XI – O Lili

Chegados à segunda Cordilheira do Sul deparamos com a imponente montanha do Salgueiro (Qishan). Um pouco mais a norte, encontra-se o monte Zhubi, a leste ergue-se o monte Changyou. Entre eles, desliza um rio onde se podem encontrar jade branco e grãos de cinábrio tão finos que formam, nas margens, uma camada brilhante e rubra, proporcionando esta paisagem fantástica a impressão de termos desembarcado noutro e distante planeta.

Ora neste insólito pedaço de terra existe, habitante teimoso das margens deste rio, uma outra criatura, cujas características facilmente nos levam a incluí-la na nossa coleção de bizarrias: o Lili. Poder-se-ia dizer que se trata de um javali, pois o seu corpo, coberto de pêlo grosso e áspero, e o focinho, onde duas enormes presas retorcidas lhe saem da bocarra, são semelhantes aos do porco selvagem. Contudo, os dois animais são inconfundíveis, porque as patas do Lili são iguais às de um galo, incluindo as orgulhosas esporas, e apresenta, além disso, uma espessa crina, em nada comparável aos meros pêlos hirsutos do nosso intempestivo cerdo.

Porém, o aspecto que mais o distingue de muitos outros bichos é a sua peculiar alimentação. O Lili gosta de se atafulhar de metais e de minerais, conseguindo mesmo sobreviver através do mero consumo de vulgares calhaus.

Segundo os cronistas, o seu menu favorito consiste em pedras semi-preciosas, ferro e cobre. Para aceder a estas iguarias, o Lili é capaz de escavar terrenos, refocilar em minas, destroçar construções, derrubar muros, chegando a modificar radicalmente o aspecto da paisagem. Talvez por estas habilidades, acredita-se que, quando alguém vê um Lili, é porque grandes obras públicas irão em breve ser lançadas ou então ocorrerá um terramoto de devastadora potência.

Por vezes, nomeadamente quando se aproximam demasiado de áreas habitadas, os Lili entram em conflito com os homens, porque pouco se ensaiam em destruir habitações, celeiros, redis, galinheiros e outras construções, o que muito irrita os camponeses das aldeias vizinhas. Estes, avisados do seu mau-humor e carácter violento, raramente se atrevem a enfrentá-lo sozinhos. Preferem preparar cuidadosamente uma batida, organizada segundo preceitos milenares, de modo a cercarem, capturarem ou matarem o incómodo animal. Por estranho que pareça, nada é referido quanto à qualidade da sua carne ou se qualquer parte do seu corpo detém algum poder mágico, o que leva a pensar que os homens temem o contacto com esta espécie de animal.

Quando habitam terrenos propícios, ricos em vários minérios, os Lili reproduzem-se abundantemente. As mães tomam conta dos filhotes, deslocando-se em solidários grupos de fêmeas. Quando os machos atingem os dois anos são convidados a abandonar o grupo feminino. Aí começa para os Lili um período de vida bem mais complicado, pois esta espécie é extremamente territorial e os seus membros envolvem-se em brigas constantes, por determinado espaço e por acesso às fêmeas, nas quais o vencedor poderá emprenhar, à sua discrição, as que muito bem lhe aprouver. Em média, um Lili dura cerca de 10 anos.

Curiosamente, os Lili não disputam a comida entre si. Pelo contrário, quando algum encontra uma jazida rica em apetitoso minério, imediatamente emite alguns sons, parecidos com o ladrar de um cão, com o objectivo de chamar os outros membros do seu grupo. Talvez, entre estes animais, a repartição voluntária de bens valiosos incorra num aumento de prestígio social e assim nenhum, nem em situações de escassez, tem o hábito de guardar só para si quaisquer despojos alimentares.

1 Abr 2022

VIII – A Jiuweihu

Na miríade de outeiros, colinas, montes e serras que eriçam o território da China, sobressai a montanha Qingqiu, não pela sua grande dimensão ou forma inusitada – pelo contrário, é com humildade que se destaca na paisagem –, nem pela beleza das imensidões que contempla, mas pela existência de seres vetustos e raros, descritos em inscrições tão antigas que remontam às névoas espapaçadas das origens.

Muito estranha verificamos ser a natureza na montanha Qingqiu pois até o cinábrio, que na encosta norte abundantemente prolifera e em todos os lugares é reconhecido pela sua cor vermelha, aqui ostenta uma tonalidade esverdeada, assemelhando-se ao jade, predominante na encosta sul desta tão extravagante montanha.

Dizem os registos de antanho existir na região uma volumosa raposa de nove caudas, a que dão o nome de jiuweihu, uma besta cujo comportamento apoquenta as aldeias, pelo facto improvável de ter um desenvolvido um gosto especial e disciplinado pelo consumo de carne humana. E, para atingir este seu obsessivo desiderato de atrair e devorar seres humanos, a jiuweihu adopta espantosos ardis. Por exemplo, segundo os relatos mais desapaixonados, o matreiro animal terá desenvolvido a capacidade de emitir sons que copiam os vagidos de um bebé.

Este truque faz com que as pessoas desprevenidas, sobretudo mulheres solteiras, não resistam a se aproximar, de tão intrigadas por si dão ao ouvir o aflitivo som, seja para meramente darem conta do que se passa, seja para, eventualmente, socorrerem um recém-nascido abandonado. É então que a raposa de nove caudas, aproveitando a sua ingénua e curiosa disposição, as ataca ferozmente e naquela carne humana, fresca e imprudente, afunda os seus afiados dentes, nela refocila e se regala.

Contudo, nem todos os encontros com esta criatura se revelam terríveis ou portadores de maus auspícios. No caso de Yu, o Grande, por exemplo, homem de inexcedíveis recursos, é famoso o momento da sua vida em que se cruzou com uma enorme raposa branca de nove caudas, o que era muito pouco para instilar medo no seu bravo coração. Pelo contrário, interpretou o encontro como um sinal de que em breve casaria e seria abençoado com uma extensa prole. Foi, talvez, a abundância de rabiosques (precisamente nove) que levou Yu a estabelecer uma homologia com o seu destino próximo e a considerar estar perante uma expressão divina e positiva, como se à sua descendência assim fosse prometido tudo sob o céu.

Aliás, os papéis desempenhados pelas raposas nas histórias orientais em muito ultrapassam a mera matreirice, qualidade das suas congéneres do Ocidente. No mundo que se estende a leste dos Himalaias, as raposas têm a capacidade de se transmutar noutros seres, incluindo humanos. É por isso comum escutar histórias de homens enganados por raposas disfarçados de velhos sábios ou, no melhor dos casos, por mulheres belíssimas e impregnadas de um sábio erotismo, capazes de transtornar a mais equilibrada mente e fazer o mais regrado dos corpos delirar num oceano de prazeres difíceis de imaginar e impossíveis de descrever.

Também há quem, em nossos cinzentos dias, não creia na existência da jiuweihu e, mesmo sem questionar a veracidade das observações antigas, considere que a raposa de nove caudas, afinal, não passará de uma espécie de lince ou gato selvagem, cuja cauda ostenta nove círculos negros sobre a pelagem rubra, o que estaria na origem do seu nome: nove anéis e não nove caudas.

Seja como for, os inimigos veramente tradicionais das raposas de nove caudas, para quem é indesmentível a sua existência, são os xamãs pertencentes a uma categoria específica: os wu ou, traduzindo para linguagem ocidental, os que se ocupam de magia negra. Tal acontece porque a carne desta bizarra raposa é o único antídoto conhecido para o famoso veneno gu, uma poção mortal extraída do corpo de um insecto, cuja existência surge referida desde inscrições oraculares da dinastia Shang e cuja eficácia é comparável ao curare, substância sul-americana destilada de um sapo.

O consumo de carne de jiuweihu, ao que parece, evitava a morte de quem, por descuido ou malfeitoria, tivesse haurido o temível veneno gu. E, tratando-se ou não da carne de uma verdadeira jiuweihu ou, pelo contrário, de uma burla assente numa fantasia, geralmente o procedimento tornava cheio de valiosa realidade o baú magro do xamã.

31 Mar 2022

Amadis

Vêm-nos ecos de encantamentos quando surge a Primavera, talvez que ela esteja ligada a uma lenda lá longe, à dos bosques verdes da memória onde a transparência das manhãs nos traz reinos antigos. Amadis de Gaula – a terra de Gales – e não da Gália, França, que ambas as regiões se orientavam aqui nas lendas bretãs, dando depois origem aos trovadores anglo-franceses, que as nacionalidades ainda demoraram a vir; e chegaria Amadis a Portugal com Dinis, este emblema céltico com seiscentos anos de atraso e remetido à intertextualidade como não pode deixar de ser num sistema transformado. Estamos mergulhados nas brumas de um sonho que correu a Europa e a marcou de formas várias reescrevendo-se e adaptando-se ao modelo das suas sociedades.

Amadis, o Namorado, leva-nos até à poesia de Sophia Mello Breyner, esta versão na sua «Fada Oriana» – Oriana a sem Par, Donzel do Mar, uma paixão por uma gentil senhora muito jovem, escrito por um irmão mais novo de D. Dinis, e nós percorremos esta viagem de idealismo amoroso que na época de quinhentos tanto viria a ser reabilitado como um treino moral de valentia, doçura e suave sentir, que muitos o acharam profano lascivo e vadio, doutos seres de responsabilidades culturais que por sinal nunca vêm mencionados, mas Amadis foi proclamado como «Doutrina de Cavaleiros e roteiro de Príncipes» havendo nas lutas além-mar quem o quisesse imitar levando a narrativa com eles.

Até um certo tempo, 1600 por aí, o “Português Namorado” que Espanha ridicularizara em nós por excesso de sentimentalismo e devoção, fizera que Cervantes escrevesse contra o estigma dos cavaleiros andantes retirando obra maior de uma densidade a golpes severos de ironia e marcando claramente o fim de uma era narrativa. Nós, pequenos, quantas vezes ausentes, levámo-la no coração, e Afonso Lopes Vieira trezentos anos mais tarde lhe presta ainda culto como uma memória profunda das bases nacionais, ao escrever «Romance de Amadis». Já o mundo é outro, e o que mais fascina é esta memória que nunca esquece os ciclos quase perfeitos de uma velha litania. Esta disputa pelo texto entre Portugal e Espanha viria a reflectir-se para nosso lado como a primeira “flor de sal” deixada perdida, mas que marcou condutas e fez toda uma linhagem de lirismo com uma lealdade transfiguradora.

Deixámos fugir Amadis, como deixamos e abandonamos quase tudo que os nossos sonhos transportam. Somos poucos para tão grande amor! Nos tempos de agora toda esta conexão será no mínimo estranha pois que nos tornámos ausentes de nós mesmos, criaturas amordaçadas por coisas que não estão no caminho das lendas, que tudo aquilo que nos lembrava se foi de nós também partindo, e que tal estado seria ainda um mal menor se dele ao menos houvesse consciência. Estamos submetidos a ordens, mas não às leis da Ordem, essa outra coisa que é fundamental no instinto maior da liberdade.

Faz agora cem anos que Lopes Vieira no pinhal D´el -Rei, na sua casa, nos daria de novo a encantadora versão dos seus anos de investigação para reescrever uma natureza que continua a querer falar-nos como se fosse um convite de alvorada.

Suspenso fica o amor de Amadis e Oriana, sem lhe sabermos o fim?
Mas o amor não tem fim, se é belo amor; ou, se o tem, tem-no em si mesmo,
Porque o amor ama o amor.
AFONSO LOPES VIEIRA – ROMANCE DE AMADIS

Assim termina o que a Primavera vem de novo lembrar, uma gesta que parece esquecida mas que renasce firme nos nossos corações. O vinte e cinco de Abril traz a lenda inconsciente de um corpo comum nas bailias de um antigo sonho, e foi por isso que nele estivemos tão felizes, que os jovens capitães foram Amadis na vontade de servir com ternura a nossa causa. Com Oriana, e além o mar.

31 Mar 2022

La vache qui rit

28/03/22

Hoje percebemos como o século XX foi o rio das utopias sanguinárias (do fascismo e das revoluções comunistas às vanguardas artísticas) e da ignomínia programada – o resto é a lactescência das margens. Nessas margens leitosas rumorejavam as bolhas da paz, a fraternidade da música e a magna ilusão do cinema, assim como o sonho da educação para todos, prendadas remanescências do progresso, sob as saias da Ilustração.

Bolhas que se revelariam frágeis, face a três investidas, que correspondem às três Virgens anunciadas certamente no Quarto Segredo de Fátima: a primeira, a Virgem do pós-colonialismo e do “politicamente correcto”, que fez cair as malhas na meia do universalismo; a Virgem do neo-liberalismo que abriu brechas no ideal democrático ao preterir aos valores a economia (daí ter-se abolido as minissaias da minha juventude); e a paradoxal investida das redes sociais que sob a face risonha (que também têm) mostrou ter duas faces e mostrou ao espelho o aspecto de uma Virgem Negra de uma comunicação sem ética (- a piada de Chris Rock e a estalada de Will Smith: duas faces da mesma moeda, no “vale tudo” sem comedimento).

Se quisermos parafrasear o célebre mandamento de Lenine, segundo o qual «o socialismo é igual aos sovietes + a eletricidade», «esta invasão da Ucrânia é igual à violação das três virgens + a bondade com que o Putin nos quer livrar do fascismo».

Tendo ido o ano passado à Beira dar uma formação para professores (da primária ao sétimo ano), saí de lá deveras apreensivo: a maior parte dos docentes não sabia, literalmente, o que era um “ponto de vista”. Portanto, os professores não logravam alcançar o reconhecimento de si que supõe a escolha de um “ponto de vista”, o que pouco campo lhes deixava para a generosidade da empatia; além disto simplesmente minar qualquer habilitação para o exercício democrático. A ignorância pode ser inocente? Lembremos, com Deleuze, que perverso é aquele que vive num mundo sem o outro.

Alertado, fui detectando em graus diversos este mesmo estado ante-Gulliveriano por todo o lado e como alastrava pelas redes sociais e o Facebook: aí, a um estado de deficiência cognitiva generalizado junta-se a “tirania do indivíduo”.

Um dos sinais de intolerância e de inadaptabilidade argumentativa é a efervescência com que se procura acima de tudo ter razão e a última palavra, numa postura heliocêntrica. A mim não me incomoda nada, rigorosamente nada, estar equivocado sobre algo, ou iludido, por me faltar qualquer informação que me fará contemplar outra perspectiva – é-me evidente, não vemos como as trilobites em 360%. Posso ser veemente na forma como armo a argumentação lógica, não confundo a (minha) opinião com o conhecimento. Procurando ser persuasivo, isso faz parte do jogo da comunicação, mantenho em aberto a possibilidade do erro e não invisto cegamente na validação narcísica. Tal como perder ao jogo não me muda a disposição. Fico inclusive contente se me apontam um ponto de vista de que não me apercebera.

