Parte 7. A mulher chinesa fatal segundo Feng Xiaogang

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

 

Em 1969, ao cair da noite, um homem entrou sorrateiramente numa fábrica de papel no sudoeste da China. Na fábrica estavam guardados livros proibidos, dispostos em montes, à espera de serem cortados em finas tiras de papel e depois serem reciclados. O homem que se esgueirou para dentro da fábrica queria deitar a mão a um livro em particular.

O Lótus Dourado – Jin Ping Mei em chinês – é considerado o quinto romance clássico, a seguir aos Quatro Grandes Romances Clássicos. A sua representação graficamente explícita da sexualidade fez com que o livro ganhasse um nível de notoriedade na China equivalente ao de Madame Bovary no Ocidente. Desde a sua publicação no séc. XVII, o livro foi banido, vendido, comprado e circulou livremente.

Aos cinéfilos estrangeiros pode ter escapado esta referência do filme de Feng Xiaogang Não Sou Madame Bovary, em parte porque o realizador não está a invocar a personagem titular de Gustave Flaubert, mas sim a mais inesquecível heroína da literatura chinesa, Pan Jinlian, do romance Lótus Dourado. O título do filme em chinês é Não Sou Pan Jinlian. Embora tanto Madame Bovary como Pan Jinlian tenham sido acusadas ao longo dos tempos de depravação moral, a natureza das suas personalidades é diferente.

Pan é literalmente uma femme fatale, com pés pequeninos e uma luxúria insaciável, treinada para cantar e tocar o tipo de música associada a artistas de reputação duvidosa. Se quisermos, uma Madame Bovary dura e expedita.

No seu filme, Feng retrata a protagonista Li Xuelian (Lótus de Neve), interpretada por Fan Bingbing, como uma mulher que tenta quebrar O Sistema. Assim sendo, o filme, à semelhança do romance Lótus Dourado, é uma história sobre o tecido social. Feng Xiaogang aborda a natureza da burocracia e a incansável luta de uma mulher contra a sociedade chinesa. Este factor faz o filme parecer político e pesado, mas a história desenrola-se como uma comédia, uma sátira mordaz ao Estado opressivo e à incompetência e indolência dos funcionários do Governo.

Feng Xiaogang escolheu dar tratamento singular às suas imagens. As cenas campestres são visualizadas através de uma forma circular, eliminando a periferia do ecrã, o que nos dá a sensação de estarmos a olhar para uma pintura chinesa ancestral, poética e deslumbrante. Quando ela chega a Pequim, a forma circular desaparece e o enquadramento passa a ser um quadrado perfeito, representando o mundo muito mais vasto onde ela se vai inserir.

Poderemos ser criticamente poéticos ou poeticamente críticos? Bem, desde os tempos ancestrais, a elite chinesa certamente terá encontrado uma forma de expressão útil e criativa para o definir.

Citação famosa de Feng Xiaogang para guardar na memória
🌸 Só os mais impulsivos podem pensar que sou um mestre. Não sou um mestre pura e simplesmente porque o nosso tempo não produz quaisquer mestres.
🌸 A não perder:
2006 O Banquete
2016 Não Sou Madame Bovary
2017 Juventude

{ Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

JULIE OYANG Writer | Artist | Namer of clouds
www.julieoyang.com | Instagram: _o_writes

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários