é o mesmo que votar naquilo que não queremos! Manuel Gouveia Candidato a Presidente da Direcção da APEP P.S.: Lamento e penitencio-me perante todos aqueles que se mobilizaram para votar dia 29 e se depararam com a impugnação. Acreditem que tudo fiz, previamente, para o evitar. Mas como jurista penso que não nos devemos sujeitar a factos consumados sem lutar para que as listas tenham as mesmas possibilidades de sucesso, no respeito escrupuloso pelos princípios e pelas regras eleitorais.
Rui Flores VozesCrise de valores [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] recente eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América veio reforçar a ideia de que vivemos tempos em que os valores estão em crise. A campanha e as propostas que o presidente-eleito norte-americano foi anunciando para o futuro do seu país e do mundo, são antes de mais exemplos típicos de populismo político. Eles incluem, entre outros, a ideia de que Trump é um impoluto, que representa todos os impolutos da nação, opondo-se aos poderosos e às elites; que é alguém que se assume como o verdadeiro representante da nação, que se levanta em nome de todos nós para enfrentar os outros, os que querem destruir a nação; alguém que preconiza soluções extremas para a resolução dos problemas que o país enfrenta. Os estados europeus da NATO querem continuar a beneficiar da protecção dos Estados Unidos? Vamos obrigá-los a pagar! Temos de acabar com a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos? Construa-se um muro. Todos estes exemplos que, de acordo com a doutrina, são casos evidentes de populismo político, põem em evidência o racismo, a xenofobia, a intolerância, o desrespeito pelo próximo, a falta de solidariedade. Enfim, constituem um verdadeiro ataque aos princípios basilares, por exemplo, da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos valores que estiveram na base da construção da União Europeia (UE). Por causa disto, muitos analistas das relações internacionais têm vindo a falar num regresso da realpolitik à cena internacional. Ou seja, estaríamos por estes dias a viver um retrocesso considerável na forma de gerir a coisa pública dos Estados. Em que as considerações morais e ideológicas estariam de um modo sistemático a soçobrar às de natureza prática. Não se deve julgar, no entanto, que este sinal de “progresso” é algo exclusivo dos Estados Unidos de Trump. Cinco meses antes da vitória do magnata dos casinos e dos hotéis sobre Hillary Clinton, em Junho, a UE aprovou a nova estratégia global para a política externa e de segurança. Por iniciativa da alta representante para os negócios estrangeiros e de segurança, a italiana Federica Mogherini, a União reviu o documento estratégico em que estão plasmados os princípios que devem ser seguidos pela UE enquanto bloco no seu relacionamento com o “mundo exterior”. Mas, ao mesmo tempo que elenca um conjunto de prioridades, princípios, valores, interesses (é muito significativo verificar que os termos são usados indistintamente para assinalar a base programática da politica externa comum), a estratégia afirma, com grande pompa, logo nas primeiras páginas do documento, que as relações externas da União se regem por um certo “pragmatismo baseado nos princípios”. E quais são os princípios da UE em 2016? Eles envolvem uma hierarquia de valores que inclui a paz e a segurança, uma ordem global baseada no Estado de direito, democracia e direitos humanos, economia de mercado e prosperidade. O que a estratégia não estabelece – e é algo que está dependente dos interesses momentâneos do clube dos 28 – é qual a ordem que prevalecerá em caso de conflito de interesses. Irá a UE continuar relações comerciais com ditadores que não estejam empenhados numa agenda que envolva o respeito pelos direitos humanos? Até agora a resposta da UE não tem tido grandes considerações pelas questões essenciais da lista que a própria União estabeleceu. E não há razões para crer que as coisas venham a mudar no futuro próximo. No fundo, o que a estratégia pôs preto no branco foi que as relações externas da UE continuarão a mudar de acordo com os interesses momentâneos da realpolitik. O que este exemplo da UE demonstra é que a tendência veio pois de trás – até porque o documento aprovado em Junho demorou dois anos a ser elaborado e pretendeu responder a anseios e dificuldades detectadas há anos. Donald Trump não é, pois, o principal causador desta onda de choque em que parece que estamos a viver. E outros choques que se possam vir a sentir não estão relacionados com a capacidade de os Estados Unidos influenciarem o resto do mundo. As pessoas foram votar em Norbert Hofer na Áustria, também porque estão fartas de como a política está a ser conduzida no seu país. Votaram contra o referendo constitucional na Itália não porque não queiram governos estáveis, mas porque também estão cansadas da forma como os principais partidos têm conduzido o país. Querem algo de novo. Não têm visto grande coerência na aplicação dos valores, princípios, prioridades nas últimas décadas. Estão, pois, fartas. De não poderem alterar as coisas. De o Estado social que as trouxe até aqui não estar a dar a resposta de que precisam. Como escreveu esta semana no The Guardian Stephen Hawking, um dos grandes pensadores do nosso tempo, estamos a viver os tempos mais perigosos dos últimos anos. A elite, os partidos do centro têm de encontrar uma solução para a classe média que está todos os dias a perder empregos devido aos avanços tecnológicos, à computação, à inteligência artificial. Tudo isso tem levado ao aumento das vagas de migrantes que procuram nos países mais desenvolvidos um futuro para si e para as suas famílias. Contudo, sem valores, sem uma agenda que ponha os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito no topo das prioridades, nada disso vai ser possível. Há pois um enorme espaço para que as surpresas que afectaram o nosso futuro colectivo com as votações do Brexit ou de Trump se repitam. Ainda não batemos totalmente no fundo.