O que não me abstém de ficar abismado com algumas reacções, mais do que enérgicas, inflamadas, como se quem me interpela jogasse ali a vida. Já me aconteceu, se é amigo, recordar à criatura que o argumento que exponho é fruto dessa “terça-feira”, que na quinta-feira, fazendo jus à afirmação de Picabia de que temos a cabeça redonda para permitir às ideias mudar de direcção, poderei pensar diversamente.

Sem que isso me roube um centímetro na defesa de algumas causas por que estas são o resultado de um pensamento sedimentado no imenso laboratório que a vida e a idade nos faculta; havendo, portanto, ideias que, como os rins e pâncreas, se tornam interiores: órgãos a que não podemos renunciar.

Um exemplo: não me custa nada concordar com o sr. Biden quando ele diz que esta é uma guerra das democracias contra as autocracias, mas gostaria de o interpelar em relação ao cinismo com que ele, como arauto do Ocidente, agora deplora o “despertar dos carniceiros” que usam as armas que o Ocidente lhes foi vendendo, irresponsavelmente, em nome da economia. E gostaria de o inquirir sobre a sordidez de cada míssil Javelin custar 150 000 dólares, e um carro blindado ou um tanque 2 000 000 de dólares, tendo em conta a fome no mundo e a falta de escolas, de livros e vacinas no terceiro mundo; se esse é o seu conceito de avanço democrático.

Coisas tão simples como manter-se higiénico o cu de um mandril. Em querendo acreditar que a democracia é, terá de ser, a garantia de um incremento da biodiversidade que de todo não se compatibiliza com a guerra e os seus negócios.

Entretanto, estando o caldo entornado, leio: «Nas duas próximas semanas, Canadá, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Estados Unidos estarão juntos num exercício que simula a ameaça russa a território da Aliança.

Os pilotos vão voar contra sistemas de defesa aérea de origem russa que alguns dos países da aliança operam. Quem participa quer que esta seja uma mensagem clara para o Kremlin.» E, do ponto de vista do meu sofá, que adora simulações, não sei se hei-de rir, se chorar!

29/03/22

QUEM FICA POR ÚLTIMO FAZ AS ACTAS DAS CIDADES DERRUÍDAS

Ao fim de trinta anos de porfia/ nas fontes mais áridas e obscuras/ tendo inclusive decifrado os dísticos/ até aí secretos de Gilgamesh, na finisterra, // após trinta anos de genuflexões na água/ e de experimentar sucessivas, novas, tatuagens,/ alheio ao risco de não distinguir auto-profecia/ do que realmente cauteriza; em variações // da pedra que esposa a veia e da pedra/ sem trapaças e da pedra que escolta o silêncio/ e da pedra erudita que vai aos rins // galgar no azul e nas nuvens;/ montou finalmente a sua bicicleta/ de ouro – já não tinha era pulmão.

30 Mar 2022

Terraço HuaGua

Após horas a percorrer de Sul para Norte as três áreas do Templo Mausoléu de Tai Hao (太昊陵) ouvimos falar de um museu e questionando a sua localização, somos levados a uma tenda já fora do recinto com objectos de bronze, um esqueleto e mais uns quantos objectos insignificantes. Só na segunda passagem por Huaiyang demos conta de um museu dentro das muralhas do templo, mas desistimos de o visitar tão grande a fila de pessoas para entrar.

Pensando terminada a visita aos locais de Fu Xi, para sair voltamos à Porta Wu Chao e pretendendo ir até à cidade de Huaiyang, depois de passar a feira, seguimos para Sul pela Rua JinBuNan, um istmo ladeado pelas águas do Lago do Dragão. Andando quinhentos metros aparece à esquerda uma plataforma com a “Torre-Templo dos Desenhos dos Trigramas” e entrando por um arco memorial em pedra, atravessamos a Ponte Ying Bin e na acanhada ilha, com uma área de 10 mu (0,667 hectares), está o Terraço HuaGua, onde os trigramas foram desenhados.

Aí edificado um pequeno templo na Dinastia Tang, teve frequentes reparações e já na dinastia Ming e Qing foi construído um muro, o pátio e o Pavilhão dos Oito Diagramas esculpido em pedra. Em 2002, tudo foi destruído por um tornado e um homem de negócios de Huaiyang, o Sr. Huang Jin ofereceu dez milhões de yuans para o reconstruir.

Passando a Ponte Tonghan, entrando pela Porta Sul estamos perante o Pavilhão dos 8 Diagramas e seguindo o eixo central, após o Pavilhão para oferendas de sacrifícios, aparece a figura congenial dos Oito Diagramas. No topo Norte, o Pavilhão ao Ancestral dos Humanos com uma resplandecente escultura de Fu Xi em trajes amarelos. A Oeste situa-se o Pavilhão dedicado a Nu Wa e a Leste o Pavilhão da Tartaruga Branca.

No pátio, inúmeras estelas gravadas com diferentes representações de quadrados mágicos encontrados no Luoshu e no Mapa He, do Rio Amarelo (Huanghe).

HE TU E LUO SHU

A tartaruga, além de ser símbolo da longevidade e da sabedoria, oculta os segredos do espírito do Universo e a sua carapaça serviria de base para Nu Wa recolocar o danificado pilar do Noroeste, reparando assim os estragos provocados pelo deus da Água Gonggong quando, após ser derrotado por o deus do Fogo Zhurong, se atirou contra a Montanha Buzhou, quebrando um dos quatro pilares a sustentar o Céu.

Nestas águas, então Rio Cai, Fu Xi encontrou a tartaruga branca e na carapaça visualizou 55 pontos organizados em cinco conjuntos com as seguintes posições: uma bola branca e seis pretas em baixo (Norte, atrás); duas bolas pretas e sete brancas em cima (Sul, à frente); três bolas brancas e oito pretas à esquerda (Leste); quatro bolas pretas e nove brancas à direita (Oeste), e no meio, cinco bolas brancas e dez bolas pretas. Neste arranjo em cruz, segundo a mitologia chinesa Fu Xi viu emergir do Rio Amarelo um Dragão-Cavalo trazendo no dorso o Mapa do Rio (He Tu) baseada no sistema decimal, sendo os dez dígitos os números do Céu, apresentando a Ordem do Universo Anterior à Manifestação. Neste mapa do Sistema Solar estavam desenhadas várias constelações de onde concebeu o conceito de Yang, (linha contínua), simbolizando o princípio masculino, o luminoso, a força e Yin, (linha interrompida), o feminino, o obscuro, a suavidade, com os quais compôs as Quatro Imagens (duas linhas inteiras, Supremo yang; duas linhas quebradas, Supremo yin; linha inteira e linha quebrada, Jovem yang; linha quebrada e linha inteira, Jovem yin) e usando a Achillea (erva pombinha) desenhou os Oito Trigramas, [mais tarde combinados por o Rei Wen, chefe do Reino Zhou, originando os 64 hexagramas].

No Livro das Mutações (Yi Jing, 易经) vem explicada a teoria dialéctica do Yin e Yang e dos Oito Trigramas, na qual o Universo é eterno e a sua ordem regida pelo Tai ji, a união dos dois princípios, yin e yang. Representa-se por um círculo dividido em duas partes iguais com a forma de Ϩ, sendo yin a parte escura e yang a parte clara e dentro da parte escura existe um ponto claro e na parte clara um ponto escuro. Rodeando esse círculo, as oito fases da energia do Universo, (as oito forças fundamentais da Natureza), representadas nos oito trigramas.

No He Tu, o círculo exterior mostra-se com os números de 6 a 9, no círculo interior de 1 a 4 e no meio, o 5 e o 10, sendo de referir apresentarem-se os números ímpares (do Céu) em pontos brancos e os pares (os números da Terra) por pontos pretos. Disposição num eixo vertical (Eixo Celeste) a dar a direcção e o sentido, no horizontal (Eixo Terra). O encadeamento em progressão numérica no Ciclo da Criação dos Cinco Elementos, na ordem dos ponteiros do relógio aparece: (3,8) Madeira, Leste; (2,7) Fogo, Sul; (5-10) Terra, Centro; (4,9) Metal, Oeste; (1,6) Água, Norte.

Yu o Grande, conhecido por conseguir controlar as cheias alargando os leitos dos rios e a construir canais, ao estabilizar o Rio Luo viu emergir da água uma tartaruga e na carapaça encontrou o Livro do Rio Luo (Luoshu) com a Teoria do materialismo dos Cinco Elementos a representar a Ordem do Universo Manifestado.

Nove dígitos reproduzem as mudanças que ocorrem na Terra e daí representado em quadrado (mágico) de ordem 3, isto é 3x3x3. Tem três colunas na horizontal e outras três na vertical e a soma de cada uma e das oblíquas dá sempre 15 e os dígitos somados 45.

| 4 | 9 | 2 |
| 3 | 5 | 7 |
| 8 | 1 | 6 |

Ainda no recinto, numa pequena arrecadação um tanque guarda duas tartarugas, a branca foi em 1984 reencontrada e a segunda tartaruga, na carapaça tem desenhados caracteres, parecendo querer comunicar algo.
Após sair do Terraço Hua Gua, mais 500 metros para Sul estamos na cidade.

PING LIANG TAI

Na aldeia de Dalian, quatro quilómetros a Sudeste do centro de Huaiyang, visitamos a estação arqueológica de Ping Liang Tai onde, iniciadas as escavações em 1980, foram descobertas próximo da superfície as relíquias da dinastia Han, mais abaixo as de Zhou e Shang, seguindo-se as da Cultura Longshan (2800-2300 a.n.E.) e por fim, a uma profundidade entre três e cinco metros a Cultura Dawenkou (4300-2500 a.n.E.). Aí, as ruínas da cidade de Wanqiu, habitada por a tribo de Fu Xi, com uma área interior em quadrado de 34 mil m², fora cercada por muralhas com cerca de três metros de altura e um comprimento de 185 metros, havendo uma porta a meio dos muros Norte e Sul. Cidade com saneamento, pois existiam três linhas de canos em argila para conduzir a água, assim como no exterior dos muros tinha três fornos, um a Nordeste, outro a Sudoeste e no Leste.

Na Dinastia Han houve uma proliferação de túmulos com a imagem de Fu Xi e Nu Wa, tendo ambos cabeças humanas e o Pai da Humanidade corpo de dragão e a irmã e esposa corpo de serpente, com as caudas entrelaçadas, a representar a união entre os dois. Encontram-se representações de Fu Xi com um Sol, ou a segurar um compasso na mão esquerda e Nu Wa com a Lua, ou um esquadro na mão direita. Na China, as Eras começaram a ser contadas no ano de 2697 a.n.E., data ainda da existência de Fu Xi.

29 Mar 2022

Parte 8.: “As pessoas nascem boas”

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

O título foi retirado de um excerto da formação da moral humana de Confúcio. Confúcio nasceu no séc. VI AC, um homem que acreditava que a bondade se podia alcançar desde que os homens fossem distribuídos pela ordem hierárquica correcta.

Nascida em Pequim em 1982, a realizadora sino-americana Chloé Zhao conta que foi uma adolescente rebelde interessada no desenho de manga e na escrita de fanfiction. Quando tinha 15 anos, os pais puseram-na a estudar num colégio interno no Reino Unido. Após este período frequentou a Universidade e a escola de cinema nos EUA.

Muitos dos seus filmes retratam o Oeste Americano, que Zhao compara à Mongólia interior, um local que ela visitava nas viagens escolares. Ambos os locais estão impregnados de mitos e liberdade, dominados por extensões amplas e paisagens acidentadas. A sua primeira obra, Songs My Brothers Taught Me (2015), foi filmada na reserva Sioux de Lakota. A segunda, The Rider (2017), que conta a história de uma jovem vedeta de rodeo, estreou no Festival de Cannes, e recebeu nomeações na 33ª edição dos Independent Spirit Awards. O filme mais recente de Zhao, Nomadland (2020), que nos fala dos americanos que vivem em caravanas e que procuram trabalho sazonal, ganhou o Globo de Ouro para melhor realização.

Nomadland parece ser uma experimentação social em escala cinematográfica, uma fantasia onde a sabedoria oriental e o modelo ocidental se combinam harmoniosamente. Uma história sobre todos aqueles que têm fé e coragem para se apegarem ao bem que têm dentro de si e para defender a bondade dos outros, por mais difícil que isso seja.

Parte de uma premissa lógica, relacionada com a transformação económica causada pela recessão financeira de 2008, que fez com que muitas pessoas tenham perdido as economias, os negócios, as casas e que tenham ficado impossibilitadas, especialmente as mais idosas, de obter empréstimos para comprar uma casa mesmo que modesta. O sonho americano – que é na verdade uma máquina económica – em transformação. Estas pessoas viram-se obrigadas a ir para a estrada viver em caravanas e em camiões, deambulando em busca de trabalhos temporários e sazonais no Midwest americano. São os sobreviventes do séc. XXI. Os novos Beduínos”.

Em vez de apresentar o colapso da vida humana através de uma perspectica trágica, Zhao retrata a bondade radiosa e a esperança que guiam as pessoas pelo caminho da construção de uma vida nova. A arte torna-se vida e a vida torna-se arte, o princípio básico da filosofia estética oriental fala bem alto no coração do Oeste Americano.

A vida como fonte de beleza cristaliza-se através dos seus três filmes. O estilo de vida minimalista e austero enriquece as profundezas do ser. A virtude, por assim dizer.

Isto traz-nos inadvertidamente ecos da virtude em Aristóteles: os mais virtuosos não procuram agir.

Citações famosas de Chloé Zhao para guardar na memória
🌸 Um realizador de documentários não pode deixar de usar a poesia para contar uma história. Trago verdade à minha ficção. Estas coisas andam a par e passo.
🌸 Modifico-me constantemente. Esta característica tem aspectos negativos porque estou sempre a tentar descobrir quem sou, mas ao mesmo tempo, sou abençoada pela ausência de um pano de fundo estático.
🌸 Sou fortemente influenciada pelo cinema europeu e pelo cinema americano, mas quanto mais avanço na minha carreira, mais dou comigo a olhar para trás à procura da inspiração oriental.
🌸 Infelizmente, acho que por ter andado tanto à deriva quando era criança não criei um sentimento forte de identidade. Não me sinto em casa em lado nenhum e, por causa disso, acho que sou mais ou menos um camaleão.
🌸 Algumas das pessoas mais trabalhadoras e mais generosas que conheci em toda a minha vida não queriam votar nele. O meu desejo é compreender o outro lado, humanizar e retratar as lutas de muitas das pessoas que votaram em Trump.
🌸 A não perder:
2015 Songs My Brothers Taught Me
2017 The Rider
2020 Nomadland

 

{Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

JULIE OYANG Writer | Artist | Namer of clouds
www.julieoyang.com | Instagram: _o_writes

25 Mar 2022

Boris Rýji – O último poeta do Império Soviético

Apresentação e tradução de Astier Basílio

In revistapiparote.com.br

Boris Borisovich Rýji nasceu em 1974, na então Sverdlovsk, como era chamada, na época da União Soviética, de Ecaterimburgo, cidade de operários do ramo metalúrgico. Filho de um geólogo e professor universitário, Rýji passou a infância no bairro de Vtorchemet, na periferia. Foi o poeta que melhor descreveu os escombros da queda do império soviético e cantou a tristeza e a desilusão de sua geração pela perda do prometido futuro glorioso.

