Arcano XXII

Falar de loucura nunca é assunto agradável, muito embora (e pese as devidas considerações que lhe assistem) seja tratada pelo desaire normativo como qualquer coisa de extremamente interessante indo ao ponto de a considerarem até libertadora. Mas só os escravos têm tais interpretações, sejam eles de que natureza forem, e se empolguem depois a fingirem-se de loucos sem nenhuma apetência trágica para tal condição.

Penso que assistimos impávidos a um drama de autoproclamados loucos, que mais não são que mentes equivocadas, e questionavelmente interceptadas pela falsa sugestão de se parecerem com uma sistemática ideia de génio. Esta forma arbitrária de tocar em tal noção tem produzido uma escalada daquilo a que designamente apelidamos por tontos, que é uma forma de cretinice moral com alto espectro à boleia de múltiplas “originalidades”. Só que a loucura não lhes toca – nunca os tocou – e por isso seguem sendo, assim, sem consciência, que de tão apavorante e não emblemática, avivou ainda mais a noção da malignidade da espécie.

Sobre o tema, parece que já tudo se falou, todas as grandes obras dela transbordaram, o que a faz muito próxima, e ao mesmo tempo tão intrigante! Dela nos dá Erasmo o seu Elogio, nos fala Gogol no seu Diário, e claro, são obras que devemos saber de cor para nos abastecermos de lucidez, que tempos diferentes têm no entanto este domínio imutável que os trespassa e flagrantemente o número do Arcano que nos é dado por Jung na sua busca sempre memorável por este nosso inconsciente colectivo, numa incrível viagem arquetípica acerca dos arcanos menores do Tarot. Esta viagem irá levar-nos a aspectos razoavelmente aperfeiçoados da sua funda natureza – o que se compreende – as grandes questões, por mais que se desenvolvam, têm apenas dois ou três pontos fortes, tudo o resto são derivadas, e não será por elas que o cerne poderá ser visitado.

Quando o Ano começou, bom de ver que o número vinte e dois anunciava uma qualquer inquietação numérica muito própria, ele é exactamente o Arcano do Louco, «Le Mat», pela interpretação simboliza também o zero, essa invenção numérica árabe que tanto fez avançar a ciência construindo o sistema decimal e a noção filosófica do nada, não estando numerado, e vagueando acima das vinte e uma cartas que compõem o baralho, ele é naturalmente o número vinte e dois (com que definir o Louco?) e assim poderemos começar a pensar no Vagabundo, senhor de dores tamanhas que precisa de espaço para a sua caminhada. Pode parecer-nos risível, mas ele contém doses letais de martírio e sofrimento prestes a pôr fim a tudo o que dele se aproxime.

E começam as doenças mentais! O grande emblema de uma sociedade patológica cravejada de felizes dogmas, mas de componentes desprezíveis de amor, que eles, liquefeitos de transtorno, irão lançar à cara estupefacta de todos os incautos. E vêm doridos, feridos, trágicos, inconsequentes, insurrectos, opressivos. Ninguém parece saber lidar com tal desastre que só se manifesta quando a sociedade requer uma pragmática definição de reais funções, e não há nada de alegre, de compensador, de iluminado na loucura, ela é trágica, e firma os seus ajustes na incompetência humana para testar a sua culpa.

Jung, no entanto, parece-nos muito menos lacrimoso, e vai juntar aspectos enaltecedores ao seu Arcano, não suspeitando nunca como o colectivo se transformaria numa amálgama cega, e já de si bastante “inconsciente” acerca do significado de tudo. Há patologias raras e tão capazes que ajudam até a rasurar a vã escolha dos assaltos à saúde, como existem outras do mesmo naipe, que ficam reflectoras da conjuntura estranha a que esta espécie está submetida. Uns passaram por cima, outros passaram por baixo. Eis a diferença. As instituições dos Estados esperam ainda que as tribos sejam mais eficazes que as normas da cidadania, só que as tribos são loucas e delas deriva hereditariedade pesada. Que pode um ser diante desta loucura?

” Nós fazemos vasos de barro mas a verdadeira natureza deles está no vazio interior” Lao Zi
Talvez ele responda ao nossa Arcano.

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