Fa Seong A Canhota VozesUma Lei Sindical, um Governo, um referendo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Governo de Macau vai, afinal, encarregar uma instituição académica de realizar um estudo sobre a viabilidade de implementação de uma lei sindical. Segundo o que disse Lionel Leong, Secretário para a Economia e Finanças, a ideia é analisar os desafios que outros países já enfrentaram na implementação da lei. Este panorama mantém-se apesar de diferentes deputados já terem apresentado projectos de lei sindical na Assembleia Legislativa (AL), oito vezes chumbados. A decisão do Governo é uma novidade e um passo em frente, mas não espero um resultado além da habitual ideia de que “a lei não é adequada à actual situação da sociedade de Macau”, ou ainda ao facto de ser “necessário um consenso no seio da sociedade para a implementação da lei”. Aí o referido estudo não será mais do que um desperdício de dinheiros públicos, apesar do Governo já ter gasto tantos recursos financeiros desta forma. Macau precisa da lei sindical. Esta pode simbolizar um anjo para os trabalhadores mas um diabo para quem emprega. Ao fim de oito chumbos, que não é um número pequeno, é fácil compreender as razões que estão por detrás disso, pois a maior parte dos deputados são patrões e não representam a defesa dos direitos dos trabalhadores. Existe algum patrão que concorde com o aumento dos salários ou o pagamento de regalias aos seus trabalhadores? Haverá algum gestor que aceite de bom grado uma greve ou algumas queixas feitas pelos seus empregados quanto às condições de trabalho? Se fosse dona de uma empresa também não gostaria que os meus empregados fizessem coisas contra mim ou pusessem em causa as condições que estaria a oferecer. No actual estado do hemiciclo, em que todos os outros deputados representam o sector laboral e votam a favor de uma lei deste género, a verdade é que ainda ninguém conseguiu alterar o rumo que esta proposta tem tomado. Nunca entendi porque é que o Governo nunca deu garantias de implementação da lei, quando há grupos dentro da AL que lutam por ela há muitos anos. Talvez seja essa a cultura do funcionalismo público; a de deixar a situação correr até chegar ao ponto de exaustão. Uma possível solução seria realizar um referendo sobre o assunto, algo que deixaria verdadeiramente os residentes escolherem ou não a implementação da lei sindical. O mecanismo da consulta pública funciona para tudo, inclusivamente para escolher os nomes dos pandas. É uma escolha da população da qual ninguém suspeita da sua racionalidade. Crê-se que, com esse mecanismo, não existem acções governativas à porta fechada. Já que se fez uma consulta pública para os traçados do metro ligeiro, também poderia realizar-se mais uma para saber se na península vai, afinal, haver uma linha de metro a sério ou se teremos apenas um monocarril junto à orla costeira. Dessa forma o Governo não terá como não estudar a ideia feita por três deputados nomeados, até porque o metro ligeiro está a ser construído para servir as suas populações e não os governantes, que conduzem luxuosos carros privados. Este território que habitamos não é tão democrático como o Reino Unido, que realizou um referendo para decidir a saída ou permanência do país na União Europeia (UE). Os resultados fazem-nos aguardar com expectativa o que daí virá. O Governo gosta de fazer consultas públicas para depois tomar decisões em relação a determinadas políticas. Com este modelo ganha sempre mais críticas ou queixas da população que afirma não ser verdadeiramente ouvida, mas a acção do Governo não muda. Aguardo por um dia em que tenhamos um modelo mais democrático.
Leocardo VozesO que é um “Nazi”? [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre que oiço dizer que fulano “é um autêntico nazi”, vem-me à cabeça um episódio da série “sitcom” norte-americana “Seinfeld”, que os fãs mais atentos devem recordar com toda a certeza: “The Soup Nazi”. Este “nazi” era um sopeiro de Nova Iorque que exigia dos seus clientes o cumprimento de uma série de preceitos, e quem não anuísse a esta espécie de ritual ou levantasse a voz para discordar, “ficava sem sopa”. A sopa era aparentemente bastante boa, o que dava ao “Soup Nazi” a confiança necessária para continuar a ser um…bem, um nazi, portanto. Não consta que o indivíduo fosse de linhagem germânica, apesar de ser um imigrante, e dava mais a entender que era originário dos Balcãs, mas a este ponto há que distinguir um partidário do Partido Nazi da Alemanha dos anos 30, ou “Nazi”, de alguém cujos ideais e a interpretação de certos conceitos coincidem, mas que não é nativo dessa confraria – um nazi. Assim, com “n” minúsculo. E há por aí nazis que são piores qualquer Nazi. Aqui há algum tempo, um certo tipo de direita que eu designaria por “delirante e confusionista” resolveu pegar neste conceito e tentar “baralhar e voltar a dar”. Para o efeito recorreu àquilo que tanto em política como noutra coisa qualquer é conhecido por “lógica da batata”: Se era o Partido Nacional Socialista, era socialista, e então todos os Socialistas são nazis, e a extrema-direita é afinal extrema-esquerda. Assim mesmo, e digam lá se não é “espectacular”? Pena que se confiou demasiado no estudo de mercado feito em crianças com 3 e menos anos, que pareceram achar a ideia “engraçada”. Há quem até a chamar aos outros “nazis” seja um autêntico nazi! Anti-semitismo. Santinho. Aqui está outro conceito que alguns nazis gostam de usar para chamar todo o mundo de Nazi. Se formos tentar explicar à esmagadora maioria da população local o que é “anti-semitismo”, ou as causas do Holocausto, e porque é tão importante não esquecer esse lamentável episódio da História, tratar-se-á de um acto tão producente como explicar a origem das touradas, ou o peso cultural e económico da pesca à baleia na Noruega. Não é que não valha a pena de todo, mas a população de Macau é respeitadora das minorias e estrangeiros q.b. para precisar de treino em como lidar com uma certa minoria, porque isto e aquilo lhes aconteceu em determinado período da História, “guess what: this is China, we know”. Convém também referir o factor “peanuts”, pois a referida minoria estará representada em Macau com um número de indivíduos entre o “zero” e a “meia dúzia de apátridas, ressabiados ou invejosos que decidiram passar para o lado dos grandalhões”. Daí que se pode – e deve-se, tal como se recomenda – dizer que “fulano ou fulana tal são uns nazis”, sem querer necessariamente incluir aqueles detalhes referidos nos dois parágrafos anteriores. E o que é então um nazi, afinal? Pode-se dizer que é alguém que gosta de fronteiras fechadas e muros erguidos, pois só assim poderá praticar o seu “bullying” de nazi: rodeado unicamente dos seus “amiguinhos” nazis. É também alguém que culpa os mais desamparados, indefesos ou em risco pela sua própria inépcia. Pode ser ainda alguém que se tenha “desviado” para esses caminhos ínvios pelo atalho da religião, ou outra lavagem cerebral qualquer. Em suma, há muitos nazis de todos os tipos, cores, credos e origens, e conseguem ser quase todos muito, mas muito piores que um Nazi. Daqueles que já vêm com suástica e tudo, sabem?
