Da derrota

[dropcap]F[/dropcap]oi numa daquelas noites em que a conversa deriva, sem tempo nem mapa. O leitor saberá como é: um copo aqui, bons amigos ali e aquela cumplicidade serena que se desprende das melhores amizades. São em momentos como esses que ganhamos coragem até para fazer perguntas menos convenientes mas interessadas, que não faríamos sem o doce embalo destas horas.

Uma dessas noites, então. Amigo próximo e com senioridade nesta coisa de afectos diz-me à queima-roupa: “Li o que escreveste sobre o David Berman, que não conhecia e fui ouvir. Gostei mas aquela música é mesmo a tua cara. Só gostas de músicas tristes, de perdedores”. Respondi-lhe vagamente que não era bem assim, que também gosto de outras coisas mais alegres e vitoriosas. Mas no regresso a casa vim a pensar no que me disse e que de certa forma tinha razão.

Não concebo a vida sem a derrota. Não quer dizer que esteja obcecado por ela ou não consiga sentir prazer nas minhas insignificantes conquistas ou nas grandes vitórias alheias. Apenas que a minha natureza me aproxima mais dos Píndaros dos perdedores, dos que proclamam a derrota sem auto-piedade: com lucidez, melancolia e se possível um pouco de humor, como de resto é o caso de Berman.

O que seria dos dias sem as quedas que damos? O que seria da arte, do que nos toca? Uma das obras-primas da literatura mundial descreve a mais extraordinária e gloriosa das derrotas: o Dom Quixote, de Cervantes. Sinatra tinha um especial carinho pelos que perdiam, especialmente porque foi um deles: quatro tentativas de suicídio, uma carreira arrasada em 1949 e um relacionamento intenso mas tumultuoso com Ava Gardner permitiram que, entre outras coisas, gravasse No One Cares, uma ode superlativa aos que ficam sozinhos. “Este disco deveria vir com uma pistola”, disse ele, que chamou a este e a dois outros monumentos – Only The Lonely e Where Are You? – “álbuns para o suicídio”.

Sim, gosto dos que perdem. Até porque nesta corrida já partimos derrotados. Mas até lá cada obstáculo, cada sombra, cada dor podem servir de amparo desde que não os evitemos.

Lembro-me, quase de cor e à velocidade com que escrevo, de uma frase de Churchill: “ O sucesso consiste em ir de falhanço em falhanço sem perda de entusiasmo”. É isto. O triunfo fala por si, possui trombetas estridentes e pomposas. Dêem-me a discrição do tipo que não consegue, do atleta que cai em frente à meta. Essa é a minha gente, os que acabam e recomeçam tudo outra vez. Há um pequeno poema de Yeats, What Was Lost, que tem um belíssimo verso inicial que se me cola à pele: « I sing what was lost and dread what was won». E no fundo o que acabei de escrever é a resposta articulada e justa ao que o meu amigo me disse durante um desses belíssimos momentos que parecem ser eternos. O leitor saberá como é.

28 Ago 2019

O massacre de Lidice na música de Bohuslav Martinů

[dropcap]N[/dropcap]o dia 28 de Agosto, assinalam-se 60 anos da morte do compositor checo Bohuslav Martinů, um dos gigantes da música checa do séc. XX, a par de Leos Janáček. Martinů é também um dos mais conhecidos compositores da chamada École de Paris, e um compositor com uma voz distintamente individual e uma versatilidade que o levaram a distinguir-se em todos os meios de expressão, de obras para o palco a sinfonias e quartetos de cordas, num total de mais de 400.

Numa noite inesquecível em Junho de 1942, a tranquila aldeia de Lidice, na Checoslováquia, deixou de existir. Não foi nem um terramoto nem uma inundação que varreu esta cidade de colinas verdejantes a oeste de Praga, mas sim a perversidade da natureza do homem. Tropas nazis varreram a aldeia enquanto esta dormia, matando os homens e deportando as mulheres e as crianças. Os edifícios foram totalmente queimados e tudo foi arrasado; nada restou, nem mesmo o cemitério. O massacre foi a forma dos nazis se vingarem da conspiração para assassinar o perverso líder das SS Reinhard Heydrich (“Heydrich, o carrasco”), cujo mandato como governador regional tinha semeado um reino de terror. Pouco depois de Heydrich morrer de ferimentos devidos à tentativa de assassinato que sofreu, a retaliação começou.

Lidice foi apontada como tendo abrigado os soldados que mataram Heydrich e a punição foi concebida pelos próprios Hitler e Himmler. Todos os homens adultos da aldeia foram reunidos e levados para uma quinta nos arredores, onde foram abatidos dez de cada vez. As mulheres e crianças foram então separadas e enviadas para campos de concentração separados. No final, 173 homens foram mortos, 184 mulheres e 105 crianças foram enviadas para campos de concentração. Algumas das crianças pequenas foram consideradas viáveis ​​para a “germanização” e foram enviadas para morar com as famílias de oficiais das SS. Infelizmente as restantes 82 foram consideradas nada mais que um fardo e foram remetidas para o Campo de Concentração de Chełmno, onde foram gaseadas.

Os horrores de Lidice tornaram-se um emblema, um símbolo de como uma aldeia sonolenta e inocente poderia ser varrida pelo terror fascista. A intenção era obliterar a aldeia – mas permaneceu uma memória poderosa. Outras cidades adoptaram o nome e alguns pais deram esse nome a meninas nascidas na época. Lidice emergiu como um símbolo não apenas para os checos, mas também para o mundo. Em 1943, a Liga Americana de Compositores pediu a vários compositores proeminentes para escreverem obras baseadas neste incidente muito falado na época. Em 1957, o governo da Grã-Bretanha plantou um enorme jardim de rosas na aldeia, que foi eventualmente reconstruída por aqueles que sobreviveram, 153 mulheres e 17 crianças.

Várias obras de arte, incluindo várias peças musicais comoventes, comemoraram o momento.
Bohuslav Martinů foi um dos primeiros a reconhecer, na música, aquela noite terrível em Junho de 1942. O seu sombrio Memorial a Lidice, de 8 minutos, continua a ser a declaração mais eficaz sobre o massacre de Lidice. A obra foi escrita em 1943, um ano depois da aldeia checa ser arrasada. À medida que se ouve a obra, desde os envolventes compassos de abertura do Adagio, o Memorial a Lidice cria um surpreendentemente emocional “mundo interior”, com uma bitonalidade saltitante – a sobreposição de duas tonalidades contrárias e destoantes, Dó menor e Dó sustenido menor. Através do desenvolvimento da obra, Martinů cita um hino a S.

Venceslau, o patrono da Boémia. Após uma secção central de acentuada intensidade, o Adagio inicial regressa, trazendo uma citação esperançosa: o “grito de vitória” da abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven. A peça termina então em Dó Maior.

Sugestão de audição da obra:
Bohuslav Martinů: Memorial to Lidice
The Philadelphia Orchestra, Christoph Eschenbach – ONDINE, 2005

27 Ago 2019

Você tem máquina lava-louça

[dropcap]F[/dropcap]lávia e Yara eram amigas há quase trinta anos, desde os tempos da universidade, e viviam ambas no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Apesar do lugar privilegiado e de viverem de rendimentos consideravam-se pessoas de esquerda. No tempo da ditadura militar estavam do lado dos estudantes, do lado do Chico – que era uma espécie de santo – do lado do Caetano e do Gil. No final do ano de 1968, sentiram profundamente a dor desses jovens músicos, que foram presos por mais de dois meses por alegado desrespeito à bandeira e ao hino nacional, num show no Rio, junto com os Mutantes (banda onde cantava Rita Lee). Mais tarde tiveram de partir para Londres para não serem presos novamente. Foi-lhes dado a escolher: ou o exílio ou a prisão. Ficou também claro de uma vez por todas, para elas, que o país tinha sido sequestrado pelos militares, que tinham assaltado o poder em 1964.

E Flávia e Yara, apesar de patricinhas, filhinhas de papai, choraram junto com os jovens estudantes e com os músicos. As patricinhas apesar de privilegiadas, ou talvez mesmo por isso, entendiam que a liberdade acabava ali. O país deixava as suas cores tropicais e passava ao cinzento militar.

Os anos passaram e o Brasil viu um pé rapado virar presidente do país, nas urnas. Flávia e Yara viviam a euforia de uma liberdade, de uma procura de justiça e igualdade apenas sonhada nos tempos de estudantes. Encontravam-se com frequência num boteco do bairro e falavam com alegria. Conheciam tudo de música brasileira, a boa música brasileira, como é apanágio de um bom carioca, e não poucas vezes se punham a cantar este e aquele samba, esta e aquela música do Chico e do Caetano ou alguma bossa nova, que lhes lembrava a infância. Evidentemente, criticavam abertamente o crescimento do funk nas favelas e da violência da cidade maravilhosa.

Mas a música doía-lhes mais. Flávia dizia: “Imagine que deixávamos de aprender música e que só se ouvia no mundo funk e sertanejo!” Yara concordava que o mundo caminhava para a fealdade. O fim da música era o fim do mundo, fim do universo. Era preciso ir às favelas ensinar música às crianças, pagar-lhes para isso, se preciso fosse. O dinheiro deveria ser usado para promover a beleza, o bem-estar, a igualdade. “Aconteceu o mesmo nos Estates com o jazz”, voltava Flávia. “Você lembra do filme de Tim Burton, “Marte Ataca”?”, perguntava Yara e continuava sem esperar resposta, “Então, você lembra que os marcianos morriam todos com a música de Tom Jones? Um dia, os humanos vão morrer todos com a música feia que hoje se faz.”

Entre estas conversas e a recordação de algumas canções, passavam as tardes de Inverno. Depois pediam a conta e ia cada uma para as suas casas. Conversavam pela internet com amigos, viam alguns sites, ouviam música, assistiam a algum filme e iam dormir. Na tarde seguinte, voltavam ao boteco para conversar sobre música, a decadência do mundo e de como o novo presidente era uma lufada de ar fresco em toda esta podridão.

Mas nem só de revoluções e de teorias para uma mudança do mundo viviam aqueles encontros. Muitas vezes as conversas aconteciam pela berma da vida, pelo quotidiano. O preço das coisas no mercado, o custo das empregadas, as novas dietas. Tanto Yara quanto Flávia tinham empregada interna, a tempo inteiro, em casa. Eram elas que faziam tudo, desde preparar o café da manhã (pequeno almoço), o almoço e o jantar, arrumar a casa, lavar a roupa, estender, passar a ferro, levar o cachorro a passear, etc.. Tratavam as empregadas como se fossem da família. Um familiar que faz tudo o que é preciso fazer para que elas nada façam. E este familiar, embora tivesse direito a um dia por semana dormir na sua casa, na favela, nem sempre assim acontecia, pois poderia dar-se o caso de precisamente nessa noite haver um jantar lá em casa e o familiar ficava a trabalhar sem ir ver a família, os filhos. O salário? Era pouco, mas justo. E depois se o familiar precisasse de medicamentos, podia usar os lá de casa. Não faltava nada ao familiar. Afinal de contas, não podemos esquecer que Flávia e Yara eram de esquerda.

