Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA China empresarial “President Xi Jinping emphasized that innovation; economic restructuring and consumption should be among the top priorities of China’s next stage of growth (the 13th Five-Year Plan for 2016–2020). The “Internet Plus” action plan seeks to drive economic growth by integration of internet technologies with manufacturing and business.” “China’s Mobile Economy: Opportunities in the Largest and Fastest Information Consumption Boom” – Winston Ma, Xiaodong Lee and Dominic Barton [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] crescimento da economia chinesa parecia imparável. O antigo modelo de crescimento, que depende fortemente do planeamento estadual e de um imenso investimento em infra-estruturas e propriedades, prospera com um uso maciço de crédito fornecido pelo sistema financeiro dominado pelo Estado, que se está a esgotar a todo o vapor. O sucesso da transformação económica da China depende da capacidade de correcção das suas instituições. Muito pode ser alcançado se forem retiradas as lições correctas do passado recente, que permitiu o inigualável sucesso económico da China, e principiar o trabalho de fazer face aos problemas estruturais que têm algemado o espírito empreendedor do povo chinês. Apesar de todas as suspeitas que muitos analistas levantam sobre a economia chinesa, a imagem não é de pesar, antes pelo contrário, havendo muitas razões para ser confiante. Embora a taxa de crescimento anual do PIB tenha caído para menos de 7 por cento, ainda representa maior produção económica do que os 14 por cento de 2007, simplesmente, porque a economia se tornou muito maior, e ao longo do tempo, temos observado o surgimento de novos tipos de empresas na China. Os altamente disruptivos são os que mais agressivamente usam novas tecnologias, como a Internet móvel para desafiar operadores ineficientes, são globais em visão, mais dispostos a assumir riscos, e mais qualificados na administração do mercado de capitais, podendo aproveitar ao máximo as potencialidades da nova tecnologia e fornecer não só melhores produtos de fabrico, mas também serviços de qualidade cada vez mais sofisticados, sendo a esperança das grandes empresas da China. As pessoas estão curiosas em saber como se explica o crescimento da economia chinesa e a forma como tal aumento implicou para o resto do mundo. O surgimento da economia chinesa decorreu do espírito empreendedor dos executivos e fundadores corporativos que tinham sido incentivados e libertos devido à reforma da China e às políticas de abertura. As suas histórias de sucesso e fracasso tornaram-se gradualmente assuntos de pesquisa de negócios e matéria de casos usados no ensino das escolas de negócios, e instrução de empresários e líderes de negócios pelo mundo. Após três décadas e meia de desenvolvimento económico, a China transformou-se de um país empobrecido na segunda maior economia do mundo. O pesquisador do Instituto de Tecnologia Computacional da Academia Chinesa de Ciências (CAS), Liu Chuanzhi, em 1984, decidiu aventurar-se no mundo dos negócios e com a ajuda de dez outros colegas, criou uma empresa de tecnologia em Zhongguancun, um distrito onde a maioria dos institutos nacionais de pesquisa estão localizados, tendo conseguido juntar RMB 200.000 como investimento inicial. O objectivo de Liu era humilde, pois tratava-se de desenvolver um sistema para acelerar a digitação de caracteres chineses em computadores e, se possível, ganhar algum dinheiro, e provavelmente estava além dos sonhos mais loucos de Liu, pensar que a sua pequena empresa se tornaria em uma das empresas de tecnologia mais bem sucedidas da China. A empresa, mais tarde conhecida como Lenovo, foi classificada como a 231.ª maior empresa do mundo em vendas pela revista Fortune, em 2015. Liu não só se orgulha da maior quota de mercado de computadores do mundo, mas também desenvolveu uma base sólida em áreas como smartphones, tablets, megadados, computação em nuvem, private equity, venture capital investment e agricultura. A Lenovo era uma empresa totalmente doméstica, antes da aquisição da unidade de computadores da IBM, em 2005. A partir de 2015, os activos e as vendas no exterior ultrapassaram 50 por cento, e os executivos não chineses representam mais da metade dos executivos seniores da Lenovo. A Lenovo tem sido amplamente vista como a empresa mais orientada para o mercado e a mais internacional da China. Em 1980, Ren Zhengfei, um ex-oficial do exército, mudou-se para Shenzhen para tentar a sua sorte. Após algumas tentativas fracassadas, fundou a Huawai Technologies, em 1988. Em menos de trinta anos, a Huawai tornou-se a fornecedora e líder mundial de equipamentos de informação e telecomunicações, exportando produtos e serviços para mais de cento e cinquenta países. As vendas totais da Huawei, em 2014, ultrapassaram duzentos e oitenta e oito mil milhões de RMB, e o seu lucro líquido foi de cerca de vinte e oito mil milhões de RMB. A Huawei tem vendas significativamente maiores do que os campeões tradicionais neste campo, como a Ericsson, Alcatel-Lucent e Siemens. A Huawei é também o terceiro maior produtor de smartphones do mundo, com mais de 9 por cento da participação no mercado mundial, desde do terceiro trimestre de 2015. A Sany Group, empresa sediada em Changsha, capital da província de Hunan, anunciou em 20 de Janeiro de 2012, a aquisição da Putzmeister, fabricante alemão de máquinas de engenharia e gigante industrial. Quando Liang Wengen fundou a Sany em 1994, possuir o “elefante” (apelido de Putzmeister) era apenas um sonho. A Sany, em menos de 20 anos, possuía o “elefante”, e também obteve acesso às tecnologias de ponta e canais de distribuição da Putzmeister em todo o mundo. O maior processador de carne da China, a Shuanghui International Holdings Ltd., em Maio de 2013, firmou um acordo de 4,7 mil milhões de dólares para adquirir a Smithfield Foods Inc., dos Estados Unidos. O negócio marcou a maior aquisição de uma empresa americana por uma empresa chinesa. A Smithfield Foods Inc. foi criada em 1936, juntamente com outras quatro empresas, e controla 73 por cento da indústria de transformação de carne de porco dos Estados Unidos. Enquanto a receita de Shuanghui foi de 39,7 mil milhões de RMB, em 2012, a Smithfield referiu uma receita duas vezes maior que o da Shuanghui, de aproximadamente de 80,3 mil milhões de RMB, em 2012. A aquisição aumentou significativamente a escala global em negócios da Shuanghui, estabelecendo uma base sólida para a sua Oferta Pública Inicial (OPI), em Hong Kong. A procura por carne de porco continua a aumentar na China, estando a Shuanghui a emergir como um império porcino. O empresário Lei Jun, em um pequeno escritório alugado em Pequim, juntamente com os seus seis parceiros, em Abril de 2010, anunciou a fundação de Xiaomi.com. Lei Jun tinha sido um empresário de sucesso antes de fundar a Xiaomi.com e levou a Kingsoft, uma empresa de desenvolvimento de software, para o estatuto de OPI. Fundou também, a Joyo, uma plataforma de comércio electrónico que foi adquirida pela Amazon. O fundador da Xiaomi.com, estava predestinado a entrar no mercado de smartphones high-end. A Xiaomi.com, um ano mais tarde, lançou o seu telefone de primeira geração com um preço de retalho de 1999 RMB. Tendo por base as vendas na Internet e o marketing de boca-a-boca, as vendas de Xiaomi.com aumentaram rapidamente, vendendo mais de sessenta milhões de aparelhos em 2014, e tornando-se o sexto maior produtor mundial de telefones celulares. O telefone móvel, para Lei Jun, não é apenas um dispositivo simples. É um equipamento que engloba software, serviços de internet e hardware. O Xiaomi.com, desde o início, tem conseguido desenvolver um ecossistema que não só abriga aplicativos, mas vende também, uma ampla gama de artigos, desde entretenimento, passando por software até serviços. A sua mais recente avaliação, efectuada no final de 2014, fixou o valor da Xiami.com em quarenta e cinco mil milhões de dólares, sendo considerada uma das mais valiosas “startups” do mundo, e uma das dez maiores empresas de Internet, em valor estimado de mercado no mundo. Durante as últimas três décadas e meia, histórias como Lenovo, Huawei, Sany, Shuanghui e Xiaomi têm abundado na China. A China empresarial está a crescer, e juntamente com a surpresa improvável do impulso da China corporativa é o rápido crescimento da economia chinesa, desde que o governo chinês iniciou a reforma económica em 1978, a China conseguiu manter uma taxa média de crescimento do PIB de mais de 9 por cento. A China ultrapassou o Japão para se tornar a segunda maior economia do mundo, em 2010. A China ultrapassou os Estados Unidos para se tornar a maior fabricante do mundo, em 2012. A China produziu menos de 3 por cento da produção total mundial, em 1990. Esta proporção aumentou para quase um quarto. Considerando a indústria do alumínio como um exemplo. Os produtores chineses de alumínio representavam apenas 4 por cento da produção mundial, em 1990 e até 2014, a sua participação aumentou para 52 por cento. Ao longo do caminho do desenvolvimento, a China também se tornou o maior consumidor de bens de luxo do mundo, bastando caminhar pelas ruas de Pequim, Xangai, Shenzhen e muitas cidades costeiras, para se poder facilmente sentir o entusiasmo dos cidadãos chineses, em que muitos parecem viver uma preocupação optimista, falando pelos iPhones, carregando malas Rimowa, calçando sapatos Prada e usando relógios Piaget. Ainda que o crescimento do PIB tenha abrandado nos últimos anos e muitos tenham perdido a fé no discurso da China, esta continua a ser o mundo da manufactura e centro de exportação, e um dos motores de crescimento mais poderoso do mundo. Todos os anos, a revista Fortune publica uma lista das 500 maiores empresas do mundo, a Fortune Global 500. Este produto clássico da revista é muito valorizado pelos meios de comunicação chineses, bem como pelas empresas chinesas. O facto de constar desta lista, para muitos, tem o significado de se tornar em uma empresa de classe mundialmente respeitada. Para a China empresarial, o real progresso deu-se em 1986, quando duas empresas chinesas entraram na lista pela primeira vez. O número de empresas chinesas na Fortune Global 500, desde então, tem aumentado, aparecendo cento e seis empresas, em 2015, em comparação com cento e vinte e oito nos Estados Unidos. A China já obteve mais empresas listadas na Fortune Global 500, desde 2011, do que a Alemanha e o Japão, tendo sido ultrapassada apenas para os Estados Unidos. As empresas chinesas, nos últimos trinta e cinco anos, transformaram-se com sucesso de acordo com a prática e os padrões de empresas como a GE, Toyota e Shell. A revista Fortune classifica as empresas globais de acordo com suas vendas totais. O limiar para a lista de 2015 foi de cerca de vinte e quatro mil milhões de dólares, correspondente a cerca de cento e cinquenta e quatro mil milhões de RMB, e mais de cem empresas relataram vendas acima dos cento e cinquenta mil milhões de RMB, em 2015, pelo que o aumento da China empresarial não poderia ser mais óbvio. Em grande medida, esta vaga simboliza o sucesso económico da China nos últimos trinta e cinco anos. Em 2015, entre as dez maiores empresas do mundo por receitas, estão três empresas estatais chinesas, a Sinopec, PetroChina e State Grid Corporation da China. A China não tinha uma única empresa no sentido moderno do termo, quando em 1978, foi forçada a iniciar a sua reforma económica. As denominadas por empresas, eram unidades de trabalho do tipo instalado na União Soviética, destinadas a cumprir as tarefas que lhes fossem atribuídas pelas agências de planeamento, em diferentes níveis. Até então, o Banco Central da China, o Banco Popular da China (PBOC na sigla em língua inglesa), sob a supervisão do Ministério das Finanças, também funcionava como um banco comercial. O PBOC desagregou as suas funções comerciais e deu forma ao Banco Industrial e Comercial de China (ICBC na sigla em língua inglesa) nos princípios da década de 1980. Desde então, o ICBC tornou-se um dos maiores intermediários finais do mundo. O ICBC, em 2015, foi considerada a décima oitava empresa mundial em termos de receita, o maior banco e a empresa mais rentável, batendo a Apple e a Exxon. Transformando-se de simples unidades de produção sob a economia planeada para empresas orientadas para o lucro e mercado, a China empresarial concluiu com êxito a sua primeira metamorfose. Estudar a ascensão rápida e inverosímil da China empresarial é trabalho fascinante, pois apresenta muitas perguntas, algumas preocupantes, tal como o facto de milhões de empresas chinesas, muitas vezes em larga escala, conduzirem negócios na ausência de infra-estrutura institucional bem desenvolvida e como se processa a aplicação da lei e a protecção dos direitos de propriedade.
Isabel Castro Vozes(Ainda) Soares [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] atraso é uma sensação que me persegue mais vezes do que gostaria. Não se trata de um atraso real, aquele que faz com que se lute contra os minutos. É antes uma espécie de atraso na própria existência, como se sentisse que, se tivesse chegado uns anos antes, poderia perceber melhor onde estou. E não só. Não vi Brel. Nem Piazzolla. E não vi Zeca. Foi tudo demasiado antes para mim. Quem já cá estava dirá o mesmo sobre o que não encontrou. Talvez. Cheguei a Macau atrasada. Não tenho ponto de comparação. Nem sempre interessa o exercício do paralelismo, mas há momentos em que me faz falta. Não me emocionei numa noite de Dezembro. Não me fui embora com vontade de ficar. Não sei como era e há dias em que gostava de saber como é que isto tinha sido antes, bastante antes, por curiosidade antropológica e vontade estética. Cheguei tarde. Talvez. Talvez não. No ano em que nasci, Portugal teve quatro governos. Uma confusão dos diabos. Mário Viegas era D. Lucas em O Rei das Berlengas. Elis Regina ainda cantava e foi a Portugal votar num festival da canção em que José Cid ficou em segundo lugar. Uns meses mais tarde, noutro registo, quase premonitório, aconteceu a primeira greve de jornalistas da rádio. Lou Reed ia já no oitavo disco a solo. Nos Estados Unidos mandava Jimmy Carter, Roman Polanski andava metido em confusões e atravessava o Atlântico, e aparecia nas televisões a Dallas. Já havia algumas preocupações ambientais, mas poucas. Martin Scorsese fazia filmes e Woody Allen também. Não havia Google, nem YouTube, só bibliotecas e livros e vinis. No ano em nasci, a liberdade no meu país era uma coisa recente: cabia nos dedos de uma mão e ainda sobrava um. As mulheres já tinham regressado aos vestidos, apesar de as calças ainda estarem na moda. Os óculos eram de massa, os comícios políticos eram muito animados e todas as famílias aprendiam a ser de qualquer coisa, de direita ou de esquerda, do centro talvez. Cheguei atrasada ao ano em que nasci. Não me lembro nem da luta pela liberdade, nem da construção da liberdade pela qual se tinha lutado. Cheguei tarde e, por isso, tive de fazer o exercício que se impõe aos pouco pontuais: vai ler sobre o que não viveste, sem te esqueceres de viver pelo caminho. Os livros ensinaram-me qualquer coisa. O Google encontra-me os factos, talvez certos, talvez não, do que ando à procura. O YouTube ajuda-me mais, com os concertos que eu não cheguei a ver. E o Brel canta, o Piazzola toca, o Zeca canta mais do que todos, porque canta mais vezes. Li muitos textos esta semana. Vi alguns programas de televisão. Ouvi análises, corri biografias resumidas, passei os olhos com atenção por textos de opinião. Há sempre palavras-chave e chavões na morte. Chateou-me a falta de educação que inunda certos espaços virtuais, mas passei à frente e preferi ver as flores, as fotografias, o passado em que não vivi e que, de repente, me pareceu mais forte e mais terno, mas terrivelmente mais difícil. Esta semana falou-se muito de liberdade. Aquela que era fresca quando nasci. E, por um minuto, muitos minutos, agora e amanhã também, soube-me bem ter chegado atrasada à vida do costume. Porque eu só sei ser livre, não sei ser de outra maneira, nem quero. Sim, (ainda) Soares.