Hoje Macau VozesDireito de resposta do presidente da Associação de Pais da EPM Exmos. Sr. Director do Jornal Hoje Macau, [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]elativamente à notícia publicada na edição de hoje (29 de Novembro de 2016) vem a Direcção da APEP, em funções, solicitar, ao abrigo do direito de resposta, a publicação nesse jornal dos seguintes esclarecimentos: 1. A Drª Valéria Koob é candidata pela Lista A ao cargo de Presidente da Direcção da APEP, não tendo quaisquer funções na Direcção cujo mandato ora termina e não podendo, como é óbvio, prestar quaisquer esclarecimentos sobre o processo eleitoral em curso – e muito menos “(…) explicar a ausência de informações cedidas à Lista B (…)” [sic]. 2. Os ficheiros dos associados da APEP que contêm a informação pessoal dos mesmos, estão protegidos nos termos da lei e não foram partilhados nem disponibilizados a qualquer uma das listas concorrentes às eleições marcadas para esta tarde, pelas 18:00 horas. 3. A actual Direcção da APEP, a solicitação de membros da Lista B, partilhou por todos os associados da APEP a composição de ambas as listas e os respectivos programas ou manifestos eleitorais de modo que também se refuta, como inapropriada e sem fundamento, a alegação de “grave ofensa ao princípio da boa fé e da igualdade”. 4. Sendo necessário acrescentar que, naturalmente, alguns membros da Lista A estão envolvidos nas actividades da APEP há vários anos e conhecem profundamente a Associação, mas não existe qualquer mecanismo que permita o seu internamento compulsivo num campo de trabalhos forçados até à conclusão do acto eleitoral. 5. A Direcção da APEP deixa ainda uma nota de absoluto repúdio pela forma como alguns dos candidatos tem conduzido a respectiva campanha, com repetidas acusações feitas de forma leviana e sem fundamento, com o sistemático recurso aos media para tentar influenciar o sentido das eleições e , sobretudo, com uma retórica inflamada de ataque à EPM. Fernando Silva Presidente da APEP
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO salto quântico (II) “It was 250,000 years before the world’s population reached 1 billion, around 1800. But it took only a dozen years for mankind to add its latest billion, passing 7 billion in October 2011, by the United Nations’ official count. This is megachange: change on a grand scale, happening at remarkable speed. It is all around us. Technology is spreading astonishingly fast – think of the internet, mobile phones and the oceans of information now captured on computers or transmitted via social networks such as Facebook and Twitter. The global economy is tilting towards Asia in front of our eyes. All this is having a deep impact on people’s lives, businesses’ strategies, countries’ politics and the planet’s prospects”. “Megachange: The World in 2050” – D. Franklin and John Andrews [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] excepcional evolução, também, pode ter lugar periodicamente na política. Os terramotos políticos não são tão raros, como ficou demonstrado pela vitória considerada improvável de Donald Trump, em 8 de Novembro de 2016. A média terminou na área da economia, após 2008, devido à grande recessão, e é de acreditar que será difícil criar um crescimento económico robusto e sustentado como defende Tyler Cowen no seu livro “Average Is Over: Powering America Beyond the Age of the Great Stagnation”. O passado não é prólogo do futuro. Ao invés, uma série de factores reduzirão a prosperidade, a menos, que medidas substanciais sejam tomadas para reverter a actual situação. Estendendo essa noção, damos com a teoria desenvolvida por James K. Galbraith no seu livro “The End of Normal: The Great Crisis and the Future of Growth” que ao analisar o desempenho macroeconómico, afirma que as pessoas não devem projectar o crescimento económico da década de 1950 até ao ano 2000 para o futuro. Muitas das situações que deram origem a um forte desenvolvimento desapareceram, e será difícil manter as tendências passadas no futuro próximo. O economista Robert Gordon argumenta no seu livro “The Rise and Fall of American Growth” que estamos a assistir a uma grande mudança nos padrões de crescimento, e que o desenvolvimento dramático, que marcou o período de 1870 a 1970 terminou, não existindo maiores avanços na produtividade do trabalho ou na inovação societária, e com o envelhecimento da população e o aumento da desigualdade, o nível de vida dos Estados Unidos tende a estagnar ou mesmo a cair, e correr através de cada uma dessas noções, é ideia de que algo de grande está para acontecer no período actual. Os padrões sociais, económicos e políticos já não são estáveis e estão a criar mudanças rápidas e transformadoras. As pessoas necessitam de estar preparadas para um tipo de mudança, maior do que o normalmente imaginado. Até que possamos entender melhor esses movimentos tectónicos, será difícil para os indivíduos e sociedades como um todo, lidar com o seu extraordinário impacto. A nível internacional, existem inúmeros sinais de grandes desenvolvimentos e mudanças de alianças. Durante a maior parte das últimas sete décadas, fortes normas internacionais pareciam garantir a santidade das fronteiras nacionais, pois dada a agressão generalizada sofrida durante a II Guerra Mundial, com a sequente enorme perda de vidas, as nações modernas, em geral, abstiveram-se de invasões estrangeiras. Os países não querem arriscar conflagrações internacionais e os altos custos humanos que daí resultam. As organizações a nível global fazem grandes esforços para desencorajar os países a não violarem os direitos soberanos de outros países, na esperança de manter a paz e conservar as relações amistosas, em toda a ordem internacional. No entanto, essa norma antiga e tradicional está a ser quebrada constantemente. Os líderes ocidentais estavam despreparados em 2014, quando a Rússia invadiu e anexou a Crimeia e deslocou-se para a parte oriental da Ucrânia, com o objectivo declarado de proteger os interesses russos. A Crimeia tinha sido cedida à Ucrânia em 1954, pela então União Soviética e tinha-se tornado em uma parte vital daquele país. A península no Mar Negro usava moeda ucraniana e tinha representação no parlamento nacional. Apesar da condenação internacional da anexação, a Rússia, recusou-se a inverter o curso dos acontecimentos. Os líderes ocidentais usaram uma retórica apaixonada contra a anexação, impuseram sanções comerciais e bancárias ao invasor e aumentaram a ajuda à Ucrânia. Ao longo de dois anos, o mundo ainda não descobriu como mudar a realidade factual, e alguns líderes queriam enviar tropas para contrariar o que consideravam uma flagrante agressão russa. A China conjuntamente com o seu rápido crescimento económico, tornou-se muito mais activa nos assuntos regionais e globais, impondo limites às organizações estrangeiras e