Começou a escrever poesia aos 14 anos, mesma idade em que se consagrou campeão local de boxe, mas abandonou a atividade esportiva por não concordar com o rigor da preparação sugerido por seu treinador, com vistas a uma participação futura em outra competição. Profissionalmente, seguiu a profissão do pai. Para não ser convocado para o exército, seguiu nos estudos, vindo a concluir doutorado em geologia, em 2000.

No ano em que aconteceu o colapso da União Soviética, em 1991, Boris Rýji casou-se com Irina Knyazeva, colega de turma na época da escola. Em 1993, nasceu Artyem, único filho do casal. Em 1992, os poemas de Boris Rýji começaram a ser publicados na região dos Urais, onde morava. O poeta chegou, inclusive, a assinar uma coluna sobre poesia contemporânea. A consagração veio em 2000, quando Boris Rýji foi vencedor de um prêmio nacional, o Antibooker. Havia sido publicado em Moscou. O sucesso começava a bater na sua porta. Mas o poeta, que vinha enfrentando problemas de alcoolismo, suicidou-se. Tinha apenas 26 anos. Tombou como os “primeiros soldados da Perestroika”, conforme ele próprio descreveu em um dos seus mais conhecidos poemas.

Com o fim do regime, a Rússia engolfou-se numa avassaladora onda de violência e criminalidade. Sem perspectiva, a maioria dos amigos de infância de Boris entrou para o mundo do crime e morreu. Em outro famoso poema, Boris Rýji fala da “culpa por estar vivo”. No calor do momento, ao escrever sobre a morte do poeta, o crítico literário Aleksei Mashevski cunhou uma expressão que acompanha o Boris Rýji até hoje: a de último poeta soviético.

Em 2008, foi lançado Boris Ryzhy (grafia em inglês), com direção de Aliona van der Horst. A película ganhou os prémios de melhor documentário nos festivais internacionais de Edimburgo, na Alemanha, e em Montreal, no Canadá. No filme, vemos a tensa relação do filho adolescente Artyem com o legado do pai. Todavia, ao chegar à idade adulta, Artyem reconciliou-se com a memória do pai. Infelizmente, o jovem também teve um destino trágico. Morreu de parada cardíaca, em 2020, em Israel, onde trabalhava como vendedor em um mercadinho.

Ano passado, dois dos principais canais de televisão aberta da Rússia prepararam programas dedicados ao jubileu de 20 anos de morte do poeta. Rýji vem conquistando o público jovem. Poemas seus têm sido musicados por bandas de punk, declamados por rappers. E já está sendo rodado um filme de ficção sobre sua vida. A direção será de Semyon Serzin, encenador responsável por levar aos palcos “Como tão bem a gente viveu mal”, montagem baseada em poemas de Rýji, que cumpriu temporada em um dos mais importantes teatros de Moscou, o Gogol Center.

Aliona van der Horst mantém ainda um site em homenagem a Rýji (www.borisryzhy.com), em que estão traduções de poemas em inglês, francês, italiano, holandês. Em 2018, foi publicado na Itália “E così via…”, traduzido por Laura Salmon. Ano passado, saiu na França: “La neige couvrira tout”, com tradução de Jean-Baptiste Para. As primeiras traduções em português de sua poesia são de nossa autoria.

No prédio viviam ex-presos…

No prédio viviam ex-presos,

uma fábrica os aceitava…

Eu, bitucas poeirentas,

com meus amigos catava.

Tão carinhosa a amizade,

com toda força a valer

me batiam com vontade

era eu bom em bater

Nós ficávamos sentados

à entrada do quinto andar.

Sempre juntos,  lado a lado,

mas nos separamos já.

Lá jogamos carteado,

lá  bebemos vinho e

por nós eram desprezados

carteira e filme infantil.

Nós devíamos estar

com doze anos, mais ou menos.

não nos separar juramos,

apuro algum não tememos.

… mas apuros têm seus lados,

bem poucos nós  contornamos.

E um vizinho assassinado,

vão na escada carregando

Olhava no rosto deles,

havia medo em seus rostos

… O assassino não sou eu,

meu doce amigo, por pouco.

1996

 

Às noites por lá, Iessiênin se lia…

Às noites por lá, Iessiênin se lia

Dominó jogavam, de um Porto se enchiam.

Da delegacia um polícia desce

Retirando o quepe, sentou-se de lado

E por não ser um verme bebeu um bocado.

O ano é oitenta. URSS.

Fábrica de carne, a pracinha atrás,

Lembro e não preciso lembrar disso mais.

Daqui um mês escola, mas agora tudo

É luz e é ar. O vento. O verão.

“Compre um sorveti para você”. Na mão

Está a moeda e no olhar, as nuvens.

“Obrigadu”. E sai, para trás não olhei.

Dezessete anos passaram, e eu voltei

–Nem luz e nem ar. Muito embora

a pracinha há. Agora, cadê todo mundo?

Eu, tendo a fábrica de carne no fundo,

Ajusto o casaco, levantando a gola.

Nos anos oitenta, cheguei à conclusão

Vocês viveram bem, houve palavrão

Vinho e Iessiênin estimados foram.

Tornaram-se em sombras, os que faleceram.

Mas em minha alma vivem ainda Iessiênin,

URSS, dominó e os escombros.

1997

 

Fabulosos anos e neles a gente…

Fabulosos anos e neles a gente

O ar por cerveja substituía

E ela, como ar, desaparecia,

Mas acontecia de ocorrer às vezes

Por trás do mercado, quando anoitecia,

Conversa tranquila, em pé, no local.

E como tão bem a gente viveu mal,

Com cigarro aceso em meio à ventania.

E, sem ser privada de embelezamento,

Muito embora tenha rude tessitura,

A vida fez grades de uma forma burra,

com filas de caixas que há em nós, por dentro.

E tão somente o céu é quem, pode ser,

Mirou de uma forma doce e atentamente

Quem lidou de um jeito um tanto displicente

Com a maravilha do verbo VIVER.

1997

24 Mar 2022

Pasolini

No ano do centenário de Pasolini lembremos a força do destino – do seu- que foi brilhante e trágico, sempre olhando do cimo de uma paisagem vulcânica num fim de tarde quase opuscular, interpelando-nos com dureza, fixo como uma estátua num manto inolvidável de secura. – É ele! O homem da máscara de ferro, senhor dos anéis do fogo profundo. Abeiramo-nos de uma lenda que se parece precipitar para o abismo e ficamos hipnotizados.

Sabemos que o risível com ele morreu, começando nós aí uma outra vida colada àquela imagem que paradoxalmente nos segura, nunca mais nos deixa, e não nos desfazemos dela colando-se-nos até ao sangue.

Esta inquietação soberana é apanágio humano, mas de Humanidade todos temos pouco, embora nos revisamos na nomenclatura da espécie, mas naturalmente nunca lembramos ninguém passados que são os primeiros instantes, ou somente nos fixamos por sujeição com que a espécie nos domina, mas isso são outros protocolos.

Se um filme seu fosse um livro de poemas – Poesia in forma de rosa- estaríamos mergulhados na imagem de Maria no Evangelho segundo S. Mateus, a mais bela imagem cinematográfica do mundo, verdadeira Rosa de Jericó. Jamais veremos tamanho gigantismo de perfeição! O poema carnal que constrói é a manifestação de um dom que ao feminino comum transcende e o masculino não merece conhecer, e isto porque ele viu a parte integrante de qualquer coisa que a outros parece ter falhado. Apenas escutando, sabemos como se projecta na nossa visão interior (tudo ao contrário de Medeia, força inalcançável e suspensa da altura dos vulcões que o emblemam) ele deixou bem claro que foi como poeta e não como cineasta que realizou tamanhos filmes, creio que nem seria preciso mencioná-lo, pois que fica clara a diferença sobeja entre uma e outra coisa.

Pasolini era comunista. Um braçado de coisas magníficas em progresso num mundo virulento, que hoje continua tanto ou mais que no seu tempo, e foi levado a esse ideal por respeito aos trabalhadores na luta contra os latifundiários, a seguir à guerra. O seu génio não estava amordaçado pois que na saga das causas mais dignas ele não ripostou e adentrou-se na marcha daqueles excluídos. Está tudo certo com a densidade humana que nos apresenta, e não tenhamos ilusões acerca dos inúmeros esquecimentos estratégicos que desejam separar a condição da sua causa.

Vivemos barricados de vilania mediática, lasciva e lacrimosa, com funcionalidades morais que teriam feito corar de vergonha uma personalidade assim. Vem isto à guisa das inúmeras demonstrações pacifistas que nos vêm atolando de reservas (de vez em quando devemos ausentar-nos dos lugares dos Deveres, para o Mundo Ocidental – e regressar com a coroa de louros da Integração……in- Carta (Suja)
Talvez lembrar o que mais nos amortalha hoje pela voz de Pasolini:

« Quanto ao futuro, escute:
os vossos filhos fascistas
vogarão
rumo aos mundos da Nova Pré- história.
Eu ficarei aqui,
como quem sonha com a perdição
à beira do mar
onde a vida recomeça.

Não ficaria! Pasolini foi assassinado. A investigação à sua morte é até hoje um mistério, e nós não poderemos brindar com a batuta de meros usufrutuários o nome de código de um deus mediterrânico neste beiral de uma consciência bárbara.

23 Mar 2022

A Cidade Proibida de Tai Hao Ling

Estamos a um quilómetro e meio a Norte de Huaiyang no Templo Mausoléu de Taihao (太昊陵, Taihao ling) e após percorrer a sua Cidade Exterior e a Interior, falta-nos agora visitar a Cidade Proibida, onde está sepultado Fu Xi. Para aí chegar atravessamos a passagem em arco feita na alta base em pedra da Entrada Tai Shi, conhecida anteriormente por Pavilhão Zhuanxiang, o edifício mais alto do complexo, com dois andares em madeira na parte superior. Construído durante a Dinastia Ming, é o mais degradado de todos os existentes no recinto e encontra-se fechado, apesar de ao longo da sua existência contar já com três extensas reparações. Tai Shi (太始) significa o estado primordial da matéria durante a sua formação, isto é, o início de todas as coisas existentes na Terra.

A quantidade de pessoas por todo o recinto é muito grande, mas no amplo espaço em frente ao monte da sepultura de Fu Xi a multidão é imensa. Logo após entrar na Cidade Proibida, a mesa de pedra xiantian bagua (先天 八卦), com os oito trigramas esculpidos, devido à sua pouca altura é utilizada por muita gente para fazer a dobragem dos papéis votivos, ou desembrulhar os enormes pivetes (paus de incenso com metro e meio de comprimento) para poderem ser acesos.

Passamos ainda algum tempo a olhar para os inúmeros devotos a prepararem um sem número desses dourados papéis, criando-lhes a forma de losangos e a colocá-los ordenadamente numa folha grossa a fazer de prato, ou a tirar dos sacos os lingotes anteriormente comprados na feira.

Depois levam tudo para um enorme tanque feito em tijolo, situado em frente ao monte da sepultura de Fu Xi, onde arde uma imensa fogueira alimentada com grande quantidade de incenso e papéis em forma de lingotes de ouro. O calor produzido é imenso e o fumo provocado pelo papel queimado e pivetes tornam o ar irrespirável, deixando-nos cobertos de cinzas e os olhos a lacrimejar. Os bombeiros, contando com a ajuda de um carro-tanque, observam de perto o evoluir das chamas e ali passam todo o mês das celebrações.

ESTELA DA DINASTIA SONG

Um baixo muro envolve o monte da sepultura de Fu Xi, onde se encontra um bei (estela) da Dinastia Song, o único registo existente do antigo templo que restou após a governação mongol. Segundo a versão da história a ele associado conta ter sido escrito por Su Xiao Mei, irmã mais nova de Su Shi (1037-1101), oficial civil, poeta, escritor, calígrafo, pintor, músico e cozinheiro, mais conhecido por o nome literário Su Dongpo, e considerado um dos Oito Grandes Mestres da Prosa da Dinastia Tang e Song, em conjunto com o irmão e o pai, Su Xun (1009-1066).

O convite fora feito pelo governo local que enviou a Su Dongpo os caracteres para este escrever com a sua caligrafia 太昊伏羲氏之陵 (Tai Hao Fu Xi Shi Zhi Ling, a significar: este é o Mausoléu de Tai Hao Fu Xi).

Como ele tinha ido viajar, a sua irmã mais nova ao receber a missiva e entrando no quarto onde Su Dongpo costumava trabalhar, encontrou o papel e a tinta já preparada. Sendo Su Xiao Mei também uma excelente calígrafa pegou no seu lenço de seda (绫, Ling) e dobrando-o para dar estabilidade ao pincel, escreveu 太昊伏羲氏之莫 (Tai Hao Fu Xi Shi Zhi Mo).

Quando Su Dongpo chegou e viu o trabalho da irmã gostou muito, mas reparou ter ela trocado o último carácter e em vez de escrever Ling (陵), aí colocou Mo (莫). Na China, Ling (陵) é usado para referir um mausoléu a conter uma série de edifícios, enquanto Mu (墓) se utiliza para os túmulos das pessoas vulgares. Questionando a irmã da razão de ter escrito Mo (莫) em vez de Mu (墓), disse-lhe então Xiao Mei, se a estela já estava na terra não precisava de Tu (土) a especificar. Assim ficou a estela com a caligrafia de Su Xiao Mei.

História não credível pois os pais de Su Shi, a Senhora Cheng casada com Su Xun, tiveram três filhos e outras tantas filhas. No entanto, a filha mais velha, a segunda filha e o filho mais velho, morreram ainda com tenra idade. Assim, restava a Su Shi, um irmão mais novo, Su Zhe e uma irmã, Su Ba Liang, que nascera um ano antes dele e quando esta tinha 18 anos casou-se com o filho do irmão da mãe, mas morreu um ano depois. Assim, o nome da então única irmã de Su Shi era Su Ba Liang, um ano mais velha que ele e não Su Xiao Mei, percebendo-se ser esta uma personagem ficcionada pela história. Já Su Zhe (1039-1112), o irmão mais novo também oficial civil, quando Su Shi foi colocado na prisão em 1079 por o Imperador Shen Zong (1067-1085), devido a discordar das reformas do primeiro-ministro Wang Anshi (1021-1086), foi viveu para Chenzhou (Huaiyang) onde no meio do lago Liu Hu construiu uma casa e se dedicou à leitura, tendo Su Shi passado setenta dias nessa cidade.
Olhando para a estela em frente ao monte, ela já não apresenta os caracteres pois foram apagados pelo tempo.