Nessa tarde de Inverno, num Agosto chuvoso e 20°, Flávia queixa-se de que a sua máquina lava-louças quebrou e vai ter de gastar uma nota preta noutra. Yara ficou um pouco quieta, incrédula e pergunta: “Você tem máquina lava-loiça?” Agora foi a vez de Flávia ficar surpresa: “Ué, você não?” Yara pede mais uma dose de pão de queijo e responde: “Eu não! Imagina! Então, o que é que a minha empregada depois fazia o dia todo? Assistia novela?”

27 Ago 2019

Saint-John Perse

[dropcap]F[/dropcap]oi precisamente em Pau que tive conhecimento da sua poesia vai para muitos anos. John Perse frequentou o liceu da cidade, porque veio com os seus pais ainda pequeno de Guadalupe, onde nascera em 1887. Hoje há um liceu que tem o seu nome, e diz quem sabe, um distinto lugar de ensino. Chegou com doze anos e aí se manteve até ir para Bordéus para a Universidade de Direito, regressando a Pau para o serviço militar mas, como todos os habitantes das ex-colónias, o seu sentimento de expatriado fê-lo aventureiro, audaz na esgrima e no velejar, por que sem dúvida a vida nessas terras distantes teria para uma criança um brilho e liberdade que marcam sempre uma mente em formação. E vamos ao que dele interessa para além de muitos outros méritos que lhe foram reconhecidos, como a de uma brilhante carreira diplomática, à sua poesia, onde chega a receber um Prémio Nobel em 1960.

Muito cedo toma contacto com o meio literário, conhece Francis Jammes, Paul Claudel e André Gide, e é exactamente Gide que lhe faculta a publicação dos primeiros poemas. O seu primeiro livro saiu em 1911 com o título de «Éloges». É conhecida a dificuldade de acesso ao seu vocabulário, estamos nos avanços da Modernidade e ele imprime aspectos arcaicos à linguagem poética, o que faz que André Breton o apelide de um “surrealista à distância”. Este primeiro livro tem ainda aspectos simbolistas, em «Anabase», no entanto, ele está pronto para um reconhecimento que em tom declamatório fará a bela rapsódia do seu estilo fundamental. É uma obra de coerência e grande riqueza estilística em que uma análise semântica mais apurada fundamentará como uma unidade brilhante, dado que as imagens são muito fortes e nem sempre fáceis de manejar com recurso a linguagem descritiva. Nesta linguagem rara, os elementos tomam assento como se convidados pela exaltação das suas presenças em nós estando muito perto de um tributo às fontes inaugurais.

Referi «Anabase» dado que foi a primeira edição em língua portuguesa em 1961 pela Guimarães Editora, e bem poucas mais se lhe seguiram, é certo, pois que há poesia que não é de transporte fácil e contorno mediático, o que não nos importa absolutamente nada uma vez que a qualidade dela relevará certamente muito mais que toda a forma de popularidade que será sempre de desconfiar em termos gerais.

De mencionar que entre 1916 e 1921 enquanto diplomata no Ministério dos Negócios Estrangeiros se encontra na China onde muito provavelmente escrevera « Anabase» que seria mais tarde publicado pela Gallimard. Nesta sua actividade política, foi castigado pelo Governo de Vichy que lhe retira a nacionalidade tendo que se exilar nos Estados Unidos. Publica então« Exílio», «Chuvas» e «Poema a uma estrangeira». Em 1954 o mesmo «Anabase» foi musicado por Alan Hovhannes um compositor americano. Aqui vamos encontrar o poema em prosa quando a prosa consegue falar assim todos os poemas e continuar prosando como o mais difícil e memorável acto de escrita poética. É impressionantemente solitária, e a solidão tem uma voz desértica de finas areias, é como se a novidade trouxe-se outras lembranças mais velhas assim de incomparável “l´éternité qui baîlle sur les sables”.

O poder de recriar através da língua será composto por uma nova linguagem cujo mérito pertence inteiro a uma rara capacidade, e é na poesia que ela pode atingir a reserva e a distância na forma inventada que a incita a outra coisa que nunca fora experienciada. A estranheza deve-lhe ser subjacente, pois que na marcha atingirá um nível de beleza que de tão inusitado nos ajuda a experienciá-la como manifestação maior. Mas, e depois de muito esforço, quem pode ou deve julgar o domínio de uma língua que arrasta na sua composição a natureza do seu próprio mistério? Todos aqueles para quem a linguagem é um dom subtil e preciso que não tolera o escavar da sua própria métrica. O tratamento da linguagem forma-se com o rigor de um pensamento bem estruturado, que não pensando se escreve com a confiança das várias partes que se juntam ao processo. Perse, não quis misturar a carreira e a poesia, pondo-lhe mesmo fim durante uma época da sua carreira diplomática, o que é entendível, pois nestas coisas não devemos acumular nem facilitar. Esta sua lucidez só pode ser coroada com algo de muito bom que é este bem de sabê-la pensada assim.

Saint-John Perse e também Saint-Leger Leger, eram afinal pseudónimos de Alex Leger, o tal menino nascido a 31 de Maio de 1887, e não fosse esta actividade a de um neófito, e os nomes naturais manter-se-iam como um incidente de percurso da estrada da vida, e muito bem, pois que aqui se é outro na continuidade de cada um. O poeta é filho de si mesmo e tem o nome que entender quando outro tipo de natureza nele se manifesta. Não se tratará de pura originalidade, mas de uma assinatura que deu as páginas mais relevantes da poesia francesa do século vinte.

27 Ago 2019

Fracasso das embaixadas portuguesas à China

[dropcap]J[/dropcap]orge Álvares chegou num junco de mercadores chineses à ilha de Lin Tin em Junho de 1513, sendo oficialmente o primeiro português a entrar na China. No Delta do Rio das Pérolas, a ilha de Lin Tin (Tamão) era o porto chinês de trato e para as embaixadas tributárias, de espera pela permissão de poder seguir no Rio de Cantão, a levar à cidade. Pela Boca do Tigre, estuário do Rio Zhu (das Pérolas), dependendo do país da embaixada aportava-se em diferentes locais, fazendo os do Sião porto em Lantao.

Notícia dada a D. Manuel, logo o Rei para iniciar relações diplomáticas com a China enviou uma grande armada de dezassete barcos, que partiu de Lisboa a 7 de Abril de 1515, sendo capitão-mor Fernão Peres de Andrade. A missão era de passar à China e conduzir lá um embaixador português, escolhido por ele na Ásia. Seguia uma carta do Rei de Portugal para manifestar amizade e desejo de com os chineses estabelecer relações comerciais. Em Cochim foi Tomé Pires nomeado Embaixador.

A armada de oito navios chegou a Lin Tin a 15 de Agosto de 1517 e uma esquadra chinesa, cruzando ao largo da ilha como protecção contra os piratas, fez “uns tiros contra os portugueses, sem contudo lhes produzir qualquer dano, e Andrade, em vez de retorquir ao fogo, deu todos os sinais de amizade, com os navios embandeirados e soando trombetas.” Assustou os chineses ao realizar uma salva de canhões. “Logo que lançou ferro em Tamão, . Respondeu o capitão chinês que fosse bem-vindo, pois pelos chineses que iam a Malaca já tinha conhecimento , mas se dirigisse ao Pio de Nantó, . Andrade enviou então recado ao Pio – que ao mesmo tempo mandara um mensageiro saber o que os portugueses desejavam – informando-o dos motivos da sua vinda e pedindo pilotos para conduzir a esquadra à cidade de Cantão. O Pio respondeu com palavras muito amáveis, mas que, para o efeito, teria de vir licença das autoridades de Cantão”, segundo Armando Cortesão.

Em Setembro de 1517 estavam finalmente em Cantão e no ano seguinte os mandarins comunicavam a Fernão Peres de Andrade ter sido a embaixada aceite pela Corte Imperial, no entanto, só a 23 de Janeiro de 1520 Tomé Pires iniciou viagem até Beijing. A meio, em Nanjing esteve a embaixada com o Imperador Zhengde, mas oficialmente o encontro só poderia ocorrer na capital, onde chegou antes deste. O Imperador Ming vinha doente e morreu a 20 de Abril de 1521, sendo a embaixada cancelada e mandada regressar a Cantão, onde foi presa por apresentar documentos falsos, pois para a realizar usara direitos dos malaios.

Nova tentativa falhada

Fernão de Magalhães estava nas Filipinas quando a 5 de Abril de 1521 a segunda embaixada à China saiu de Lisboa levando Martim Afonso de Melo como embaixador do Rei D. Manuel. Em Malaca foi aconselhado em Julho de 1522 a não prosseguir devido ao confronto naval ocorrido em 1521, quando em Lin Tin a 8 de Julho morreu Jorge Álvares, e resultou os chineses proibirem actividades marítimas em Guandong. Mal a frota de Martim de Melo chegou ao porto de Tamão em Agosto de 1522, logo foi atacada pela armada chinesa, que de novo ganhou no confronto naval, perdendo os portugueses dois barcos, fugindo os restantes para Malaca.

Num memorial ao trono jishizhong Wang Xiwen escreveu, “Durante o reinado de Zhengde (Imperador Ming entre 1505-21), os Folangji, disfarçando a sua nacionalidade, conseguiram entrar de maneira enganosa na China. Apareceram subitamente na Capital Provincial sem cumprirem os devidos trâmites e em contravenção intencional das nossas leis. Recusaram pagar o choufeng (taxa percentual). Chegaram a comer crianças cozidas e a raptar moços e moças. Construíram uma paliçada para se defenderem. Armados com armas de fogo, andavam a fazer e a desfazer. Estes bárbaros são tão numerosos como o rebanho e a alcateia. A sua ambição, tão vil como a de tigres e lobos, é imprevisível. Pelos esforços de Wang Hong, que então era o haidao, e de outros, os Folangji acabaram por ser expulsos”, Breve Monografia de Macau de Yin Guangren e Zhang Rulin.

Relata o comportamento de Simão de Andrade, que viera buscar a embaixada de Tomé Pires e a encontrou a partir só então para Beijing. Em Lin Tin juntou-se aos alevantados portugueses, mercadores por iniciativa própria que deixavam o mar do cartaz e comerciavam pelo Mar de Bengala, Estreito de Malaca e Sudoeste do Oceano Pacífico, e provocou a batalha naval de 1521.

O Papa Paulo III em 1534 criou o Bispado de Goa a que ficavam subordinadas todas as ilhas e terras descobertas, ou a descobrir, desde o Cabo da Boa Esperança. Por Direito, o Padroado Português do Oriente obrigava todos os padres a embarcar de Lisboa se quisessem missionar no seu território. Andavam já franciscanos e dominicanos quando em 1540 foi criada, com a bênção da Santa Sé e dos Reis de Portugal, a Companhia de Jesus. Logo o padre espanhol Francisco Xavier foi nomeado núncio apostólico para todo o Oriente. Primeiro jesuíta a partir de Lisboa, foi dele a ideia de realizar uma nova embaixada à China. Passavam trinta anos da desastrosa segunda embaixada, bem pior que a primeira.

Terceiro fracasso

O padre Francisco Xavier, após missionar pelo Japão, desejou fazer o mesmo na China e durante a viagem para Goa desafiou o amigo Diogo Pereira, com quem seguia desde Shanchoão, a conseguir uma embaixada à corte de Pequim; única forma de um estrangeiro entrar no Celeste Império e poder comerciar.