multinacionais que operam dentro das suas fronteiras, e discutiu a soberania japonesa sobre as Ilhas Senkaku no Mar da China Oriental. Apesar de esses locais terem sido controlados pelo Japão por um longo período de tempo, a China afirmou os seus direitos territoriais, após a descoberta de reservas de petróleo, afirmando que as suas prerrogativas geográficas são anteriores às do Japão. Os militares chineses enviaram barcos e aviões para a região para proteger as suas reivindicações geográficas, e instalaram mísseis terra – ar em uma ilha disputada. Além disso, a China construiu sete ilhas artificiais em recifes no Mar da China Meridional, e declarou a soberania chinesa sobre os doze milhas ao redor de cada ilha. A expansão das reivindicações territoriais chinesas complicou as operações militares americanas na região, e ameaçou a capacidade de alguns navios comerciais de navegar livremente por essas paragens. Os temores aumentaram quando a China começou a instalar longas pistas de aviação, quartéis militares e mísseis nas Ilhas Paracel. A maioria dos países vizinhos são aliados e parceiros comerciais dos Estados Unidos, preocuparam-se, acreditando que tais mudanças fossem um sinal das ambições geopolíticas por parte da China, que procurava estender esses direitos territoriais a quase oitenta por cento do Mar da China Meridional. A situação colocou a China em contenda com o Vietname, Malásia e Filipinas que tinham soberania sobre partes dessa via fluvial. As revoltas da Primavera Árabe atraíram praticamente todos os governos e comentadores políticos. A maioria foi surpreendida em 2010, quando protestos de rua irromperam na Tunísia e provocaram manifestações em vários países do Médio Oriente. As queixas contra a incompetência e corrupção dos regimes autoritários, em todo o mundo árabe, eram efectuados por pessoas comuns, milhares das quais foram para nas ruas em um extraordinário conjunto de protestos. Tal como agiram em outros períodos, os governos moveram-se para suprimir as queixas e prender os manifestantes. Mas os movimentos políticos derrubaram vários líderes autoritários que pareciam entrincheirados no poder, nomeadamente o presidente Hosni Mubarak no Egipto. É de notar que quase nenhum analista político experiente, antecipou a série de revoluções que rapidamente varreram o Norte de África e o Médio Oriente, ou seja, havia governos provisórios na Tunísia, Líbia e Egipto. A Síria e o Iémen caíram em devastadoras guerras civis, enquanto as facções rivais disputavam o poder político e económico, e a Líbia enfrentou um tumulto semelhante, após a queda e execução de Muammar Kadafi. Através destes e de outros exemplos, é de argumentar que muitas das forças sociais, económicas e políticas que foram constrangidas a mudanças internacionais em grande escala tornaram-se fracas. Alianças políticas, económicas e militares antigas quebraram-se e novas estão a surgir, ou em alguns casos, novas alianças não se apresentam tão aparentes. O grande conflito de poder, que parecia inimaginável na era nuclear, voltou como um possível perigo. A ideia de que as nações limitariam as suas reivindicações territoriais deu lugar a um jogo amplo entre as mesmas, testando fronteiras geográficas e violando as normas tradicionais. A ordem mundial pós-1989, dominada pelos Estados Unidos, desenvolveu-se em uma China ascendente, uma Rússia agressiva e actores não estatais violentos, como o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS), Al Qaeda, Al Shabaab e Boko Haram. Os últimos grupos aplicam leis religiosas estritas nos territórios que controlam, e empregam práticas primitivas, como a violação sistemática, a escravidão sexual e a governança feudal. As limitações ao poder ocidental são aparentes, e a capacidade dos Estados Unidos e da Europa para tomarem medidas eficazes é seriamente circunscrita. O globo, em essência, passou de um mundo bipolar durante a Guerra Fria, para um unipolar após o colapso da União Soviética, quando os Estados Unidos se tornaram o poder dominante, e desde 9 de Setembro de 2001, para um mundo multipolar, reflectindo o surgimento de novos poderes e actores não-estatais. As ordens mundiais bipolares e unipolares geralmente são estáveis, por causa do domínio de um número limitado de poderes, que muitas vezes podem controlar os conflitos locais e regionais. No entanto, a mudança para a multipolaridade apresenta sinais de um aumento da instabilidade, com várias potências a jogarem para adquirir vantagem, e nenhuma a deter o poder único, não tendo a China, Rússia, Europa ou os Estados Unidos a capacidade de ditar as directrizes da geopolítica e geoeconomia.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesXenofobia e outras considerações [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 21 o Irish Times publicou um artigo sobre uns desacatos que envolveram Rainer Garner, um dos directores executivos da Daimler, uma marca alemã fabricante de automóveis, e um cidadão chinês. Uma das principais exportações da Daimler para a China são os motores da Mercedes-Benz. Rainer Gartner foi director executivo da sucursal chinesa da Daimler durante mais de um ano. Antes tinha trabalhado em Seul como director executivo da Daimler Trucks Korea, sendo também responsável pela produção do modelo Mercedes-Benz Guard, os carros com placas blindadas da Daimler. No anterior Domingo, dia 20, estava Rainer a tentar arrumar o seu Mercedes numa zona de estacionamento em River Garden, em Pequim, quando um outro condutor local começou a fazer marcha atrás para tentar pôr o carro no mesmo espaço. A discussão começou, cada um reclamando do direito a arrumar o carro no referido local. Durante a discussão este alto quadro da Daimler terá dito, “Estou na China há mais de um ano e a primeira coisa que aprendi é que os chineses são todos uns filhos da mãe.” As pessoas que passavam e que ouviram estas afirmações acercaram-se de Garner e começaram a discutir com ele, e foi aqui que Rainer sacou de um spray de gás pimenta e os atacou. Do ataque resultou um ferido. As pessoas envolvidas no caso, por se terem sentido atacadas física e psicologicamente, divulgaram amplamente o sucedido na internet. A Daimler apressou-se a emitir um comunicado para esclarecer a situação, “Na Daimler, sempre respeitámos os povos e as culturas dos países onde nos instalamos, e o mesmo princípio é válido na China. Trabalham na empresa muitos cidadãos chineses responsáveis e estamos empenhados em colaborar juntos no sentido do progresso da sociedade chinesa.” A empresa adiantou que o incidente estava a ser investigado e que seriam tomadas medidas em conformidade. Acrescentou ainda, “Lamentamos profundamente o que se passou. A empresa não se identifica de forma alguma com as afirmações proferidas durante a discussão .” Sabe-se que as pessoas envolvidas estão a preparar um processo contra Rainer Garner. Não