JARDIM DE AQUILEIA

Por detrás do monte com o túmulo de Fu Xi havia em 2006 (já lá não estão em 2010) dois nichos; a Leste encontrava-se a imagem de Nu Wa e a Oeste, a de Fu Xi. Em frente a cada um, uma banca vendia cadeados com a imagem do Tai ji e onde depois eram gravados os nomes de quem pagava 15 yuans para os adquirir. Por vezes eram usados dois cadeados presos um ao outro, numa demonstração de fidelidade entre o casal, sendo colocados ao longo das duas filas de grossas argolas em forma de U a parecer unir os dois nichos, sendo já milhares os loquetes (cadeados) existentes em torno do Jardim de Aquileia (蓍竹园). Assim se manifestavam muitos crentes a querer perpetuar para a posteridade a união marido e mulher, ou as amizades entre pessoas.

Passado o deslumbramento de tão imaginativo negócio, continuamos a circundar o monte e um cipreste chama a atenção. Parece querer também marcar a união entre masculino e feminino já que, em 1976 uma árvore da família Wingceltis sapling nasceu no interior do cipreste plantado durante a Dinastia Song.

Na visita seguinte, passado alguns anos, os cadeados desapareceram e ali apenas está o Jardim de Aquileia envolvido por um baixo muro, onde dois guardas não permitem a entrada.

Os fios de aquileia serviram para Fu Xi representar o bagua em Wanqiu (Huaiyang). Os trigramas surgiram por combinações de três linhas (yao), yin e yang. Se em tempos ainda mais remotos o oráculo era feito com respostas apenas de sim (uma linha inteira, yang yao) ou de não (uma linha quebrada, yin yao), Fu Xi percebendo a necessidade de uma maior definição e para sair dessa dualidade e diferenciar as linhas combinadas que apresentavam quatro combinações, juntou uma terceira linha criando assim os oito trigramas, a maior das suas contribuições, que representam os oito estados da Natureza, constituídos pelas oito possíveis combinações de três linhas (inteiras yang e quebradas yin).

Como na China somente neste lugar existia a erva aquileia (conhecida em Portugal por erva pombinha – aquilegia vulgaris), quando os imperadores enviavam oficiais a representá-los para venerar o Ancestral Antepassado, eles deveriam colhê-la como prova de aí terem estado.

22 Mar 2022

VII – O Chanfu

Por muito que a exploremos ou, simplesmente, por ali deixemos flutuar o pensamento, a montanha Ji revela-se um lugar inesgotável de maravilhas e assombrações. Caso não bastasse a existência de ignoradas árvores e plantas, cujas propriedades medicinais estão ainda longe de ser totalmente estudadas e conhecidas; de depósitos vastíssimos de jade verde, que irrompem do solo levando à loucura as ambiciosas gentes; esta insólita montanha, além do boyi, é ainda a morada de um outro bizarro animal, que crismaram de chanfu.

Apesar do seu heterodoxo aspecto, os antigos registos são unânimes em considerá-lo uma ave. Isto talvez porque a sua forma se assemelha à do galo, embora com dimensões consideravelmente maiores do que o nosso animal de capoeira. Além disso, o chanfu é senhor de três cabeças, que culminam três longos pescoços. Esta profusão cefálica implica, além de três poderosos e afiados bicos, a existência de seis olhos, o que permite ao bicho considerar a qualquer momento os quatro pontos cardeais. O seu insólito corpo é ainda composto por seis patas e três asas.

Apesar de alado, o chanfu perdeu algures na noite dos tempos a capacidade de voar. Consegue, outrossim, graças às asas, efectuar saltos consideráveis, mas rapidamente se encontra de novo no solo, onde se torna presa de alguns predadores, nos quais podemos incluir, sem vergonha de maior, os próprios seres humanos.

Uma das características mais arrebatadora deste animal é o facto de permanecer em constante estado de vigília, pois enquanto uma das cabeças dorme as outras duas mantêm-se acordadas e o seu corpo activo. Ora para sustentar a sua constante actividade, aliás reveladora de um indisfarçável nervosismo, esta surpreendente ave é escrava de um monstruoso apetite, o que a leva a constantemente procurar alimento, debicando em quase tudo o que lhe passa à frente dos insaciáveis bicos.

Talvez por isso, alguns relatam que quem comer da carne do chanfu será acometido de violentas insónias. Sem que nos tenha sido fornecida prova médica de tal efeito, certo é que, ao longo dos tempos e incólume às modas, o chanfu tornou-se no prato predilecto de guardas fronteiriços, jogadores inveterados e sábios desesperados com a estreiteza dos anos que lhes restam para levar a bom porto os seus estudos. Sendo que estas três espécies de homens são extremamente comuns na China, o chanfu correu sempre um grave perigo de extinção.

Diz-se também que, tal como o andrógino descrito por Aristófanes no “Simpósio” de Platão, este animal parece ser habitado por um radical sentimento de vaidade, enfrentando os eventos de peito bem levantado e uma irreprimível tendência para exibir um comportamento agressivo, muito enraizado no seu carácter exaltado, sempre que outros bichos cruzam o seu caminho. E este será um dos perigos de comer a sua carne: é que além da insónia, ao que parece, quem o devorar, será invadido e possuído por um excessivo amor-próprio que, geralmente e em boa verdade, conduz a actos irreflectidos e a uma familiar forma de perdição.

18 Mar 2022

Parte 7. A mulher chinesa fatal segundo Feng Xiaogang

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

 

Em 1969, ao cair da noite, um homem entrou sorrateiramente numa fábrica de papel no sudoeste da China. Na fábrica estavam guardados livros proibidos, dispostos em montes, à espera de serem cortados em finas tiras de papel e depois serem reciclados. O homem que se esgueirou para dentro da fábrica queria deitar a mão a um livro em particular.

O Lótus Dourado – Jin Ping Mei em chinês – é considerado o quinto romance clássico, a seguir aos Quatro Grandes Romances Clássicos. A sua representação graficamente explícita da sexualidade fez com que o livro ganhasse um nível de notoriedade na China equivalente ao de Madame Bovary no Ocidente. Desde a sua publicação no séc. XVII, o livro foi banido, vendido, comprado e circulou livremente.

Aos cinéfilos estrangeiros pode ter escapado esta referência do filme de Feng Xiaogang Não Sou Madame Bovary, em parte porque o realizador não está a invocar a personagem titular de Gustave Flaubert, mas sim a mais inesquecível heroína da literatura chinesa, Pan Jinlian, do romance Lótus Dourado. O título do filme em chinês é Não Sou Pan Jinlian. Embora tanto Madame Bovary como Pan Jinlian tenham sido acusadas ao longo dos tempos de depravação moral, a natureza das suas personalidades é diferente.

Pan é literalmente uma femme fatale, com pés pequeninos e uma luxúria insaciável, treinada para cantar e tocar o tipo de música associada a artistas de reputação duvidosa. Se quisermos, uma Madame Bovary dura e expedita.

No seu filme, Feng retrata a protagonista Li Xuelian (Lótus de Neve), interpretada por Fan Bingbing, como uma mulher que tenta quebrar O Sistema. Assim sendo, o filme, à semelhança do romance Lótus Dourado, é uma história sobre o tecido social. Feng Xiaogang aborda a natureza da burocracia e a incansável luta de uma mulher contra a sociedade chinesa. Este factor faz o filme parecer político e pesado, mas a história desenrola-se como uma comédia, uma sátira mordaz ao Estado opressivo e à incompetência e indolência dos funcionários do Governo.

Feng Xiaogang escolheu dar tratamento singular às suas imagens. As cenas campestres são visualizadas através de uma forma circular, eliminando a periferia do ecrã, o que nos dá a sensação de estarmos a olhar para uma pintura chinesa ancestral, poética e deslumbrante. Quando ela chega a Pequim, a forma circular desaparece e o enquadramento passa a ser um quadrado perfeito, representando o mundo muito mais vasto onde ela se vai inserir.

Poderemos ser criticamente poéticos ou poeticamente críticos? Bem, desde os tempos ancestrais, a elite chinesa certamente terá encontrado uma forma de expressão útil e criativa para o definir.

Citação famosa de Feng Xiaogang para guardar na memória
🌸 Só os mais impulsivos podem pensar que sou um mestre. Não sou um mestre pura e simplesmente porque o nosso tempo não produz quaisquer mestres.
🌸 A não perder:
2006 O Banquete
2016 Não Sou Madame Bovary
2017 Juventude

{ Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

JULIE OYANG Writer | Artist | Namer of clouds
www.julieoyang.com | Instagram: _o_writes

18 Mar 2022

ALMA

Elon Musk é uma personagem da Marvel e desafiou Putin para um duelo ao sol. Quem ganhasse decidiria o que fazer com a Ucrânia. É, convenhamos, um medievo, quase ingénuo no desplante com que aposta os trunfos na bondade do homem providencial. Já não é uma questão de princípios, mas de destinos. O anjo bom, contra o anjo mau.

A um dos seus seguidores, que escreveu este desafio não passaria de uma brincadeira, o fundador da Tesla respondeu que falava “absolutamente a sério”. “Se Putin pudesse humilhar o Ocidente com tanta facilidade, aceitaria o desafio. Mas não o fará.”, acrescentou. Para já não houve qualquer reação do Kremlin.

De forma bem mais razoável, Musk já havia oferecido o seu apoio a Kiev, através do Twitter. E depois de ter escrito “Mantenham a Ucrânia forte” e de ter dado as “condolências ao grande povo da Rússia, que não quer essa guerra”, Musk activou o seu serviço de internet Starlink na Ucrânia, enviando equipamentos para ajudar a melhorar a conectividade em áreas atingidas por ataques militares russos.

Cremos que este é um «efeito Zelensky», a aspiração à heroicidade tenderá a tornar-se capilar. Contudo, a coragem do presidente ucraniano forjou-a a situação. Zelensky não pode medir os passos, a sua coragem é um aço temperado na chama do desespero e um intérmino pedido de socorro. Encurralado, só lhe resta ser digno.

Não há ali um grama de fanfarronada. Não se é um herói por heteronomia – não é por acaso que o único líder pró-ocidental que não se mostra acagaçado é o que está encurralado.

Por que é que o menino rico, ávido de protagonismo, não pega nas suas espadas de laser, reúne um regimento, e se oferece como voluntário para o combate – experimentando a longa duração da guerra? O que lhe interessa é a propaganda. Ele já percebeu onde está o futuro, está a posicionar-se.

Na outra trincheira temos Putin e a sua crença em Pavlov: o homem é um cego escravo dos estímulos, mais apegado aos condicionamentos do que à virtualidade raciocinante da sua emoção. Está a lixar-se. Todos os dias haverá mais um jornalista a rebelar-se, ou crianças que irão colocar flores no muro da embaixada da Ucrânia.

Todos os dias alguém que leu Dostoievsky e Gogol e Mandelstam, Soljenítsin e Svetlana Aleksiévitch, há-de interrogar a pertinência do país só gerar tiranetes e ter vergonha por si ou alheia – a areia foge por entre os dedos de Putin.

Tudo se repete. Lemos este resumo de “Meninos de Zinco”, de Svetlana Aleksiévitch, publicado em 1991: «Entre 1979 e 1989, as tropas soviéticas envolveram-se numa guerra devastadora no Afeganistão, que causou milhares de baixas em ambos os lados. Enquanto a URSS falava de uma missão de “manutenção da paz”, levas e levas de mortos eram enviadas de volta para casa em caixões de zinco lacrados. Este livro apresenta os testemunhos honestos de soldados, médicos, enfermeiras, mães, esposas e irmãos que descrevem os efeitos duradouros da guerra. Ao tecer as suas histórias, Svetlana Aleksiévitch mostra-nos a verdade sobre o conflito soviético-afegão: a destruição e a beleza de pequenos momentos quotidianos, a vergonha dos veteranos que retornaram, as preocupações com todos os que ficaram para trás», e adivinhamos a vergonha destes novos imberbes “veteranos”, que mais uma vez tornarão ao regaço da Mãe Rússia, dispostos a esconder-se sob os sete folhos da matrioska para chorarem o arrependimento.

E esta violência que os povos em guerra exercem sobre si e os outros começa invariavelmente na distorção da linguagem, nas cambalhotas semânticas. Faz-se a guerra em nome da manutenção da paz. O que se pretende é “desnazificar” e instalar a “verdadeira democracia”, etc., etc. Tudo começa no relaxe da linguagem, talvez desde esse momento em que um espirituoso se lembrou de dar o nome de ALMA à superfície interna dos canhões.

Há cinco anos escrevi num romance, “Fotografar Contra o Vento”, este diálogo entre os protagonistas:
«- Posso fazer-te uma pergunta?
– Força.
– Não gostas de tourada. E és contra a fiesta?
– Não…
– Porquê? Seria natural que fosses contra…
– Olha, Petra Stoering, um cientista, mostrou que o primeiro acto de consciência de si é o que permite à célula ou ao vírus alimentar-se de outro em lugar de autofagocitar-se, quer dizer, quando
começou a distinguir-se do seu próprio alimento… Percebes?
– Não sei se atinjo onde queres chegar.
– É simples, por trágico que seja, estamos condenados à violência sobre os outros… para não nos auto-devorarmos. Iludem-se muito os homens, mas não há guerra e paz, há apenas a guerra, ponto. No meio disto, o ritual da tourada é como uma trégua neste massacre, e às vezes, a cruz dele, o toureiro, morre com ele. E, se assim tem de ser, prefiro que seja uma violência controlada e ritualizada… antes isso que a indeterminação da violência à solta, como acontece na guerra, ou no terrorismo. Porque, à violência, o ser humano não a vai conseguir extirpar de dentro de si, o mais natural é que seja a violência a arrancar das suas mandíbulas esse dente apodrecido que é o homem…
– Deves ter visto muitas coisas violentas?
Cosmo engoliu a aguardente de um trago, antes de redarguir, definitivo:
– Bom, é tarde, são três da manhã e precisamos de descansar…»
Não defendo a tourada – nem tenho de a defender nem de a atacar, isto é uma conversa entre os personagens do livro e obedece à lógica deles, não à minha – mas, contra todas as abomináveis gamas do politicamente correcto, acho que necessitamos absolutamente de voltar a uma certa e mútua “franqueza” interpessoal, de desenvolver novos ritos e modulações do atrito na comunicação que equivalham a formas de violência controlada e ritualizada, de modo a suster a nossa propensão para a guerra. Pelo menos enquanto o interior dos cilindros dos canhões se chamar ALMA.