Em Goa, onde chegaram a 15 de Fevereiro de 1552, Diogo Pereira falou com o Vice-rei da Índia Afonso de Noronha (1550-54) e como era rico pagou todas as despesas para realizar a embaixada, comprando à sua custa os presentes para em nome do Rei D. João III (1521-1557) entregar ao Imperador. Em Abril de 1552 partia a caminho da China o jesuíta e como capitão-mor da armada, composta por vários barcos e quinhentos homens, seguiu Diogo Pereira, nomeado pelo Vice-rei da Índia embaixador à corte de Pequim.

Mas em Malaca, a armada não saiu do porto por inveja do governador da praça D. Álvaro de Ataíde da Gama (um dos filhos de Vasco da Gama), que se opôs à partida de Diogo Pereira e entregou a capitania da nau Santa Cruz a Luís de Almeida, reduzindo a vinte e cinco homens a tripulação por ele escolhida. O jesuíta bem tentou chamar à razão Álvaro da Gama, mas este ressabiado com Diogo Pereira não mudou a decisão e já sem nada poder fazer, o padre excomungou-o.

Sem embaixada à corte da China, Francisco Xavier S.J. seguiu com o capitão Luís de Almeida na nau Santa Cruz, pertença de Diogo Pereira, e ainda em Dezembro de 1552 esperava na ilha de Sanchuang, para ser introduzido clandestinamente na China, quando morreu.

26 Ago 2019

Variações – o barbeiro cantor

[dropcap]N[/dropcap]a ante-estreia, Terça-feira, dia 20, na sala Manoel de Oliveira no cinema S. Jorge, com os seus 830 lugares quase ocupados na totalidade, o público convidado aplaudiu de pé a projecção do filme.

António Variações viveu a sua vida de cometa, luminosa e auto incendiária, numa Lisboa inventada, também por ele, entre Braga e New York, numa procura de pós-modernidade onde, o sangue e o brilho, a autenticidade do antigo é seiva que alimenta o presente. Fez notar com a sua postura de excesso que a ourivesaria das mulheres de Viana de Castelo que tem a sofisticação e a arte necessária a qualquer capa da Vogue. Ou que na música tradicional de Mirandela vive a pulsão erótica e radical de uma força telúrica capaz de cabeça de cartaz se tocada no MAAT de New York.

Viveu numa Lisboa que inventava a sua movida num alinhamento próximo com uma Madrid mi mata, num tempo em que Nova Iorque era a cidade mítica da vanguarda artística. Uma Lisboa ainda distante das rotas do turismo de massa da actualidade, pré-Internet, uma cidade-aldeia onde uma tribo relativamente alargada de gente com pequenas tribos dentro se movia, divertia, delirava, trabalhava, vivia.

Um tempo de excesso depois de dezenas anos de uma Europa e de um Portugal com peso excessivo nos corpos e nas vidas pela cinzenta nuvem da guerra que arrasou cidades e de um tempo colonial que findava por cá há pouco.

A cidade tinha um centro, chamava-se Frágil, um bar com pista de dança na rua da Atalaia que abriu em 1982, uma espécie de centro do mundo, um mundo de artistas, professores, alunos, cineastas, actores, designers, jornalistas, políticos, bailarinos, cozinheiros, pilotos, escritores. Um mundo pequeno, mas com ramificações ao mundo todo. Apesar dos excessos, na pista, nos balcões e nas casas de banho, era um lugar confortável, onde o desejo tinha no corpo das artes e da matéria do mundo a necessária presença para que os corpos não se separem do pensamento.

Outros lugares de excesso mais direccionado, não muitos, davam abrigo a tribos mais específicas em particular na sua orientação sexual, a actualmente conhecida comunidade LGBT. Era o caso do Finalmente Club, no n.º 38 da Rua da Palmeira que abriu a 2 de Maio de 1976, e onde todas as noites havia show de travestis. Talvez um dos mais hard na época fosse o Bric-à-Brac , também na zona do Príncipe Real, onde nas casas de banho, no final da noite, o esperma era visível colado nas paredes.

No filme temos o também o célebre Trumps, uma cave na esquina com a Imprensa Nacional, onde os corpos suados se reescrevem em ritmos eléctricos de dança urbana.

Foi neste bar que o Variações fez o seu primeiro concerto, e essa é uma das cenas recriadas no filme.

Mas o excesso do Variações é de outra natureza. É o excesso de um homem que vive a vontade de ser ele próprio e que encontra na canção a forma da sua expressão. O excesso de quem não cede a conformismos, nem a morais dominantes, nem a códigos normativos do que deve ser a arte ou a vida, não por arrogância, mas por verdade. A verdade da dor, a verdade do medo, a verdade da alegria, a verdade da ausência, a verdade do sangue.

Para António Ribeiro, o Variações, a figura icónica, que conheceu e com quem chegou a partilhar o palco, tem um nome e uma voz inesquecível, Amália Rodrigues.

Como refere João Maia, o realizador do filme, para Variações, a voz era o instrumento, não fica difícil entender o maravilhamento pela Amália.

Este filme é um BIOPIC, a film about the life a real person, e por isso, é também um filme musical.
O filme começa em Amares, a aldeia perto de Braga onde o protagonista nasceu, numa celebração Pascal, religiosa e popular, com banda e procissão, onde António ainda criança assiste com os irmãos e a mãe, mas já com o ar ausente de quem sonha. A cena seguinte é numa carpintaria da aldeia onde o jovem António trabalha e que tem como protagonista – a cena – um rádio numa parede que emite e a voz da Amália, os homens e o jovem António imobilizam os movimentos para uma melhor atenção das sonoridades e palavras cantadas. Na cena seguinte continuamos no universo rural e familiar e é-nos dito, pelo próprio jovem António em conversa com a mãe, da sua vontade de sair da aldeia e ir para Lisboa. A elipse temporal para o tempo da narrativa do homem adulto acontece na cena seguinte em que o jovem António, de forma deliberada se corta enfiando a talhadeira na mão. É um momento Luís Buñuel, é em respiração ofegante que António, homem adulto, acorda deste sonho e nos transporta da infância para o tempo da sua vida de músico e barbeiro, em Lisboa, Amsterdão, Nova York, Braga.

A composição do personagem pelo actor Sérgio Praia é a todos os títulos brilhante. Ancorado por um guarda roupa e maquilhagem sem falhas, uma fotografia de excelência, e numa realização em que a distância, posições e movimentos de câmara, são de uma eficácia total que nos fazem viver a emoção do actor. Sérgio Praia, transporta-nos ao mundo interior e exterior do personagem que interpreta de tal forma que acreditamos ser ele mesmo o António Variações.

Ao longo da narrativa somos transportados aos momentos da criação de temas que foram, e vão ser nestes meses do calendário próximo, icônicos, como: Toma o Comprimido, Teia, Perdi a Memória, Canção do Engate, Quero dar nas vistas.

A banda sonora do filme tem direcção musical de Armando Teixeira. João Maia procurou que mais do que uma banda sonora, que o filme desse corpo às ideias musicais que António Variações gravou com músicos amadores nos finais dos anos 70. E tudo correu de tal forma bem, que uma nova banda surgiu e o Sérgio Praia conjuntamente com os Balla lançam agora um disco editado pela Sony Music com os temas tocados e cantados no filme.

Variações é um projecto cinematográfico com inicio em 2000, teve apoio para escrita no ICA logo na fase inicial, mas o processo de desenvolvimento para chegar à rodagem foi demorado. A primeira versão do argumento demorou 2 anos a ser concluída, e a partir dessa altura foram perto de 15 anos para os júris e o ICA darem luz verde para a chegada às salas das imagens e dos sons.

Diz o João Maia: Interessei-me pelo Variações. Trabalhei durante muitos anos em lojas de discos, mas conhecia mal a obra dele e quando comecei a ouvir fiquei muito impressionado, até pelo facto de ele ter gravado o primeiro disco com 37 anos. E pensei; o que terá feito este homem até aos 37 anos para ter gravado um disco com esta idade e ter morrido aos 39?

Em brevíssima conversa com o realizador quisemos saber:

João, em quantos concursos de apoio à produção cinematográfica no ICA o filme esteve, até ter sido apoiado?
Acho que só ganhei há oitava vez que concorri.

Foi útil, no teu processo criativo, os sucessivos adiamentos, quantas versões do argumento escreveste?
O guião é praticamente o mesmo desde 2008. Essa era a 3ª versão. Antes disso só tinha concorrido uma vez. Em 2017 antes da rodagem fiz ainda algum trabalho sobre o guião.

No filme, não é identificada o HIV como a causa da morte do António Ribeiro?  A ideia generalizada é que foi uma das primeiras vítimas em Portugal do vírus HIV, que teve uma expressão aterradora com mais de 25 milhões de mortes no planeta.  A tua pesquisa não confirmou o HIV como causa da morte, ou decidiste não falar do assunto?
O filme conta a história do António. Na altura ninguém queria usar a palavra HIV. Mas no filme está lá tudo.

Durante este tempo longo entre o início do projecto e a chegada a sala, escreveste outros filmes? Qual é o próximo?
Uma adaptação de “Nome de Guerra” de Almada Negreiros

O filme, teve estreia simultânea em 60 salas no dia 22, esta proeza – é difícil a exibição cinematográfica de filmes portugueses em sala, só aconteceu com o filme Parque Mayer de António Pedro Vasconcelos (escrevi sobre o filme na edição do HM de 13 de Dezembro de 2018, filme que fez 43.045 espectadores), sem querer fazer futurologias é de esperar que Variações se aproxime ou ultrapasse os 100 000.

“Variações é uma homenagem a todos os que ainda hoje perseguem os seus sonhos aspirando a transformar as suas vidas.”

Sem grande margem para erro, Variações é um dos filmes do ano.

23 Ago 2019

O estrangeiro dos desaparecidos

[dropcap]H[/dropcap]á uma aparente cristalização do outro ausente no sítio onde se encontra. É como se não envelhecesse. Fica na nossa memória como era da última vez que vemos esse alguém. Podemos pensar como se encontram os amigos da escola que também se encontram nesse “estrangeiro” que é a parte incerta ou, se certa, encontra-se oculto num campo de latência, desaparecido. Há várias frequências de encontro, consoante os prazos. Parece imperceptível a transformação do outro como é imperceptível a nossa transformação ao espelho. Há momentos em que percebemos que o outro mudou como percebemos também que nós mudamos: o peso, o cabelo, o aspecto. Há pessoas que não vemos sempre, com maior ou menor frequência. Podemos só ver alguém depois de vinte anos e a pessoa parece que se mantém intacta ou então quase não a reconhecemos.

Não há nunca uma correspondência biunívoca entre a percepção da nossa lucidez e a duração da existência da outra pessoa. Talvez do mesmo modo que só por vezes “caímos em nós” e “nos enxergamos”, isto é, só em momentos de qualidade perceptiva importante temos uma a-percepção de nós próprios, quer dizer, o mais das vezes e habitualmente registamos a nossa presença em nós próprios, mas não temos uma auto-apercepção de quem somos, como mudamos ou se estamos sempre cada vez mais na mesma.