há dúvida que o que foi dito por Garner é inaceitável para qualquer cidadão chinês. Possivelmente noutros locais a expressão “filho da mãe”, não terá uma conotação tão negativa como na China, mas aqui é altamente insultuosa. E é claro que quem a ouviu se sentiu atingido e ficou furioso. O artigo a que nos temos vindo a referir não explicava porque é que Garner recorreu ao spray de gás pimenta. Geralmente este gás é utilizado para dispersar multidões. Regra geral não provoca danos físicos, nas em circunstâncias muitos especiais pode ser letal. Aqui levantam-se duas questões. Em primeiro lugar somos levados a perguntar porque é que Garner teria o spray de gás pimenta. Segundo a lei de alguns países o gás pimenta pode ser visto como uma arma. Sem licença, o seu uso é proibido . Este será um dos principais motivos que levam o caso à justiça. Em segundo lugar é preciso saber porque terá sido usado. Estavam muitos cidadãos chineses no local, mas Garner estava sozinho. Será que estas pessoas quiseram atacar Garner? Os gritos, a forma rude como falou, podem ter instigado as pessoas. Mas a instigação é um elemento subjectivo e a sua avaliação vai depender em grande parte das declarações de Garner. Se ele afirmar que pressentiu sinais de agressão iminente, não é de admirar que tenha usado o spray para se defender. O caso está a ser investigado e a polícia vai ter de encontrar respostas para estas questões. Só assim se poderá fazer justiça, quer para os cidadãos chineses quer para Garner. Este caso alerta-nos para a noção de “respeito”, um elemento vital no relacionamento entre seres humanos. Independentemente de quem venha a ganhar o processo, Garner não deveria ter insultado os chineses enquanto povo. Desentendimentos e discussões acontecem constantemente em toda a parte. Se nos desentendemos com alguém é natural que o ataquemos. Mas se o ataque passar a ser dirigido ao grupo étnico a que essa pessoa pertence, o caso já muda de figura. Quanto mais pessoas foram chamadas à liça, mais complicada fica a situação. Na sequência destes acontecimentos a Daimler despediu imediatamente Garner. O caso está a ser investigado pela polícia. Será melhor que os ânimos se acalmem, bem como as acusações mutuas. Quanto mais ruído houver pior será para ambas as partes. A melhor forma de resolver o assunto será esquecer e perdoarem-se uns aos outros.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesGenitália [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s monólogos da vagina tornaram-se numa peça de extrema importância nos anos 90 porque a divulgação da condição vaginal (feminina) era necessária. Necessária na altura, e necessária ainda hoje. Cada vez mais as vulvas e as vaginas são expostas teórica e praticamente para melhor entender o lado lunar, ou o lado feminino. Dos genitais do sexo feminino podemos falar sem parar – há uma série de crónicas que falam daquilo que todos nós já deveríamos saber, mas tínhamos demasiado medo de perguntar. Homens, mulheres e todo o espectro por igual. Como é toda uma zona por vezes escondida por um arbusto negro, mas até mesmo quando totalmente descoberta, o mistério reina a sua caracterização. Qual é o aspecto normal de uma vulva? Qual é o seu cheiro? Porque saem umas coisas esquisitas da vagina? Se formos explorar as profundidades inconscientes que a vagina suscita, facilmente deparamo-nos com uma imagem suja. Daí que haja uma perspectiva hiper-higienizante do órgão sexual feminino. Por isso temos que limpá-lo continuamente com a gama de produtos detergentes existentes. Os duches vaginais que nos tentam ser incutidos são mais problemáticos do que saudáveis. Aliás, os anúncios a pensos higiénicos mostram que são desenhados para manter esta limpeza incolor e livre de cheiros. Isso só mostra um grande desconhecimento em relação ao que se passa ali em baixo. A vagina tem um sofisticado sistema de auto-limpeza e sabe cuidar-se de si própria, mas tem as suas particularidades. Se não soubermos que são normais, nunca seremos capazes de aceitá-las. O mesmo se passa com o aspecto físico da vulva. É tão desconhecida ao ponto de todos saberem desenhar um pénis e ninguém saber desenhar uma vulva. Nunca se viu uma vulva escrevinhada na porta de uma casa de banho pública, por exemplo. Sendo desconhecida, ninguém sabem muito bem ‘o que é normal’ e acreditam que certas especificidades vulvares podem ser atípicas. E assim as labioplastias crescem em popularidade como nunca. As mulheres agora recorrem a cirurgia plástica para aperfeiçoar as suas vulvas ao reduzir o tamanho dos lábios menores e maiores – ainda que ninguém saiba o que é que a normalidade aparenta. Mas se soubéssemos que as diferenças anatómicas são desproblemáticas, talvez esta necessidade exacerbada de controlo corpóreo fosse menos acentuada. Como se fosse extremamente simples de lidar com a questão – coisa que nunca é! Se há mulheres a reduzir o tamanho dos seus lábios genitais, há outras a aumentá-lo. Manualmente! Puxam-se os lábios vulvares porque acreditam que é visualmente estimulante e que aumenta o prazer sexual. Uma prática em países da África subsariana. Como não é muito fácil ‘olhar’ para os genitais femininos de uma perspectiva pessoal sem ajuda de um espelho, o auto-conhecimento é dificultado no processo, em combinação com todo o nosso bem conhecido tabu do sexo. Vivemos numa sociedade tão dependente de imagens e da sua estética que não será de admirar que a vulva também seja alvo de alguma expectativa de beleza, mesmo que seja totalmente desconhecida. Não que o pénis não seja alvo de alguma expectativa também, especialmente de tamanho. Mas é que no caso das mulheres, tratam-se de expectativas de uma zona do corpo que já temos dificuldades de aceitar de qualquer forma. Acrescentar-lhe uma exigência que tende a retirar muito das suas características (como a labioplastia), reflecte o quão problemática é a relação entre a vulva e o mundo. Sejamos honestos, os órgãos genitais não são espectacularmente bonitos – mas podem sê-lo se houver algum cuidado e dedicação em aceitá-los, exactamente como são. É claro que não quero ignorar condições patológicas que atrapalham o nosso bem-estar e a nossa vida sexual. Há cenários onde o tamanho dos lábios menores da vulva pode ser causa de desconforto e se for esse o caso, um aconselhamento médico é recomendado. Mas acho que a nossa obsessão estética deve ter limites, se já vivemos como escravos de expectativas de beleza inatingíveis é muito ingrato que uma vulva sofra de tal pressão. Há muitos projectos que tentam divulgar a diversidade vulvar para percebermos que a normalidade não é um conceito estanque. Muito menos quando vemos tendências para lábios mais reduzidos e outras tendências para lábios aumentados. Interessam-nos vulvas felizes, despreocupadas e positivas. Fica aqui a dica: labialibrary.org.au