Leocardo VozesMarocas [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que mais resta dizer da figura do dr. Mário Soares, que nos deixou no passado dia 7, aos 92 anos, que já não tenha sido dito? Em primeiro lugar gostaria de lamentar a forma como alguns portugueses fizeram uso da liberdade de expressão, e que em parte a devem ao dr. Soares, para tecer um sem número de considerações absurdas, e que com toda a certeza repudiariam no caso de as verem a ser feitas em relação a um familiar seu, um amigo próximo ou uma figura que admirassem, numa hora destas. Cheguei a ver pessoas que se “congratularam”, e outras ainda que diziam “ir festejar” – recordo mais uma vez que estou aqui a falar de alguém que viveu quase um século, e se manteve activo até ao fim, fazendo inclusivamente parte do Conselho de Estado até à hora da sua morte. Realmente não existem limites para o ridículo. Claro que a figura do dr. Mário Soares e o seu papel nos últimos 40 anos de História do nosso país não é isenta de críticas. Afinal não estamos aqui a falar de um herói como Nun’Álvares Pereira, ou um santo como o Padre António Vieira. E se há um reparo que se pode fazer logo de imediato, é a forma como se perpetuou na política, perdendo uma boa oportunidade para se retirar graciosamente da vida pública, mesmo antes de ter (inexplicavelmente) se candidatado à presidência da República pela terceira vez em 2006, na altura já com 81 anos de idade. Por falar nisso, e como acérrimo defensor da máxima “o seu a seu dono”, foi o General António Ramalho Eanes que cunhou a célebre frase “serei o presidente de todos os portugueses”, aquando da sua (esmagadora) vitória sobre Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976, numa altura em que o país se encontrava profundamente dividido, na ressaca do infame PREC. E a propósito do PREC, será talvez esse o período em que a actuação de Mário Soares tenha dividido – e extremado – mais as opiniões, nomeadamente na forma como conduziu o processo de descolonização. A forma abrupta como se deu a retirada das ex-províncias ultramarinas deram origem a um dos mais lamentáveis episódios do nosso passado recente, e as vítimas desse equívoco, que ficaram conhecidos como “retornados”, estão certamente entre o coro dos críticos do ex-presidente. É preciso atender ao contexto, e na altura a prioridade do dr. Soares era a de recuperar a credibilidade de Portugal, que estava isolado pelo resto da comunidade internacional, ou “orgulhosamente sós”, como dizia o outro. A parte do “orgulhosamente” tem muito que se lhe diga, e só pode ser entendido como um tipo de “humor negro” (sal)azarento. Certamente que as famílias dos mais de oito mil combatentes que perderam as suas vidas por culpa da teimosia alheia terão uma opinião diferente a este respeito. Nunca fui um grande admirador do político, que a meu ver teve ainda a sua quota parte de responsabilidade num certo tipo de clientelismo que vigora na sociedade portuguesa, com licenciaturas tiradas aos Domingos e caixas de robalos à mistura, mas não posso deixar de admirar a pessoa, que nunca se inibiu de dar a cara por aquilo que defendia, bem como a forma descontraída e acessível como foi, bem, o presidente “Marocas”. Macau tem ainda uma dívida de gratidão com ele, e não é por acaso que o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês fez menção do seu desaparecimento, lamentando a perda “de um amigo”. O seu lugar na memória colectiva dos portugueses, da geração actual e das vindouras, está portanto garantido. E em relação aos outros, dos fracos não reza a História.
Sérgio de Almeida Correia VozesNotas rodoviárias [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] interesse pelos assuntos da Região, a discussão pública das matérias de interesse público e a justa indignação cívica pelo que de mais aberrante sobressai da actuação do Governo e do que se tem legislado, salvo momentos pontuais, não têm constituído ao longo dos anos marcas da participação dos cidadãos de Macau nas questões que lhes dizem respeito. Tornam-se por isso mais noticiadas as acções que fujam ao padrão e que se traduzam em manifestação pública de descontentamento. Foi o que aconteceu no passado dia 8 de Janeiro com um desfile convocado por um grupo de “cidadãos revoltados” que contou com o apoio de alguns deputados e a logística da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau a propósito da entrada em vigor dos Despachos do Chefe do Executivo n.ºs 525 e 526/2016, ocorrida ao cair do pano sobre o ano transacto. Reparar-se-á que as poucas manifestações de desagrado que se têm verificado têm resultado, a pretexto da protecção de interesses muito específicos, alguns de duvidoso interesse comunitário, da introdução de maiores factores de distorção, dentro de um espaço relativamente pequeno, dos sinais de equilíbrio, proporcionalidade, justiça e bom senso que durante anos aqui prevaleceram. A contestação gerada pelos despachos do Chefe do Executivo acima referidos, que agravaram de forma leonina alguns dos valores da Tabela de Taxas e Preços da Direcção dos Assuntos de Tráfego e para a remoção e depósito de veículos nos silos e parques de estacionamento, foram desta vez o mote. Mas vejamos o porquê da situação. Qualquer agravamento de taxas ou coimas é sempre encarado com desconfiança pelos cidadãos. Se as primeiras são tecnicamente a contrapartida pela prestação de um serviço, as segundas constituem um modo de penalizar atitudes e/ou comportamentos que não são suficientemente graves para serem considerados crimes e cujo desvalor não será visto, nem por quem governa e as decide, nem pelo sentimento maioritário da comunidade, como sendo susceptível de colocar em causa os seus valores essenciais. Por isso, também, muitas vezes, embora sejam vistas com desagrado pelos destinatários não geram grandes reacções públicas, nem levam as pessoas à rua com cartazes e palavras de ordem para vincarem o seu desagrado. O problema acontece quando o agravamento dessas taxas e coimas é apenas a face mais visível da falta de bom senso de quem governa e o resultado de condutas autocráticas e incompetentes por parte dos poderes político e legislativo que têm repercussão directa e imediata no quotidiano dos cidadãos, que estando, à partida, predispostos a acatarem as decisões legitimamente emanadas das autoridades competentes, num dado momento sentem que aquelas violam o sentimento de justiça dominante e colocam em xeque o fiel da balança em que assentam os equilíbrios sociais. Posto isto, é compreensível a indignação de quem saiu à rua para protestar contra os despachos do Chefe do Executivo. Se os aumentos em si já são perfeitamente absurdos, constituindo argumento para mentecaptos vir justificar aumentos de taxas e multas que vão dos 50 a mais de 1000% com a falta da sua actualização, sabendo-se que não há inflação que o justifique, a generalidade dos cidadãos não teve aumentos dessa ordem de grandeza, não houve qualquer melhoria na prestação dos serviços em causa e a qualidade de vida da comunidade é infinitamente pior, torna-se ainda mais aberrante pensar que esse tipo de medidas seria aceite pela população sem ondas quando a actuação das autoridades tem sido mais penalizadora para segmentos específicos, em regra os mais desfavorecidos e com menos meios para fazerem face aos constantes ataques que lhes são dirigidos pelo poder político e empresarial, os quais colocam em causa a sua capacidade de compreensão e sancionam em termos gravosos e irremediáveis a sua qualidade de vida. Tudo estaria bem se os cidadãos ao longo dos anos tivessem contado com uma gestão séria, sensata e competente da coisa pública. Se fosse esse o caso, hoje estariam todos mais disponíveis para reconhecerem o esforço de quem governa e compreenderem o sentido de algumas decisões. Infelizmente, não foi o que aconteceu. E que teima em persistir. Daí que se torne mais difícil aceitar decisões como as que actualmente são objecto de discórdia quando: a) Em relação aos auto-silos públicos concessionados qualquer pessoa vê que estes estão entregues ao lixo e ao desleixo dos concessionários, que há anos fazem o que querem, sem manutenção, sem investimentos, com renovação insuficiente da atmosfera, com acessos imundos, muitas vezes servindo de depósito de lixo, receptáculo de urinas várias de animais de diversas espécies e de guarida de toxicodependentes, com serviços que continuam a só dar recibos a pedido, constituindo um acto de coragem circular por eles respirando cheiros vários e muitos fumos; b) A caça à multa é insistente e permanente a qualquer hora do dia em relação aos veículos privados e motociclos, durante a semana, muitas vezes à noite e a intervalos regulares, aos sábados de manhã, domingos e feriados, junto de zonas residenciais e urbanizações privadas (exemplos: One Oasis, Taipa, Rua das Árvores do Pagode, Estrada de Seac Pai Van), não raro em locais onde praticamente não há circulação nesses dias e horas e onde os veículos não causam qualquer estorvo, à porta de escolas, de mercados e de supermercados onde não existem locais públicos de estacionamento; c) Se vêem múltiplas vezes veículos da PSP que circulam e estacionam em transgressão, como na imagem que acompanha este texto (obtida no sábado, 08/01/2017, entre as 10 e as 11 horas no acesso a um túnel de grande circulação), não utilizando sinais de mudança de direcção, circulando aos ziguezagues pelo meio do trânsito, muitas vezes parando em transgressão para irem multar outros veículos ou estacionando na entrada de auto-silos (ZAPE); d) Os autocarros das concessionárias de transportes públicos e casinos e os veículos pesados, camiões e betoneiras, não respeitam nada nem ninguém, param onde querem e como querem, entram de qualquer maneira nos cruzamentos, nas vias com mais de uma faixa atiram-se imediatamente para a faixa direita e aí permanecem, como quando circulam nas pontes, impedindo ultrapassagens que acabam por ser consumadas pela esquerda, sistematicamente ignoram os sinais de mudança de direcção, colocando em risco a circulação dos outros utentes da via, e em situações de congestionamento impedem a entrada de outros condutores que estão em vias laterais de acesso, mostrando toda a sua falta de civismo, compreensão e tolerância para com os outros; e) Enormes nuvens negras continuam a sair impunemente dos escapes de veículos pesados e de táxis; f) As intervenções pontuais de agentes reguladores causam mais transtorno do que fluidez ao trânsito (caso típico é o das rotundas, como junto ao Hotel Galaxy, no Zape ou na Taipa; g) São retirados e eliminados locais de estacionamento e não se colocam parquímetros em sítios onde eles deviam existir; h) Não existe qualquer planificação decente das obras que são levadas a cabo sendo quase permanentes os transtornos à circulação causados pelas múltiplas empresas concessionárias, IACM e/ou DSOPT; i) O alcatrão continua a estar em péssimo estado na maior parte das ruas (recentemente algumas foram melhoradas) e pontes, são centenas e centenas de tampas de esgotos e de empresas concessionárias que estão desniveladas, as intervenções são realizadas “às três pancadas” são inúmeros os locais onde o piso abateu sem que haja uma intervenção correctiva; j) Os táxis continuam sem rei nem roque, rudes, sujos e poluentes, são insuficientes e há horas do dia em que simplesmente não existem porque vão todos comer e render à mesma hora (entre as 18.30 e as 20:00); m) É normal que táxis, carrinhas e carros de luxo dos “casineiros” parem em segunda fila e à porta de restaurantes de luxo, estorvando o trânsito sem que nada lhes aconteça; l) Inexiste um sistema decente de transportes públicos, cujos autocarros circulam cheios às mais diversas horas do dia ou não existem quando são necessários, amontoando-se as pessoas nas paragens, na maioria trabalhadores que pretendem ir trabalhar ou regressar a casa no final de mais uma jornada; m) O sistema de multas está totalmente informatizado, os tribunais continuam a aguardar a informatização, o papel acumula-se e os vendedores de papel e fotocopiadoras continuam a alegremente enriquecer prejudicando o ambiente. O rol poderia continuar, pois que é imenso e múltiplas as razões de queixa dos cidadãos. Para já basta. Por aqui se vê como aos poucos vai-se quebrando a harmonia social que fez de Macau um caso único de convivência entre as suas múltiplas comunidades. Seria bom que os poderes executivo e legislativo e as autoridades policiais, de vez em quando, pensassem nestas coisas. E que quando o fizessem tivessem presente que é sempre melhor desligar o fogão e levantar a tampa para sair o vapor antes da panela de pressão explodir. Mas cuidado, porque se quiserem depois voltar a acender o lume para o polvo ou a dobrada acabarem de cozer estes já não vão amolecer. Nestas situações, a panela pode não explodir, mas depois há dentes que já não resistem ao esforço.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesA polémica do Museu [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a sexta-feira, o South China Morning Post de Hong Kong fez saber que a segunda figura do Governo da cidade, a Secretária Carrie Lam Cheng Yuet-ngor, tinha aprovado a construção de um museu no West Kowloon Cultural District. Em reunião extraordinária do Conselho Legislativo, realizada no dia anterior, alguns deputados expressaram a sua insatisfação por não terem sido consultados antes da tomada de decisão, que resultou do acordo entre o Governo de Hong Kong e o Director do Museu do Palácio de Pequim, Shan Jixiang. Perante este protesto a Secretária afirmou: “Tive uma conversa informal com o Director Shan e ele louvou a qualidade dos curadores dos Museus de Hong Kong. A seguir perguntou-me se o West Kowloon Cultural District teria espaço para construir um edifício onde se pudesse expor peças do Museu do Palácio de Pequim.” O acordo secreto só mais tarde foi efectuado. O investimento, no valor de 3,5 biliões de HK dólares, será da inteira responsabilidade do Jockey Club de Hong Kong. O Museu será construído no West Kowloon Cultural District, na zona ribeirinha do cais. Durante a reunião extraordinária do Conselho Legislativo, a Secretária Carrie avançou ainda, “Hoje em dia se os representantes do Governo não tomarem decisões, Hong Kong não se pode desenvolver.” A deputada Claudia Mo man-ching comentou: “Os habitantes de Hong Kong foram privados desta informação, ela pura e simplesmente ignorou-os.” Kwok Ka-Ki, membro do Partido Cívico, pronunciou-se desta forma: “Esta atitude demonstra na perfeição a distorção dos valores fundamentais. Os representantes do Governo não podem fazer tudo o que querem só para capitalizarem politicamente.” A resposta de Carrie foi simples: “Penso que não violei nenhum procedimento legal.” Não há dúvida que a construção de um museu em Hong Kong para exposição de relíquias culturais é, não só o melhor para a China, mas também para Hong Kong. De acordo com a informação disponibilizada pela Wikipédia, existem cerca de 1,8 milhões de relíquias culturais no Museu do Palácio de Pequim. Como tal, é impossível expô-las a todas no Palácio. Segundo notícia do jornal de Hong Kong, Wen Wei Po, publicada no passado dia 4, 900 peças pertencentes a este espólio serão deslocadas para Hong Kong, por um período de tempo muito alargado. Como é