A duração da percepção é infinitamente inferior à duração da existência de cada um de nós próprios e dos outros nas suas vidas. Um momento de percepção projecta-se para o futuro com os dados das impressões que alguém deixa em nós. Há uma continuidade projectada para o futuro dessas primeiras impressões. Há uma caracterização dogmática de alguém feita pela presente impressão. Mas uma impressão é momentânea e por isso admite uma alteração do objecto que cria essa impressão do mesmo modo que admite uma interpretação diferente e uma história camaleónica nas nossas existências.

Há pessoas que só vimos uma vez na vida e outras que vamos vendo. Outras há que vemos em épocas das nossas vidas e depois caem para o campo de latência de onde apareceram, só para desaparecer. Há vidas que têm uma apresentação e uma ausência intermitentes, mais ou menos regular, como os amigos de férias que só víamos quando era verão e literalmente hibernavam como nós também para eles hibernávamos.

Os outros resultam de um filme em que há determinações claramente presentes, mas a maior parte delas existem na sua ausência. As ausências dos outros, quando estão desaparecidos, não são absolutas, como se desaparecessem da existência, mas estão a ser compostas por nós, mesmo quando não pensamos neles.

A maior parte das pessoas, mesmo as que nos estão tão próximas que vivemos com elas, estão sempre no estrangeiro existencial, desaparecem do horizonte de perceptibilidade, saem da vista para fora, deixamos de as ouvir, de as sentir nas suas fragrâncias, como nos tocam e têm nas suas mãos e nós nos encontramos nas mãos deles. A interrupção do contacto, a sua perda, o desaparecer é o entrar para o campo da latência. O mais das vezes e primariamente o outro encontra-se neste campo de latência, tal como de resto a maior parte das coisas.

E, contudo, elevam-se anonimamente teses sobre o seu ser. À luz projectada por essas teses, temos a esperança de que os outros continuem aí no rio das suas existências, mesmo que a baixar para o mar, ainda que essa persistência no fluxo e na corrente do rio da vida, se alterem, transformem, mudem. Tal como cada um de nós, todos nos tornamos diferentes com o tempo.

Às vezes nem sequer os outros nos aparecem, pode ser uma canção na rádio, a fragrância de um perfume, uma peça de roupa, uma fotografia.

Outras vezes, pressentimos a sua presença como se estivessem de pé atrás de nós ou sentados ao nosso lado, como nos momentos em que não dormimos mas também não estamos acordados e importamos dos nossos sonhos imagens reais dos nossos ou fazemos transitar os nossos fantasmas adoráveis para as fantasias oníricas em que as nossas vidas continuam sem que houvessem sido interrompidas por morte, física ou afectiva.

23 Ago 2019

Gisela Casimiro – Onde os sonhos vão para morrer (III)

In ‘life,’ I don’t want to be reduced to my work.
In ‘work,’ I don’t want to be reduced to my life.
My work is too austere.
My life is a brutal anecdote.
— Susan Sontag (3/15/73)

 

[dropcap]N[/dropcap]o quadro leio END OF LIFE, e desato a rir, tão secretamente e sem ter de dar explicações quanto possível. Não são vocês, sou eu.

Acabei de rever Mad Men, o que significa que deixei Nova Iorque e estou a conhecer Baltimore em The Wire. Numa das muitas cenas num bairro social, as personagens conversam, desta feita não no icónico sofá laranja no relvado e sim a uma mesa. Dois jovens jogam damas, supostamente, mas com peças de xadrez pois, como adivinha o terceiro, não sabem jogar xadrez nem têm damas, na verdade. Recorrendo a analogias sobre o tráfico de droga e os gangs, assistimos a uma lição. E eu pergunto-me: o que é que estou a fazer aqui, onde não pertenço? A jogar às damas com peças de xadrez, claramente. Aborrecida, arrastando-me de casa para o trabalho todas as manhãs, tornando-me o meme da moça vestida, pronta, sentada na cama, que diz “Eu esperando a hora de me atrasar.”

Dizem que para termos algo que nunca tivemos temos de estar dispostos a fazer algo que nunca fizemos. Reencontro, no Facebook, um testemunho de há uns anos, proveniente de um dos melhores projectos de sempre, Humans of New York: “Parece que quanto mais tentava que ela fosse sobre arte, mais o dinheiro controlava a minha vida: coleccionava prestações de desemprego, lidava com a humilhação de pedir dinheiro emprestado a amigos e familiares, dava voltas na cama à noite tentando perceber como pagar a renda. Para sobreviver tive de trabalhar em dois sítios, e depois de findos os turnos sentia-me demasiado stressado para pintar. É muito difícil criar nestas circunstâncias. A criatividade é um processo delicado. Muitas vezes pergunto-me se deveria ter seguido uma carreira durante a primeira metade da minha vida, obtido algum tipo de segurança financeira, e só então feito a transição para a arte.” Jung explica, os Wu Tang Clan também. Alguém comentara dizendo ter conhecido um talentoso retratista, quando ambos trabalhavam como zeladores. Ao perguntar-lhe o que fazia ali, o outro teria dito: “Por vezes temos de fazer o que temos de fazer, ou seja, fazer o que não queremos fazer, durante oito horas do dia, para podermos fazer o que queremos nas demais dezasseis.”

Nas últimas quatro semanas estive em duas empresas, três escritórios, conheci muita gente, aprendi e cansei-me muito. Tive uma esmagadora sensação de déjà vù na primeira, sentindo que voltara atrás no tempo três anos, novamente naquela empresa, novamente com uma hérnia inguinal (na altura noutra função e cidade, na altura ainda sem saber que a tinha ou o que raio era uma hérnia inguinal). Decidir que algo é temporário ajuda-nos a suportá-lo. Como daquela vez em que me despedi e, passados dois meses, engoli o orgulho e voltei para o antigo empregador.

Agora, permiti-me tirar uma teima, prevenir-me para não ficar de mãos a abanar, pelo meio fazer tempo para o que me parecia ser a única escolha sensata desta fase, da qual me fartei faz tempo. Deixar de procurar, continuar a receber propostas, agora até exactamente para a função de há três anos, mas não ser preciso. Sentir alívio mas, principalmente, não me sentir asfixiada.
Segunda-feira. As semanas chegam e passam. Pouco ou nada fiz a não ser ir trabalhar. É disso que tenho medo? De como o trabalho faz o tempo passar nos primeiros tempos, sobretudo depois do desemprego, tão depressa que nem me vejo?

Alguém nos oferece uma maçã e abraça. Alguém traz um bolo de banana caseiro, delicioso, húmido, bonito, com brilhantes na cobertura. Alguém grita e é admoestado. Alguém é despedido.

Alguém tem um ataque de pânico e é confortado. Alguém volta para a sua terra. Alguém nos faz rir e elogia e nós a eles. Mais alguém é despedido. Alguém se esquece de desligar um temporizador que apita como uma bomba. Alguém tagarela incessantemente. Alguém tenta ler.

Mais alguém também escreve. Alguém joga ping pong, cria um lugar à mesa, vai buscar pela segunda vez uma cadeira para nós. Alguém é ameaçado de despedimento. Alguém nos fala dos seus sonhos, família, datas importantes na sua cultura. Alguém já nos impressiona, intimida, enerva ou surpreende. Alguém é do Brasil, Holanda, Filipinas, Itália, Inglaterra, Moçambique, Índia, Angola, África do Sul, Reino Unido, Paquistão, Alemanha e de mais de dois ou três sítios ao mesmo tempo. Alguém chora, é como nós e nada como nós. Sexta-feira: alguém se despede com um beijo na testa, o que não estranhamos, talvez por já nos tratar pela alcunha quase desde o primeiro dia.

Por enquanto parece que o instinto e a espera terão valido a pena. Pelo menos assim me dizem os meus próprios emails, quando deixo de ignorá-los e encontro tantas coisas boas de que fazer parte. Não são os trabalhos-para-pagar-as contas, sou eu. E o #$%&@* do Martin Luther King, Jr. É que os sonhos, na verdade, só morrem connosco, e às vezes nem assim.

23 Ago 2019

Uma erótica da arte?

[dropcap]A[/dropcap] três dias de dar uma palestra sobre o Belo e as suas categorias, e a desvalorização ou a pertinência destas como elementos-chave na educação, sobretudo no enquadramento duma cidade cariada e necessitada de sacudir a orfandade de parâmetros estéticos e de valores urbanísticos, como Maputo, permaneço, como de resto sempre, indeciso.

Por um lado, acho pobres (muito pobres) e confusos os argumentos de Arthur Danto contra a beleza, à qual prefere a semântica, e creio que com demasiada facilidade se resvala para os domínios do Kitsch ou do Camp quando se pretende denigrir a beleza.

Depois não deixam de me atrair estas duas ilusões:

Camus em “O homem rebelde”, sustentava que “a beleza não faz revoluções, mas chegará o dia em que as revoluções necessitarão da beleza”; para ele a beleza prepara o caminho da dignidade do homem e do mundo em que vive.

Também o insuspeito Wittgenstein assume uma conexão entre beleza e felicidade, referindo-a expressamente à arte: “Porque há algo certamente na concepção de que o fim da arte seja o belo. E o belo é o que nos faz felizes”.

Qualquer destas posições me parecem ingénuas mas argutas, ou antes: consoladoras (contra o grande cetáceo que é a morte, e não concebo a arte alheada desse nó), embora a posição que mais me agrade seja a de Susan Sontag, no seu célebre ensaio, Contra a Interpretação, onde é defendido que em lugar de uma hermenêutica necessitamos de voltar a uma “erótica da arte”, recuperando por uma vez o fio dos sentidos, esgarçados.

A arte serviria então para recuperar os sentidos, ver mais, ouvir mais, sentir mais, vendo como é o que é e não tanto o que significa.

O esteta e músico Sixto J. Castro, numa comunicação em que enumera as diferentes perspectivas face ao desiderato, avança com uma tímida sugestão que não me parece despicienda:

«A neurologia contribuiu para assentar neste particular: os juízos estéticos de beleza provocam a activação de uma rede neuronal que de comum subjaz aos julgamentos avaliativos, de modo que sempre se combina um Substrato Neural nos julgamentos sociais e morais.

E sendo a beleza uma âncora a que a arte se encostou ao longo de sua história, como um dos factores que lhe permitiram desempenhar o importante papel que protagonizou nas nossas sociedades, não será isso um motivo suficiente para resgatar a beleza na teoria da arte?»

Talvez não, talvez sim. Mas, enquanto aguardo por uma pontada de discernimento, contra a perda de “aura” do Walter Benjamin – com certeza, um dinamitador da unicidade que cunhava a beleza – elaborei este argumento: se uma obra de arte pertence ao passado, na medida em que foi executada num tempo histórico x, a sua “beleza” será avaliada no momento presente do juízo do seu observador; ora, embora a sua recepção artística seja dependente da ulterior definição e evolução da arte, há casos em que nem isso a abala: é o que se constata com Venere degli stracci, de Michelangelo Pistoletto, que podemos descrever como uma cópia de mármore de uma estátua de Vénus semi-oculta por uma montanha de trapos. A intenção da peça é política e, sendo ao mesmo tempo um libelo contra a sociedade de consumo/do lixo, coloca no devido lugar a irrelevância em que as categorias antigas da arte (como o Belo) estacionaram, sinalizando mesmo a própria figura da “perda de aura”. Mas não deixa de ser irónico que a peça para operar o seu inteiro sentido necessite do contraste de algo que afinal não viu diluída a sua irradiação como memória de coisa bela. Se em lugar de fazer uso de um ícone grego, se Pistoletto utilizasse por exemplo o R-2-D-2, o pequeno robot e um dos principais ícones da saga Star Wars, esse pequeno droide astro-mecânico não se distinguiria do resto do lixo; a Vénus, apesar de ser uma cópia, na razão relacional que compõe a obra, dá-lhe a distancia que torna visível a intencionalidade: é o seu verdadeiro elemento de força, o que lhe dá um carácter.