Rui Flores VozesViagem à Cuba de Fidel [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssisti a um dos “famosos” longos discursos de Fidel Castro. Foram duas horas de uma intervenção laudatória dos feitos da revolução cubana, acompanhada de ataques constantes ao “imperialismo norte-americano”. Em pleno Verão de 1996, em reportagem para a Antena 1 da Radiodifusão Portuguesa, segui um grupo de militantes e simpatizantes comunistas, de Portugal, que foram passar três semanas a Cuba, com o objectivo primário de ajudar nos campos de uma cooperativa agrícola da província de Holguín, no sudeste da ilha. O embargo imposto pelos Estados Unidos da América condicionava de sobremaneira o acesso de Cuba a produtos químicos, fertilizantes, pesticidas. As ervas daninhas abundavam, portanto. E eram retiradas dos campos agrícolas por brigadas de “agricultores”, em grande número, à mão, que limpavam os terrenos de uma ponta à outra, para proteger as plantações. Todos os anos o governo cubano premiava a província que tinha alcançado os melhores resultados de produção agrícola, numa lógica de competição interna entre as várias regiões do país, que era depois celebrada com uma cerimónia com a presença do líder cubano. O título da região com melhor desempenho agrícola era entregue aos dirigentes locais e a população podia ver o comandante em chefe e apreciar a sua capacidade oratória. No discurso a que assisti, Fidel exultava com os feitos alcançados pelo socialismo cubano. E rejubilava com as medalhas que estavam a ser ganhas pelos atletas cubanos nos jogos olímpicos de Atlanta. Dizia ele que cada medalha valia por duas. Não apenas eram medalhas olímpicas mas eram também conquistadas “em solo gringo”. No âmbito desta visita organizada pela Associação de Amizade Portugal-Cuba, além de alguns dias em Holguín, na “finca” agrícola e em Guardalavaca, passámos alguns dias em Havana, na Sierra Maestra e em Santiago. Impressionou-me o nível de educação dos cubanos. A estatística mostra que Cuba é dos países do mundo que maiores taxas de literacia possuem. A estatística é naturalmente importante, mas o contacto diário na rua é algo que dá uma visão mais palpável. As funções profissionais que tenho desempenhado têm-me levado a diversos países em vários continentes. Tenho privado com vários líderes políticos e responsáveis governamentais, além de funcionários e de “cidadãos comuns”. A cultura geral, o conhecimento do mundo que a quase totalidade dos cubanos ostentava, é de facto acima da média. Isso sentia-se em Havana, entre as pessoas que se encontravam pelas ruas entre a Bodeguita del Medio e La Floridita ou no Malecón, mas também nos bares com música ao vivo em Santiago ou em Holguín. Todos os trabalhadores da “finca”, por exemplo, eram licenciados, em diversas áreas, incluindo médicos e engenheiros, com oscilações salariais muito reduzidas. O investimento na educação efectuado pelo governo cubano foi a todos os títulos notável. Esse investimento extraordinário na formação dos seus quadros, mas também na saúde, permitiu-lhe por outro lado exportar solidariedade na forma de pessoal médico. Assisti a isso, por exemplo, em Timor-Leste, logo a seguir à independência, onde durante anos trabalharam algumas centenas de médicos quer na capital, em Díli, quer no interior do país, às vezes sem qualquer tipo de equipamento além do seu conhecimento sólido – afinal o país tinha acabado de se livrar do jugo da Indonésia, tinha visto grande parte das suas infraestruturas destruídas na sequência da acção das milícias em fúria com o resultado do referendo – e o investimento na saúde não chegava a todo o lado. Vi médicos cubanos a trabalhar também na Serra Leoa e na Guiné-Bissau, muito antes de a cooperação Sul-Sul se ter transformado num slogan. O investimento na educação contribuía, por outro lado, para uma autêntica formatação ideológica. Por outras palavras, assegurava que o discurso hegemónico fosse assimilado e repetido por quem passava pelas faculdades – e era a quase totalidade da população. Os comités de defesa da revolução faziam o resto e controlavam quem ousasse pensar diferentemente. Apenas alguns resistiam. Nada que George Orwell não tivesse imaginado. Por esses tempos, Cuba estava finalmente a abrir-se. Os restaurantes privados, dos cidadãos, nas suas próprias casas, os “paladares”, tinham sido autorizados recentemente. E espalharam-se como cogumelos em terra húmida. Sem guias nem estrelas Michelin, ia-se de casa em casa, por ouvir aqui e ali, que se comia bem. E comia-se invariavelmente lagosta grelhada, acompanhada por arroz com feijão, por 10 USD. Aliás, o peso cubano era como se não existisse. A moeda em circulação era o dólar americano. E com ele podia comprar-se quase tudo. Desde a refeição no “paladar” ao charuto que se adquiria no chamado mercado negro, que era tão fácil de aceder quanto perguntar na recepção do hotel onde se poderia comprar cubanos puros, genuínos, que eram retirados das fábricas pelas pessoas que precisavam de dólares para viver. A caixa de 25 charutos ficava em 25 USD. Era o número mágico do 1 USD. A cuba libre, o rum añejo, tudo custava 1 USD. Excepto a lagosta. A abertura seria lenta, naturalmente. Ainda não tinha chegado, por exemplo, ao culto religioso. A catedral de Havana estava fechada a cadeado. E o lixo acumulado na sua escadaria era sinal de que não era um edifício assim muito frequentado. Durante as três semanas que passei em Cuba falei, naturalmente, com muitos cubanos. A maior parte – sobretudo os próximos da linha hegemónica – repetia os números do sucesso da revolução. Alguns outros, no entanto, não alinhavam pelo mesmo diapasão. Falavam do medo. Do controlo que o partido exercia sobre eles. Das dificuldades económicas que sentiam. De o peso não valer nada. Diziam-no com receio de serem escutados por um qualquer controlador de bairro – o elemento fulcral da força do partido. Só praticamente na véspera de regressar a Portugal é que consegui que um dos meus interlocutores – um jovem estudante, estafado de promessas de dias melhores – falasse para o gravador e dissesse o que outros me foram dizendo. Que lhes faltava a liberdade.