sabido, o período para estas valiosas peças estarem fora da China é limitado. Em geral esse prazo tem o limite de três meses. Neste caso o período alargado quer dizer que irá ultrapassar os três meses. A exposição destas peças em Hong Kong pode ajudar os seus cidadãos a compreender melhor a China, a sua História e a sua cultura. Também pode incentivá-los a emigrar para a China. Aparentemente não há razões para que esta acção não seja apoiada pela população. Se Macau tiver as instalações adequadas, será bom vir a ter mais um Museu. Pode ajudar o “Centro Mundial de Turismo e Lazer” a atrair mais turistas. Mas se esta iniciativa é tão positiva para Hong Kong, porque é que alguns deputados se lhe opuseram? A resposta é provavelmente bastante simples. O artigo 73(2) da Lei de Bases de Hong Kong estipula que o Conselho Legislativo está investido do poder de aprovar o orçamento do Governo. No entanto, como a construção do Museu vai ser custeada na totalidade pelo Jockey Club de Hong Kong, a aprovação do Conselho Legislativo é desnecessária. Mesmo que alguns deputados discordem, nestas circunstâncias, não haverá consequências. O Museu de Hong Kong pode ser construído. Contudo, o artigo 73 (5) da Lei de Bases de Hong Kong investe os deputados do poder de questionar as acções do Governo, e o artigo 73(6) garante-lhes a possibilidade de debater qualquer assunto de interesse público. Mas, como no presente caso, não existem verbas públicas envolvidas, os deputados apenas se podem ater a estes dois sub-artigos para questionarem a acção do Governo. Para além disso, a reconstrução da zona do West Kowloon Cultural District está actualmente sob consulta pública. No entender de alguns deputados essa consulta peca por ser posterior à assinatura do acordo, o que implica que já não há oposição possível. Compreende-se o mal-estar destes deputados, visto que se sentiram ignorados pelo Governo. Nesta perspectiva, a afirmação “Penso que não violei nenhum procedimento legal” é questionável. Hong Kong é uma cidade desenvolvida. Os seus cidadãos são sensíveis a questões que envolvam conflitos de interesse e procedimentos legais. A construção deste Museu é um bom exemplo de como uma acção positiva pode, mesmo assim, gerar bastante polémica. O facto de se ter ignorado os deputados gerou confusão e não cooperação. De hoje em diante, se todas as questões foram tratadas desta maneira em Hong Kong, as acções positivas podem vir a ser uma fonte de polémica. Se a Secretária Carrie pudesse ter compreendido de antemão a sensibilidade destes deputados, e estes pudessem compreender que rejeitar a construção do Museu seria prejudicial para Hong Kong e uma ofensa ao Governo chinês, nada disto teria acontecido. E Hong Kong teria ficado em paz. Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Tânia dos Santos Sexanálise VozesOde ao Traseiro [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma fascinação contemporânea pelo rabo. Talvez sempre tenha existido, mas só recentemente me apercebi que um rabo grande está na moda. Há quem aumente os seus rabos, há quem proteja os seus rabos com um seguro contra todos os riscos (estava a pensar na Jennifer Lopez especificamente, mas há quem diga que é mito urbano)! O traseiro está no centro de todas atenções, tanto masculinas como femininas. Porque é que o traseiro é especial? Porque é que é tão desejado? Há partes do corpo feminino que são mais obviamente sexuais, como as mamas ou a vulva. Mas o rabo informa-nos da perfeita razão entre a cintura e as ancas, um grande sinal de fertilidade e, por isso, é uma grande fonte de atracção pelo sexo masculino, dizem-nos os biólogos da evolução (porque os homens só vão para cama com mulheres de corpos potencialmente paridores, claro). Assim, as razões para o fascínio masculino são muito mais facilmente entendidas – evolução isto, evolução aquilo, quer dizer que consegue ter muitos filhos, consegue subir escadas com genica, um rabo redondinho e musculado é sinal de saúde… E não nos podemos esquecer que um rabo com o ângulo perfeito de 45 graus consegue aguentar uma garrafa de cerveja como se fosse uma prateleira (afinal de contas para que é que serve um bom rabo?). Ou que um bom tamanho de rabo é preditor de uma mulher mais empática, com melhores qualidades sociais e maior inteligência emocional. Eu podia estar a brincar, mas não estou. É desta forma que os grandes mestres da informação sexual e cibernética andam a espalhar a sua sabedoria, a objectificar o rabo o mais que podem, e torná-lo na obsessão mais tonta da cultura pop contemporânea. Esta tendência de naturalizar a objectificação feminina mascarada em teorias simplistas da evolução humana já me chateia. Chateia-me mesmo. Nem tudo é tão dramático, claro. Um bom rabo é giro de se ver, de se tocar e de se fazer o que nos bem apetecer (com consentimento, óbvio). Tanto para homens como para mulheres! Mas alvitrar razões para as mulheres gostarem de um bom rabo, não é tão fácil para os mentores do sexo das revistas cor-de-rosa. Se os homens gostam de rabos das mulheres pela fertilidade, não faz muito sentido que o contrário também se aplique, i.e., as mulheres gostarem dos traseiros fofinhos masculinos porque garantem produção filial. Talvez um rabo mais musculado seja capaz da palpitação incessante para o coito bem sucedido, não sei. A psicologia da evolução não tem ajudado na explicação do fenómeno. Acho que muitos estarão de acordo quando digo que o rabo é uma área de conforto, é fofo, macio, dá gosto em beijar e deixa todos os envolvidos no acto amoroso verdadeiramente felizes. O rabo é daquelas zonas do nosso corpo que é de muito difícil acesso, e por isso é que a sua fascinação é crescente, e a tentativa de tirar proveito dos rabos dos outros faz parte da nossa auto-descoberta. Os nossos traseiros, para além de simplisticamente bonitos, são misteriosos e dignos de alguma atenção amorosa e sexual. Como dizia o James Joyce nas suas cartas de amor muito traseiro-cêntricas, quão grande é o prazer de observar umas ‘nádegas frescas e roliças’. Agora, se este nosso saudável fascínio vale a obsessão actual ao que o rabo é sujeito, ao ponto de incentivar mulheres de todo o mundo ou a pôr implantes de silicone nas bochechas, ou a usar daquelas cuecas com umas próteses almofadadas para criar a ilusão perfeita de que as calças estão bem cheiinhas… Isso é que não. Pelo menos que haja uma aceitação da diversidade de rabos que há por aí. Essas razões para a procriação não valem nada se não se gostar da pessoa, parece uma coisa demasiado óbvia de se dizer, mas vale sempre a pena reforçar. Nós não vivemos na idade da pedra. Quando quisermos assentar e constituir família, quem é que vamos escolher? A pessoa que tem os mesmos valores que nós, as mesmas ideias de como criar um filho, os mesmos planos de vida, ou escolher alguém que tem um rabo grande para garantir que se dá bem a parir um bebé?
Carlos Morais José A outra face VozesLiberdade. O resto não [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]egeto no princípio do erro e por isso amo a liberdade. Não me seria tragável morar onde a minha possibilidade de ler ou escrever fosse sujeita a censura. Foi assim que aprendi a ser humano e desumano. Foi assim que me tornei no monstro que hoje sou, excepção idílica de um homem, longe da definição corrente, quimera racionalizável e impotente. Sim. A impotência de ser livre, de explanar os desejos, de fazer exactamente o que quero como se fizesse exactamente aquilo que desejo, algo de abstruso e desleal, no qual me reconheço pouco ou nada, quando penso no caos, na entropia, no mal. Habitante de refúgios, sentinela da ignomínia, eis-me exposto sem peias e de meias para parecer mais ridículo. Ser livre, pensar hoje e amanhã. Pensar errado ou estimulado, o que vem a ser a mesma coisa. Mas pensar livre dentro das usuais algemas. Exigir o fim da verdade ou do caminho, da via sem dúvidas, das curvas sem outro mundo, esse que fica à espera, muito quieto… do outro lado. Eis o arquétipo, eis a liberdade. Sim. Criticar os uns e aderir, por instantes, aos outros. Sim. Ser do mesmo e do inominável se assim me apetecer. E ser também desdizer tudo o que disse, porque assim me apetece e ser mais: ser bálsamo, cura e religião. Desprezar-me-ia… tivesse eu outra certeza além da voz e nela não palpasse a minha insignificância, distância ao ser e ao devir, e por isso nela cavalgar com furor. Será amor? Não. São interesses, são abismos ávidos, sem recuo nem paixão. Sade rex, num mundo novo, apenas profetizado, do sexo para a mão. Punheta. Japão. Futuro breve, excisão. Nada afecta a minha mão. Somos livres. Biltres exigentes e sem provas anunciadas. Somos nada. Somos mão. E simplesmente desfrutamos da liberdade inclusiva, excessiva, imponderável, sem sentido definido. E onde está o indivíduo? Onde estaciona o homem novo? Curiosamente fechado, ligado, interligado, enquadrado… havia alguma aflição… No problema: há o Japão. À medida exacta da mão que gere, que fere, que range e exangue se distrai sobre o falo rijo de antanho. Era a liberdade. Não interessa o tamanho ou o discurso. Era a explanação de tudo o que não existe, do que foi desdito pela História e pela glória anunciado. Disseram-nos: foi pecado. Mas nós continuámos indecentes. Queríamos lá saber. Havia dentes, dentadas, noites sufragadas de esperança. E a presença das doenças, sem nos amedrontar. Não há meia liberdade. Ou tudo ou nada. Ou tudo ou a estrada. Não há vida de outro modo, a não ser na China, longínquo país de outras danças. E eis-nos feitos crianças, sem nada de novo entender, à excepção do sofrimento, desta coisa de não ser real quando o real nos aponta assim, de dedo em riste e berbequim. A furar, a furar, a meter buchas, parafusos, e nós pregados ao muro de todas as lamentações. Não digam não. Digam sim. Não vale a pena dizer não. O mundo é curto e terno. O universo acaba ali. As novidades são de ontem, os antigos de amanhã pertencem, sempre pertenceram, ao Inverno. São velhos e morrem todos os dias para alívio de um mundo corrente. Junta algum óleo e mete a sertã ao lume que comida, dizem, haverá. E a liberdade? Por onde se distrai a dissoluta puta, que tanto assusta clientes como passantes imbecis? Não sei. Houve uma noite em que a persegui, sem dizer nada. Ela saíra de um clube a meio da estrada. Era fino, repenicado, cheio de laços e de frufus. Abordei-a mas não acrescentei. Fiz de rei. Era o meu peito e nada tinha para dizer. Esgotara-se na desdita, na crítica, avalanche e nevoeiro, condição primeira do homem livre. Haja coragem! Enfrentemos a confusão! O resto, queira-se ou não, é só prisão, é só algemas. De fora ficam poemas, folga doce a ilusão. E o que prefiro? As vossas festas que tudo rompem e tudo me deixam na mão? Bate o ritmo, severo e cru, bate o ritmo, certo e inoperante, como nunca o ritmo foi. Liberdade, por favor… bem sei, conheço o ritmo… ouvi-o nos barcos, fui remador… ouvi-o nas varandas… baixinho: — Só há liberdade a sério quando não houver o rumor rasteiro da verdade, quando a transparência me liquidar sem piedade nem unção. Que homem é este? Que final da História hoje nos atordoa? Não importa quão funda se apresenta a fossa… a quem recusarei a mão? Antes a merda. Antes o povo que me descoroçoa, me abate e aflige. Antes, verdadeiramente antes, o que realmente me atordoa. Tão pouco, tão fraca, tão exangue, esvaída: a liberdade tem um nome: não é querida, nem amor, nem dor, nem manifesto. Protesto e tenho razão, por hoje. Amanhã não tenho outra certeza que a de ser relativamente livre, de alucinar face ao destino. Sou menino, dizeis. Sou livre, sou livro, sou discurso ou intenção. O resto não.
Fa Seong A Canhota VozesUm ano novo sem um bom começo [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara muitos um novo ano significa uma nova esperança, representa um bom progresso e implica uma coisa melhor. Passados estes primeiros dias do ano novo, não me parece que tenham tido esse significado, representando sim dias cheios de preocupações, ansiedade e angústia. Sem qualquer aviso, o Governo decidiu anunciar, no último dia do ano, aumentos para várias taxas relacionadas com licenças, inspecções de veículos, exames de condução e remoção e depósito de veículos e motociclos, dento do universo da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT). Esta medida tornou-se o tema quente da primeira semana do ano, uma vez que só a taxa de remoção de veículos que estejam estacionados de forma ilegal varia agora entre os 400 e 1233 por cento. A explicação do Executivo foi bastante “razoável”, ao afirmar que as taxas não foram alteradas nos últimos dez anos, estando desfasadas do mercado. Também o secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo do Rosário, disse que a medida serve apenas para recuperar os custos que o Governo perdeu nos últimos 20 anos. Num outro artigo de opinião referi que o Governo gosta sempre de fazer políticas sem ouvir ou considerar verdadeiramente a população, voltando agora a repetir o mesmo erro. Isso contraria totalmente o principio da governação “ter por base a população”. Todos sabem que o território está sobrecarregado com um grande número de veículos e que é necessário um controlo efectivo quanto a esse asusnto. No ano passado a DSAT tomou algumas medidas, tendo aumentado as taxas de estacionamento nos parques públicos. Depois do aumento de imposto, parece que o Governo continua a considerar que o dinheiro pode resolver os problemas, mas não me parece que esse meio económico seja o ideal para resolver a questão. As pessoas gostam de conduzir motas porque é muito mais conveniente, podem chegar aos locais mais rapidamente e evitam ter de apanhar os autocarros públicos, onde todos andam como sardinhas em lata. Muitos têm automóvel porque têm família, têm de transportar idosos e crianças, algo que os autocarros não conseguem dar resposta. Acredito que todos aqueles que conduzem em Macau têm experiência com multas. Não encontram lugares para estacionar em lado nenhum e ainda assim recebem logo a mensagem da PSP, a avisar: acabou de ser multado. Mesmo com o Governo a obrigar as pessoas a assumirem esses custos, não acredito que isso vá levar a uma redução do uso dos veículos, pois os transportes públicos continuam a não dar resposta para quem quer chegar ao trabalho e à escola a tempo. Andar a pé é sem dúvida uma maneira mais ecológica de deslocação, mas é difícil para quem vive longe do local de trabalho, sobretudo entre a península de Macau e a ilha da Taipa. Não posso negar que esta medida tem um efeito dissuasor para os graves infractores ou para aqueles que desejam comprar veículos, mas o aumento excessivo não tem em consideração os residentes em geral. Muitos dizem que as multas frequentes para as infracções de trânsito são uma “recuperação da comparticipação pecuniária” por parte do Governo de Macau. Esse é um lado desconhecido do programa de atribuição de cheques do Executivo. O aumento das taxas pode não constituir um grande problema, mas é algo que deveria ser feito passo a passo. Uma vez que é difícil resolver definitivamente o problema dos transportes públicos em Macau, os residentes vão continuar a ter o seu próprio carro, a correr riscos e a assumir encargos. Mais parece que os governantes não conhecem as amarguras dos pequenos residentes.