17 Mar 2022

Sol Menor

Colocados que estamos no centro do assombro devemos saber compor a nossa melodia colectiva tal como sugeria uma jovem mulher, por um minuto concertado em grito, todos juntos, sonoramente abrindo os pulmões e partindo os vidros foscos das vitrinas do mundo, que sinfonia, é também sintonia.

Um discorrer deveras impactante para expressar o nível de alarme, calar as falas e soltar medos sombrios, participando todos à interpelação a uma só voz; «alguém aí…?», que as ideias inusitadas transbordam de perspectivas e aceleram fragmentos de imponderabilidade que sempre podem vir a ser benéficos. Que se algo acontecer mergulharemos em Sol menor (abreviatura no sistema europeu Sol m) e muitas são as composições clássicas que o abarcam, mas pode haver um Sol menor que nos assista, sem ré, nem dó, nem si, nem lá, obliterando também o nosso Grito.

Por vezes necessitamos desesperadamente que outro alguém para lá dos factos e das causas nos escute, mais amplamente compreensível e estático do que este volume escorregadio dos dizeres que nunca dão respostas, quase sempre atordoam, e nos subestimam enquanto depositantes de forças que desviam as quedas, para, e que finalmente, o Sol não expluda por cima das nossas cabeças. Que se o frenesim nuclear continuar, então mais vale ser avestruz, colocar a cabeça debaixo da terra e ficar atento aos batimentos cardíacos do planeta, pois que ao levantá-la do chão poderemos ver diminuída a visão do disco solar.

Alucinar! Tirar de vez estas sortes, que o azar já parece um prodígio comparado com tais ditames, que a vida, essa, sempre foi sonora – Sol maior- aquecendo as vozes, mas, talvez que o menor dos sóis faça do som uma antiga legenda sem valor e só nos reste agora uivar à Lua, e que ele não impere, que esse Sol menor não nos instrua em futuros pactos de silêncio, pois que a erva cresce sempre mais do lado em que escuta o vento. O ruido de fundo pode acelerar o chefe da orquestra para estrondosos acordes, que os acordos são ténues, e mais se lhe entende nos interstícios do processo com uma Europa galvanizada por tremores de impotência generalíssima. Orquestras em contramão, sons que já foram música nos salões dos Impérios.

Depois de foneticamente termos avançado com o barril de pólvora das palavras, efectivamente, e mesmo assim, não se entende para onde tudo caminha, e em que estrofe o épico perdeu o verso que rimava certezas em sua rima. O que não se espera está sempre mais próximo do que aquilo que é esperado, que em certa medida já todos estávamos à «Espera de Godot»:- Vladimir e Estragon falam até à exaustão, enquanto esperam, travam brigas refazendo vezes sem conta as mesmas perguntas, que a existência se tornara uma coisa vazia e tudo isto lhes daria então uma noção de existir.

Godot, há-de no entanto chegar! Talvez em Sol menor numa nuvem que abarque a amplitude do nosso grito comum, e quando ela nos acompanhar como aos hebreus na passagem pelo deserto, nós acharemos então que retaliámos todos para o grande vácuo, estendendo-se-nos por fim à nossa frente o verdadeiro teatro do absurdo.

Isto, e quando fartos de tudo, escutarmos a música celestial com efeitos moderados para não massacrar ainda mais a atmosfera pesada do Leviatã.

Esta personificação magnífica é a metáfora que nos transmite a humanidade perdida que se viu depois incapaz de saber da sua própria existência; Vladimir (personagem de Beckett) espera, como nós já esperámos, por D. Sebastião, outros, pelo Messias, e outros mais por coisas sem fim, mas a bem dizer nada chegou, e provavelmente nunca chegará. Só o Sol menor se enche de escuridão, e já não vai ser escutado nas grutas que estão por vir, no entanto, e para tornar o drama mais absurdo, alguma coisa afinal chegou em forma de triste balada.

E Deus, sempre terá morrido? Não. Ele apenas está ausente e não ouve esta melodia nem o que disseram da sua natureza. Mas este coro chegará até ao seu silêncio.

16 Mar 2022

A Cidade Interior de Tai Hao ling

Estamos em Huaiyang a visitar o Templo Mausoléu de Tai Hao (太昊陵) e depois de percorrer a Cidade Exterior, após subir os cinco degraus e atravessada a Porta Tai Ji (Apogeu Supremo a reger a ordem do Universo), chegamos à Cidade Interior. Entramos para um pátio com edifícios laterais e em frente o Templo Tong Tian, havendo na parte Sudoeste a Torre do Tambor e a Sudeste a Torre do Sino, ambas com dois andares e uma altura de 11,2 chi (3,73 m), construídas no ano de 1456 e refeitas em 2001.

O som do tambor desperta a curiosidade pois é tocado de uma forma obsessiva. O tambor, de um tamanho inferior aos existentes nas torres dos tambores de muitas cidades, serve agora apenas para fins comerciais, tal como o pequeno sino colocado no andar superior da torre a Sudeste. O sino fundido em 1445, durante a Dinastia Ming, era tocado no princípio da manhã como sinal à população do começo do dia. À noite, o som do tambor anunciava ter o dia terminado. Tambor e sino serviam para comunicar com os habitantes, dando-lhes as horas e instruções consoante eram tocados.

Em ambos os lados da praça existiam 42 quartos (lang fang) onde na nossa primeira visita se encontrava uma exposição de esculturas e em tempos antigos serviram como locais reservados aos oficiais quando vinham prestar homenagem a Fu Xi.

Avançamos para Tong Tian Dian (统天殿), o pavilhão central e o mais importante do templo apresenta o melhor trabalho de arquitectura de todo o recinto. O edifício começou a ser construído em 1437, durante a Dinastia Ming, sendo reparado em 1985 e em 1998. Conta com cinco salas em largura e três em profundidade e tem o telhado feito de telhas amarelas, símbolo apenas dos imperadores, havendo no topo do lado Leste oito dragões e para Oeste, oito fénix. Os caracteres 统天 (Tong Tian) provêm do livro Yi-Xici xia 《易 系辞下》 e o significado pode ser para Tong, o de unificar e Tian, tudo o que existe no Universo, significando juntos o comando de todas as coisas na Terra.

Dentro, a meio desse enorme salão, um altar tem ao centro a grande estátua dourada de Fu Xi, uma produção recente de 2004, representando-o com duas protuberâncias na cabeça e roupas feitas de folhas e na cintura uma pele de animal. Se em 1968 a estátua de Fu Xi era de madeira, quando o edifício foi reparado em 1985 passou a ser de argila. Em todas as imagens onde está representado tem entre as mãos um Xian Tian Bagua Tai Ji, octógono prato com os trigramas colocados em redor do Tai Ji.

No altar a ladear Fu Xi duas imagens de seus ajudantes, a da esquerda Zhu Xiang [da tribo Dragão Voador (FeiLong shi, 飞龙氏)], encarregue de registar os acontecimentos históricos, sendo um dos primeiros a gravar na carapaça da tartaruga, ou nos ossos de bovinos, sinais que vieram a dar os caracteres, pois até aí, os registos ficavam apenas assinalados por nós numa corda e os factos eram perpetuados oralmente. À direita, Hao Ying, da tribo QianLong shi, o criador de um dos primeiros calendários, o Xiang xing (象形), usando imagens pictográficas.

Em torno das paredes interiores, enormes lajes de pedra gravadas em 1998 com dezasseis desenhos a narrar a História da vida de Fu Xi, desde a nascença até à morte. No tecto encontram-se representados os 64 hexagramas (que combinam em pares os oito trigramas), apesar de nos livros antigos aí fazerem referência à existência de 28 Xing Xiu (星宿), 28 constelações do Céu (Tian) a permitir perceber as coordenadas para a localização e o movimento da Lua e dos planetas do sistema solar. Outrora, aqui havia também no meio da sala uma estátua do Dragão-cavalo (Long Ma) que traz o Bagua e conhecido por Si Bu Xiang (quatro animais indefinidos, a parecer ser um, mas não o que à primeira vista parece) e ainda o Livro de Pedra chamado YuYeShiShu 《玉页石书》.

Encontramos estes dois últimos mais tarde no Templo de Fu Xi, na cidade de Tianshui em Gansu.
Na parte de trás do altar, já na sala do fundo, gravados em madeira quatro douradas figuras masculinas com uma figuração ligada às suas funções, sendo a do lado direito, XiangLong shi (quem protegia a população dos animais ferozes), seguindo TuLong shi (ligado à agricultura), ShuiLong shi (a tomar conta das questões da água) e JuLong shi (construtor das habitações).

Na primeira visita, virada para a porta traseira, ainda no interior, uma escultura de Nu Wa acompanhada por uma série de crianças representadas nuas, sendo vestidas com um avental vermelho a cobrir os órgãos genitais. Na nossa segunda visita estas imagens tinham sido retiradas.

Sistema de casamentos

Seguindo para o Pavilhão Xian Ren, nos muros laterais do pátio encontram-se, para Oeste a Porta Si Xiang (四象, Quatro Estações) e a Leste, abre-se a Porta Liang Yi (两仪), que significa yin e yang, ou Terra e Céu e para Yi, a correspondência de Mutações.

A placa em frente à porta prossegue com as explicações. Yi (mutação) tem Tai Ji (Apogeu Supremo a reger a ordem do Universo), sendo Liang Yi a união de dois princípios representado por um círculo dividido em duas partes iguais, yin, a parte escura e yang, a parte clara. Liang Yi produz quatro Xiang (quadrantes), que dão os oito Gua (trigramas). Filosofia explicada por Fu Xi com os trigramas por ele criados, a partir da combinação feita com três linhas, inteiras (yang yao) e ou quebradas (yin yao), e daí os oito trigramas colocados em torno do Tai ji pela ordem da representação que lhes deu e conhecida por xiantian bagua (先天 八卦).

Entramos pela Porta Liang Yi e no lado esquerdo do pequeno pátio está um nicho com a imagem de Yue Fei e em frente cinco figuras ajoelhadas. A estátua do general Yue Fei já não era a mesma existente no ano anterior.

O Pavilhão Xian Ren (显仁殿), edificado durante a Dinastia Ming e em 1990 reconstruído, tem a escultura dourada de Nu Wa levando ao colo na mão direita um bebé e na esquerda, a pedra para reparar o Céu quebrado no confronto entre dois deuses.

No exterior do Pavilhão, na parte Nordeste da base de pedra, uma das pedras tem um orifício onde as mulheres aí colocam os dedos, passando de seguida a mão no bolso. Conta a história de há cinco milénios, que a meio da Primavera Fu Xi convocava as raparigas e rapazes das diferentes tribos para se juntarem, havendo no centro do recinto do encontro uma pedra com um buraco e se os jovens gostassem um do outro, tocando no orifício tornavam-se marido e esposa. O sistema de casamento foi um dos legados de Fu Xi e nessa cerimónia era oferecida carne de veado. Desde então, o costume tornou-se prática corrente, mas desvirtuado, a crença popular deu-lhe outro simbolismo, pois se os pais ou avós tocassem na vagina da filha ou neta, esta tornar-se-ia mais inteligente e saudável.

Em frente, no muro lateral estão dispostas em fila placas de pedra com caracteres gravados, estrelas deixadas por oficiais nas visitas, onde muitos são os peregrinos a tentar aí colar moedas pressionando-as e em alguns casos isso acontece. Por vezes, alguns pelo constante falhanço deitam saliva nas moedas a ver se pegam.

15 Mar 2022

VI – O Boyi

Os antigos atribuíam à montanha Ji (Jishan) propriedades distintas, consoante se referiam à encosta norte, onde proliferavam árvores consideradas estranhas e inclassificáveis; ou à encosta sul, onde o jade esporadicamente emergia emprestando à terra rochosa uma tonalidade esverdeada.

Esta insólita montanha, povoada por animais tão bizarros quanto as árvores voltadas a norte, ainda hoje é difícil de mapear e os geógrafos chineses não conseguem chegar a acordo sobre a sua exacta localização. Um destes cientistas, talvez alienado pelas dificuldades da tarefa, aventou a hipótese de se tratar de um acidente geológico lunar, detectado através de telescópios primitivos, também eles desaparecidos na voragem dos tempos e das eras. Mas, perante uma tão assombrosa teoria, nenhum dos seus pares lhe concedeu o menor crédito e, cruelmente, não só desprezaram como troçaram atrozmente dos seus artigos, o que o terá levado ao suicídio na tenra idade de 34 anos.

Ora nessa mesma montanha Ji existia uma besta, a que deram o nome de boyi, cujas características faziam abrir as bocas de espanto e medo, a quem com ela se cruzava. Possuía este animal a forma aproximada de um bode e como estes bichos ostentava uns cornos salientes. Contudo, o boyi era ainda composto de nove caudas e quatro orelhas. Como se não bastasse tanta bizarria, para aumentar a estranheza do seu aspecto, no farto lombo haviam-lhe nascido dois olhos.

Numerosos sábios tentaram explicar as razões para tamanha dissemelhança com as outras bestas e elaborado hipóteses que justificassem a existência de dois globos oculares nas costas do animal. Um deles, vindo do norte do país, carregado de arcaicos alfarrábios enrolados, escritos no alfabeto das tribos manchu, garantia que se tratava do cruzamento de um deus guerreiro, entretanto morto ou desaparecido, com uma cabra selvagem. Esta teoria foi, no entanto, rapidamente refutada pelo facto dos sábios chineses, ao contrário dos gregos, encararem com cepticismo a possibilidade destas anómalas uniões poderem de algum modo ser frutíferas.

Assim, mais depressa seguiram a teoria de índole evolucionista de um outro sábio, por acaso nascido perto de Jishan, segundo a qual os dois olhos haviam nascido nas costas do boyi porque, ao longo dos séculos, o animal fôra a presa favorita de ferozes e esfomeados tigres, que o atacavam pelas costas quando ele, distraído, sorvia água num qualquer lago ou ribeiro. A constante repetição deste triste evento teria então feito com que o boyi desenvolvesse aqueles dois olhos no lombo, de modo a dar pela aproximação dos tigres e, imediatamente, em lestos saltos, desaparecer montanha acima para lugares que nem a agilidade dos tigres lhes permitia alcançar.

Então, graças aos olhos lombares, quando chegava a hora de se dessedentar, o boyi passou a acercar-se sem temor de rios, ribeiros e lagos, e ainda hoje se acredita que quem usar um pedaço da sua pele no cinto, deixará de sentir medo, seja em que situação for, e alegremente se apresentará na linha da frente da mais estrepitosa batalha.