Suspeito que a “felicidade” desta obra ilustra o que Baudelaire defendia: uma obra-de-arte deve comportar uma metade de novo e outra de eternidade, ao que acrescento, essa dosagem deve revelar-se indivisível. Ao ver e sentir a beleza estamos vendo e sendo um com ela, i. é, imputamos beleza às obras em que identificamos uma correspondência entre o tema e a expressão, entre o conteúdo e a forma, àquelas formas que revelam as relações internas das coisas ou, como dizia Hsieh Ho, que “revelam o ritmo do espírito nos gestos das coisas vivas”. Neste sentido, esclarece-nos o ceilonês Coomaraswamy, a beleza será mais um estado de percepção que nos apanha de golpe (e para alguns seria preciso estar em auto-abandono) do que uma categoria filosófica com mais ou menos oportunidade e vigência.

Seja como for, lembraria o velho Kant: «ante a arte somos responsáveis» – a arte demanda que nos tornemos responsáveis e activos.

De ideia semelhante comungava Marcuse, de quem se cumpriram em Julho último os cem anos do nascimento, e para quem nós éramos responsáveis pelo volume de fantasia que entregamos ao mundo. A fantasia é «a tendência contrária ao princípio da realidade, sem por isso circunscrever-se no sub-consciente nem ser tão-pouco um resíduo do arcaico», posto que a fantasia, continua Marcuse, «surge da conexão de capas do subconsciente e das mais altas produções da consciência… abrindo entre o devaneio e a realidade as maiores perspectivas de liberdade». E quem opera para que tal aconteça? Não exactamente nós, mas o descondicionamento de Eros em nós. Eis-nos remetidos para a tal “erótica da arte” que se propunha a Sontag e que, evidentemente, está nos antípodas do espírito da pornografia que instalou (- livremos, entretanto, a Linda Lovelace de acusações soezes, impoluta ainda que esplendidamente desinocente).

22 Ago 2019

Os novos misticismos

[dropcap]T[/dropcap]entar explicar uma realidade que não caiba nas palavras (ou nas possibilidades mais vastas da linguagem humana) pode conduzir a dizer, não o que ela é, mas aquilo que ela não é. Por outras palavras: em vez de o raciocínio avançar com as características que seriam próprias dessa realidade (e com analogias várias que a sugerissem), prefere antes enumerar o que ela certamente não é (negando e interrogando, ao mesmo tempo). Aplicado a deus, este método denomina-se teologia negativa; na retórica recebeu a feliz designação de apófase.

O ‘Cântico Negro’ de José Régio popularizou a fórmula com versos que se tornaram famosos, o que não deixa de ter a sua graça: “Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!”. São Tomás de Aquino também recorreu abundantemente a esta prática, mas ela acabou sobretudo por ficar conotada com a tradição mística, caso de Johannes Scheffler (1624-1677), por exemplo.

O Verão, redundantemente apelidado de “silly season”, é um período associado a uma menor densidade de carga informativa. Trata-se de um fenómeno recente que não se adequaria, com toda a certeza, à era de quase ininterrupta devastação que ligou duas das datas fundamentais do século passado: 1918 a 1945. Antes do assassinato de Sarajevo, a alegada “agenda informativa” não tinha o peso, nem o significado de pedra angular que adquiriu dos anos sessenta para cá. De forma que o tráfico comunicacional da expressão “silly season” é filha do presente imediato e seria incompreensível fora das fronteiras da nossa época.

Por vezes, penso na sorte tremenda que é ter vivido, até hoje, sem me ter cruzado com uma guerra (ou com os seus efeitos directos na pele). Por vezes, penso como é frágil pronunciar e comunicar expressões como é o caso dessa idiota “silly season”.

Uma tal expressão quer essencialmente dizer que, entre Julho e Agosto, o mundo deve ser esquecido, removido, desclassificado. A anestesia a que os veraneantes são convidados coloca as greves como um pano de fundo divertido, as mortes no Mediterrâneo como lance para extraterrestres e as quedas nas bolsas enquanto episódios para esquecer a meio do hipnótico ‘zapping’ diário. Por outras palavras: a “silly season” é uma teologia negativa, porque é um modo prático e chão de dizer o mundo pelo que ele não é.

Há contudo algo que não bate certo. A teologia negativa só existe na medida em que os humanos se encontram face a uma realidade que não conseguem traduzir (que não cabe nas possibilidades da linguagem). Quando se traduz, intenta-se uma aproximação entre dois registos, pratica-se amizade. Quando nem se consegue traduzir, é porque estamos face a qualquer coisa de que não sentimos proximidade e que se torna, portanto, inexplicável, distante. A pergunta é: qual é ‘essa coisa’ que os veraneantes não conseguem entender e que os leva em massa para esta espécie de profana e elementar teologia negativa?

A resposta parece-me clara: a turba afirma claramente e sem complexos que não entende, nem pretende entender o mundo e por isso o apaga neste recente ritual dos meses de verão.

Na larga maior parte da história dos humanos, sempre houve grandes perguntas e grandes respostas, isto é: valores óbvios, referenciais. Foi por isso que surgiu a filosofia e foi por isso que surgiram mil e um mandamentos religiosos ou ideológicos, pelo menos desde que, no alvor do mundo moderno, o homem (e não a transcendência) se colocou como objecto por excelência a ser investigado pelos saberes. O nosso tempo saiu dessa fornada de aflições carregadas de sentimento de dever. Os veraneantes querem é que não os chateiem, querem é que os deixem em paz a arrastarem os carros pelas auto-estradas, querem é que os deixem em paz nas procissões pelo deus-património, querem é que os deixem em paz entre o iphone, o fato de banho e o shopping.

Este dissociar do mundo, que se tornou crónico, passou a ter o seu clímax massificado nesta altura do ano (enfim, no hemisfério norte do planeta). Duvido que seja um período de franca realização, é-o muito mais de fluxo, de repetição, de reconstrução das rotinas diárias num novo contexto em que a irracionalidade – como acontecia nas antigas tradições do carnaval – pode dar-se ao luxo de dar uns passos de dança em falso, mas, desta feita, sem temer atropelar o outro. Os meios esquecem-se e os fins cingem-se amiúde às gargalhadas frugais do indígena (a amizade e a ideia de ‘outro’ escapam-se facilmente à voragem).

Para explicar uma realidade que não cabe nas possibilidades das expressões humanas, bastará, pois, colocar à solta um leme negativo. Repetir o que ela não é. Se os místicos o faziam com poemas particularmente elaborados (e muitas vezes foram conotados com ateísmo, refira-se), os humanos de hoje escrevem-nos através das indústrias do lúdico como se elas fossem a redenção de uma qualquer divindade ausente, irremissível e jamais superável.

O misticismo está a renovar-se, como se vê. Para o provar, deixo em baixo dois poemas: o primeiro é um original de Johannes Scheffler, o segundo é de minha autoria, embora literalmente baseado na rescrita do primeiro:

“O Deus Desconhecido.
O que é Deus, não o sabemos: ele não é luz.
Não é espírito.
Não é verdade, nem unidade, nem um, ele não é
Aquilo que chamamos divindade:
Não é sabedoria, não é intelecto, não é amor nem
Querer nem bondade.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Uma essência, não é um coração:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
Criatura
Antes de ter-se tornado naquilo que Ele é, jamais
Conhecemos.”*

O Mundo Desconhecido.
O que é o mundo, não o sabemos: ele não é uma prancha de surf.
Não é hora de ponta.
Não é androide, nem sindicato das matérias perigosas, nem CGTP, ele não é
Aquilo que chamamos ginásio ou solário:
Não é charter, não é low cost, não é bandeira verde nem
Vilamoura nem festival no passeio marítimo de Algés.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Um fio dental, não é um alojamento local:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
criatura
Antes de ter-se tornado aquilo que o mundo é, jamais
Conhecemos.


*Tradução Nícia Bonnati em Derrida J, Salvo o nome, Papirus Editora, Campinas, 1995, pp.32/33.

22 Ago 2019

Do fazer nada

[dropcap]A[/dropcap]ssim: uma brisa leve, um calor inoportuno, indesejado e imprevisível. Uma rua serena, aliviada pelo abandono de Agosto. Ninguém na rua. Permitam que repita com um leve sorriso nos lábios, único ser humano que tudo pode confirmar, escudado numa esplanada do bairro ainda irredutível: ninguém na rua.

Então a entrega possível. Olhem, amigos: sem dever nem prazo, pegar num livro que de tanto lido e de tanto amado não pode ser desprezado. Todos temos um. Vários, direi. A boa notícia: nunca será o mesmo. Crescem connosco e nós, se formos espertos e sortudos, crescemos com eles. Não tenho dúvidas sobre esta matéria: é urgente um Plano Nacional de Releitura.

Haverá certamente outras prioridades. Mas não agora, não agora que me reencontro com o major Scobie de O Nó do Problema (The Heart Of The Matter) de Graham Greene. Quantas vezes terei lido o livro? Muitas. Conheço-o como a mim próprio, este característico anti-herói greeneano que confunde amor com compaixão. Um homem com uma ambição semelhante a Bartleby, pecador agostiniano na sua doce recusa à vida. O seu objectivo maior é estar sozinho; e só as paixões e Deus estão no seu caminho. O mesmo que o condena.

Mas não quero fazer aqui recensão literária. Este meu Greene, sublinhado e amarfanhado com o uso mas ainda com a possibilidade e a vida para poder fazer mais notas, é apenas um prazer recorrente, como acredito que os melhores prazeres devam ser. E, até deparar com a realidade absurda, a coisa estava a correr bem, um leitor apaixonado com tempo e sentindo a cidade que ainda respira de alívio devido à deserção da população de Agosto. Não, amigos: conhecendo a minha sorte sabia que mais cedo ou mais tarde iria levar com qualquer coisa que me maçasse.

Assim foi: os meus olhos depararam, numa pausa de leitura, com mais um sinal extraordinário destes dias. E assim, eu que estava sem horas nem intenção sentado numa cadeira fui violentamente contrariado naquilo que achava que estava a fazer: nada. Pior: soube que para fazer nada era preciso seguir uma “disciplina” ou “filosofia”. Até várias: a coisa começou na Dinamarca, com algo a que chamaram hygge e que se definia por “ficar em casa sossegado” (a sério). Não contentes com isto, os maldosos escandinavos inventaram uma declinação do conceito e – hop! – apresento-vos ao lagom, uma “filosofia” sueca cuja o princípio maior é o de “ver a vida com moderação”. O leitor dirá: para quem se dedica a querer não fazer nada, tudo isto parece dar muito trabalho. O leitor diz bem, e não está preparado para o que vem: o nyksen, uma “visão” holandesa que, de forma surpreendente, recomenda o que fazer para não fazer nada: vaguear, ouvir música, estar sentado – desde que seja sem propósito.