Isabel Castro VozesCarta a quem manda [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uerido Chefe, queridos secretários, Venho por este meio pedir-vos que façam um exercício de imaginação. Não dói, não demora mais do que uns minutos, poucos, não vos retira o estatuto que diligentemente conquistaram. Não vos obriga a sair do sofá, a levantar da cadeira, a respirar o ar puro com que a cidade nos brinda. Sendo um esforço mental, é certo, trata-se de um exercício de imaginação simples, que não vos cansará, habituados que estais a lidar com processos difíceis, questões complicadas, assuntos pesados. Imaginem-se comuns mortais, com vidas banais e comezinhas. Imaginem-se com dois filhos, ou três, de tenra idade. Imaginem-se a vestirem-nos à pressa, a enfiarem os miúdos nas cadeiras do automóvel, a conduzirem no pára-arranca. Esta semana há mais uma obra na estrada que, na semana passada, ainda não tinha sido plantada. Imaginem-se a terem paciência, imaginem-se a imaginarem que ainda têm tempo de deixar as crianças em duas escolas diferentes. Imaginem que não têm motorista. (Imagine, senhor Chefe, que não tem batedores, imagine que a polícia não lhe abre caminho.) Imaginem que não têm onde estacionar porque não há estacionamento. Imaginem ter de parar no primeiro buraco que encontram para tirarem o descendente mais velho do carro, mais a mochila, a lancheira e ainda o chapéu-de-chuva em dias de pluviosidade intensa. Imaginem terem de fazer tudo isto a correr porque os medalhados agentes da polícia de trânsito não perdem uma só oportunidade de multar pais prevaricadores. Imaginem-se a fazer isto tudo outra vez, dez ou 20 minutos mais tarde, conforme as novas obras que, entretanto, se tiverem inventado. Imaginem-se a irem trabalhar depois de duas discussões com dois senhores agentes, que vos tratam como se uma infracção administrativa fosse um crime de sangue. Imaginem-se a chegar ao trabalho a tempo, com duas multas no bolso que em nada ajudam às propinas das crianças. Imaginem-se a optarem por andar a pé, o que significa andar de autocarro. Os filhos, os chapéus-de-chuva, as mochilas, os sacos do futebol e do ballet, as lancheiras e todos juntos numa viatura que, com sorte, passa a cada 20 minutos, à hora certa. Com sorte, imaginem, as portas do autocarro abrem-se porque, apesar de cheio, cabem mais três ou quatro sardinhas na lata que faz as curvas em duas rodas. Imaginem-se a pararem na central, a tirarem os miúdos do autocarro, a apanharem outro, o outro afinal ainda não chegou, já estão atrasados mas, dada a vossa capacidade de imaginação, imaginem-se a fazer tudo a tempo. Imaginem-se a decidirem andar de táxi. Imaginem-se com uma criança ao colo e outras duas agarradas às pernas, a sujarem as calças do fato com migalhas de bolacha, enquanto tentam chamar a atenção de um motorista que, compenetrado que está na descoberta de turistas, não vos vê. Se vos visse, também não pararia para vos levar ao destino, que não vos reconheceria. Imaginem que ninguém vos conhece, que ninguém se apieda de vós. Imaginem-se a levar um pai velhinho, ou uma mãe velhinha, em cadeira de rodas, ao hospital, lá no alto. Num exercício quase impossível, imaginem-se a tentar entrar num táxi em que o motorista vos ajude a guardar a cadeira no porta-bagagens. Imaginem-se a não conseguirem apanhar um táxi no regresso a casa, o pai, a cadeira de rodas, o saco dos medicamentos e o chapéu-de-chuva, que a água abunda nesta terra. Imaginem-se a terem de apanhar um autocarro com um pai velhinho, ou uma mãe velhinha, em cadeira de todas. Imaginem-se a serem multados porque decidiram levar o carro e lá dentro o pai velhinho, ou a mãe velhinha, em cadeira de rodas. Imaginem-se pessoas. Imaginem agentes da polícia que violam as regras do trânsito só para vos virem multar: galgam separadores e deixam os veículos em que andam onde lhes apetece, para irem de bloco em punho dizerem que o vosso comportamento é errado, porque passou um minuto no parquímetro que não vos dá recibo. Imaginem que eles não vos conhecem, não vos reconhecem. Imaginem-se comuns mortais, sem direito a medalhas, apesar das maratonas diárias, dos ossos cansados, da pilha de multas para pagar na secretária, da frustração, da esperança de que um dia tudo isto possa ser mais simples. Imaginem-se pessoas e percebam que há coisas que não se resolvem castigando, mas oferecendo opções. Imaginem que têm de viver nesta terra e digam aos vossos subordinados medalhados que a Administração, antes de mais, tem de ser uma pessoa de bem. Com os melhores cumprimentos.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesExpectativas para 2017 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s eleições para a Assembleia Legislativa terão lugar em Setembro de 2017. Com a aproximação deste acto eleitoral a população poderá vir a ser mobilizada pelo Governo para manifestações de apoio. As palavras e as acções dos políticos e, eventuais incidentes em que venham a estar implicados, passarão a estar na ordem do dia. Mas, acima de tudo, aparecerão muitos indivíduos a reclamar por justiça para o povo e a bater-se pela democracia e pelo bem-estar social, utilizando fundos do Governo para conquistar votos para si próprios. Neste contexto, os macaenses devem encarar esta questão de forma racional não se deixando influenciar pelos interesses envolvidos. Quando andam todos atrás de proveitos pessoais, a sociedade sofre com isso e também o nosso futuro. Há pouco tempo o Governo implementou medidas para regular a circulação automóvel, como o aumento substancial das multas a veículos que estacionam em locais não permitidos durante muito tempo. Esta medida foi muito mal recebida pelo público e houve quem chegasse a propor a organização de manifestações de protesto. Estes aumentos de multas, e taxas de parqueamento, já tinham sido propostos pelo Governo há alguns anos atrás no âmbito das políticas de transportes terrestres. Mas na altura os críticos ultrapassaram largamente os apoiantes. Na verdade, se os condutores em vez de estacionarem em locais proibidos deixarem os carros nos parques, não serão penalizados pela nova legislação. Mas como não existem locais suficientes para parqueamento legal que satisfaçam as necessidades dos cidadãos, o que irá acontecer se não se tomarem as medidas adequadas? Têm também sido tópicos de discussão os actos de omissão e as arbitrariedades por parte de funcionários do Governo. Há pouco tempo, o marco de fronteira do Templo de Lin Kai, da área de San Kio, tornou-se outro assunto polémico. O marco, uma pedra de pequenas dimensões, estava colocado desde há muitos anos junto a uma casa antiga, adjacente ao Templo, e quem por ali passava mal dava pela sua existência. A antiga casa foi recentemente demolida e no mesmo lugar foi construído um prédio novo. O local onde o marco está colocado tornou-se subitamente o sítio de passagem para que entra e sai das lojas do andar térreo do novo edifício. Por causa disso houve quem sugerisse que o marco deveria ser deslocado para outro lugar. Felizmente, esta sugestão não vingou e o marco continua onde sempre esteve, sem ter sido obrigado a “emigrar” à força. Talvez haja quem defenda que não é nada por aí além deslocar a pedra alguns metros para a direita. Mas se aceitarmos esta ideia, então a “Lei de Salvaguarda do Património Cultural” de Macau pode ser considerada letra morta. Se a deslocação da pedra fosse encarada como uma coisa de somenos, não haveria razão para o empreiteiro não a ter mudado de sítio quando construiu o edifício. E de facto isto não aconteceu porque o marco está protegido pela “Lei de Salvaguarda do Património Cultural”, já que é parte integrante do Templo de Lin Kai, considerado património cultural, ao abrigo da protecção estatutária, e não pode ser removido nem deslocado. Para deslocar o marco, serão necessários procedimentos estatutários governamentais ou de uma associação abalizada para o efeito. Quem cometer uma transgressão terá de enfrentar a punição estipulada por lei. Afinal de contas, em Macau ainda impera o estado de direito. A minha expectativa para 2017 é que Macau se torne em pleno sentido uma sociedade regida pelos princípios do estado de direito, onde todos os cidadãos respeitem a lei e a acção do Governo siga o mesmo exemplo. Quanto aos candidatos a deputados para a Assembleia Legislativa, desejo que para além de virem a ser “fazedores” de leis, também as defendam e não se limitem a ser políticos cuja única preocupação seja a de conquistar votos.
Diogo Simões Tecnologia VozesStrategic Design: a variável secreta da Inovação Empresarial [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] seguro afirmar que a inovação é um dos principais motores da economia global. Novos produtos e serviços estão a concorrer com negócios antigos – o chamado “old money” – e há muito enraizados na nossa cultura, levando a que os mais desatentos os dêem como dados adquiridos. Vejamos o exemplo da Uber e a revolta que gerou nos transportes públicos e privados tradicionais. Há muito tempo que se dava como adquirido que o transporte de passageiros da localização A para localização B era uma necessidade com todas as soluções já descobertas, intensivamente testadas e validadas. A inovação tecnológica encarregou-se rapidamente de provar que essa afirmação era tudo menos verdadeira e que estaríamos no limiar de uma revolução. Como em todas as revoluções, são as pessoas que têm o papel principal. A revolução gira em torno de um descontentamento com determinados conceitos e valores que são unilateralmente impostos. No passado, quando o “old-money” reinava, o produto era dono e senhor – uma ditadura em termos de modelo de negócio. As marcas não queriam saber das pessoas nem do que estas consumiam. A estratégia era completamente invertida: existiam produtos limitados e as pessoas consumiam o pouco que existia no mercado, sem grandes alternativas de expressar a sua opinião ou de mostrar o seu descontentamento. Mas será a inovação tecnológica por si só é suficiente para gerar um novo paradigma de negócio? Será que a tecnologia foi a principal variável desta equação? Transcrevendo esta mesma equação: de um lado está uma necessidade que precisa de ser colmatada, do outro lado está a inovação tecnológica. É suficiente? Retratando de uma forma mais prática: de um lado está a necessidade de transporte de passageiros, do outro está a tecnologia para tornar empresas como a Uber possíveis. Colocando as variáveis nesta posição, estamos a descrever exactamente o modelo de negócio de tempos passados onde a simples fórmula “Problema resolvido é igual à soma da necessidade com a tecnologia.” Então o que distingue o “old-money” do “new-money”? O que faz com que, por exemplo, o maior grupo hoteleiro, com 8.000 (oito mil) quartos esteja avaliado em $7B e o Airbnb, com 0 (zero) quartos esteja avaliado em $30B? A resposta para estas perguntas é tão simples que este artigo pode parecer irrelevante: a forma de ouvir os consumidores mudou. Existe mais uma variável na tal equação que funciona tão naturalmente que passa despercebida aos olhos de quem a consome: O Strategic Design. Este processo oferece às empresas uma forma de olhar para o negócio como um todo e não apenas para as partes que pareçam mais frágeis. E muitas vezes essa fragilidade não está no produto ou serviço, está na experiência que estes oferecem aos seus consumidores, às pessoas. A experiência de utilização de um serviço, produto ou mesmo de uma marca é vital para o seu sucesso e, nos dias de hoje, não está apenas ligada à própria utilização mas também ao que a precede e sucede. Como referi anteriormente, a necessidade de transportar pessoas sempre existiu. E sempre existiram formas de a satisfazer. A pergunta que impera é: as soluções que existiam no mercado ofereciam uma boa experiência de utilização a quem as procurava? O mercado mostrou rapidamente que não. E é neste “não” que as empresas têm de trabalhar. A geração de novas ideias e conceitos é óptima para a inovação, mas esta fase é só o início do processo. As ideias precisam de ser validadas por quem vai usufruir delas: as pessoas. Os consumidores que vão comprar têm de ser ouvidos e esse feedback é crucial para as marcas e para as empresas. O sucesso do Strategic Design, aliado à tecnologia, facilmente é validado quando empresas como a Uber, Paypal, Airbnb e Netflix – entre muitas outras – o utilizam para manter viva a experiência que oferecem ao seu público-alvo. Nesta nova Era as empresas não podem olhar para o passado em busca de orientação, o sucesso depende hoje da intersecção de novas tecnologias com as rápidas mudanças nas expectativas dos clientes. É necessário que os empresários, empreendedores e decisores, descubram quem está no mercado e oferece aconselhamento em Strategic Design, para que possam começar a desenhar experiências de utilização que cativem o cliente desde o primeiro contacto com o seu negócio.
Andreia Sofia Silva VozesIt’s the 2017 way, suckers! [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho andado durante estes primeiros dias do ano ocupado com coisas mais mundanas, como seja dormir, por exemplo, mas não queria deixar de abrir as hostilidades para 2017 aqui nas páginas do Hoje. Assim, e de forma a ser mais digerível do que a doçaria da quadra que amanhã termina, apresento os meus “dois tostões de prosa” na forma de itens numerados, para assim facilitar também a consulta. 1) Lamento imenso o que sucedeu a José Pereira Coutinho, que viveu na véspera de Natal aquilo que é apenas o início um drama familiar. Mais do que o impacto que possa ter na sua imagem política, o caso que envolve o nome dos filhos do deputado e presidente da ATFPM é algo que mudará muito mais do que a sua agenda profissional. Quem passa por isso sabe o que custa. Tenho a certeza que ele enfrentará com garra mais este desafio, como tem feito sempre até hoje. Uma mensagem de força e coragem para Pereira Coutinho. 2) Já no próprio dia de Natal e seguinte chegou-nos a notícia da morte de George Michael, ídolo da juventude dos anos 80 e ícone homossexual depois disso, e actualmente as duas coisas, conforme as vontades. O cantor que formava a metade mais visível dos “Wham!” escreveu em 2011 nas redes sociais que “nunca pediria desculpa pela sua orientação sexual”, e que “nem todos os homens o são [“gay”] mas…AH AH!” – assim, tal e qual. Bem, parece que o Jorge Miguel sabia de algo que eu ignoro por completo, e agradeço a atenção, apesar de nunca me ter ocorrido esta dúvida. E paz à sua alma, que até nisto era grande, o Jorge. 3) E também a propósito da onda de óbitos no meio das celebridades, o actor Charlie Sheen cometeu um desabafo, também nas redes sociais, onde se lia: “Deus, o Trump a seguir, por favor”. Caiu logo o Carmo e o Capitólio, pois razões que podeis imaginar, e por isso gostava de deixar aqui uma coisa bem clara: se me virem a suspirar qualquer coisa do tipo “Deus me livre”, não estou a rogar ao criador que elimine fisicamente alguém ou alguma coisa que me aborreça. Pelo sim e pelo não…e se fosse assim tão fácil… 4) Começando e acabando com Macau, parece que não houve fogo de artifício oficial na passagem de ano, por razões de logística (?). Mas no COTAI as munições chegaram a tempo, o que me levou achar graça a um comentário que li por aí algures: e que tal deixar o foguetório a cargo de quem entende da poda? Feliz 2017!