11 Mar 2022

Parte 6. Ang Lee: A doçura do vinagre

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

 

Surgiu como um dos realizadores mais versáteis, populares e aplaudidos pela crítica. Reconhecido pela capacidade de transcender fronteiras culturais e estilísticas, Ang Lee (n. 1954) construiu uma obra diversa, que inclui filmes que falam de choques culturais e globalização Eat Drink Man Woman, 1994, The Wedding Banquet, 1993), o drama de época Sense and Sensibility, 1995, o épico de artes marciais Crouching Tiger, Hidden Dragon, (2000), o filme a partir da banda desenhada Hulk, 2003, o western Brokeback Mountain, 2005, e a aventura mágica em 3D The Life of Pi, 2012.

Lee vai beber tanto à tradição filosófica oriental, como à tradição filosófica ocidental, para abordar as suas temáticas. Neste artigo vamos focar-nos na forma como ele “negoceia” os pontos de vistas orientais no universo do cinema e como de forma criativa trata questões sensíveis em Brokeback Mountain.

O filme, realizado em 2005, é uma adaptação do romance de Annie Proulx sobre a relação intensa entre dois cowboys, que se conhecem enquanto pastoreiam gado numa montanha do Wyoming, em 1963. Tanto o filme como o romance realçam a natureza complexa da relação emocional e sexual entre eles ao longo de vinte anos, durante os quais lutam contra a desaprovação social e tentam manter viva a chama do primeiro encontro.

Contudo, o filme de Lee interliga o género western com a filosofia oriental, o que permite que os espectadores vejam a homossexualidade sobre uma nova perspectiva.

A representação tradicional do cowboy no Ocidente corresponde ao arquétipo heterossexual. Esta representação vai sem dúvida colidir com o conceito “queer” de género e sexualidade. Mas em vez de reproduzir o arquétipo ocidental ou o conceito “queer”, Brokeback Mountain transporta o western numa direcção diferente e inovadora.

Em formato cinematográfico, Lee ajuda-nos a compreender a simbiose entre o conceito primordial de amizade e o conceito de ren: o ser humano enquanto ser social e não como um objecto que consome e é consumido pela sexualidade. Quando a noção de género pré-determinado está ausente, não existe necessidade de um conceito “queer” para explicar a homossexualidade.

Para ilustrar a ancestral tolerância chinesa em relação às preferências sexuais, que não coloca um rótulo na homossexualidade, vamos examinar uma conhecida pintura chinesa, os Provadores de Vinagre.

A composição alegórica leva-nos a compreender como o Taoísmo difere das outras crenças. Os Provadores de Vinagre reproduz três homens em torno de um barril de vinagre. Cada um deles representa um dos três pilares da sabedoria chinesa – o Confucionismo, o Budismo e o Taoísmo – e o vinagre representa a “essência da vida”.

Um dos homens, Confúcio, reage como se tivesse provado algo azedo, o segundo, Buda, reage como se tivesse provado algo amargo e o último, Lao Zi, reage como se tivesse provado algo doce. O Confucionismo considera a vida azeda, necessitada de regras para corrigir a degeneração humana. O Budismo diz-nos que a vida é amarga, cheia de dor e sofrimento, causados por uma ligação excessiva aos bens e aos desejos materiais. O Taoísmo vê a doçura da vida porque a considera perfeita no seu estado natural.

Citações famosas de Ang Lee para reter na memória:

• De facto, o medo torna-nos genuínos.
• Gosto de pensar que não sou categorizável.
• Um filme é pura provocação. Não é uma mensagem, não é a afirmação de um ponto de vista.
• Cresci pacificamente, à maneira oriental. Resolvemos problemas facilmente e acreditamos na harmonia. Reduzimos os conflitos, obedecemos a ordens até ao dia em que somos nós a dá-las.
• A luta de identidade representou um papel importante na minha vida.

A NÃO PERDER: 1993 The Wedding Banquet, 1994 Eat Drink Man Woman, 1997 The Ice Storm, 2000 Crouching Tiger, Hidden Dragon, 2005 Brokeback Mountain, 2007 Lust, Caution, 2012 Life of Pi

 

Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.

10 Mar 2022

Vladimir Maiakovski

Seria então cometer duplo suicídio colectivo se neste instante – Hora do Mundo – deixássemos de lembrar o que define a qualidade dos povos, os poetas que lhes nascem. Este é um Vladimir para a eternidade (se a houver) e alguém de uma exasperante beleza. Nasceu na Geórgia, como Estaline, parecendo-nos duro, grave e cheio de magia- é Maiakovski- o agente da transformação poética do século XX; revolucionário, futurista, coração gigante e tudo o mais que o melhor englobou; é o rosto de um século espectacularmente fecundo, logo a abrir num arrebatamento que transfiguraria para sempre as sociedades, essas imponderáveis organizações que podem capitular repetidamente o seu pior, esquecendo o quanto de bom lhes assiste.

O Futurismo russo separa-se do italiano por vertentes bem mais refinadas e labirínticas, pois que nele o fascismo não entrou, como foi o caso do primeiro, e foi todo ele feito numa utópica capacidade de mudança sem mencionar os dotes tecnológicos de impactante frieza logo a abrir e, por isso, o grito Maiakovski ” exigimos respeito pelo direito dos poetas (…) a uma raiva irreprimível existente antes deles; a arrancar com horror da fronte orgulhosa a Coroa, feita por vós duma vassoura de ramos e duma glória de dois patacos”, estando destruídas as conveniências de qualquer composição idólatra face aos regimes que sobre eles e pelas suas lutas avançariam.

Escandaloso! E pode ser a expressão exacta para definir tal comportamento em rota de colisão com a floresta de dogmas e tradições paradas mas, no caso do nosso Vladimir, tudo se tornaria bem mais exigente findo o arrebatamento deste primeiro embate. E ei-lo avançando com o rigor poético de sentido de missão, levando esta experiência da sua escrita a patamares de comoção e qualidade, quase insuperáveis.

Tem a alma do Império Russo estampado na fronte, este ser que ajudará a quebrar uma primeira etapa de um ângulo que nos parece lendário, e todos os regimes serão nesta perspectiva tão necessários quanto medonhos, disso temos experiências e certezas e, via Molotov, ver-se-ia pressionado por todo um dirigismo em matéria literária saído paradoxalmente da utopia que na sua paixão ajudara a edificar. Não irá permitir que o domem, ser preso uma vez mais e suicida-se. A construção do Homem Novo sofre revezes que os sonhadores desconhecem.

Transbordamos de manifestações políticas e pode ser este o momento da manifesta noção exacta da nossa pequenez, do nosso transtorno, do nosso atavismo, mas também isso nada quererá dizer face a monumentos como o poeta Maiakovski, que os povos devem ser lembrados e julgados pela qualidade dos poetas que lhes nascem e nada mais.

Reflectir o que nos trouxe a Hora amarga e não sublevar as conspiratórias doutrinas de uns e de outros, dado que as coisas grandes como bem disse Holderlin “os poetas o fundam”. Se os lêssemos, as guerras não seriam possíveis. Se com eles nos familiarizássemos, as agruras dos dizeres acabariam por ser esquecidas, mas o tempo ímpio devolve uma natureza imprópria para a paz. Que a guerra, pode ser feia, mas mais terrível é o nosso estranho estado de párias de uma dimensão desconhecida.

 

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente.
Ela é tão bela,
que por certo, hão-de
ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas, […]
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava como um poeta

9 Mar 2022

Rua sem título

Descia em frente o dia cinzento. Mas não sei como poderia hoje o dia colorir-se, se voam projéteis que explodem só um pouco mais para leste. Mais para lá. Parece natural que a luz, que já vinha a anunciar outra inclinação para a Primavera, pareça ter-se encolhido e reservado a possibilidade de uma alegria de retorno e renovação.

Descia em pensamento, e porque tão perto, a antiga rua do mundo. Um rasgo a direito a desaguar no rio. Numa cidade qualquer. Nunca me vi a habitar uma dessas cidades de interior. É como uma respiração a que nos habituamos. O rio. Uma espécie de eco vivo de outras paragens, a transcender qualquer indício de clausura.

E tive este pensamento de nunca, como de nunca ter visto a nascente deste rio. Na verdade um rio é como um conjunto de faces diferentes em cada lugar em que o conhecemos, na ilusão de ser esse o seu aspecto de rio e não somente o rio aí. Um percurso em crescendo que tem o seu início numas frágeis linhas de água a escorrer de um nicho de rocha, sem que se pressinta nessa insignificância límpida e pitoresca, o estertor de um estuário como o do Tejo. Bem mais adiante. Fui ver, numa pequena viagem virtual e ali estava como desconfiei um pequeno santuário natural, que em nada admite imaginar o futuro mas coexistente imenso caudal que mais adiante na península se acumula. Um rio maduro. Um rio prestes a diluir-se no todo do oceano. E é esse largo estuário do qual ignoramos a origem, que nos povoa esta ânsia de respiração. Em que coexistem os tempos todos. Numa rigorosa similitude entre as águas que irrompem da terra mais a leste e as que já se misturam ao oceano. As mesmas e sempre outras. Maduros nós, também. 882 Km da nascente até à foz. Deste rio Tejo que só conheço todos os dias largo e vasto antes da diluição.

Como da vida em geral. Cada dia, pequeno volume de águas a ser nascente ou reacção e de que só parecemos conhecer num ponto preciso. Ou do caudal, ou da margem. E em cada dia, desses, o pequeno avolumar se faz muito na intenção sem o ser, de invalidar qualquer outra forma de estuário. Com tudo o que isso implica. De vida própria, de margens definidas e de destino no desaguar imparável.

Tudo desagua na nossa frente, com a informação. A verdade como a ficção, parcial ou adulterada. Aqui. Vinda de leste como a guerra.

Como o fruto desta natureza humana, impotente de evitar a possibilidade de sincronia que sempre torna inevitável o instalar na guerra. A montante do rio. Quase uma ficção, se não tivermos o cuidado de focar nesse ponto. Um repúdio absoluto. Tanto como o da pena de morte. Temos pena de quem sofre, mas temos ainda tantas manchas no mapa-mundo de onde se pratica e por lei. Manchas que são nódoas. Temos pena da vida que se esvai em sofrimento nestes cenários. E não sabemos se, sem querer, contribuímos. Que humanidade é esta?

A guerra, qualquer guerra, não pode ter atenuantes, justificações, identificação de culpados a montante, visões laterais a contribuir, políticas, egos, expansionismos ou economicismos. Uma guerra é guerra, um costume bárbaro, recoberto hipocritamente de regulamentação. É crime e é assassinato, atentado contra a vida e contra os direitos de quem a tem ainda. Aliados são pessoas de que se gosta em absoluto e não pessoas que matem por nós. Ou sem nós. Porque o povo não é uma rede de colorido político, económico ou habitante de geoestratégias. É carne para a morte. Como a dos filhos, militares de todas as frentes.

O repúdio tem que ser um asco indiferente a tudo o resto. É pacifismo absoluto. É o direito dos outros. À vida. E a passear o cão e o carrinho do bébé ou pôr rolos no cabelo. Essas pequenas insignificâncias. Já para não falar de tudo o mais. Do medo e do luto, por exemplo. Recomeçar sem nada ou não haver lugar a isso, sequer.
Tanta água. E se aqui fosse lá? Não o rio em cinza, mas um manto branco e sujo nas ruas. Teria as mãos em concha. Nas ruas frias de Mariupol, recolhe-se neve para derreter em água potável.

8 Mar 2022

A Cidade Exterior do Tai Hao Ling

A pequena cidade de Huaiyang (淮阳), na prefeitura de Zhoukou, província de Henan, mostra-se pouco apelativa e apenas o Templo Mausoléu de Tai Hao atrai os visitantes. A acompanhar o monte da sepultura de Fu Xi foi crescendo para Sul um templo, existente já na Dinastia Zhou e onde nas dinastias Tang e Song foram adicionadas novas construções.

Esse complexo, devido ao desinteresse dos mongóis Yuan, estava em ruínas aquando da visita em 1371 de Tai Zu, o primeiro imperador Ming e nessa dinastia o templo foi arranjado e ganhou a actual dimensão. Entre 1448 e 1576 novos edifícios foram construídos, como as torres do Sino e do Tambor e arranjados os existentes e em 1745, o governo da Dinastia Qing deu dinheiro para uma grande reparação. Nas várias visitas assistimos ao empenho para aí se realizarem muitos melhoramentos e assim fomos encontrando novos motivos de interesse.

Estando no recinto da feira, para chegar à entrada do Templo Mausoléu de Tai Hao temos de atravessar uma das três pontes sobre o Rio Cai, sendo a do meio antigamente reservada ao Imperador, ou aos oficiais que o vinham representar quando aí se deslocavam para oferecer sacrifícios a Fu Xi. A ponte situada a Leste era para os Oficiais Civis e a do Oeste, para os Oficiais Militares. Nos outros dias, sem oficiais nem imperador, na visita ao templo as pessoas ao passar pela ponte central deviam prosternar-se antes de a atravessar.

Chegados à entrada, na parte Sul do Templo, ao redor da Porta Wu Chao estão sentadas no chão em grupos uma grande quantidade de pessoas idosas, tendo todas as mulheres os cabelos cobertos com lenços de duas cores diferentes, verdes e rosas. Para conter as constantes ondas de peregrinos, uma barreira de polícias vai gerindo as entradas no recinto do templo.

Construída em 1462, durante a Dinastia Ming (1368-1644), com três portas a Wu Chao men foi edificada em tijolo e pintada a vermelha, sendo a estrutura do telhado em madeira e deveria ter as telhas de porcelana em cor amarela, reservada aos imperadores. Com pesadas portas de madeira, a central está cravejada por pregos dourados formando nove linhas horizontais e nove linhas verticais e as outras duas portas só têm sete linhas verticais, mantendo as nove horizontais.

Na parte exterior, entre o telhado e o edifício, por cima da entrada central uma tabuleta indica estarmos perante o Mausoléu de Tai Hao (太昊陵, Tai Hao Ling) e entre ela estão colocadas quatro tabuletas com individuais caracteres. No lado direito, pois a leitura faz-se pelo sentido oposto ao usado no ocidente, temos Kai (开) a significar abrir, ou descobrir, e Tian (天), Céu e no outro lado encontram-se Li (立) estabelecer, ou fundar, e Ji (极), infinito, sem limites. Por baixo da placa central, outra com os caracteres午朝门, Porta Wu Chao.

Ainda no muro Sul, lateralmente a esta porta encontram-se as entradas Dong Tian e Xi Tian, a servirem a Cidade Exterior do recinto do Templo. Da Porta Wu Chao parte um eixo central a atravessar as várias portas e se estiverem abertas consegue-se, passando o olhar por a Cidade Interior, ver na Cidade Proibida o monte de terra onde está sepultado Fu Xi, apesar de não ser totalmente em linha recta, mas fazendo uma ligeira curva.