Até hoje não fazia ideia de que era um exímio praticante de nyksen combinado com todas as outras variantes. Provavelmente terei neste momento direito a um honoris causa. E nem me apetece dizer que o otium romano – a condição filosófica mais sublime – já anda por aí há algum tempo. Não, nem que seja só por hoje a minha irritação com estes dias, em que mesmo o que não tem destino precisa de GPS vai ter que ser interrompida por vontade própria. Até porque tenho muito nada para fazer.

21 Ago 2019

Saberei esperar?

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

 

[dropcap]E[/dropcap]scavações arqueológicas nos arredores de Londres extraíram-nos do passado. Com cerca de 132 mm e datado de 70 A.C., o “stylus”, já por si raro, torna-se extraordinário por conter inscrição bem-humorada, que liga Londres a Roma, a Cidade. Na tradução do especialista, Roger Tomlin: «Vim da Cidade. Trago-te um presente de boas-vindas com uma ponta afiada na esperança de que te lembres de mim. Pergunto, assim me permita o destino, se posso (dar) de forma tão generosa como longo é o caminho e os meus bolsos vazios». Uma recordação, portanto, que, apesar de pobre, atravessou os séculos e os destinos para dizer que os bolsos vazios não travam caminho. Deve ser mania, mas leio nestes vestígios a vocação do editor. A ruína, nos seus vários sentidos, estendem-se enquanto horizonte. Que marca e que pele sobrará?

Horta Seca, Lisboa, 2 Agosto

Nem foram os primeiros élepês do Zeca que tive, mas aqueles últimos ficaram-me gravados. Aliás, comecei por beber canções, servidas pela irmandade que me governou («Venham Mais Cinco», lembras-te Paulo [Caldinho Gomes]?). Tocando as correntes subterrâneas, dou comigo a tentar perceber quês e porquês, a pretexto de aniversário. A luxúria das paisagens sonoras, por exemplo. São bastante distintos, mas estes «Como Se Fora Seu Filho» e «Galinhas do Mato» andam de par nos confins do recordativo. Nada se perde do Zeca anterior, com o constante mergulho nas raízes, qualquer que fosse a terra, de aquém ou além-mar, de litoral ou interior. Mas acontecem curto-circuitos com outros géneros, do jazz a tropicalismos de vários tons. Também na lírica se manteve a leitura da história e a sabedoria panteísta, a ironia cortante e a aspiração política. Ou dançando tudo, como quando, em «Papuça», o verso «a revolução é para já» solta os ritmos da dança. «Utopia» tornou-se um clássico instantâneo, de simplicidade e pureza. O que então me espantou foi a pujança do surrealismo, os nexos poéticos estabelecido pelo absurdo, rasgando fendas no quotidiplano. «Era Um Redondo Vocábulo», uma das minhas eleitas, comprova que esse modo de ler mundos era omnipresente, mas brilhou por aqui e para mim com outras intensidades. Apesar de episódico fulgor, andamos pela obscuridade, lugar de conforto por estes dias feitos noite. Por isso se vai chegando a mim, que nem companheira-gerúndio, esta «Canção da Paciência»: «Muitos sóis e luas irão nascer/ Mais ondas na praia rebentar/ Já não tem sentido ter ou não ter/ Vivo com o meu ódio a mendigar// Tenho muitos anos para sofrer/ Mais do que uma vida para andar/ Beba o fel amargo até morrer/ Já não tenho pena sei esperar // (…) As águas do rio são de correr/ Cada vez mais perto sem parar/ Sou como o morcego vejo sem ver/ Sou como o sossego sei esperar». Saberei?

Horta Seca, Lisboa, 12 Agosto

Que raio! Cinco anos depois, as perguntas continuam a nascer em jardim, mais ou menos cultivado, com o lado agreste das daninhas também a merecer o (celebrado) cuidado da desatenção. Dóris, queria dar-te uma satisfação, mas a intenção não se aplica e explicação já cabe no saco das respostas. Bem sei que tenho que editar o teu volume de contos, ao menos isso, a que deste o belo título de «As Perguntas». Cinco anos depois, tudo se meteu à frente, pudores e desatinos com dinheiro, a orgânica desorganização, a tusa pelo novo, a crença no impossível. Dóris, venho apenas dizer-te que não desisti. Não leves a mal as gralhas que deixámos escapar, também esse projecto de casar atenções e leituras ficou adiado. Somos óptimos a procrastinar, bem sabes. Não deixámos, garanto, de semear perguntas, um pouco por todo lado, mesmo onde não é suposto crescerem. Fui reler o teu prólogo, e encontrei lascas de pensamento que me apeteceu discutir. Posso adiar a conversa por instantes, tu interpelaste de tão estranho modo com esse teu gesto? Dizes tu: «insistimos, e esta nossa insistência conduz-nos para longe de nós. Existimos aqui, mas sempre em fuga, como se não quiséramos ser na aleatoriedade de ter nascido. Sempre a perguntar, sempre a ousar responder, entretendo, assim, o medo de existir. Porque existir é ser entre um ponto e outro ponto, linha do horizonte sem lado de lá para onde deixar de ser visto e lado de cá que nos possa ver. Somos, para nós, um horizonte invisível, segmento de recta cuja medida desconhecemos. Temos medo de existir pela consciência da morte que há em nós. Só conhecemos o finito e tememos, não por ele, mas dele. A nossa condição não opera o incomensurável, não se sintoniza com o infinito, mesmo que o saibamos. O universo contém mas não é contido. Estamos fracos perante o insondável, alienados que somos pela matéria. Mais ainda quando dizemos deus. Por isso perguntamos. Solicitamos respostas para o que sabemos ser apenas um entretenimento do pensamento. Ocupamo-lo. Por vezes, inconsequentes, damos respostas. É apenas um jogo de alternâncias: respondemos para a seguir poder perguntar de novo, mais. Julgamos interrogar tudo. Mas o tudo não está ao nosso alcance.»

Horta Seca, Lisboa, 14 Agosto

O humano escolheu para principal actividade a construção de ideias feitas. Ou melhor, com extremo detalhe confunde casa e lugar-comum, mas disperso logo a abrir. Queria apenas dizer que géneros literários como a banda desenhada, a novela ou o romance gráfico são oceanos de enorme biodiversidade. Max, autor atípico e de grande valor, produziu «Vapor» (folha de rosto algures na página, ed. Levoir), perdoe-se a rima, e que só agora me foi dado ler, não por caso. Nicodemos, figura mística, muda-se para o deserto para fugir das distracções e procurar em si o que pudesse conter de humano. Preto e branco, massa e traço, sombra e corpo, humor e delírio, pensamento e desenho, perguntas e interrogações. Eis a matéria para que o nosso mundo se deixe pensar, se deixe representar. O diálogo de Nicodemos com a sua sombra merecia constar de antologia acerca do nosso lugar no mundo, de cada um em si. O mesmo esforço foi feito, óbvio, em cinema e teatro e romance e poesia, mas consegue aqui algo distinto, muito distinto, de tão profundamente simples: traço sobre a página, dedo na areia, olho no céu.

Costa da Caparica, Almada, 15 Agosto

Uma das mais novas lá da rua Castelo fez cinquenta. Ia escrever que fui ao passado, mas não voltamos nunca ao que não existe. Recriamos, mapas, por exemplo. Trocámos memórias, mas somos pequenos na maior parte delas. Encolhemos, tal o velho quarto. São de somenos, detalhes de distúrbio e desafio. Toque e fuga de campainhas. Soltou-se que nem perfume leve reflexões acerca de tais encontros, o percurso feito, o lugar onde chegámos, apenas patamar.
Para o Pedro [Brito] realizar, orquestrado pelo Humberto [Santana], e muito musicado pelo João [Lucas], compus um «Fado do Homem Crescido», no qual o António Zambujo cantou, a propósito: «Soube logo pela manhã que seria tal e qual/ Mas acreditei porque fomos um bando./ Devia estar de costas, não vi chegar o mal/ Parecia navalha a rasgar, era só tempo passando.»
O sol lá se repetiu pondo laranja no oceano enquanto velho pai exalava orgulho, distribuía afectos e dava a mão de modo só seu.

21 Ago 2019

Cavalleria rusticana: a ópera-prima de Mascagni

[dropcap]A[/dropcap] ópera Cavalleria rusticana, do compositor italiano Pietro Mascagni, é um melodrama em um acto com libreto em italiano de Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci, e uma das óperas mais representativas do género operático pós-romântico denominado verismo, associado a compositores italianos tais como Umberto Giordano, Francesco Cilea, Giacomo Puccini, e Ruggero Leoncavallo, para além de Mascagni. O libreto é baseado num conto e subsequente peça do romancista Giovanni Verga, um autor verista italiano que, tal como outros do mesmo movimento literário, procurou retratar o mundo com maior realismo, escrevendo sobre temas como a vida dos pobres e os problemas do homem e da mulher contemporâneos, geralmente de natureza sexual, romântica ou violenta, que em geral não eram considerados adequados para a literatura.

Em Julho de 1888, o editor milanês de música Edoardo Sonzogno anunciou um concurso aberto a todos os jovens compositores italianos que ainda não tinham visto uma ópera sua representada em palco. Convidou-os a apresentar uma ópera em um acto e as três melhores (seleccionadas por um júri de cinco destacados críticos e compositores italianos) representar-se-iam em Roma, a cargo de Sonzogno.

Mascagni ouviu falar do concurso apenas dois meses antes da data final e pediu ao seu amigo Giovanni Targioni-Tozzetti, um poeta e professor de literatura na Real Academia Naval italiana em Livorno, que lhe proporcionasse um libreto. Targioni-Tozzetti escolheu Cavalleria rusticana, um conto popular de Giovanni Verga como a base da ópera. Ele e o seu colega Guido Menasci puseram-se a compor o libreto, enviando-o a Mascagni por partes, às vezes apenas uns poucos versos escritos na parte de trás de um postal. A ópera foi finalmente apresentada no último dia do prazo. No total, apresentaram-se 73 óperas a concurso, e no dia 5 de Março de 1890, o júri seleccionou as três obras finais: Labilia de Niccola Spinelli, Rudello de Vincenzo Ferroni e Cavalleria rusticana.

Havia outras duas óperas baseadas na história de Verga que foram a concurso. Uma delas, de Domenico Monleone, foi também baseada na história, e também intitulada Cavalleria rusticana. A ópera não teve êxito no concurso, mas foi estreada mais tarde nesse ano em Amesterdão a que seguiu uma digressão com êxito pela Europa, acabando em Turim. Sonzogno, desejando proteger a lucrativa propriedade em que se havia convertido a versão de Mascagni, empreendeu acções legais e com êxito conseguiu que a representação da ópera Monleone fosse proibida em Itália.