Isabel Castro VozesOs caladinhos [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] uma boa notícia: há duas listas candidatas às eleições para a Associação de Pais da Escola Portuguesa de Macau. É uma boa notícia por várias razões, a começar pelo facto de dois, neste tipo de situações, ser sempre melhor do que um. Dois significa possibilidade de escolha, é sinónimo de pluralidade de ideias, oferece debate. Dois é um número que vem para a rua e traz com ele aquilo que não deve ficar dentro de portas, no segredo de deuses empedernidos. Dois é bom porque é mais – e há alturas em que ser mais é ser saudável, forte, visível. Quando se é apenas um, corre-se o risco de se ficar esquecido, escondido, perdido na unitária solidão. A existência de duas listas candidatas é também sinal de interesse visível pelo projecto da Escola Portuguesa. Acredito que todos – ou pelo menos a grande maioria – dos pais que tiveram filhos no estabelecimento de ensino ao longo destes anos se interessaram pela escola. Mas todos sabemos como é que as coisas são: os dias passam depressa, os anos também, há o trabalho e há os filhos, os que andam na escola e os outros, há tudo e não há tempo para tudo. Há que fazer escolhas e essas opções passam, muitas vezes, por deixar de fora uma certa participação cívica que faz bem e que, acima de tudo, é necessária, muito necessária. O facto de haver pessoas suficientes para a constituição de duas listas revela uma dinâmica interessante numa comunidade que nem sempre tem espaço, oportunidade e margem de manobra para trabalhar por ela e para ela. É uma comunidade – e é da minha comunidade que falo – que também falha por, frequentes vezes, emudecer perante as coisas que lhe estão mais próximas e pelas coisas de Macau, aquelas que são transversais a questões identitárias. Faz parte do modo como se organiza – ou como não se organiza, porque não tem necessariamente de se agrupar. Faz essencialmente parte da maneira como se tem constituído: de forma esparsa e provisória, como se Macau fosse um favor, como se fosse um acto de caridade, como se fosse uma realidade temporária, com os dias contados. Nota-se isto em quem chega agora, em que tem chegado nos últimos anos. Com os dias da Administração portuguesa cada vez mais distantes, com os obituários que se vão acumulando sobre pessoas da comunidade que, numa e noutra área, pelas mais diversas razões, deixaram marcas na cidade, o grupo (em sentido alargado) vai crescendo de forma desencontrada. De forma silenciosa. O silêncio deve ser respeitado – mas não é necessariamente bom se for justificado com o medo de, o receio de, os problemas com, o não tenho nada que ver com isto. Toda a gente tem tudo que ver com isto, porque é aqui que vive. O silêncio deve ser respeitado, mas virar as costas ao exercício da cidadania e querer que os outros façam o mesmo é um caso mais complicado. A cidadania assume muitas formas. Tem muitos contornos. O associativismo é só um deles, mas é importante. Dois é melhor do que um porque nos obriga a tirar a poeira dos ombros. Que haja sempre tudo em duplicado, que o silêncio da solitária unidade tem dias é que é insuportável.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesLinhas de Acção Governativa para 2017 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo habitualmente o Chefe do Executivo, Chui Sai On apresentou na Assembleia Legislativa o Relatório das Linhas de Acção Governativa (LAG) para o ano financeiro de 2017. Seguidamente as várias áreas administrativas serão analisadas e os debates vão prolongar-se até 6 de Dezembro. Mas que ninguém inveje a sorte dos jornalistas encarregados de cobrir as discussões plenárias, porque serão inevitavelmente maçadoras e vai ser muito difícil encontrar temas que valha a pena destacar. Como já era esperado o documento não contém nada de inovador ou surpreendente, para além da habitual menção à distribuição de dinheiros e aos aumentos de salários. O Governo da RAEM continua a colocar em primeiro lugar a defesa da estabilidade e da prosperidade, especialmente porque convém levar as coisas com calma, atendendo à proximidade das eleições para a Assembleia. Quanto à criação do Novo Órgão Municipal, aparentemente antes de 2018 não haverá novidades. Mas se olharmos para assuntos como a eleição directa de 50% dos deputados e o sufrágio universal na escolha do Chefe do Executivo, chegamos à conclusão que estas matérias nunca passarão de slogans e “agendas” para matar o tempo na Assembleia Legislativa, a menos que muitas vozes populares se ergam para as fazer valer. Os debates da Área de Administração e Justiça limitam-se a ser sessões de interpelação oral, resumindo-se a infindáveis sequências de perguntas e respostas. Os leitores mais curiosos podem verificar que as próximas sessões justificam o que acabei de dizer. Macau é um lago de águas estagnadas com umas pequenas ondulações. A loiça suja é tanta que não fica a dever nada à do 16º Festival de Gastronomia! Ultimamente tem-se ouvido dizer que o Mar Morto pode secar um dia. E este lago de águas estagnadas, será que um dia destes começa a cheira mal? Nos últimos anos a economia de Macau tem lucrado com as reformas verificadas na China e com a política dos “Vistos Individuais”. No entanto a taxa de câmbio entre o yuan e o HKD caiu recentemente de 1000 HKD = 830 Yuans, durante Agosto de 2015, para 1000 HKD = 883 Yuans. Quando as pessoas se apercebem que o dinheiro que possuem está constantemente a desvalorizar, quem é que tem vontade de o guardar? O crescimento anormal do mercado imobiliário, a emissão descontrolada de dinheiro em papel e o aumento do crédito mal-parado, são fenómenos prejudiciais que, a manter-se, podem fazer com que a economia chinesa decaia à medida que a americana dispara. Depois da 6ª Sessão Plenária do 18º Comité Central do Partido Comunista Chinês, o Presidente tem-se deslocado constantemente para tratar de assuntos de política interna e de crescimento financeiro. Em Hong Kong, o Chefe do Executivo movido pelo desejo de ser reeleito, utilizou a questão da “independência do território”, um conceito sem pernas para andar, para levar o Comité Permanente do Partido a interpretar a Lei Básica. Talvez, do seu ponto de vista, o Governo Central não esperasse que os tumultos fossem uma ameaça de mudança e quantas mais facções e desentendimentos houver em Hong Kong, mais hipóteses terá de ser reeleito. Já o Chefe do Executivo de Macau só quer que as coisas se mantenham o mais sossegadas possível até ao fim do seu mandato, e o resultado das eleições do próximo ano vai certamente assegurar que assim seja. No que respeita à eleição de 2019 para a chefia do governo, os candidatos que se vão apresentar serão aqueles que forem aprovados pelo Governo Central já que não há muitas opções no pequeno círculo político de Macau. É possível que o Governo Central saiba mais sobre Hong Kong e Macau do que os seus habitantes. Se Leung Chun Ying for sensato retira-se de cena enquanto mantiver a boa forma. Em Macau, com o início do julgamento do antigo Procurador do Ministério Público – que, alegadamente, cometeu muitíssimos crimes -, espera-se que ainda saiam muitos coelhos da cartola. O que está para vir dos desenvolvimentos do “caso da permuta do terreno da Fábrica de Panchões Iec Long” pode funcionar como um detergente para desinfectar as nódoas da corrupção espalhadas por Macau. Oxalá possa lançar uma luz de esperança sobre as sombras que cobrem a cidade. É certo que as Linhas de Acção Governativa para 2017 não trazem surpresas, mas é possível que grandes surpresas estejam à vista num futuro não muito distante.