Carlos Morais José A outra face VozesO ano da máscara [dropcap]P[/dropcap]revisões fazem os bruxos ou, na melhor e mais enigmática das hipóteses, o Yi Jing. Da minha parte, teríeis cassandricas opções, pois que a paisagem não inspira discursos belos e ainda menos idílios. Mas tal não será caso para grandes desesperos. Aliás, a malta de hoje não é de desesperar. A coisa sagra-se mais em deixar andar o comboio e aproveitar o deslizar da carruagem, sem mesmo reparar por quais carris se rola ou se enrola ao deslizar. É assim o mundo e podia ser pior, rezaria o Dr. Pangloss* se rezar lhe ajuntasse vantagem, nesse exacto mundo que ele percepciona e não noutro, lamentavelmente, oculto a olhares burgessos. E assim continuaremos em 2017, não muito diferente de 1917, à excepção de uma revolução cujo desfecho resultou na morte das revoluções. Andámos muito desde então. Para a frente e também para trás. Muito se liquidou: algumas coisas bem, outras não. Há uma cegueira cíclica nesta humanidade indecisa: o extermínio de pessoas e de livros. Aos últimos, hoje, não é preciso queimá-los. Eles encarregam-se disso. E é neste espírito, imerso e paradoxal, que vos proponho em 2017 o adensar da máscara, o aumentar da distância em relação ao outro, a construção de muros entre nós e esse México que por aí anda. E esses mexicanos que o paguem. Sejamos realmente a trampa que estamos mortinhos por ser. Provavelmente alguém nos dará razão. Propaguemos um outro email, ainda nosso mas não totalmente, domínio do nosso ego virtual e não realmente implicado no que verdadeiramente pensamos ou sentimos. Máscara. Máscara por trás de máscara. Máscara. Máscara pintada, retocada, maquilhada; máscara exultada. Máscara gigante ou máscara anã. Máscara matrioska. Sem sobressaltos por detrás da máscara da máscara. Máscara adamascada ou em tule. Não importa: em caso algum a pele se vislumbra. Não ousamos outro modelo, outra via, que não a via das máscaras. Impotentes ou guerreiros, vagabundos ou burgueses, sedentos ou esfomeados, 2017 exigirá a mascarada, nos melhores momentos a mascarilha. Fingiremos ser; actividade que praticamos sem remorso e quantas vezes sem presunção. E o que fica, perguntais, quando já manso no lar ousais a máscara tirar e por debaixo outro careto vos pergunta sem cessar o que fazer do abismo que mesmo num sono sem fundo arrogante se interpõe? Nada. Talvez viver. Viver assim… ausente, no meio do nevoeiro. Sem cão, sem estrela, sem ideias de permeio. Só tactear: ser alheio, afastado das formas, dos verdadeiros corpos, dos verdadeiros copos, das orações; nada agarrar, passar fantasma, roçagar. Viver de exílio, mestre da saudade e da cidade interdita a contemporâneas efabulações. Preferir o nevoeiro às luzes rançosas. Escolher o tenebroso, a jugular impenitente, sempre a saltar à nossa frente, a deixar-se abocanhar, plena de vida, pujante de amor, ou não fôra ela natureza e mãe e tudo. E o sabor do nosso sangue, interdito e intermitente, que tanto se ergue em tempestades como repousa ignorante e parvo em colos de além-fronteiras, onde o sossego nos maquilha de rosa e cor-de-vinho de Bordéus, alucinada cor de mantos e desmedidas cortinas. Estaremos menos sós. A solidão é tão impossível como o convívio. As máscaras encontrar-se-ão. Dar-se-ão bailes, cruzeiros, manifestações de massas. Espectáculos de rua, mariposas, ajuntamentos. Serão breves como os dentes. Retornaremos ao sonho porque não há mais nenhum lugar para ir. O mundo encontra-se, francamente, esgotado. Nessas horas frágeis encontraremos o ano. 2017. Como poderia ser qualquer outro: os sonhos não conhecem o tempo, apenas se alimentam de espirais. Nós, omnívoros, comemos tudo. Um Bom Ano para os uns e para os outros. *Personagem de Voltaire para quem vivemos sempre no melhor dos mundos e da bajulação aos poderosos havemos de usufruir alguma vantagem.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesFeliz Ano Novo [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]screvi este artigo precisamente no primeiro dia do ano, é tempo de dizermos adeus a 2016 e de darmos as boas vindas a 2017. Por esse mundo fora as pessoas celebram de maneiras diferentes a chegada do novo ano. O website “https://abcnews.go.com/US/wireStory/years-revelers-ring-2017-times-square-44495056” informa, “Cai uma chuva de papelinhos e lança-se o fogo de artificio enquanto as câmaras de televisão cobrem a imensa multidão que em Times Square se despede de um ano estonteante, marcado por umas eleições presidenciais azedadas, e grita a plenos pulmões votos para um 2017 melhor. Um mar de participantes abraçou-se e beijou-se, depois de descida de uma bola de cristal gigante enquanto soavam as doze badaladas da meia-noite. “Vai começar tudo de novo. Este ano só quero encontrar a felicidade e deixar as coisas más para trás,” disse Maria Raimilla, de Richfield Park, New Jersey, logo após a meia-noite.” Uma multidão a comemorar a chegada do novo ano em Times Square, não é propriamente uma novidade. No entanto, os votos de cada pessoa para o Ano Novo são sem dúvida únicos. O website revelava os desejos de um casal de namorados, “Enquanto se faziam ouvir as doze badaladas da meia noite e a chuva de papelinhos se derramava sobre a multidão, Jason Magee beijou a namorada e disse, “Vamos começar do zero. ‘Bora lá!”” O beijo é uma das melhores formas de demonstrar afecto e é presença indispensável sempre que um par de namorados celebra em conjunto a chegada de um novo ano. As expectativas de um outro casal para 2017 são um pouco diferentes. “Lori Haan, de Tucson, Arizona, e o marido visitaram Nova Iorque pela primeira vez nesta ocasião. Lori confidenciou-nos que está ansiosa por 2017.” Encontrar a felicidade em 2017 e deixar para trás tudo o que é negativo deverá ser o desejo de toda a gente. No entanto, como é que isso se concretiza? Há alguns dias atrás a estação televisiva de Hong Kong TVB, passou uma peça de um canal americano que mostra como é que as pessoas na prática “deixam para trás as coisas negativas”. É engraçado. Têm de escrever num papel todas as coisas más que lhes aconteceram, verificá-las, e deitar os papeis no lixo. Depois o caixote do lixo será limpo da forma habitual. As pessoas que se juntam para este ritual partilham uma sensação de alegria. Acreditam que vale a pena despender duas ou três horas do seu tempo para se verem livres das “coisas más”, e garantir que a “limpeza” foi feita antes da chegada do novo ano, e a seguir festejarem a sua vinda. O mais interessante é que algumas pessoas escreveram “Donald John Trump” nas suas listas, dando a entender que o novo Presidente não é bem-vindo. Pelos vistos querem “apagá-lo” das suas vidas. Na China o primeiro de Janeiro não assinala propriamente o início do novo ano, porque se rege por um calendário diferente. O primeiro dia do novo ano lunar chinês chega a 28 deste mês. Daqui a quatro semanas. Por esta razão, as comemorações na China continental não foram tão efusivas. Os chineses mais velhos não celebram de todo este dia, mas os mais novos já fazem a festa. Os jovens começam por limpar as suas casas. Deitam fora todo o lixo e também qualquer coisa de que já não venham a precisar em 2017. Deitam fora não só o lixo como as coisas que já não querem. O princípio é o mesmo dos americanos que deitam fora os papeis onde escreveram as listas de coisas negativas. Têm em comum o desejo de esquecer o que foi mau e as expectativas de um 2017 melhor. Depois da limpeza, os jovens juntam-se para irem a um local onde se celebre a chegada do ano novo. Tradicionalmente na China a limpeza das casas deverá ser feita no terceiro dia do ano. Os novos hábitos da juventude demonstram a simbiose cultural entre o Oriente e o Ocidente. Nesta época em Macau podemos assistir a celebrações de boas-vindas ao ano novo, já que esta cidade é fruto da união da cultura chinesa com a cultura portuguesa. Em Hong Kong também se celebra em grande estilo a chegada do novo ano. As pessoas juntaram-se na Praça Golden Bauhinia, para fazerem a contagem decrescente para 2017. Lança-se fogo de artificio e as celebridades actuam num mega-espectáculo. Desta forma se vê que Macau e Hong Kong são representantes de uma miscigenação cultural. Seja qual for a nossa nacionalidade, todos desejamos deixar para trás o mau e acolher o bom em 2017. Aproveito também eu esta ocasião para desejar aos meus leitores tudo de bom para o novo ano. Esqueçamos as coisas más, demos as boas vindas a 2017 e aos novos começos. Feliz Ano Novo para todos vós. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Tânia dos Santos Sexanálise VozesAssexual [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a biologia, a assexualidade é um conceito que designa uma reprodução dependente de um único interveniente, cada indivíduo é capaz de se auto-reproduzir. Mas este conceito não se estende à sexualidade humana, como devem calcular. Não há grande biologia que permita a criação de vida sem o envolvimento de um óvulo e de um espermatozóide. Por isso, não é sobre essa assexualidade que resolvi escrever. Refiro-me à assexualidade única e exclusivamente humana, que tem características distintas. Como qualquer outro conceito sexual, a discussão sobre a assexualidade e a forma como se define é complexa, mas a maioria tende a concordar que se trata de uma orientação sexual. Há quem prefira homens, mulheres ou ambos, mas há quem também prefira nenhum dos anteriores. As pessoas que sentem atracção sexual por nada nem ninguém e, por isso, não têm vontade de ter sexo, identificam-se como assexuais. Todos os outros serão definidos como sexuais, com preferências distintas, especialmente em relação ao género com quem se querem envolver. Assexualidade tem ganho alguma atenção social, académica e legal pela forte aposta na divulgação de uma orientação sexual que tem sido silenciada ao longo dos anos, por várias razões. Talvez passasse despercebida porque em tempos era desejável não mostrar/praticar o que o desejo sexual de cada um ditava. Mas hoje em dia, em certas sociedades hipersexualizadas, uma orientação que evita o sexo pode soar estranho. Por isso muitas questões ficam a pairar: qual será a diferença entre assexualidade ou alguma disfunção sexual? Será que a assexualidade é uma orientação sexual? Será uma escolha? De que forma assexualidade se relaciona com amor? Como sabemos quem é assexual ou não? Entender a assexualidade de forma a não cair no erro de a julgar uma disfunção ou uma forma de celibato tem sido a temática de muitos ensaios. Celibato exige uma escolha de não querer envolver-se no acto sexual, enquanto que uma disfunção afecta o desejo e performance, mas não a atracção sexual per se. Em ambos os casos há espaço para fantasias, e são situações que podem ser provisórias – bem tratas caso seja uma disfunção, ou decididas em contrário, caso seja celibato. A assexualidade não é uma condição que possa mudar ao longo do tempo, tal como ninguém ‘deixa’ de ser heterossexual ou homossexual só porque sim. A etiologia desta orientação não é clara (tal como nenhuma orientação sexual o é), que dificulta a entender as nuances destas diferenças. A verdade é que indivíduos assexuais até podem envolver-se em relações sexuais, podem sentir amor e querer investir num relacionamento a longo prazo, e podem masturbar-se, apesar de o fazerem numa regularidade mínima. Como poderiamos esperar, existe uma grande diversidade de vivências que se encaixam no ‘guarda-chuva’ da assexualidade. Há ainda classificações como demisexual ou gray-assexual que incluem um espectro de experiências entre assexualidade e sexualidade. Demisexual são aqueles que só conseguem sentir atracção sexual por quem sentem grande intimidade, e definem-se pelo sentimento e não pela acção (por vezes não se chega a vias de facto) enquanto que gray-assexuais poderão sentir esporadicamente atracção, apesar de ser comum não o identificarem de forma clara. As comunidades e movimentos que se comprometem a educar todos os interessados sobre o que a assexualidade é, como por exemplo The Asexual Visibility & Education Network (www.asexuality.org/), ajudaram a definir uma identidade para os que não se sentiam dentro dos padrões ditos ‘normais’ e, assim, contribuiram à necessidade de reconhecer (em todas as áreas da nossa vida) uma forma de identificação sexual entre outras minorias sexuais. Facilmente nos deparamos com um largo espectro que não depende de uma definição estanque (e isto acontece em todas as direcções, sexual ou assexual), e que exige complexos processos identitários. Estes termos/conceitos/categorias são importantes, não porque estão a explorar as biologias ou fisiologias da ausência de atracção, mas diferentes sexualidades que necessitam de ser entendidas. Precisamos de nos entender a nós próprios e aos outros, e isto é especialmente necessário quando as expectativas heteronormativas relacionais, sexuais e familiares tentam (estupidamente) ser prescritivas da normalidade. O normal é o que nos faz bem, é o que nos faz feliz, é o que é fiel aos nossos desejos e vivências. Assexual é normal, tal como sexual o é.
