ALMA

Elon Musk é uma personagem da Marvel e desafiou Putin para um duelo ao sol. Quem ganhasse decidiria o que fazer com a Ucrânia. É, convenhamos, um medievo, quase ingénuo no desplante com que aposta os trunfos na bondade do homem providencial. Já não é uma questão de princípios, mas de destinos. O anjo bom, contra o anjo mau.

A um dos seus seguidores, que escreveu este desafio não passaria de uma brincadeira, o fundador da Tesla respondeu que falava “absolutamente a sério”. “Se Putin pudesse humilhar o Ocidente com tanta facilidade, aceitaria o desafio. Mas não o fará.”, acrescentou. Para já não houve qualquer reação do Kremlin.

De forma bem mais razoável, Musk já havia oferecido o seu apoio a Kiev, através do Twitter. E depois de ter escrito “Mantenham a Ucrânia forte” e de ter dado as “condolências ao grande povo da Rússia, que não quer essa guerra”, Musk activou o seu serviço de internet Starlink na Ucrânia, enviando equipamentos para ajudar a melhorar a conectividade em áreas atingidas por ataques militares russos.

Cremos que este é um «efeito Zelensky», a aspiração à heroicidade tenderá a tornar-se capilar. Contudo, a coragem do presidente ucraniano forjou-a a situação. Zelensky não pode medir os passos, a sua coragem é um aço temperado na chama do desespero e um intérmino pedido de socorro. Encurralado, só lhe resta ser digno.

Não há ali um grama de fanfarronada. Não se é um herói por heteronomia – não é por acaso que o único líder pró-ocidental que não se mostra acagaçado é o que está encurralado.

Por que é que o menino rico, ávido de protagonismo, não pega nas suas espadas de laser, reúne um regimento, e se oferece como voluntário para o combate – experimentando a longa duração da guerra? O que lhe interessa é a propaganda. Ele já percebeu onde está o futuro, está a posicionar-se.

Na outra trincheira temos Putin e a sua crença em Pavlov: o homem é um cego escravo dos estímulos, mais apegado aos condicionamentos do que à virtualidade raciocinante da sua emoção. Está a lixar-se. Todos os dias haverá mais um jornalista a rebelar-se, ou crianças que irão colocar flores no muro da embaixada da Ucrânia.

Todos os dias alguém que leu Dostoievsky e Gogol e Mandelstam, Soljenítsin e Svetlana Aleksiévitch, há-de interrogar a pertinência do país só gerar tiranetes e ter vergonha por si ou alheia – a areia foge por entre os dedos de Putin.

Tudo se repete. Lemos este resumo de “Meninos de Zinco”, de Svetlana Aleksiévitch, publicado em 1991: «Entre 1979 e 1989, as tropas soviéticas envolveram-se numa guerra devastadora no Afeganistão, que causou milhares de baixas em ambos os lados. Enquanto a URSS falava de uma missão de “manutenção da paz”, levas e levas de mortos eram enviadas de volta para casa em caixões de zinco lacrados. Este livro apresenta os testemunhos honestos de soldados, médicos, enfermeiras, mães, esposas e irmãos que descrevem os efeitos duradouros da guerra. Ao tecer as suas histórias, Svetlana Aleksiévitch mostra-nos a verdade sobre o conflito soviético-afegão: a destruição e a beleza de pequenos momentos quotidianos, a vergonha dos veteranos que retornaram, as preocupações com todos os que ficaram para trás», e adivinhamos a vergonha destes novos imberbes “veteranos”, que mais uma vez tornarão ao regaço da Mãe Rússia, dispostos a esconder-se sob os sete folhos da matrioska para chorarem o arrependimento.

E esta violência que os povos em guerra exercem sobre si e os outros começa invariavelmente na distorção da linguagem, nas cambalhotas semânticas. Faz-se a guerra em nome da manutenção da paz. O que se pretende é “desnazificar” e instalar a “verdadeira democracia”, etc., etc. Tudo começa no relaxe da linguagem, talvez desde esse momento em que um espirituoso se lembrou de dar o nome de ALMA à superfície interna dos canhões.

Há cinco anos escrevi num romance, “Fotografar Contra o Vento”, este diálogo entre os protagonistas:
«- Posso fazer-te uma pergunta?
– Força.
– Não gostas de tourada. E és contra a fiesta?
– Não…
– Porquê? Seria natural que fosses contra…
– Olha, Petra Stoering, um cientista, mostrou que o primeiro acto de consciência de si é o que permite à célula ou ao vírus alimentar-se de outro em lugar de autofagocitar-se, quer dizer, quando
começou a distinguir-se do seu próprio alimento… Percebes?
– Não sei se atinjo onde queres chegar.
– É simples, por trágico que seja, estamos condenados à violência sobre os outros… para não nos auto-devorarmos. Iludem-se muito os homens, mas não há guerra e paz, há apenas a guerra, ponto. No meio disto, o ritual da tourada é como uma trégua neste massacre, e às vezes, a cruz dele, o toureiro, morre com ele. E, se assim tem de ser, prefiro que seja uma violência controlada e ritualizada… antes isso que a indeterminação da violência à solta, como acontece na guerra, ou no terrorismo. Porque, à violência, o ser humano não a vai conseguir extirpar de dentro de si, o mais natural é que seja a violência a arrancar das suas mandíbulas esse dente apodrecido que é o homem…
– Deves ter visto muitas coisas violentas?
Cosmo engoliu a aguardente de um trago, antes de redarguir, definitivo:
– Bom, é tarde, são três da manhã e precisamos de descansar…»
Não defendo a tourada – nem tenho de a defender nem de a atacar, isto é uma conversa entre os personagens do livro e obedece à lógica deles, não à minha – mas, contra todas as abomináveis gamas do politicamente correcto, acho que necessitamos absolutamente de voltar a uma certa e mútua “franqueza” interpessoal, de desenvolver novos ritos e modulações do atrito na comunicação que equivalham a formas de violência controlada e ritualizada, de modo a suster a nossa propensão para a guerra. Pelo menos enquanto o interior dos cilindros dos canhões se chamar ALMA.

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