Leocardo VozesDois mil e desassossego [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ano de que está agora a pouco mais de um mês de findar é já considerado para muitos “um ano para esquecer”. Foi em 2016 que desapareceram alguns ícones da nossa era, casos de David Bowie, Prince, ou mais recentemente Leonard Cohen, e isto sem esquecer outros menos mediáticos ou já retirados, casos da também cantora Natalie Cole, ou do comediante Gene Wilder. Todos deixam saudades, e apesar de neste aspecto ter sido um ano especialmente triste, não foi muito diferente de todos os outros: as pessoas morrem. Facto. Já num outro quadrante, o da política, o ano ficou marcado por uma mudança de paradigma que alguns temem ser “perigosa”, com a votação da saída do Reino Unido da União Europeia, vulgo “Brexit”, e com a eleição de Donald Trump como 45º presidente dos Estados Unidos. Há quem vá mesmo mais longe, e faça destes dois acontecimentos uma leitura fatalista, como se da chegada de dois dos cavaleiros do Apocalipse se tratasse, e com um terceiro a caminho – falo naturalmente de Marine Le Pen, mais que provável candidata da direita às eleições presidenciais francesas do próximo. As comparações com a ascensão do Terceiro Reich e na Alemanha dos anos 30 do século XX são para alguns “inevitáveis”, e de tudo isto só acho engraçado que da História se tenham apreendido datas e factos, mas não se tenham retirado nenhumas conclusões. A questão do Brexit foi empolada, tanto pelos media como pelos seus apoiantes, mas quem se opôs deu o seu contributo para que de um simples copo de água se levantasse um autêntico “tsunami”. Depois de todo o foguetório vindo de cada uma das partes, ficou agora mais claro que a saída dos britânicos da UE depende da vontade política, e o referendo serve apenas como argumento para os que defendem a ideia – mesmo que seja aqui um argumento de peso. A eleição de Donald Trump “deixou a América profundamente dividida”, recorrendo a um chavão recitado vezes sem conta nas últimas semanas. Quer dizer portanto que deixou a América como sempre esteve, e neste aspecto quer Trump, que outro qualquer, não acrescentam nem retiram nada. Neste último particular, os maiores receios têm a ver com o discurso do empresário, que personifica aquela nova escola de ausência do pensamento que dá pelo nome de “desprezo pelo politicamente correcto”, ou numa palavra apenas, o populismo. Em Janeiro do próximo ano Trump vai ser empossado como presidente e não como “dono daquilo tudo”, e muitas das suas promessas delirantes, que causaram em alguns uma espécie de “transe” entusiástica são simplesmente inconcebíveis, pois de tudo o que de mau existe na América ou em qualquer outro estado de Direito há algo que está acima do próprio presidente: a lei. Para o bem e para o mal as coisas são mesmo assim, e aquilo que levou a que muitos considerassem a presidência de Obama “decepcionante” por este não ter trazido a “change” que prometeu, pode ser que agora os venha deixar aliviados. Ao contrário do que se possa pensar, este meu “optimismo” não se opõe ao pessimismo da generalidade, mas antes ao seu derrotismo. Dizer que o “Brexit” é “a vontade da maioria dos britânicos” é uma falácia, uma vez que pouco mais de um quarto destes votou nesse sentido, e como já é do domínio público, Trump obteve um número de votos inferior aos da sua adversária, e só venceu da mesma forma que em Portugal temos um Governo que obteve nas últimas eleições menos votos que o seu opositor directo: através da representatividade. E é aqui que muitos ralham e não têm razão, na casa onde falta não o pão, mas a vontade. A minoria descontente, composta por gente desinformada, mesquinha, xenófoba, ignorante, chamem-lhes o que quiserem, foi simplesmente fazer a única coisa que estava ao seu alcance, e não recorreu a meios coercivos e violentos para o fazer – venceu por falta de comparência. E se este ano foi mau, há quem já faça “por baixo” as suas previsões para 2017, e falando agora das tais presidenciais francesas, muitos já dão como certa a vitória de Le Pen e da extrema-direita, como se impedir a vontade da tal “minoria não esclarecida” fosse tão inevitável como a peste negra. O derrotismo tem destas coisas, é contraproducente, da mesma forma que é patético pecar por omissão e mais tarde andar pelos cantos da casa a lamentar-se, enquanto se pergunta “porquê?!”. Então não sabem porquê? Também contribuíram para isso, então; afinal também viram, mas NÃO estavam lá.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesEmpregadas filipinas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 29 de Outubro o Departamento do Trabalho do Governo da RAEHK chegou a um acordo com vários países. Neste acordo ficou consagrado que, mediante a garantia de condições de segurança, os empregados domésticos imigrados, oriundos desses países, podem lavar a parte exterior das janelas das casas onde trabalham. Este acordo é válido para trabalhadores filipinos, tailandeses, vietnamitas, indonésios, etc. Esta cláusula restritiva passará a estar inscrita no contrato de trabalho celebrado entre a entidade empregadora e o trabalhador. Os termos da cláusula foram elaborados pelo Governo da RAEHK e pelos diversos países que o assinaram. Esta medida foi tomada devido a um acidente fatal, ocorrido a 9 de Agosto deste ano, no qual Rinalyn Dulluog, empregada doméstica filipina, perdeu a vida por ter caído na rua quando estava a lavar a parte exterior de uma janela. Em Hong Kong, entre 2010 e 2016, ocorreram mais oito acidentes semelhantes. Vários empregados domésticos filipinos deixaram claro que vieram para Hong Kong para trabalhar e não para morrer. Este sentimento é facilmente compreensível. Ninguém deseja morrer no posto de trabalho, por maior que seja a indemnização que os familiares venham a receber. Mas, efectivamente, a lavagem do exterior das janelas pode pôr a vida em perigo. Qualquer descuido pode resultar numa queda fatal. O presente acordo envolve vários aspectos que gostaria agora de salientar. Em primeiro lugar, as estatísticas demonstram que desde 2010 ocorreram nove acidentes deste género, e por isso esta cláusula passa a fazer parte dos contratos de trabalho do pessoal doméstico. O Governo da RAEHK implementou esta medida reflectindo a ideia da “importância da vida”. Cada pessoa é um ser único, seja rica ou pobre. A vida é um dom que não pode ser substituído. Nas sociedades actuais, com um nível de educação superior, a consciência da importância da vida humana é maior. Por isso, estas mortes acidentais geram grande polémica. As pessoas reclamam certamente por pesar, mas também porque desejam afirmar a “importância da vida”. Este acordo é aclamado pelos empregados domésticos filipinos, mas também pelos patrões de Hong Kong, que respeitem a importância da vida. A maior parte dos trabalhadores domésticos em Hong Kong são mulheres vindas das Filipinas. Muitas são casadas, nas deixam o seu País para virem para Hong Kong servir famílias locais e tomar conta de crianças e idosos. Mas as suas próprias famílias, filhos e pais ficam à guarda de outros familiares. Tudo isto revela o sacrifício que fazem para virem ocupar-se do bem-estar dos lares de Hong Kong. Em segundo lugar, vamos ver que medidas estarão previstas para garantir a segurança nestas situações, que ao certo ainda não se sabe bem quais serão. Alguns artigos afirmam que existem dois requisitos que os patrões terão de assegurar. A – As janelas terão de ter gradeamento exterior B – Ao limpar a janela, a única parte do corpo do trabalhador que pode ficar de fora é o braço. Serão estas alíneas suficientemente claras? Não sabemos ao certo. É necessário implementar estas medidas para, na prática, termos uma ideia da sua eficácia. No entanto, podemos ter a certeza que a segurança não passa só pela instalação de gradeamento. Será também dever do empregador assegurar que são funcionais. Ou seja, a grade deve estar em boas condições e ser suficientemente sólida de forma a impedir quedas. Se não o for, esta medida é inútil. Logo, é uma acção que requer manutenção. Em terceiro lugar, já que esta cláusula foi elaborada pelo Governo da RAEHK e por outros países, espera-se que daí resulte prudência e justiça. Nem os patrões nem os empregados devem procurar lucrar com este contrato. Pelo que as querelas contratuais podem ser evitadas. Em quarto e último lugar, assinale-se que este acordo apenas introduz uma clausula no contrato de trabalho, não acrescenta uma alínea à lei laboral. Este acordo abrange apenas os trabalhadores imigrantes e não os locais. No entanto abre uma porta aos empregados domésticos de Hong Kong para estabelecerem com os seus patrões as mesmas condições de segurança. De forma geral esta acordo é bom, todos saem a ganhar, o Governo, os trabalhadores e os patrões. Em Macau também existem muitas empregadas domésticas filipinas. Este caso pode levar a que, também aqui, sejam adoptadas medidas semelhantes que garantam a sua segurança.