Hoje Macau Manchete Sociedade VozesEspecial 2016 | Raimundo do Rosário é a personalidade do ano Personalidade do ano – Raimundo do Rosário [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Secretário para os Transportes e Obras Públicas chegou, viu e…convenceu. E porquê? Porque – vejam lá bem! – é capaz de tomar decisões, algo que há muito não se via pelas bandas do seu pelouro. Ao segundo ano da sua presença no Governo, as coisas parece que querem andar, ainda que emperradas pelas areias do costume. Ele diz que não sabe, não diz que não pode e não teme atirar o prazo das obras para as calendas, quando esse é o seu triste destino. É o caso do metro ligeiro, entre outras. Raimundo do Rosário conhece bem os interesses locais, demasiado bem para ser optimista. Mas, nesta RAEM do quanto-menos-te-mexes-melhor, foi uma lufada de racionalidade, desassombro e eficácia, bem necessária depois da Era Glacial que se seguiu ao incidente Ao Man Long e ao empata-obras que o substituiu. Ninguém espera que faça milagres ou que os milagres se façam por si, mas deverá manter a mesma postura e demonstrar a mesma vontade em defender o interesse público se quiser terminar o ano em 2019 a sua passagem pelos mais altos cargos do Governo da RAEM com uma nota extremamente positiva. Depois da sua presença em Lisboa, na delegação de Macau, será o final dourado de uma distinta carreira como servidor da coisa pública. Ralhete do ano – Li Keqiang A presença do primeiro-ministro expôs as fraquezas do Governo local, que, além de ser manso e garantir a mansidão popular,pouco efectuou no sentido de implementar os desígnios de Pequim. De tal modo que Li Keqiang não se coibiu de, em “édito-rei”, exigir as medidas que há muito deveriam estar longe do papel e das intenções. Os governantes coraram e a oligarquia encolheu os ombros, pois pouco disto lhe interessa. Todos disseram que sim e as cabeças ficaram a abanar até o pó da carruagem de Li assentar no fim da estrada. Depois, a partilha do bolo continua. A ver vamos se o discurso criativo do primeiro-ministro cai em saco roto ou não. Governante do ano – Lionel Leong O Secretário para a Economia e Finanças é o homem das “missões impossíveis”: uma, diversificar a economia de Macau; duas, convencer os empresários locais a dotarem-se de uma postura contemporânea e menos ambiciosa. Outro deixaria correr o marfim, mas Lionel Leong tem-se distinguido pelo modo como está por dentro dos dossiês e parece por isso levar a sério as suas hercúleas tarefas. A cadeira no Olimpo ainda está à vista. Revelação do ano – Wong Sio Chak Raramente a polícia é trampolim para mais altos voos, mas o ano de 2016 revelou um Wong Sio Chak, ex-director da judiciária e agora Secretário para a Segurança, de peito firme e asas abertas, angariando apoios ao supremo cargo na RAEM. Nesse sentido, é uma revelação. A prosseguir nessa heróica senda, faz tremer os liberais pela sua postura, um tanto ou quanto militarizada, e a visão, que partilha sem pudor, de uma sociedade securitária, talvez demasiado regrada, uma espécie de Singapura retardada e fora do tempo. Treme a Macau do laissez-faire, laissez-passer, um dos traços identitários mais fortes desta terra. Temem os que preferem um mundo de “amplas liberdades democráticas”, tal qual Álvaro Cunhal nos ensinou. Desilusões do ano Festival de Cinema – Pariu um rato. Mais uma vez o que poderia ter sido e até parecia que ia ser, não chegou a ser nem metade. Filmes premiados com salas vazias, e, sobretudo, uma irrelevância final, muito fruto da exclusão de Marco Muller, que chegou a ser confrangedora. Macau demonstrou não ter capacidade para aquilo que anunciou. O Governo, depois da casa desfeita, ainda quis pôr um freio na bizarra situação. Conseguiu mas o cavalo não chegou a sair da estrebaria. Prometeu muito. Pariu um rato. Porque a rolha foi roída pelo rei da Rússia. Hotel Estoril – Convidar e desconvidar Siza Vieira não lembra a ninguém. Ah..não..espera…aconteceu a Oese de Pecos, onde afinal nada parece haver de novo. A não ser os novos estudos, as novas consultas e os novos concursos. Evento do ano – Fórum Macau A presença de primeiros-ministros e outros figurões já seria suficiente para destacar este evento, cuja importância para a RAEM é, sobretudo, apreciada por quem o vê de fora. As medidas anunciadas por Li Keqiang foram muito bem recebidas por todos os países participantes, e, sobretudo, por quem ficou à porta a roer as unhas: São Tomé e Príncipe. De tal modo que, entretanto, a ilha já se divorciou da ilha e arranjou casório com o continente. O Fórum desempenha o seu papel… Instituição do ano – Centro do Bom Pastor A aprovação da lei da violência doméstica foi uma grande vitória para as organizações que por ela combateram e nenhuma esteve mais perto da linha da frente do que o Centro do Bom Pastor, dirigido pela irmã Juliana Devoy. Se esta lei foi aprovada e se hoje as pessoas gozam de protecção contra a violência como nos países civilizados, tal deve-se muito aos incessantes esforços desta instituição e da sua face mais conhecida. Artista do ano – Ivo M. Ferreira O filme “Cartas da Guerra”, baseado na obra epistolar de António Lobo Antunes, está a ter uma visibilidade única, se pensarmos que se trata de uma obra de um residente de Macau e que, além das críticas esfuziantes, foi pré-seleccionado para os Óscares. Ivo M. Ferreira mostra até que ponto é possível existirmos e que este céu cinzento da descrença local bem pode esperar. Ele vai ali, já volta. Figura Internacional do ano – António Guterres Avíssaras! O secretário-geral da ONU é português e os portugueses conhecem bem a sua capacidade para o diálogo e, de um modo geral, para a conversa, a conversinha e mesmo para a converseta. Este é, aliás, um traço comum ao puro lusitano. Pode ser que esta capacidade, aliada a um também lendário malabarismo numérico, façam de António Guterres o homem com o perfil certo para o cargo. O mundo parece pensar que sim. Vergonha do ano – Ho Chio Meng É muito aborrecido, para não dizer chato, saber que o antigo procurador da RAEM foi preso e acusado de 1500 e tal crimes. Não sei…é assim uma sensação desagradável pensar que o responsável máximo pela defesa dos interesses públicos andava a meter a mão em massa que não lhe pertencia nem era suposto pertencer. A sua detenção foi um golpe duro na credibilidade do sistema judiciário de Macau. E, se pensarmos que este senhor foi um dia putativo candidato ao cargo de Chefe do Executivo, colhendo apoios nas mais variadas paróquias, que isto nos sirva de lição para um futuro não muito longínquo. Livro do ano – Delta literário de Macau O livro do consagrado e respeitado professor Carlos Seabra Pereira, publicado pelo Instituto Politécnico de Macau, constitui um marco na crítica literária de Macau. Nele são referidos e apreciados os principais autores que escreveram ou escrevinharam por estas terras, num esforço que se reconhece praticamente exaustivo e titânico. Até hoje nada se tinha escrito assim. Exposição do ano – Ad Lib A craveira internacional de Konstantin Bessmertny é um dado de facto mas a sua arte, inquietação e reflexão não descansam à sombra dos louros justamente recolhidos. A exposição que apresentou no Museu de Arte de Macau é um exemplo maduro da sua capacidade artística e da imaginação critica a que nos habituou. Filme do ano – Sisterhood Ainda longe da exigência técnica e plástica de “Cartas da Guerra”, “Sisterhood” é um enunciado corajoso e desassombrado de Tracy Choi, luminosa crueza na sociedade morna, hipócrita e desenxabida de Macau. A realizadora mostra mão e um sentido próprio para o seu trabalho. espera-se mais. Prémios especiais O que mais me irá acontecer do ano – Helena de Senna Fernandes E de repente cai-lhe no colo um festival internacional de cinema, cujo director desapareceu misteriosamente, embora para parte certa. A directora dos Serviços de Turismo teve de assumir a cabeça do animal. Salvou-a ver extensamente filmes “nos aviões” e a persistência com que repete o seu filme favorito: “Música no Coração” O que vou fazer se me deixarem do ano – Alexis Tam O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura lançou uma mão-cheia de projectos mas, a cada um deles, praticamente sem excepções, foi contestado pelas auto-denominadas “forças vivas da população”. E Alexis Tam, sistematicamente, recuou e fez mais consultas, que é como quem diz, lavou daí as suas mãos. A sua pele deve estar seca. O pêndulo de Foucault do ano – Ho Iat Seng A eterna reserva moral da RAEM, enquanto presidente da Assembleia Legislativa, revelou-se um homem com uma desmedida tendência para a harmonia e o consenso. E também para a prudência quando tal é necessário. De tal modo que é capaz de embalar e fazer adormecer um frasco de anfetaminas. O vira disco e toca o mesmo do ano – Ng Kuok Cheong Os acontecimentos em Hong Kong retiram cada vez mais margem de manobra aos democratas locais. E Ng Kuok Cheong é um bom exemplo disso: este ano a sua criatividade levou-o a querer discutir o sufrágio universal na Assembleia Legislativa, como tem feito todos os anos. E, como em todos os anos, levou uma nega quase geral. O grande salto em frente do ano – Casinos Jogo a cair, receitas a baixar, e os casinos de Macau a investir como cães danados. No Cotai, se juntarmos os trapinhos recentes de todos eles, a coisa vai parar à módica quantia de 17 mil milhões de patacas. Isto quando as renovações das licenças estão em águas de bacalhau. É o que se chama uma aposta. O Auslander Raus! Do ano – Ella Lei e companhia Quando toda a gente sabe que Macau parava sem mão-de-obra estrangeira, a qual precisamos como de chao min para a boca, de gente qualificada e não só, a deputada Ella Lei e companhia continuam a defender que a causa das causas é expulsar os trabalhadores alienígenas. Isto numa cidade onde o desemprego não atinge os dois por cento. De facto o ridículo não mata e a perda de tempo também não. O centro é onde eu quiser do ano – Song Pek Kei O Governo quer uma biblioteca central no centro da cidade. Parece lógico. Pois. Mas nem para todos nasce esse sol. A deputada Song Pek Kei entende que a biblioteca central deve ser nos novos aterros. O problema é que deixa de ser central, capisce? Não? Pois… O a gente manda e mainada do ano – Táxis As multas não os demovem, os fiscais não lhes metem medo. Eles são os taxistas de Macau. Fazem o que querem e ao Governo mostram…pirilau. Por essas ruas acima, navegam como querem, cobram o que lhes apetece e nada de levantar a grimpa que ainda te partem o focinho. São a prova de que este é um Estado falhado.
Leocardo VozesDeixem-se de disparates [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]odia ser esta a minha mensagem de ano novo para os leitores do Hoje Macau, mas isto seria injusto para a grande maioria deles, os que têm a cabeça bem assente num par de ombros – pelo menos penso que são a grande maioria. Mas não, prefiro antes explicar o que quero dizer com aquela mensagem colocada em tom tão grave na forma de título: 2016 entrará para a História como “o ano de todos os disparates”. Tivemos o Brexit na Europa, umas eleições muito “sui generis” nos Estados Unidos, a lembrar os clássicos “western” americanos, de “cowboys” contra peles vermelhas, e talvez o mais grave de tudo: a ascensão da “mentira” ao estatuto de “verdade alternativa”. Daí o ano do disparate – foi fértil em disparates, e na forma como tantas vezes se deu a eles provimento. Tudo isto tem a ver com um defeito inato dos media convencionais: dão as notícias. Não dão boas ou más notícias, nem pouco mais menos, ou conforme o gosto do freguês. Dão notícias, ponto, e uma característica que salta a vista das notícias é que “nem todas agradam a toda a gente”. Os profissionais deste media, alguns financiados por dinheiros públicos, precisam de dar as notícias, e da competência ou falta dela nesta função depende a sua credibilidade, e quase sempre o próprio emprego. Os profissionais dos media dão as notícias para garantir o seu sustento, e é-lhes indiferente que a notícia agrade ou não à maioria, e muito menos a ele próprio. É assim a realidade, crua e nua. E o que seria se os chatos dos jornalistas SÓ nos dessem notícias que nos fizessem felizes? Sei lá, que estavam a chover rebuçados de um arco-íris, por exemplo? Seria bestial, apenas se fosse possível. Este seria o cenário ideal para dar asas à fantasia e deixá-la voar, mas as notícias que as pessoas procuram e querem nelas acreditar sem procurar confirmar se são ou não credíveis são muito, mas muito menos idílicas. E é aqui que entram os “social media”. O que são, afinal? Mentirosos encartados e com uma agenda pérfida – é isto que são os “social media”. Já está, e para os mais distraídos – que são cada vez mais, infelizmente – recordo que este é um artigo de opinião, e na minha opinião quem vive da calúnia pura e simples, na sua forma mais intriguista e venenosa devia estar preso. Os “social media” alegam que os media convencionais “escondem a verdade”, a mando “da nova ordem mundial” (?), e que anda tudo “ao serviço das grandes corporações”. Tal como os próprios “social media”, com a diferença de que as “grandes corporações” deles são outras que não as da concorrência. Basta entrar em qualquer desses depositórios de calúnia e verificar os patrocinadores que aparecem nos cantos do ecrã. É daquelas coisas que aconteceu em 2016, também: um ataque de miopia colectiva que não deixou muita gente ver o que está mesmo à frente do seu nariz. Pode ser que alguns leitores, e arrisco que seja a maioria, esteja a notar neste artigo um tom “algo agressivo”, enquanto outros poderão estar a apreciar aquilo que tem vindo a ser designado por “desrespeito pelo politicamente CORRECTO”. Reparem como destaquei o “correcto” naquela frase: desde quando é que algo “correcto” pode estar errado e merecer esse desprezo?! Enlouqueceram de vez? O politicamente correcto é o que impede que oiçamos aquilo que não gostamos de ouvir, especialmente porque é irrelevante, atroz, e não serve nenhum outro fim que não seja o de agredir. Apesar da natureza e condutas criminosas dos “social media”, os media convencionais não estão de todo isentos de culpa. Talvez estejam demasiado acomodados, ou mecanizados, mas o mundo que nos é dado a conhecer parece estar à beira do fim. Ficamos com a impressão de que o tempo e os recursos se estão a esgotar, e que precisamos de deitar as mãos ao que resta, e esquecemo-nos dos mais fracos e necessitados. É o mundo que temos: o mundo dos humanos. Humanos que dão uma visão do mundo cheia de defeitos próprios…dos humanos. E nem eles têm a culpa que em 2016 as celebridades tenham caído como tordos. Feliz 2017, e vá lá, juizinho.
Isabel Castro VozesA perfeição [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi um ano bom por esse mundo fora. Morreu gente que é imortal, elegeram-se pessoas tortas, fizeram-se guerras estúpidas, tão estúpidas como todas as outras guerras de que reza a história, a comprovar que nós, os comuns mortais, não aprendemos. Morreu gente sem nome a tentar chegar a uma terra nova, a fugir da miséria, a fugir de onde nunca quis sair, com as raízes ainda agarradas ao corpo. Houve gente morta por quem mata só porque sim, numa outra guerra estúpida que nos diz, todos os dias, que os homens não sabem nada uns dos outros. Nós, por cá, tudo bem. Não há mal grave que dure por aqui. Os nossos dilemas, colocados em perspectiva, são coisas pequenas, leves, a roçar a insignificância. Os nossos males não têm armas nem sangue, não nos invadem a casa, não nos deixam com o coração nas mãos, com medo de fecharmos os olhos e de nunca mais os podermos abrir. Mas com as dores dos outros podemos nós bem. Por mais que, num exercício quase religioso, façamos a relativização da nossa dor perante o sofrimento alheio, é-nos impossível fugir ao dramatismo das pequenezas do quotidiano. Porque é o nosso quotidiano e é nele que respiramos. E porque é dos homens quererem sempre mais. Ainda bem. Sucede que, por estes lados do mundo, a medida da perfeição está ali ao virar da esquina, como se fosse facilmente atingível. A malta contenta-se com pouco na cidade onde tudo, ou quase tudo, podia ser infinitamente melhor. Resmunga-se, mas baixinho, não vá o vizinho ouvir e perceber exactamente o que acabou de ser resmungado. Critica-se, mas sempre com um elogio no princípio e no fim, como se de uma moldura se tratasse, para que as bordas do reparo não provoquem rasgos nas sensíveis almas criticadas. Por estes lados do mundo, nunca sou eu que penso – são eles, a população, o povo. O povo é que não gosta, a população é que diz que é melhor ter cuidado, eles é que estão descontentes com o rumo da situação. Nunca sou eu que penso porque não tenho coragem de pensar. E também nunca somos nós, que a colectividade caiu em desuso. Com as dores dos outros podemos nós bem e até com as dores daqueles que nos deviam ser próximos, mas não são. Por aqui, encobrimos histórias feias, não lavamos roupa nos jornais, os cafés às vezes servem de lavandaria mas rapidamente se esconde a roupa, mais o detergente, quando a palavra dita ousa ser perigosa para o estado feliz em que nos encontramos, nós, gente sem guerras nem sangue, nem ideias e muito menos opiniões. Passou mais um ano que foi mau, mas nós por cá tudo bem. Enquanto o emprego for certo e houver bacalhau no Natal, nós por cá tudo bem. Engolimos tudo com um tinto e preparamo-nos para a contagem decrescente, conta-se baixinho e grita-se baixinho, dançar é que não que ainda pensam que sou louca, olhem que bem comportados que somos todos nós, tão assim, tão de bem com tudo. Com as dores dos outros podemos nós bem.
