O lei

Por razões muito difíceis de explicar, existem montanhas onde, apesar de percorridas por numerosos cursos de água, não nascem plantas ou árvores. Torna-se então difícil compreender como podem nessas regiões inóspitas sobreviver animais de grande porte. Contudo, contra as mais lúcidas expectativas, tal não deixa de acontecer. Os antigos são muito claros: ninguém se deve atrever a frequentar tais arrabaldes, pois a sua vida ver-se-ia exposta a tremendos riscos e perigos inusitados.
É o caso da montanha Chanyuan, onde habita o lei, um enorme gato selvagem, cuja dimensão e forma evocam o leopardo, mas que se caracteriza por exibir uma fartíssima cabeleira. A sua existência é referida por numerosos autores, dos quais destacamos Mestre Zhuang (Zhuangzi) e, curiosamente, o pai da moderna literatura chinesa, Lu Xun.
A característica mais interessante do lei, fascinante sobretudo para Zhuangzi, é o facto de ser hermafrodita e depender unicamente de si mesmo para se reproduzir. Neste particular, encarnaria o ideal taoista de auto-suficiência, pois de nada precisaria para assegurar a continuidade da sua espécie. Os antigos chineses apreciavam sobremaneira esta capacidade de possuir num só corpo o Yin e o Yang, porque tal era não somente um sinal de independência e autonomia, mas sobretudo de uma feérica fertilidade.
Já Lu Xun entabulou com o lei um outro tipo de relação. Conta o escritor que o conheceu através de uma inesperada prenda. Tendo, em criança, ouvido falar de animais fantásticos, que desafiavam a mais ousada imaginação humana, isso nele despertou uma invulgar e imensa curiosidade. No entanto, não conseguia arranjar maneira de obter o Clássico das Montanhas e dos Mares, o livro ilustrado que regista a existência de todos estes estranhos seres, talvez porque os seus pais não desejassem povoar a sua mente de estranhas fantasias.
Até que um dia a sua ama, com quem ele detinha uma conflituosa relação desde que ela assassinara o seu rato de estimação, lhe apareceu com um embrulho de papelão, dentro do qual se encontrava o tão almejado livro. E, logo no primeiro capítulo, eis que sobressaía o lei e a sua longa cabeleira, facto que viria, por razões na verdade mal explicadas, a marcar a sua futura carreira, segundo ele confessa num breve artigo de 1926.
Segundo as antigas crenças, devido ao seu hermafroditismo, quem comesse da carne do lei, nunca mais sentiria ciúmes. Esta propriedade extraordinária era muito apreciada por causa da difundida estrutura familiar poligâmica, na qual existia uma forte concorrência e ciumeira entre as várias esposas de um homem, o que amiúde tornava amargo o ambiente no interior de um lar onde deveria prevalecer a harmonia.
Daí que muitos se arriscavam a organizar caçadas ao lei, ainda que com a clara consciência de correrem perigo de vida, algo menorizado quando em jogo estava a manutenção da paz quotidiana.
Diz-se que muitos maridos deprimidos acabaram por ser vítimas das garras afiadas e dos dentes pontiagudos desta tão preciosa besta. Mas outros, capazes de regressar a casa na posse daquela preciosa carne, conseguiam então assegurar um lar mais harmonioso em que as esposas, ao invés de se digladiarem, contribuíam em conjunto para a sua felicidade.

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Fernanda Gil Costa
Fernanda Gil Costa
7 Mar 2022 00:28

No mínimo, este animal de enorme cabeleira, embora fabuloso, é mais uma vítima da fome devassa dos homens.