Embora Mascagni tivesse começado a escrever outras duas óperas antes (Pinotta, estreada em 1932 e Guglielmo Ratcliff, estreada em 1895), Cavalleria rusticana foi a sua primeira obra terminada e representada, continuando a ser a mais conhecida das suas quinze óperas e operetas. Para além de Cavalleria rusticana, apenas Iris e L’amico Fritz permaneceram no repertório standard, com Isabeau e Il piccolo Marat nos limites exteriores do repertório italiano.

O seu êxito foi um fenómeno desde a sua primeira representação no Teatro Costanzi em Roma, no dia 17 de Maio de 1890, até à actualidade. Quando Mascagni morreu em 1945, a ópera tinha alcançado, em Itália apenas, as 14.000 representações.

A primeira representação de Cavalleria rusticana causou sensação, com Mascagni a aparecer 40 vezes a saudar na noite de estreia, ganhando o Primeiro Prémio do concurso. Naquele mesmo ano, depois de se venderem todas as representações no Teatro Costanzi, a ópera produziu-se por toda a Itália e em Berlim. Em Dezembro, Gustav Malher dirigiu a obra em Budapeste. Pouco depois, as cidades de Munique, Hamburgo, S. Petesrburgo, Dresden e até Buenos Aires acolheram a obra. Em Março de 1891, foi apresentada em Viena. Teve a sua estreia em Londres no Teatro Shaftesbury no dia 19 de Outubro de 1891 e no Covent Garden no dia 16 de Maio de 1892. Aos 26 anos de idade apenas, Mascagni tinha-se tornado internacionalmente famoso.

Os produtores norte-americanos lutaram entre si, as vezes mesmo através dos tribunais, pela primeira apresentação da ópera naquele país. Cavalleria rusticana finalmente foi estreada em Filadélfia na Grand Opera House no dia 9 de Setembro de 1891, seguida por Chicago no dia 30 de Setembro de 1891. A ópera foi estreada em Nova Iorque no dia 1 de Outubro de 1891 com duas representações rivais no mesmo dia, uma representação vespertina no Casino, dirigida por Rudolph Aronson e uma à tardinha no Liceo Lenox dirigida por Oscar Hammerstein. A ópera estreou no Met no dia 30 de Dezembro de 1891 num programa duplo com um fragmento de Orfeo ed Euridice de Gluck e, desde então, foi aí representada mais de 600 vezes.

A acção de Cavalleria rusticana é passada numa aldeia na Sicília, na manhã do Domingo de Páscoa, no séc. XIX. Uma rapariga triste e ansiosa, Santuzza, procura o seu amante Turiddu, recentemente regressado da tropa, que a traiu e voltou para a sua antiga noiva, Lola, que entretanto se tinha casado com o abastado Alfio. Santuzza tenta, em vão, recuperar o seu amante. Louca de ciúmes, conta a Alfio, o marido enganado, sobre Lola e Turiddu, selando, nesse momento, o destino de Turiddu. Alfio desafia-o para um duelo. Após despedir-se da sua mãe, Turiddu parte para o seu encontro fatal…

A ópera contém árias famosas como a siciliana “O Lola c’hai di latti la cammisa”, o poderoso hino “Inneggiam, il Signor non è morto…”, o famoso Intermezzo sinfonico, e “…a te ! la mala Pasqua !!!”, entre outras.

Cavalleria rusticana continua a ser uma das óperas mais populares hoje em dia; nas estatísticas da Operabase aparece como a n.º 27 das cem óperas mais representadas no período 2005-2010, sendo a 16.ª em italiano e a primeira de Mascagni.

 

Sugestão de audição da obra:
Pietro Mascgani: Cavalleria rusticana
Plácido Domingo (tenor) as Turiddu; Elena Obraztsova (mezzo-soprano) as Santuzza; Renato Bruson (baritone) as Alfio, Fedora Barbieri (mezzo-soprano) as Mamma Lucia; Axelle Gall (actress) as Lola; Coro del Teatro Alla Scala di Milano, Georges Prêtre – Decca: 470570-2

20 Ago 2019

Poiesis

[dropcap]C[/dropcap]he cos´è la poesia?

Vem de um outro lugar, recria tudo, e liberta-se das cintilações e daquilo que para fora sujeita a esfera que o toma – ” ele ocorre então, no essencial, sem actividade, sem trabalho, no mais sóbrio pathos, estranho a qualquer produção, sobretudo a criação”. Do poema falamos, e o nosso braço vai buscar ainda a antiga asa dos pássaros lembrando que os braços vieram delas e que delas ainda há que dar testemunho. Não vem contar nada, a narrativa escasseia num grande poema, mas abundam estranhezas várias, as suas demonstrações e toda a composição verbal parte ao serviço de um dom absolutamente esquecido do antes da palavra, daí, o ser tão avassalador por vezes a leitura de um poema, onde regra geral, também não devemos em posição de choque perguntar nada, a não ser deixar-nos penetrar de modo desconhecido por esse corpo vivo que nasceu imerso em enigma.

O que o separa do acto discursivo é ainda o saber escutar a antiga onomatopeia a que o cérebro acede como um animal que bebe numa fonte granítica as águas da infiltração, e, em magma inteligível, o poema fala. As ligações estão feitas, só falta deixar correr, e aos que não têm sede poder-se-ão saciar com licores, o poema não o carregamos nem deseja que o surpreendam, a manifestação acontece dado que se recria partindo de um ponto remoto ao movimento que o faz soltar-se da nossa mão, o fazedor nunca será o gerador do significado, mas aquele que o exercita, distanciando-se da natureza próxima para recriar aléns. Acrescentar, continuar o que não foi testado, é esta a base da sua origem semântica e do seu grande impulso vital, e neste processo, remontar a uma pré-articulação seria uma forma de amputar aquilo que só ele diz sem que tenhamos de o pensar. Assinamos um poema e foi ele que nos sinalizou, ele merece não ser do artesão, e não ser andor para a festa das “criatividades” falamos de uma estrutura mais ambivalente se assim se pode chamar, e bem mais complexa que o simples desejo de termos feito o poema que projectámos. Ainda fazemos muito pouco face a este fenómeno que nos faz, e por nós passa sem que carregue a nossa desconhecida causa.

Por outro lado, não o podemos transgredir na medida que a norma não a sentimos presente, de tão longe as correspondências atravessam socalcos para alinharem na memória, que pode produzir por si só uma nova ordem recriando-se do caos das intenções, dedicar poemas é por isso um artefacto que não assenta na vertente mais elaborada deste registo, pois que atravessa na dedicatória um esforço para ir em direção a algo ou a alguma coisa ou a alguém, que nos obriga a um desvio e a procurar outro suporte, porventura belo e muito bem escrito, mas, que certamente retirou pelo dirigismo intencional a sua função primeira.

Deixemo-lo, ele fará o seu percurso, muitas das vezes nem o queremos ver, por vezes a sua pegada em nós pode levar-nos à prostração – os alinhamentos sangram – ( Poieses também é um termo biológico para designar as células do sangue) e toda esta atmosfera não se vive como se estivéssemos numa luta de razão-acção- emoção, pode não se passar nada disto, pode apenas seguir-se o trilho, e se tocar num ponto brilhante sabemos da torrente fresca em nosso redor, que nos alivia e aligeira como se a acção tivesse produzido uma vida nova e diante de um primeiro idílio despontássemos. Os sistemas têm contudo a capacidade de se recriarem, ou criar algo bem diferente de si, e ao juntarmos tais “metabolismos” enquanto artesãos entramos sem dúvida num grau de consciência bastante mais aperfeiçoado. Sistemas existem que não possuem limites ou tempos autodefinidos, talvez se multipliquem indiscriminadamente repetindo a mesma fórmula, o que ocorre dizer da doença oncológico que ao não recriar se esgota no seu próprio efeito de repetição, e talvez, numa época tão incrivelmente e mentalmente não “meta-poética” a epidemia mundial seja mesmo o cancro . Um sistema calcinado de circulação fechada que se reproduz sem capacidade moderadora, e, portanto, imprópria para gerar vida nova, vítima de um processo de auto- semelhança onde a única coisa a nascer foi a teoria do caos.

Poiesis significa “fazer” um termo grego, daí o poeta ser o fazedor por excelência. O fazedor é o amador, aquele que se irá transformar pouco a pouco na coisa amada, com o decorrer do tempo o amor bebe-se em cálices onde um cérebro cabe inteiro fazendo conexões transformáveis, e talvez se sinta que amplie e que lá bem por dentro esteja a molécula de Deus de onde todos os poemas nascem. Mas, ele não faz ligações à fronte projectada, mas sim aos que começam imperceptivalmente a tomar-lhe o pulso, e que sabem agora que o poema não nasce assim, e que se há esse encanto, por vezes até escarninho face a essa identidade tão rara, é porque sabem as gentes que sabem bem mais do que podem, ou para si mesmo admitem.

O dom do poema não cita nada, não tem nenhum título, não faz mais histrionices, ele, sobrevém sem que tu o esperes, cortando o fôlego, cortando com a poesia discursiva e sobretudo literária.

Nas próprias cinzas desta genealogia. Não a fénix, não a águia, o ouriço, muito baixo, bem baixo, próximo da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, talvez angélico, temporariamente.

20 Ago 2019

Uma profissão que não precisa de treinar

[dropcap]V[/dropcap]aldemar era baixista profissional “freelancer”, no Rio de Janeiro, casado e com dois filhos. Trabalhava para vários estúdios e acompanhava cantores em shows. Nos tempos de folga, que eram poucos, no boteco do Ademar, entre um chopp e outro, queixava-se que a mulher não entendia o seu trabalho. Não era por questões estéticas ou técnicas, ela não entendia o que é ser-se instrumentista. Arlinda não entendia a sua profissão. Quando a mulher chegava do trabalho, do seu salão de beleza, e encontrava Wal a ouvir música ou a tocar o seu instrumento, imediatamente se queixava dele estar de bobeira, em vez de ajudar em casa. Para Arlinda, trabalhar era quando Val ia para o estúdio ou para os shows e recebia dinheiro. Em casa ninguém lhe pagava, nem para tocar e muito menos para ouvir música. Apesar de Val dizer continuamente que ouvir música era parte do seu trabalho, assim como tocar em casa, que era fundamental, Arlinda não queria saber desse papo furado. Não entendia que grande parte do trabalho de um músico é feito sem receber dinheiro. Treina-se anos para tocar alguns minutos em cima de um palco, umas horas a gravar num estúdio. Arlinda dizia: “Você pode treinar quando estiver no estúdio ou quando passa o som antes dos shows”. Aquilo era tão absurdo para um músico, que Val ficava sem resposta. Era como se alguém dissesse para um nadador de competição “você pode treinar no aquecimento, antes da prova”. Arlinda trabalhava muito, é verdade, e cada minuto do seu trabalho era pago. O treino que ela teve foi antes de começar a trabalhar. Aí, sim, não recebia dinheiro, treinava. Depois, quando começou a trabalhar, primeiro como empregada e depois como patroa, acabaram-se os treinos. Todo o tempo da sua vida era a sério, a facturar. Arlinda não conseguia entender como é que alguém que era profissional, competente a executar a sua profissão, tinha de continuar a treinar. Pior ainda: como é que ouvir música fazia parte do seu trabalho. “Ouvir música é diversão ou vagabundagem, não venha cá com trabalho, quem quer você enganar?” E não adiantava que outros colegas de profissão atestassem com Arlinda, que era assim com todos. “Músico rala mesmo”, diziam, “trabalha a semana toda e recebe ao sábado”.