Paul Chan Wai Chi Macau Visto de Hong Kong VozesAssinalar o regresso de Macau à soberania chinesa [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste ano, em que se celebra o 17º aniversário do regresso de Macau à soberania chinesa, a Associação de Novo Macau não organizou nenhuma manifestação para se manter a par da nova realidade social. Em vez disso, apostou no incentivo à consciência cívica, exortando os jovens residentes que atingiram a idade de 18 anos a recensear-se, já que as próximas eleições para a Assembleia Legislativa estão à porta. Só através do voto podem os macaenses escolher as pessoas certas para deputados e ajudar a diminuir os efeitos negativos da corrupção eleitoral. O Governo da RAEM não cancelou o mega-espectáculo realizado no Estádio de Macau, e a Associação de Novo Macau não se opôs. Os macaenses puderam desfrutar da actuação de artistas famosos de Hong Kong pela módica quantia de 50 patacas. As pessoas pareciam estar felizes, embora a verdadeira felicidade seja ainda uma miragem. Em Macau os preços do sector imobiliário e dos alugueres de casas não desceram, apesar dos ajustes económicos na China. Os macaenses parecem ter-se habituado à inflação e aos transportes públicos sobrelotados. Por seu lado o Governo continua a valorizar a diversidade do desenvolvimento no discurso, mas não nas acções. Com lojas por alugar na Rua de São Paulo e com a desvalorização contínua do Yuan, os macaenses parecem ficar à margem do “tal desenvolvimento”. A forma como as pessoas se sentem inconscientemente felizes não é decididamente bom sinal. Durante a cerimónia do hastear da bandeira e no banquete celebrativo oficial, que assinalaram o Dia do Regresso de Macau à Soberania Chinesa, o hino nacional chinês fez-se ouvir. No hino existe um verso que diz, “quando a Nação chinesa atinge os momentos de maior perigo”. Por enquanto em Macau as pessoas ainda não chegaram aos momentos de maior perigo. Mas se continuarem indiferentes, depois não será tarde demais? Na verdade, o dia de Macau deveria ser assinalado em retrospectiva e reflexão. No último fim de semana fui a Hong Kong devido a alguns compromissos. Um deles era uma conferência académica promovida pela Universidade de Pedagogia de Hong Kong e subordinada ao tema “A Juventude das RAEs de Hong Kong e Macau: Identidade, Educação para a Cidadania e Participação Cívica – Conferência de 2016”. Estiveram presentes muitos académicos de Hong Kong, da China continental, de Macau e Taiwan, nos quais se incluía o Professor Byron Weng, jurista de grande reputação. A conferência versava o sentimento de identificação da juventude de Hong Kong e de Taiwan com a China continental. Concluiu-se que estes jovens se sentem cada vez mais afastados da China, apesar de toda uma série de reformas políticas. Para ultrapassar este problema, deve ter-se em consideração os aspectos culturais da China, mais do que propriamente os aspectos políticos. Os académicos chineses consideraram unanimemente que o conceito de “Um País, Dois Sistemas”, requer modificações de forma a ajustar-se às novas realidades sociais. No entanto, os académicos vindos de Macau insistiram na preservação do conceito original, ou seja, “Hong Kong governado pelos seus habitantes, Macau governado pelos seus habitantes e desfrutando de um elevado grau de autonomia”. Após aturadas discussões, a visão idealista dos macaenses conquistou a aprovação da maioria dos participantes. No domingo compareci no seminário “Pensar a Missão dos Cristãos e a Problemática de uma Sociedade em Ruptura”. O Professor Associado Chan Ka Lok, da Universidade Baptista de Hong Kong, ex-membro do Conselho Legislativo da cidade, foi um dos oradores. O Professor Ka Lok fez uma intervenção sobre “a reconstrução da sociedade civil”, advogando que esta deve partir das comunidades. A visita de dois dias a Hong Kong valeu o esforço, mas deixou-me exausto. Macau necessita de promover a educação cívica e de criar uma sociedade civil sólida. Discursos vazios de sentido são prejudiciais para os países e também para Macau.
Leocardo VozesTurismo de Natal [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que dou o meu humilde contributo a esta grande empresa que é o Hoje Macau (afinal é época de “dar”), este ano deve ser a minha vez de desejar as Boas Festas aos leitores, uma vez que nenhum dos feriados da quadra natalícia caiu a uma quinta-feira. Mas é com muito gosto que o faço, naturalmente, e aqui: Bom Natal e até ao meu regresso. Sim, tal como qualquer outra pessoa que não tem uma boa razão para ficar em Macau pelo Natal e tem quatro dias de férias, vou aproveitar e dar uma volta aqui por perto, onde pelo menos dê para sentir algum do ambiente natalício. O ano passado foi Xangai, este ano é Taipé. Mas em primeiro lugar gostaria de saudar a comunidade macaense e os restantes cristãos naturais de Macau, pois parece invasivo estar a inclui-los neste rol de lamentações. Estes são os hóspedes do Natal de Macau, na terra deles, e os restantes são convidados. Quem não gosta não é obrigado a comer, e se não quiser ficar à míngua, se calhar o melhor é fazer-se à vida. Dito isto, desejo uma santa consoada aos cristãos de Macau que vão tomar com as suas famílias a ceia de Natal. E agora os outros. Quem é natural de Portugal e tem aí uma boa parte da família, é natural que faça um esforço suplementar em termos financeiros e de gestão das férias para passar o Natal junto de quem tem saudades, e vice-versa, claro. A estes, que aproveito igualmente para saudar, a época consagrada ao dia 10 de Dezembro e seguintes é chamada de “fuga de Macau” – longe que te quero, lá vou eu, beijinhos a quem fica. Quem acha que as “saudades” são uma coisa que precisa de maturação, ou simplesmente não se pode dar ao luxo de ir “marcar o ponto” a Portugal todos os natais, vai ano sim/ano não, e quando é “não” vai para a Tailândia com o agregado familiar, ou no ausência deste, com amigos e amigas na mesma condição. Acho óptimo, não façam daqui segundas leituras. É uma das muitas vantagens de estar aqui a viver, e não em Portugal. Que bom para nós. Na eventualidade de nem sim nem sopas, não há disponibilidade, férias ou vontade de sair de Macau, não deve o expatriado comum entrar em depressão. O que é isso, se em Macau os locais aderem ao Natal, ou mais ou menos isso. Primeiro, o dia 25 é feriado para toda a gente, o que por si já é mais que suficiente para não ignorar a noite da consoada. Talvez para quem comemora o Natal na sua vertente cristã e junto da família isto pareça demasiado “insonso”, mas no fundo isto não difere muito do que sentimos em relação ao Ano Novo Chinês, onde por vezes damos connosco a pensar: “What’s the point?”. Ficar em Macau no Natal não é “a mesma coisa” que sair, mas também não representa o fundo do barril da solidão, p’lamordedeus. O que faz falta em Macau (olha, parece o nome daquela ex-rubrica de um título da concorrência) era…sei lá, mais luzes de Natal, como aqui ao lado em Hong Kong? E que tal uma árvore de Natal no centro da maior praça que não fosse um sólido geométrico feito de papelão, por exemplo; as árvores tinham folhas, da última vez que vi uma. Para evitar esta onda de turismo daqui para fora NO Natal, era preciso que Macau investisse no turismo DE Natal. Como? Talvez com outra coisa que não fosse casinos, e casinos, e mais casinos. Feliz Natal.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesRumo ao Estado de Direito Socialista “Since China’s reform and opening began in 1978, the country has come a long way on the path of Socialism with Chinese Characteristics, under the leadership of the Communist Party of China. Over 30 years of reform efforts and sustained spectacular economic growth have turned China into the world’s second largest economy, and wrought many profound changes in the Chinese society.” “The Road to the Rule of Law in Modern China” – Quanxi Gao, Wei Zhang, Feilong Tian [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uanto mais importante se torna a China, mais difícil se converte o entendimento da sua realidade. O mundo ocidental na diversidade dos países que o compõem tem a sua visão peculiar, própria e especial da China, devido ao crescente aumento de empresários, estudantes e turistas que viajam para o país, que acrescido do conhecimento de especialistas na matéria cria maior confusão na aprendizagem da realidade chinesa. A Noruega pode parecer uma inesperada fonte de conhecimento sobre a China pelos estudos que tem produzido, mas tal visão expressaria um mito sobre a Noruega, de ser um lugar remoto e voltado para dentro, quando na realidade se trata de um país geograficamente grande, mas demograficamente pequeno e altamente próspero, fortemente dependente das exportações de petróleo para o resto do mundo, e que tem uma grande participação na estabilidade global. É um aliado americano forte na OTAN e mantém um sofisticado mecanismo de defesa. Tem uma cultura cosmopolita e integra refugiados de todo o mundo como seus cidadãos. A Noruega tem um forte interesse em tendências em todo o mundo, inclusive na China, e o seu Comité do Prémio Nobel da Paz, que não faz parte do governo, concedeu dois prémios Nobel da Paz a pessoas nascidas na China. Assim, não é de estranhar que a política externa da Noruega e o estabelecimento da segurança mantenha um olhar atento sobre os assuntos globais. Para um país pequeno, a política de segurança é menor sobre o equipamento, e maior sobre a compreensão das línguas, culturas e história de outros países, a fim de aprender o que estimula as suas políticas e como podem ser acomodadas ou resistir. A China, conjuntamente com o mundo árabe, foi frequentemente como o clássico “outro” para um Ocidente sempre em mudança, que esforça por definir e redefinir-se a si mesmo. Vindo do ambicioso mas inseguro poder comercial e militar de Veneza do século XIII, Marco Polo retratou a China como infinitamente rica e poderosa. O pensador do Iluminismo François-Marie Arouet Voltaire, enquanto argumentava contra o obscurantismo religioso, defendia que a China era o lar da racionalidade secular. A China para Adam Smith, durante a primeira revolução industrial, foi um exemplo de advertência de estagnação económica e Friedrich Hegel, escreveu na era napoleónica, a inverdade de que a China exemplificava um país sem heróis, revolução ou progresso, relegado para um estatuto fora da história. Ao longo dos anos, o Ocidente foi vendo a China como pobre ou rica, supersticiosa ou racional, bárbara ou civilizada, passiva ou guerreira. O Ocidente, com efeito, definiu a sua própria identidade, criando uma imagem da China como o seu oposto imaginário. Actualmente, encontramo-nos em um período, que não é o primeiro, do suposto declínio ocidental. O Ocidente sente-se desunido, indeciso, ineficiente e fraco. As representações de uma China em ascensão como unida, decisiva, eficiente e forte dão significado concreto a essas características, sendo quase negativo que a China esteja realmente a estender-se e em ascensão. O seu produto interno bruto (PIB) aumentou dois dígitos durante três décadas, e o seu orçamento militar cresceu consequentemente, afirmando os seus interesses nacionais principais com vigor crescente. A questão fundamental é de saber, se a ascensão da China é realmente equivalente ao declínio do Ocidente, ou se trata do seu acompanhamento natural ou é mesmo a sua causa. Quando vemos a China como uma ameaça, estamos a vê-la como realmente é? A chamada ameaça da China é uma mudança de forma, para usar uma frase de Karl Marx, um espectro que assombra o mundo pós-Guerra Fria da dominação americana, sendo difícil identificar o que os teóricos da ameaça chinesa realmente temem. Pode-se resumir o discurso, indicando três tipos de preocupações, que actuam por vezes em conjunto. O primeiro tipo é económico, pois a China tornar-se-á a maior economia do mundo, indo absorver toda a tecnologia ocidental e inundar o Ocidente com os seus produtos; a sua moeda será a reserva do mundo; estabelecerá padrões para produtos de tecnologia e de consumo e forçará o mundo a adoptar a maneira chinesa de fazer negócios. O segundo tipo é militar, pois o crescimento económico da China fará que tenha cada vez mais poder militar para continuar as suas existentes reivindicações territoriais e expandir a sua influência regional, além de estender os seus interesses estratégicos no exterior, como trabalhadores, campos petrolíferos, investimentos, entre outros, e irá sentir-se contrafeita de projectar o poder militar para proteger esses interesses. É de prever que irá dominar primeiro a sua região e depois quiçá o mundo. O terceiro tipo é normativo, pois o sucesso do modelo chinês porá fim ao domínio do “soft power” da democracia e dos direitos humanos. A China reescreverá as normas internacionais existentes sobre o livre comércio, direitos humanos, intervenção humanitária, assistência ao desenvolvimento e usará a sua influência financeira para influir não só a mídia nacional, mas também estrangeira, o pensamento académico e a cultura pública. Existem duas formas de avaliar tais receios, sendo o primeiro, através da possibilidade de projectar as tendências existentes no futuro, o que poderíamos chamar de previsão na trajectória. Este tipo de previsão é correcto na maior parte das vezes, porque a maioria das tendências geralmente continuam a desenvolver-se na mesma direcção. Mas tal previsão tem eventualmente a garantia de errar, porque cedo ou tarde a história nos surpreende. A segunda abordagem é a de pensar sobre todas as formas improváveis em que as situações poderiam sair da trajectória, e tentar identificar os cenários mais inverosímeis. Este tipo de previsão é errado na maioria das vezes, mas cedo ou tarde tem uma boa percentagem de ser correcto, porque, a longo prazo, a única situação certa é a ocorrência de algo inesperado. Se pensarmos sobre a improvável ameaça da China, devemos, em primeiro lugar, incorporar os factos e tendências de que o regime chinês está sob controlo estável, apesar de muitos e diversos desafios às suas regras. Excluindo a possibilidade de desordem política, a economia continuará a crescer, ainda que tenha começado a desacelerar, como aconteceu com todas as economias de rápido crescimento, e é de esperar que a taxa de crescimento continue a abrandar. O governo chinês enfrentará uma agenda complexa de segurança interna e externa, em um futuro distante, e deve gerir os desafios internos decorrentes de mudanças sociais rápidas, cepticismo ideológico e insatisfação entre grupos étnicos e religiosos, lutando com as queixas da população rural, cujas terras estão a ser confiscadas ou poluídas, e com os residentes dos centros urbanos que se opõem à actividade de fábricas poluentes e produtos de consumo inseguros. É de esperar que Taiwan continue a resistir à integração na República Popular da China. Os principais vizinhos da China, como o Japão, Índia e Rússia, e os seus fortes vizinhos, como a Coreia do Sul, Vietname e Indonésia, continuarão a resistir à influência chinesa. Os Estados Unidos não sairão da Ásia. A prosperidade da China continuará a depender da sua interdependência com a economia global, como fonte de matérias-primas e energia, e como um mercado para as suas indústrias. A China continuará a apostar fortemente na paz e nas estabilidades regionais e globais, para que a sua economia não seja perturbada, sendo improvável que, no futuro previsível, procure ou seja capaz de expulsar os Estados Unidos da Ásia ou de destruir o sistema global. Isso não significa que a ascensão da China não apresente nenhum desafio ao “status quo”. É possível a existência de um atrito contínuo entre a China e muitos dos seus vizinhos, dado tentar melhorar a sua posição em litígios territoriais. A China continuará a desafiar o argumento dos Estados Unidos, de que pode conduzir legalmente exercícios navais e operações de inteligência até doze milhas náuticas ao largo da costa chinesa, e continuará a pressionar Taiwan para a reunificação, ao abrigo do princípio da existência de uma só China, que o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, parece querer contrariar. Assim, é de esperar atrito entre a China de um lado e os Estados Unidos, e os seus aliados regionais do outro. Tais fricções carregam o risco da escalada, sendo improvável de conduzir a conflitos armados. É um exagero confundir esse risco de conflito local, com o risco de a China tomar conta do mundo. E quanto à mudança fora da trajectória? Quanto maior for o período de tempo, mais provável é a ocorrência de algo dramaticamente diferente, basta pensar na queda da União Soviética ou da Primavera Árabe. Naturalmente, esse tipo inesperado de mudança é intrinsecamente imprevisível, mas devemos ser capazes de identificar alguns tipos de mudanças históricas radicais, com menor improbabilidade, que outras de acontecer. Por exemplo, observando a situação interna da China, podemos identificar vulnerabilidades essenciais no modelo económico, sendo a primeira a que inclui o pesado tributo que a degradação ambiental produz no solo, água, ar e saúde pública, tornando o actual modelo de crescimento insustentável, se não for invertida a actual tendência rapidamente. A segunda vulnerabilidade económica é a estrutura demográfica de uma população em envelhecimento, e a terceira é o estímulo do crescimento rápido pelo pesado, e muitas vezes improdutivo, investimento estatal em infra-estrutura e imobiliário, através de empréstimos de bancos estatais. Tendo em consideração esses factores, é possível descartar um ressurgimento do crescimento de dois dígitos e a regra na possibilidade, embora não inevitável, de um declínio dramático do crescimento ou da possibilidade da ocorrência de uma crise económica. O sistema político chinês não é tão vulnerável como se possa pensar, não sofrendo do complexo da falsa estabilidade a longo prazo, como acontece, nas mal realizadas democracias, como por exemplo, as do Japão, França e Estados Unidos, entre muitos outros países. Os líderes chineses afirmam oficialmente que se deve reformar e melhorar o seu sistema político, criando democracia de estilo socialista e construindo o Estado de direito socialista, ou seja, o sistema político chinês permanece em construção, e mesmo que a população dê ao regime altas notas de desempenho, vê o sistema actual como uma estação no caminho da evolução política, em direcção a uma futura forma de governo desconhecido, e a ser criado. A mudança política deve ser pacífica e gradual. O ambiente internacional da China é potencialmente turbulento. A China faz fronteira com um dos países mais instáveis do mundo, a Coreia do Norte, governada por uma ditadura pessoal anacrónica, dividida em conflitos entre facções, e armada com armas nucleares, que governa uma população carecida. Se esse regime cair ou desencadear uma guerra, a China pagará um grande preço. Outros regimes instáveis que fazem fronteira com a China, incluem a Birmânia, Paquistão, Afeganistão, Tajiquistão, Quirguistão e Cazaquistão. Os conflitos étnicos ou a ascensão de movimentos extremistas poderiam produzir fluxos de refugiados ou paraísos terroristas nesses lugares que ameaçariam a segurança da China. A desordem na África ou no Médio Oriente, podem no futuro ameaçar os suprimentos de petróleo, cobre e outras matérias-primas necessárias à China. A polarização das relações com a Europa e Estados Unidos, poderá ameaçar os seus mercados de exportação e a sua estabilidade financeira. Em contrapartida, é difícil pensar em mudanças plausíveis, fora da trajectória existente, no ambiente de política externa da China que melhorariam a sua segurança. É improvável, por exemplo, que qualquer um dos maiores países vizinhos decida aliar-se à China porque a desconfiança é alta em toda a região. A alteração da trajectória existente, que é susceptível de ocorrer cedo ou tarde, tende a diminuir ao invés de aumentar a ameaça da China. Todavia, alguns mitos sobre a China são verdadeiros. A China está localizada em uma parte diferente do mundo, em relação ao Ocidente e tem as suas prioridades, necessidades de segurança e visão do futuro, e nem sempre vê o mundo, da mesma maneira que vêem os ocidentais. Está cada vez mais estreitamente ligada ao Ocidente e não se está a afastar, pelo que é urgente que entendamos essa verdade.