A maioria dos edifícios do Templo estão voltados para Sul e desde a entrada até ao muro na parte Norte contam-se 750 metros. O recinto tem dez portas e uma área de 875 mu (58,3 hectares), estando dividido em três zonas: a Cidade Exterior, a Interior e a Cidade Proibida, separadas por três muros.

CIDADE EXTERIOR

Já dentro, ouvimos atrás de nós uma música e ao olhar, fora do recinto do templo deparamos com um grupo de peregrinos que traz uma banda de músicos. À frente vem um rapaz vestido a rigor. Ainda antes de atravessar o canal do Rio Cai o jovem faz uma prosternação, assim como à entrada da Porta Wu Chao e já dentro do recinto, antes da Ponte Yu Dai. Esta ponte atravessa o Rio Yu Dai, que entra e sai por baixo dos muros exteriores do templo, a Leste e Oeste, denominando-se o conjunto Rio do Cinto de Jade. A meio da água, dois altares para onde os crentes atiram moedas na tentativa almejada de ficarem no altar, para lhes trazer sorte. No lado direito está a estátua de Nu Wa e no esquerdo, a de Fu Xi.

Após a Ponte Yu Dai, chegamos à Entrada Dao Yi (道仪门, Dao Yi men, porta da mutação do Dao), com oito metros de altura antigamente era denominada Tong De men (通德门, Porta da Via para a Virtude) e mais popularmente conhecida por San men (Três portas). O edifício era na Dinastia Ming feito de madeira e só em 1575 passou a ser de tijolo.

O corredor central, conhecido pelo Caminho do Cinto de Jade, percorre longitudinalmente o recinto do templo e está ladeado com bandeiras triangulares amarelas estampadas com a representação de um dragão. Após cem metros do Dao Yi men, a Porta Xian Tian (先天门, Xian Tian men), edifício construído em 1575, sendo o actual já da Dinastia Qing, com uma alta base de pedra e a encimar, um pavilhão vermelho feito em madeira, com dois andares. Dentro, especialistas do Yi Jing são consultados pelos muitos crentes que aí vão, depois de subidas as íngremes escadas de pedra construídas apenas nos anos 70 do século XX. Nas paredes, como fundo, toda a simbologia inerente ao Livro das Mutações (Yi Jing), onde registada ficou a Filosofia da Natureza.

O nome da Porta Xian Tian provém dos oito trigramas antigamente conhecidos por Xian Tian e tem os caracteres gravados numa pedra cuja inscrição é do ministro Shi Yaoqing da Dinastia Ming. Comemora a representação criada por Fu Xi dos oito trigramas colocados em torno do Tai ji, conhecida por Xian Tian bagua (先天 八卦) proveniente do mapa He Tu trazido pelo dragão-cavalo e lhe dado apreender a partir da Colina Gua Tai, em Tianshui, actual província de Gansu.

Após a Xian Tian men chega-se ao amplo pátio da Praça Tai Ji, com 73 metros no eixo Sul/Norte e 66 metros no Leste/Oeste, tendo à frente a Porta Tai Ji (Tai Ji men), a abrir para a Cidade Interior, a parte principal do recinto.

Ainda antes de aí entrar, no muro interior do lado Leste está a Porta San Cai cujo caminho leva à porta do recinto exterior, Dong Hua men. Já no lado do muro interior Oeste, está a Porta Wu Xing a dar para a Porta Xi Hua nos muros exteriores, onde anteriormente vimos uma multidão a tentar entrar, entupindo a saída dos que dentro tinham já feito as oferendas de sacrifício e abandonavam o recinto.

Subindo cinco degraus entra-se pela Porta Tai Ji, a abrir para a Cidade Interior do templo. Tai Ji men foi construída em 1437, durante a Dinastia Ming, com o nome de Tai Ji Fang (Arco Memorial).

A Leste desta Porta está Yang Guan e a Oeste, Fu Cha e no livro Yi-Xici zhuan 《易 系辞传》 refere, em tempos antigos Bao Xi shi (Fu Xi) levantando a cabeça (Yang Guan) observava o Céu e tudo o que nele se passava e olhando para baixo (Fu Cha) vendo a Natureza percebia o sentido da mudança (Yi) e assim encontrou a lei que lhe permitiu criar o Bagua.

8 Mar 2022

Poemas de Jacques Prévert

Jacques Prévert (1900-1970) foi um poeta e roteirista popular da França. Participou do movimento Surrealista juntamente com o escritor Raymond Queneau e com o roteirista Marcel Duhamel, sendo, mais tarde, um dissidente deste grupo. Muitos de seus poemas foram cantados por Marianne Oswald, Yves Montand e Edith Piaf. Os poemas aqui seleccionados foram retirados do livro Parole (1946) e são apresentados em português do Brasil.

 

Tradução de Luís Márcio Silva* – * Escritor, tradutor e editor da Revista Piparote, https://revistapiparote.com.br/, com a qual o Hoje Macau inicia assim uma colaboração

 

 

O BUQUÊ

O que faz aqui, garotinha,

Com estas flores recém-cortadas?

O que faz aqui, jovem menina,

Com essas flores, essas flores secas?

O que faz aqui, bela mulher,

Com essas flores que murcham?

O que faz aqui, decrépita mulher,

Com essas flores que morrem?

Estou à espera pelo triunfante.

 

LE BOUQUET

Que faites-vous là petite fille

Avec ces fleurs fraîchement coupées

Que faites-vous là jeune fille

Avec ces fleurs ces fleurs séchées

Que faites-vous là jolie femme

Avec ces fleurs qui se fanent

Que faites-vous là vieille femme

Avec ces fleurs qui meurent

J’attends le vainqueur.

 

NA FLORICULTURA

Um homem entra numa floricultura

E escolhe umas flores

A florista embrulha as flores

O homem leva a mão ao bolso

Para pegar o dinheiro

O dinheiro para pagar as flores

Mas subitamente

ele coloca

A mão sobre o coração

E cai

No momento em que cai

As moedas rolam pela terra

E depois tudo

Cai ao mesmo tempo

as flores

o homem

o dinheiro

E a florista fica ali

Com as moedas que rolam

Com as flores que murcham

Com o homem que morre

Tudo isto é muito triste evidentemente

E é preciso que ela faça alguma coisa

A florista

Mas ela não sabe o que fazer

Não sabe ela

Por onde começar

Há tantas coisas por fazer

Com o homem que morre

Com as flores que murcham

E com as moedas

as moedas que rolam

Que não param de rolar

CHEZ LA FLEURISTE

Un homme entre chez une fleuriste

et choisit des fleurs

la fleuriste enveloppe les fleurs

l’homme met la main à sa poche

pour chercher l’argent

l’argent pour payer les fleurs

mais il met en même temps

subitement

la main sur son cœur

et il tombe

En même temps qu’il tombe

l’argent roule à terre

et puis les fleurs tombent

en même temps que l’homme

en même temps que l’argent

et la fleuriste reste là

avec l’argent qui roule

avec les fleurs qui s’abîment

avec l’homme qui meurt

évidemment tout cela est très triste

et il faut qu’elle fasse quelque chose

la fleuriste

mais elle ne sait pas comment s’y prendre

elle ne sait pas

par quel bout commencer

Il y a tant de choses à faire

avec cet homme qui meurt

ces fleurs qui s’abîment

et cet argent

cet argent qui roule

qui n’arrête pas de rouler.

 

A MENSAGEM

A porta que alguém abriu

A porta que alguém fechou

A cadeira onde alguém se sentou

O gato que alguém acariciou

A fruta que alguém mordeu

A carta que alguém leu

A cadeira que alguém derrubou

A porta que alguém abriu

A estrada onde alguém ainda corre

O bosque que alguém atravessa

O rio onde alguém se joga

O hospital onde alguém morreu

LE MESSAGE

La porte que quelqu’un a ouverte

La porte que quelqu’un a refermée

La chaise où quelqu’un s’est assis

Le chat que quelqu’un a caressé

Le fruit que quelqu’un a mordu

La lettre que quelqu’un a lue

La chaise que quelqu’un a renversée

La porte que quelqu’un a ouverte

La route où quelqu’un court encore

Le bois que quelqu’un traverse

La rivière où quelqu’un se jette

L’hôpital où quelqu’un est mort.

VERÁ O QUE VERÁ

Uma moça nua nadando no mar

Um homem barbudo andando sobre a água

Onde está a maravilha das maravilhas

Do milagre anunciado acima?

 

VOUS ALLEZ VOIR CE QUE VOUS ALLEZ VOIR

Une fille nue nage dans la mer

Un homme barbu marche sur l’eau

Où est la merveille des merveilles

Le miracle annoncé plus haut ?

DOMINGO

Entre os canteiros de árvores na avenida Gobelins

Uma estátua de mármore me conduz pela mão

Hoje é domingo, os cinemas estão lotados,

Os pássaros nos galhos observam os humanos

E a estátua me abraça, mas ninguém nos vê,

Apenas uma criança cega que nos aponta os dedos.

DIMANCHE

Entre les rangées d’arbres de l’avenue des Gobelins

Une statue de marbre me conduit par la main

Aujourd’hui c’est dimanche les cinémas sont pleins

Les oiseaux dans les branches regardent les humains

Et la statue m’embrasse mais personne ne nous voit

Sauf un enfant aveugle qui nous montre du doigt.

PARA O MEU AMOR

Eu fui ao mercado de pássaros

E lhe comprei pássaros,

Meu amor.

Eu fui ao mercado de flores

E lhe comprei flores,

Meu amor.

Eu fui ao ferro-velho

E lhe comprei correntes

Pesadas correntes

Para ti,

Meu amor.

E depois fui ao mercado de escravos

E procurei por ti

Mas não lhe encontrei,

Meu amor.

POUR TOI MON AMOUR

Je suis allé au marché aux oiseaux

Et j’ai acheté des oiseaux

Pour toi

mon amour

Je suis allé au marché aux fleurs

Et j’ai acheté des fleurs

Pour toi

mon amour

Je suis allé au marché à la ferraille

Et j’ai acheté des chaînes

De lourdes chaînes

Pour toi

mon amour

Et puis je suis allé au marché aux esclaves

Et je t’ai cherchée

Mais je ne t’ai pas trouvée

mon amour

7 Mar 2022

O lei

Por razões muito difíceis de explicar, existem montanhas onde, apesar de percorridas por numerosos cursos de água, não nascem plantas ou árvores. Torna-se então difícil compreender como podem nessas regiões inóspitas sobreviver animais de grande porte. Contudo, contra as mais lúcidas expectativas, tal não deixa de acontecer. Os antigos são muito claros: ninguém se deve atrever a frequentar tais arrabaldes, pois a sua vida ver-se-ia exposta a tremendos riscos e perigos inusitados.
É o caso da montanha Chanyuan, onde habita o lei, um enorme gato selvagem, cuja dimensão e forma evocam o leopardo, mas que se caracteriza por exibir uma fartíssima cabeleira. A sua existência é referida por numerosos autores, dos quais destacamos Mestre Zhuang (Zhuangzi) e, curiosamente, o pai da moderna literatura chinesa, Lu Xun.
A característica mais interessante do lei, fascinante sobretudo para Zhuangzi, é o facto de ser hermafrodita e depender unicamente de si mesmo para se reproduzir. Neste particular, encarnaria o ideal taoista de auto-suficiência, pois de nada precisaria para assegurar a continuidade da sua espécie. Os antigos chineses apreciavam sobremaneira esta capacidade de possuir num só corpo o Yin e o Yang, porque tal era não somente um sinal de independência e autonomia, mas sobretudo de uma feérica fertilidade.
Já Lu Xun entabulou com o lei um outro tipo de relação. Conta o escritor que o conheceu através de uma inesperada prenda. Tendo, em criança, ouvido falar de animais fantásticos, que desafiavam a mais ousada imaginação humana, isso nele despertou uma invulgar e imensa curiosidade. No entanto, não conseguia arranjar maneira de obter o Clássico das Montanhas e dos Mares, o livro ilustrado que regista a existência de todos estes estranhos seres, talvez porque os seus pais não desejassem povoar a sua mente de estranhas fantasias.
Até que um dia a sua ama, com quem ele detinha uma conflituosa relação desde que ela assassinara o seu rato de estimação, lhe apareceu com um embrulho de papelão, dentro do qual se encontrava o tão almejado livro. E, logo no primeiro capítulo, eis que sobressaía o lei e a sua longa cabeleira, facto que viria, por razões na verdade mal explicadas, a marcar a sua futura carreira, segundo ele confessa num breve artigo de 1926.
Segundo as antigas crenças, devido ao seu hermafroditismo, quem comesse da carne do lei, nunca mais sentiria ciúmes. Esta propriedade extraordinária era muito apreciada por causa da difundida estrutura familiar poligâmica, na qual existia uma forte concorrência e ciumeira entre as várias esposas de um homem, o que amiúde tornava amargo o ambiente no interior de um lar onde deveria prevalecer a harmonia.
Daí que muitos se arriscavam a organizar caçadas ao lei, ainda que com a clara consciência de correrem perigo de vida, algo menorizado quando em jogo estava a manutenção da paz quotidiana.
Diz-se que muitos maridos deprimidos acabaram por ser vítimas das garras afiadas e dos dentes pontiagudos desta tão preciosa besta. Mas outros, capazes de regressar a casa na posse daquela preciosa carne, conseguiam então assegurar um lar mais harmonioso em que as esposas, ao invés de se digladiarem, contribuíam em conjunto para a sua felicidade.

4 Mar 2022

Sinais implodidos

01/03/22

 

Eu ainda andava desvairado pela Jane Fonda. Tinha trinta anos, estava desempregado de amores, e deslocava-me todos os fins de semana a Coimbra, onde colaborava com o grupo de teatro A Escola da Noite. Ao cabo de oito meses constatei que a cidade me resistia. As suas mulheres, novas, velhas, viúvas, divorciadas, estudantes ou trintonas, as actrizes, os travestis, as coxas ou mesmo as barbudas, como a do Ribera; a cidade havia-me riscado do seu leito.

Em oito meses, só me tocava conversar sobre o Grotowski, o tango argentino que vitimara um amigo de Manuel Bandeira ou as nuances do adultério do Heidegger com a Hanna Arendt, amanhos do espírito, enquanto o esperma se me coavalha, em espesso glaciar.

Nesse sábado desci à baixa para ir buscar à Valentim de Carvalho um disco do Keith Jarrett, que encomendara. E entrei descontraidamente no Santa Cruz, desarmado por dentro e por fora. Tencionava comer um prego e beber duas cervejas e apanhar um táxi para casa, onde passaria uma tarde plácida a ler e a ouvir o cd.