Rui Flores VozesOs desafios da prosperidade [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Tratado de Roma que criou a então Comunidade Económica Europeia faz 60 anos em Março. Quando a Europa caminha para uma idade próxima da reforma, aqueles que acreditam no projecto europeu têm muito que fazer para mostrar que a União não é um daqueles funcionários que já não tem capacidade para se regenerar e abraçar novos projectos. Desde a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, aquilo que se denomina agora União Europeia (UE) terá contribuído para o período de paz mais longo da história da Europa e para o desenvolvimento das instituições democráticas – condição sine qua non para a adesão ao projecto europeu – em vários países que se encontram hoje na linha da frente da defesa de algumas das políticas europeias. A criação do mercado único europeu, no qual a circulação de pessoas, bens, serviços e capitais é assegurada – um mercado constituído por quase 510 milhões de pessoas –, o modelo do Estado social e o apoio às regiões periféricas e mais pobres da Europa contribuíram para a melhoria das condições de vida de dezenas de milhões de pessoas. São europeias algumas das principais marcas mundiais – de automóveis, de computadores, de bancos, de seguradoras –, que alcançaram dimensão global pela sua integração no espaço regional europeu. Embora seja mais fácil criticar do que elogiar – a Europa enquanto projecto comum de 28 Estados tem estado na mira de populistas e nacionalistas – o que é facto é que a União tem contribuído para vários feitos que convém ter sempre em consideração quando se fazem balanços. Em ano de eleições muito importantes para o futuro da Europa, 2017 vai trazer legislativas na Holanda e na Alemanha e presidenciais em França, os desafios à solidariedade europeia vão ser imensos. Os defensores da integração europeia vão ter de trabalhar arduamente nos próximos meses para enaltecer as virtudes do projecto europeu a populações cada vez mais descrentes nos méritos da integração económica, monetária, fiscal e política. A ideia de que o projecto europeu está em crise parece por estes dias ser uma evidência. Mas foi este mesmo projecto, baluarte da paz, da economia de mercado, dos direitos humanos e da democracia, que serviu de fonte de inspiração para outras organizações internacionais um pouco por todo o mundo. No entanto, os movimentos populistas têm ganho adeptos nas últimas duas décadas, mas mais notoriamente nos últimos cinco anos, à custa de um discurso anti-Europa, anti-imigração, pró-nacionalista, pró-soberanista. Aqueles que concluem que a União é um projecto que só funciona em tempos de expansão económica parecem estar por cima. Fazer o contraponto a esta argumentação não é fácil, sobretudo quando o objectivo primeiro dos partidos do centro – aqueles mesmos que trouxeram a Europa até este estado de coisas – é também o de ganhar eleições. A crescente onda populista que marcou 2016 – as mensagens políticas do “leave” tinham essas características, apelando aos sentimentos mais básicos dos britânicos e prometendo um Reino Unido mais forte sozinho, abrindo a porta à saída de imigrantes do país – vai estar presente nas campanhas políticas do próximo ano. Logo, em Março, na Holanda, o discurso anti-imigrantes vai ser repetido por Geert Wilders, o presidente do Partido da Liberdade, que, à semelhança do seu congénere austríaco, tem estado a ganhar adeptos de uma forma espectacular. Em Abril e Maio, com a primeira e segunda voltas da eleição presidencial, Marine Le Pen vai procurar explorar ao máximo a desilusão dos franceses com a actual situação económica e prometerá uma França que não se dobra a Bruxelas. Uma França sem euro – ou mesmo sem União Europeia –, pois Le Pen já ameaçou também com a realização de um referendo. Na Alemanha, as hipóteses de vitória do partido Alternativa para a Alemanha são nulas. Mas, o discurso anti-imigração pode, tal como na Holanda, contribuir para fragmentar o parlamento e obrigar a soluções governativas mais imaginativas. O problema com todas estas eleições e com as mensagens anti-Europa, anti-imigração, anti-solidariedade é que os valores que têm contribuído para o avanço da UE vão estar permanentemente em xeque. O que, quando passam 60 anos sobre a assinatura do Tratado de Roma, não augura nada de bom para aquilo que é hoje a Europa. Um pouco como a Organização das Nações Unidas que, desde a sua criação, em 1945, se expandiu a várias áreas de intervenção, desde os direitos humanos, manutenção de paz, apoio às instituições do estado de Direito, ambiente, assuntos laborais… um sem número de actividades, também a União Europeia, enquanto entidade supranacional, tem, ao longo dos últimos 60 anos, abraçado cada vez mais áreas e regulado cada vez mais áreas de actividade – sobretudo económicas – que favorecem as condições de expansão do mercado. Tendo em conta o estado a que as coisas chegaram agora, a ideia de que a Europa deve aproveitar os “ataques” de que tem sido alvo, para se repensar, não é de todo despropositada. Afinal, o grande objectivo comum, como sintetiza a recentemente aprovada Estratégia Global da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, é o da prosperidade dos seus povos. E eles parecem estar a precisar de ser de novo convencidos dos méritos do projecto.
Tânia dos Santos Sexanálise Vozes2016 chegou ao fim [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ais um ano que passou. Acho que a maioria irá concordar que o ano não correu muito bem. Para o espírito português tendencialmente pessimista e trágico, tudo o que aconteceu neste querido 2016 deixou os nossos corações de sobressalto, a esperar sempre o pior. A expectativa é de que o ano de 2017 não venha a piorar estas ansiedades, mas que tranquilize… Nós queremos histórias felizes. Nós queremos conquistas justas e inclusivas. O ano passado de 2015 acabei o ano com um artigo que revia as grandes vitórias legais de inclusão e de desenvolvimento do domínio sexual e de género. Houve alguns desenvolvimentos interessantes, não houve? Foram aprovadas leis (por todo o mundo), e popularizaram-se trends, que suscitaram saudáveis discussões sobre o tema do sexo e do género. Este ano não consigo estar tão satisfeita. A verdade é que, a meu ver, houve um retrocesso severo na forma como certas temáticas sexuais foram abordadas. Podem olhar de perto para o que está acontecer na Polónia sobre o aborto, ou para os Estados Unidos com a nova presidência e a assuntos relacionados com homossexualidade, educação sexual e outros temas que são considerados polémicos. Talvez o 2017 nos traga mais coisinhas boas, mais abertura para falar daquilo que temos vergonha e pouco à vontade – mas que deve ser discutido. Mas claro que nem tudo foi assim tão mau: – Fu Yuanhui foi a rainha dos Jogos Olímpicos porque falou sobre a m-e-n-s-t-r-u-a-ç-ã-o, o período, o Benfica, o sangue entre as pernas, aquela altura do mês. Não falou assim tanto quanto isso, mas referiu-o de boca cheia! Sem vergonhas; – Sun Wenlin e o seu parceiro Hu Mingliang tentaram pedir recurso a uma tentativa de legalizar o casamento homossexual, foi recusado, mas foi considerado um dos maiores momentos pelo movimento LGBTQ+ na China; – Houve a oportunidade de fazer sexo com o planeta, colectivamente, numa instalação artística em Novembro em Sydney, uma oportunidade de divulgar formas de amor pelo planeta e a eco-sexualidade. – Na Turquia, depois de muita manifestação e indignação nas ruas, foi possível parar uma proposta lei que iria absolver violadores se estes casassem com as suas vítimas. Uma vitória para a voz popular feminina. – Houve uma maior preocupação (e.g. graças a um jornal britânico e à sua rubrica vaginal dispatches) com as questões vulvares e vaginais. Tentou-se perceber como se parece, como cheira, como reage. O mistério feminino desvenda-se no entendimento anatómico e fisiológico das partes femininas que precisa de uma atenção contínua e que irá continuar para o ano 2017. Nem tudo foi mau, mas muita coisa foi má, e para não alimentar o pessimismo não irei listar essas coisas tristes. Queremos pensar no futuro, no optimismo e na esperança que servem de combustível para todos movimentos de luta e justiça em todos os campos da nossa vida, incluindo no sexual. Depois de um Natal cheio de comida, e já que andamos a rebolar de doces e coisas boas, desejo a todos uma passagem de ano cheia de amor e, quiçá, cheia de sexo se assim vos aprazer, para queimarem essas calorias extra. O ano 2017 que vos traga marotices de todos os tipos, inspiradas pela imaginação, sabedoria e educação do que é uma sexualidade livre, consentida e bem informada. Porque já chega 2016! Não podemos mais contigo. 2017: chega bem rápido.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexus Festivus [dropcap]P[/dropcap]ara os que estão cansados do tradicional Natal e que gostavam de ter uma alternativa, aqui está uma proposta: o Festivus do Sexo. A inspiração vem directamente da celebração inventada pela família de um dos escritores da série Seinfeld, que acabou por incluí-la num episódio e torná-la muito popular. No enredo conta-se a história de como o pai do George inventou uma nova celebração para Dezembro, de forma a substituir o Natal. O dia não é o mesmo, mas o de 23 de Dezembro, e para quem nunca acompanhou a série e não sabe o que raio é o Festivus, uma explicação detalhada é requerida. O Natal, apesar da original condição re- ligiosa, tem sobrevivido com uma crescente dependência consumista. As crianças que- rem ver um Pai Natal generoso e as pessoas querer agradar a tudo e a todos com prendas, prendas e mais prendas. O Festivus resultou de muita frustração natalícia, o que levou a uma família a criar seu próprio feriado com tradições muito peculiares associadas. Não há árvore de Natal, mas sim um poste de alumínio completamente nu, desprovido de qualquer decoração. Antes de começar o jantar, que não tem um menu específico, cada pessoa tem direito a verbalizar as suas queixas e frustrações em relação aos presentes nesta celebração. Se um filho não dá atenção suficiente aos pais, os pais que lhe digam na cara! Se a sogra é um pesadelo, a nora que se queixe! No fundo esta é uma tentativa de socializar e tornar tradição a má disposição que também é tão típica natalícia, apesar da expectativa ser sempre a contrária. Ainda há mais uma tradição, as proezas de forças, onde o anfitrião desfia um convidado para uma luta de corpo a corpo, até que um seja declarado o vencedor. Para os casais solitários a passar um Natal a dois (que acontece a muitos quando estão fora dos seus países de origem) e não há fa- mília alargada por perto, a proposta é de um Sexus Festivus. Esta será uma festa crítica ao consumismo natalício mas altamente sexual. O poste de alumínio tradicional, podia-se converter num strip pole. Este seria o símbolo do Sexus Festivus e o incentivo para o pessoal tirar a roupa, de forma sensual, acompanhada da sua música favorita. Homens e mulheres por igual. O objectivo é despirem-se por completo. Claro que o tradicional ‘momento de queixas’ não se encaixa no espírito deste meu evento criado. A minha proposta seria mais sensual e simpática. Em vez de queixas, devem elogiar o seu parceiro por todas os momentos sexuais proporcionados no último ano, detalhadamente. Para mostrar que se preocupam e que estão de facto agradecidos por terem um parceiro tão sexualmente gratificante (não há nada como reforçar o bom comportamento). As proezas de forças é que não se alteraria muito do formato original, não seria uma luta de corpo a corpo, mas sexo de corpo a corpo, do mais desenfreado e inspirado. Ganha quem mais conseguir proporcionar orgasmos, se quiserem manter o factor competitivo na equação. O jantar para o Sexus Festivus caria à descrição das mentes sexualmente inspiradas. Poderiam querer alimentos de especiarias afrodisíacas, ou mesmo formas fálicas e vulvares criadas pelas frutas e legumes de eleição. A imaginação poderia ainda sugerir fazerem um daqueles jantares de ‘sushi body’ onde o corpo nu seria utilizado como a plataforma onde a comida é apresentada, neste caso, sushi. Mas poderia ser de outra coisa qualquer! Esta seria a altura ideal para todos os aficionados por sito lia (sexo+comida), ou simplesmente curiosos, misturarem o sexo com os prazeres do estômago num jantar muito especial. O jantar Sexus Festivus! Acho que todos concordamos que o Natal até pode ser divertido, mas não há nada como criar a nossa festa cheia de tradição sexual. Um exclusivo para os que podem, porque muitos que até querem terão que se contentar com o bacalhau, as couves, as rabanadas, as prendas pouco inspiradas e as intrigas familiares. Desejo-vos a todos um feliz e tranquilo Natal, e os que se atreverem, um muito orgásmico Sexus Festivus.