Sentei-me na única mesa que estava livre. Ao lado de três belíssimas estudantes de direito, uma delas uma mulata com olhos verdes que era a irmã bonita da Sade Adu. Riam a bandeiras despregadas porque ao balcão havia um toureiro em traje de luces a tomar uma bica. Era uma figura caricata, o que a sua excelsa concentração no café que bebia de lábios em bico e o seu mindinho levantado acentuavam. Mas o melhor é que isso nos permitiu três relances e a partilha de um sorriso.

Dez minutos depois, ouço a bonita mulata contar às suas divertidas mas estupefactas amigas que tinha chegado à Europa para o desejo maior de encontrar e conhecer (biblícamente?) um vampiro e pude então lançar a deixa:
Ó cara doutora, mas se é por isso eu levo-a aos Carpátos.

Tudo corria sobre rodas, os olhos verdes dela cravejavam-se nos meus, os seus lábios seguiam o fio da minha voz, o riso dela, o riso dela, meu deus, refrigerava como um leque valenciano o calor dos corpos, enquanto a dança dos dedos nos precipitava no enlace. Só estranhava que ela, que bebera o mesmo, aguentasse de tal modo o álcool – a minha euforia já roçava o patético.

Em casa, fui brevemente à casa de banho molhar a cara, a nuca, e enfiamo-nos no quarto. Fui à cozinha buscar uma derradeira garrafa de vinho, que abri com esmero e delicadeza, servia-a, bebericámos no cálice, e pus o disco. Entreolhamo-nos longamente, já não havia nada a dizer e nos olhos verdes dela acendiam-se néones. Um longo beijo aplacou as disputas, desapertando de rajada todos os botões.
E é tudo o que me lembro desse inglório apagão.

No dia seguinte, acordei sozinho, às onze da manhã. Havia um bilhete em cima da minha secretária, em que se lia, Adorei a música, obrigado. Um beijo da tua Rainha de Sabá. Nem número de telefone, nem qualquer referência. O Keith Jarrett voara com ela.

Na sexta seguinte, assim que depositei a mala no quarto, apanhei um táxi para o Santa Cruz. As duas amigas lá estavam, estudando, na mesma mesa, e foram amistosas. Ela é que não, pois, contaram-me, fora de urgência para Moçambique por causa da morte súbita do pai, e nenhuma delas tinha o contacto de Maputo.

Só a voltei a ver dez anos depois, na televisão, num debate sobre política africana. Era Secretária de Estado do governo de Moçambique.

Vinte anos depois, em Maputo, assistia em casa a um telejornal da RTP/África e passam uma reportagem sobre o Café Santa Cruz, em Coimbra – e vejo-a aperaltada ao balcão (que missão a fizera deslocar à cidade onde estudara?), no exactíssimo sítio onde estivera o toureiro, a beber um café, o indicador levemente levantado, em asa delta.

A culpa disto tudo, creio, é da Jane Fonda.

03/03/2022

CELEBRAR A GUERRA? AGAIN?

«arde a minha alma como um jornal», Hugo Claus

A guerra é o pasto em que arde a soldadesca/ enxameada de vermes, línguas roxas, pus,// enquanto de olhos reboludos as vacas, / extraviadas da lembrança da mãe Ío, ruminam,// alheadas, entre cadáveres. É um éden só de puros / (só aos nossos as nozes, aos outros os ossos), //que provém dos lençóis freáticos de países imaginários./ Na guerra o tempo tem o tique-taque de uma véspera // que já escalda e por isso supura a linha do amor / nas palmas e anseia-se pelo errante ladrão-de-orvalho // que rapine à eternidade um lampejo de cruel felicidade./ Era já assim no tempo dos meus avós na II Guerra Mundial.// Os bombardeios circuncidavam as cidades /e enchiam-se baldes de maçãs, salvo-condutos e tripas gordas,// enquanto o noivo desapanhava a noiva sob os escombros / e a criança adivinhava no relógio esfacelado // da mãe a sua pungente ausência. / Será assim na época dos meus filhos, já pretérita // nas cabeças que faz rolar como se de cravinho fossem, / e no cerne da qual se esfuma a razão, // escarnecida pela fé dos tolos; carecas de saber / que é medieval o costume de coser a bainha // do sol com fios de sangue. A guerra reacende-se / quando o justo e o ímpio desentronizam // os prazos e trocam de posições, confundindo / o ritmo do escalpe com o do tango. //Até que um deles inventa o éden. E eu, tão feliz / no meu inferno, tão em paz que encadernei // com esperma o Novo Testamento, discretamento tusso, / perguntando-me: e a nós, por quanto tempo // nos será autorizado esquecer, como Orfeu? Por quanto / tempo sobreviverá um homem aos 400 mercenários?

4 Mar 2022

Terceiro acto – Cena 6

Os primeiros raios de sol começam a invadir a sala através da janela. A passarada também parece estar a acordar, a julgar pelo volume da galhofa que se faz ouvir. Valério levanta-se e aproxima-se da janela. Depois de alguns segundos a olhar a paisagem, abre a janela e debruça-se no parapeito. Gonçalo acende mais um cigarro.

Valério
[para os pássaros]
Estamos muito animados, hã?

Gonçalo
Não lhes dês confiança!

Valério
Porquê, vão querer o meu braço?

Gonçalo
Comem-te a alma. Piu, piu… piu, piu… já foste!

Valério
Já foste… uma expressão de Gonçalo Wa…

Gonçalo
Vamos passear!

Gonçalo vai até à casa de banho e fecha a porta. Valério fecha a janela e aproxima-se da porta de entrada onde estão os casacos. Tira o seu, mas acaba por voltar a pô-lo onde estava e regressa ao seu lugar para acender mais um cigarro.

Valério
Voltamos aqui?

Gonçalo
[off]
Acho que não. Seguimos logo para o carro.

Ouve-se a descarga do autoclismo e a água do lavatório começa a correr. A porta da casa de banho abre-se e Gonçalo sai, sacudindo as mãos. Vai até ao bengaleiro e pega no seu casaco, depois aproxima-se de Valério e acende também um cigarro. Senta-se com o casaco ao colo.

Valério
Porque é que não te levantaste?

Gonçalo
[sorrindo]
Mas tu queres mesmo ir passear?

Valério
Quero. Mas algo me diz que seria bom para os dois irmos passear com esta questão resolvida.

Gonçalo
[desagradado]
Mas tu tens alguma questão?

Valério
Calma, ‘mor, estamos só a conversar.

Gonçalo
O que é que queres que te diga?

Valério
Quero que penses no assunto, nem que fiquemos aqui até amanhã, e me dês uma resposta aceitável.

Gonçalo
Ui… o que é uma resposta aceitável.

Valério
Não precisa de ser definitiva. Basta que se perceba que tentaste, pelo menos…

Gonçalo
Ai, ‘mor, tantas certezas!

Valério
Eu vou buscar o meu casaco e venho já sentar-me outra vez só para te pressionar.

Valério cumpre o prometido. Depois de apanhar o seu casaco e o cachecol, regressa ao seu lugar. Acende mais um cigarro e sorri para Gonçalo.

Gonçalo
[atrapalhado]
Que pressão!

Valério
Desembucha! Estou a ficar com fome.

Gonçalo vai até ao fogão, pega na cafeteira e vai enchê-la na torneira do lava-loiças. Depois regressa ao fogão e acende um dos bicos. Abre uma lata de café e deita duas colheres generosas na cafeteira. Vem até à mesa, abre um grande saco de compras e põe todas as garrafas vazias lá dentro. Antes de regressar ao seu lugar, espreita a lareira. Resolve espalhar as brasas quase moribundas para que faleçam de vez.

Valério
[sorrindo]
Já acabaste a lida da casa?

Gonçalo
[pensativo]
Não tenho resposta.

Valério
Aldrabão!

Gonçalo
Não tenho.

Valério
Nem tentaste!

Gonçalo
Já tentei várias vezes… não encontro resposta. [pausa] O que é mais assustador é que… aquele momento… é um hiato.

Valério
Um hiato?

Gonçalo
Sim, uma falha. Uma lacuna.

Valério
Eu sei o que é.

Gonçalo
Eu sei que sabes… mas é a única maneira de descrever o que se passou. Sentei-me… fiquei ali quieto durante umas horas… e acabou-se. E durou o tempo que terá durado o funeral… pelos vistos. Agora, o que é que se passou comigo durante todo esse tempo?, perguntas tu. [pausa] Não faço a mínima ideia.

Valério
Não pensaste em nada?

Gonçalo
Nada.

Valério
Não te levantaste para comer.

Gonçalo
Não. Nem tive fome. [pausa] Mas lembro-me de que a primeira coisa que fiz, quando me levantei, foi ir para a casa de banho. Estava bastante aflito. Mas enquanto estava sentado não senti vontade nenhuma.

Valério
[pausa]
Olha… se eu fosse um psicoterapeuta da treta, diria: isso é a tua maneira de lidares com as tuas emoções. Fizeste um by-pass ao luto do teu amigo, ficando em casa a olhar para nenhures. [pausa] Já te tinha acontecido semelhante coisa na vida?

Gonçalo
Como este apagão?

Valério
Como queiras chamar-lhe…

Gonçalo
Não… nada que se pareça.

Valério
Se calhar devias abordar esse tema do apagão no Joãozinho Neo-Nazi.

Gonçalo
Auto-terapia?

Valério
Porque não? [pausa] Eu disse algumas coisas à família e aos nosso amigos em comum… no funeral.

Gonçalo
Olha que bom para ti!

Valério
O que é que gostarias de ter dito?

Gonçalo
[incomodado]
Sei lá!

Valério
[desafiante]
Aqui que ninguém nos ouve… diz lá.

Gonçalo
Não me faças isso, por favor.

Valério
[sorrindo]
Depois vamos embora…

A cafeteira começa a silvar. Gonçalo pousa o casaco no chão. vai até à cafeteira e apaga o bico do fogão. Pega em duas canecas que estavam de pernas para o ar no escorredor e enche-as de café. Regressa ao seu lugar e dá uma das canecas ao amigo, antes de se sentar.

Valério
Então… só umas palavras, vá. Eu começo: Era meu amigo. Eu gostava muito dele… fazia-me rir. Estou triste. [pausa] Vês, fui fofinho.

Gonçalo
És sempre.

Valério
Vá, agora é a tua vez.

Gonçalo
[envergonhado]
Não consigo.

Valério
[dando-lhe uma palmada nas costas]
Eu sei. [pausa] No meio da floresta já volto à carga.

Os dois levantam-se e vestem os casacos. Gonçalo pega no saco das garrafas e Valério certifica-se de que a janela está fechada. Gonçalo abre a porta e os dois amigos saem.

FIM

2 Mar 2022

Arcano XXII

Falar de loucura nunca é assunto agradável, muito embora (e pese as devidas considerações que lhe assistem) seja tratada pelo desaire normativo como qualquer coisa de extremamente interessante indo ao ponto de a considerarem até libertadora. Mas só os escravos têm tais interpretações, sejam eles de que natureza forem, e se empolguem depois a fingirem-se de loucos sem nenhuma apetência trágica para tal condição.

Penso que assistimos impávidos a um drama de autoproclamados loucos, que mais não são que mentes equivocadas, e questionavelmente interceptadas pela falsa sugestão de se parecerem com uma sistemática ideia de génio. Esta forma arbitrária de tocar em tal noção tem produzido uma escalada daquilo a que designamente apelidamos por tontos, que é uma forma de cretinice moral com alto espectro à boleia de múltiplas “originalidades”. Só que a loucura não lhes toca – nunca os tocou – e por isso seguem sendo, assim, sem consciência, que de tão apavorante e não emblemática, avivou ainda mais a noção da malignidade da espécie.

Sobre o tema, parece que já tudo se falou, todas as grandes obras dela transbordaram, o que a faz muito próxima, e ao mesmo tempo tão intrigante! Dela nos dá Erasmo o seu Elogio, nos fala Gogol no seu Diário, e claro, são obras que devemos saber de cor para nos abastecermos de lucidez, que tempos diferentes têm no entanto este domínio imutável que os trespassa e flagrantemente o número do Arcano que nos é dado por Jung na sua busca sempre memorável por este nosso inconsciente colectivo, numa incrível viagem arquetípica acerca dos arcanos menores do Tarot. Esta viagem irá levar-nos a aspectos razoavelmente aperfeiçoados da sua funda natureza – o que se compreende – as grandes questões, por mais que se desenvolvam, têm apenas dois ou três pontos fortes, tudo o resto são derivadas, e não será por elas que o cerne poderá ser visitado.

Quando o Ano começou, bom de ver que o número vinte e dois anunciava uma qualquer inquietação numérica muito própria, ele é exactamente o Arcano do Louco, «Le Mat», pela interpretação simboliza também o zero, essa invenção numérica árabe que tanto fez avançar a ciência construindo o sistema decimal e a noção filosófica do nada, não estando numerado, e vagueando acima das vinte e uma cartas que compõem o baralho, ele é naturalmente o número vinte e dois (com que definir o Louco?) e assim poderemos começar a pensar no Vagabundo, senhor de dores tamanhas que precisa de espaço para a sua caminhada. Pode parecer-nos risível, mas ele contém doses letais de martírio e sofrimento prestes a pôr fim a tudo o que dele se aproxime.

E começam as doenças mentais! O grande emblema de uma sociedade patológica cravejada de felizes dogmas, mas de componentes desprezíveis de amor, que eles, liquefeitos de transtorno, irão lançar à cara estupefacta de todos os incautos. E vêm doridos, feridos, trágicos, inconsequentes, insurrectos, opressivos. Ninguém parece saber lidar com tal desastre que só se manifesta quando a sociedade requer uma pragmática definição de reais funções, e não há nada de alegre, de compensador, de iluminado na loucura, ela é trágica, e firma os seus ajustes na incompetência humana para testar a sua culpa.

Jung, no entanto, parece-nos muito menos lacrimoso, e vai juntar aspectos enaltecedores ao seu Arcano, não suspeitando nunca como o colectivo se transformaria numa amálgama cega, e já de si bastante “inconsciente” acerca do significado de tudo. Há patologias raras e tão capazes que ajudam até a rasurar a vã escolha dos assaltos à saúde, como existem outras do mesmo naipe, que ficam reflectoras da conjuntura estranha a que esta espécie está submetida. Uns passaram por cima, outros passaram por baixo. Eis a diferença. As instituições dos Estados esperam ainda que as tribos sejam mais eficazes que as normas da cidadania, só que as tribos são loucas e delas deriva hereditariedade pesada. Que pode um ser diante desta loucura?

” Nós fazemos vasos de barro mas a verdadeira natureza deles está no vazio interior” Lao Zi
Talvez ele responda ao nossa Arcano.

1 Mar 2022