Se formos a tentar entender o modo de pensar de Arlinda, ela não estava errada de todo. De facto, os músicos deveriam ser pagos para ouvir música, assim como para treinar, o que aliás acontece com aqueles que fazem parte de orquestras, onde o salário que recebem paga as horas de treino diárias que fazem, que são bastante mais do que as que tocam em palco. No seguimento deste modo de pensar, um amigo de boteco metido a filósofo, o Celso, dizia-lhe: “Não é Arlinda que está errada, nem você, Val, o que está errado é o mundo. O mundo quer beleza, mas não imagina o trabalho que a beleza dá. Quer beleza, mas não quer pagar. E sabe por que isto acontece, Val?

Porque se julga que beleza é como mulher bonita, aparece no mundo por obra e graça do Espírito Santo.” Mas Val não entendia bem o seu amigo. O que o preocupava era o estado em que a sua relação com Arlinda estava, pela incompreensão dela com a sua profissão. O problema dele era fácil de equacionar: como é que vai fazer com que a sua mulher perceba que tocar e ouvir música em casa é parte do seu trabalho?

Depois desta última conversa no botequim, Val saiu em viagem com uma banda e passaram-se meses sem que alguém botasse a vista em cima dele. Como se diz no Brasil, o que engorda o boi é o olho do dono. Meses sem dar as caras em casa, para mais com a relação no estado periclitante em que a tinha deixado, quando regressou a Arlinda tinha outro. Val teve de deixar a casa nessa mesma noite.

Quando regressou ao boteco e contou o que lhe tinha acontecido, o metido a filósofo perguntou se o outro era empresário, se tinha um emprego estável, se era um cara de responsa. Val respondeu: “O cara é ator pornô!” Celso deixa escapar a sua estupefacção: “Pô, ator pornô, Val?”

Este respondeu com a indiferença dos condenados, abanando os ombros: “Ué, é profissão que não precisa de treinar.”

20 Ago 2019

Luta entre grilos

[dropcap]O[/dropcap] som intenso produzido pela série de pêlos colocados nas bordas das asas ao roçarem uma na outra dá para perceber estar o macho à procura de atrair uma fêmea. O grilo, insecto omnívoro da ordem Orthoptera da Família Gryllidae conta com cerca de 900 espécies. Em Outubro a fêmea põe c.500 ovos que eclodem em Abril, Maio, e nos primeiros 20 a 25 dias muda a pele por seis vezes, levando cada uma de 3 a 4 dias. Vivem 150 dias, sendo o seu cantar um sinal de boa sorte.

O combate entre grilos foi para os chineses um dos seus divertimentos milenares e se a facilidade de os encontrar no campo permitia ao povo poder usufruir sem custos tal diversão, houve aficcionados entre oficiais governamentais e mesmo na corte imperial que não enjeitavam assistir a esses confrontos e alguns até adquiriram um animal vencedor. Inveterados jogadores, os chineses investiram nesses combates, que num entusiasmo crescente evoluiu para um negócio, fazendo-se apostas a atingir avultadas somas. Assim era preciso arranjar possantes grilos machos e daí aparecerem pessoas especializadas em os capturar nas tocas. Estes não se deixavam facilmente apanhar e só ao fim da tarde e à noite davam com o canto sinal da sua existência. Segundo Leonel Barros, “O grilo campestre é um dos insectos mais vulgares e abundantes na China. O preço de cada animal varia pelo seu tamanho e pela constituição física, podendo portanto, um bom grilo com três centímetros de comprimento, com fortes patas traseiras, vir a custar cerca de setecentas a novecentas patacas. Os menores, isto é, os que não ultrapassam os dois centímetros custam apenas umas cem a cento e vinte patacas, o que já se pode considerar bastante caro, pois o verdadeiro preço para animais desse tamanho, fora da época das apostas é apenas de umas cinco ou seis patacas.” Texto de meados do século XX que, em conjunto com o de Luís Gonzaga Gomes, refere os nomes das variedades dos grilos lutadores: cabeça branca; cabeça amarela; cabeça preta; mandíbulas de caranguejo; fios de seda; antenas prateadas; e mancha de flor de ameixoeira conhecido por Mui-fá-tim.

“Os grilos apanhados nas tocas de escolopendras ou serpentes, também em hibernação, são os mais combativos e difíceis de apanhar, razão por que os insectos apanhados nestas circunstâncias são vendidos por elevados preços, que chegam a ser cinco vezes superiores ao valor dos grilos capturados nos campos de cultura”, segundo Leonel Barros, que adita, “Nas ilhas da Taipa e Coloane encontram-se alguns grilos que servem para os combates. No entanto, os mais apreciados são aqueles que vêm da China e, para os trazer existem pessoas especializadas.” Para os grilos entrarem em Macau era necessário pagar uma taxa de importação e por isso eram eles transportados ilegalmente dentro de “tubos de bambu em cujo interior existem algumas folhas verdes e bagos de alpista”, escondidos nas bagagens. “Só que as mais das vezes, tal intenção não é aceite pelo transportado: segundo consta, os grilos vêm muito caladinhos nos tubos de bambu e, como se possuíssem um sexto sentido começam a fazer barulho junto à alfândega… Daí que muitos sejam transportados de barco, para evitar aborrecimentos.”

O valor de um grilo campeão, um Mui-fá-tim era de uma fortuna, pois rendia muito dinheiro ao seu proprietário “sendo o mais estimado e mais valioso, o bicho cujo chiar for mais ruidoso e estrídulo” e em Macau, os melhores exemplares “eram disputados principalmente entre os membros das riquíssimas famílias Siu, Lei e Kuan desta cidade.”
Tratados como ídolos, os grilos “viviam em verdadeiros hotéis de luxo (luxuosos potes de barro vidrado), com todas as mordomias. Alimentavam-nos de duas espécies de peixe, gorgulhos especiais, castanha ou arroz cozido e mel para os avigorentar. Quando se encontram atacados de indigestão, uma dose regular de larvas vermelhas, os hong-tch’ong, põe-nos outra vez lestos. Se estão constipados, pequena porção de mosquitos, curam-nos logo; se andam febris, são restabelecidos com rebentos da ervilheira selvagem, e se a respiração se lhes torna difícil, administram-se-lhes borboletas de bambu. Além desses cuidados materiais, o macho necessita de ser visitado por uma companheira todas as noites, não lhe sendo, porém, permitido prolongar essa visita por mais de duas horas”, segundo LGG

Os combates

Sendo Macau no início do século XX célebre pela luta de grilos, em Agosto as inúmeras hospedarias e hotéis enchiam-se de vendedores desses insectos e de entusiastas que chegavam como apostadores.

Em dias previamente fixados, aberto ao público realizavam-se os combates em locais como o Hotel Central e o Hotel Ung Chao (situado primeiro na Rua do Bocage e depois na Rua das Lorchas), bem como em algumas residências particulares de chineses como na Rua dos Cules, na Travessa dos Anjos e na Calçada do Gamboa.

Uma multidão enchia o espaço para assistir aos combates, iniciados pela escolha dos grilos que se vão gladiar através do peso, da sua força e do tamanho. A partir daí fazem-se as apostas, que nunca eram com dinheiro a pronto, havendo apenas duas espécies de paradas, as de porco assado (kâm-tchü ou Siu Chi 金猪), que podiam ser de $300, $150 ou de $100, conforme prévio ajuste e a do péang (饼, bolo chinês), de menor valor. As apostas eram feitas por contratos sob palavra ou lavravam-se promissórias e “Feita a jogada, nenhuma das partes podia voltar com a palavra atrás e as paradas elevavam-se frequentemente a mais de dez porcos assados ou seja, a uns poucos de milhares de patacas.”

Colocados os grilos num vaso circular a servir de arena, os donos com um pincel de pêlo de bigode de rato esfregavam as costas do seu insecto acicatando-os, levando ao início de um combate cujo desenlace era decidido, ou pelo desmembramento de um dos animais, ou pela recusa e fuga de um dos grilos.

Segundo Luís Gonzaga Gomes, “O proprietário do local ou do exclusivista recebia 20% e os donos dos grilos vencedores numa cerimónia solene com um galhardete encarnado, tendo inscritos caracteres laudatórios ao grilo campeão. Forma-se, em seguida, um cortejo para fazer regressar o grilo à casa do proprietário, indo à frente um criado empunhando com donaire o galhardete e durante o trajecto lançam-se petardos, com o fim de atrair a multidão dos curiosos.”

“Quando morriam, os grilos vitoriosos eram metidos em pequenos recipientes, do tamanho de uma caixa de fósforos, e enterrados com grande pompa”, segundo Leonel Barros que termina dizendo haver em Macau “cerca de vinte equipas que participam todos os anos nos combates de grilos, organizando mesmo competições internacionais com equipas de Hong Kong, onde se disputam e distribuem medalhas de ouro aos vencedores.”

Estas lutas ocorreram entre a segunda metade do século XIX e a primeira do seguinte. Desde então decaíram e agora deixaram de se fazer.

19 Ago 2019

A grande dama do chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]S[/dropcap]ó a luz da Lua iluminava o Cais 16, onde Potapoff se destacava a dar ordens aos vários homens, vestidos com cabaias de ganga escura, que carregavam caixas para uma camioneta. Fora isso, só algumas luzes trémulas vinham de alguns barcos fundeados no Porto Interior. Naquele silêncio total, todos sabiam que estavam a ser espiados. Mas tinham de esperar que algo acontecesse. Se é que isso ia acontecer. Do junco que chegara essa noite a Macau, as caixas tinham sido transportadas para o cais em várias sampanas. Cândido e Jin estavam sentados num automóvel que estacionara próximo e observavam o que se passava. Estavam com atenção a ruídos estranhos que pudessem pôr em causa a falsa calma que os cercava. Os japoneses estava, por certo, a observar a descarga. E, depois, haveriam de seguir a carrinha para saber onde era o armazém onde ficaria escondido o metal precioso que acabara de chegar.

Potapoff, que ostentava na cintura um coldre com uma Luger, tinha arquitectado um plano para prevenir um eventual ataque dos japoneses e dos seus aliados. Colocara próximo vários homens armados, distribuídos por diferentes grupos, que poderiam intervir se necessário. Quer Jin, quer Potapoff, não tinham tido receio que o que efectivamente transportavam, lingotes de cem taéis de prata, fosse um isco agradável. Era um risco calculado. Quando a carrinha partiu, o motorista do carro de Jin e Cândido esperarou um pouco, antes de o seguir a alguma distância. Repararam que um outro carro, com as luzes apagadas, ia atrás do de Potapoff. Cândido quebrou o silêncio:

– Serão eles?

Jin sorriu:

– Tens alguma dúvida?

Cândido não respondeu. Sentia-se estranhamente nervoso. Isso só lhe sucedia quando, no Inverno, Macau ou Xangai eram atingidos por ventos erráticos e tufões devastadores. Aí sentia medo. O carro foi percorrendo algumas ruas apenas iluminadas por lanternas vermelhas, rumo a uma zona onde havia algumas fábricas de fósforos e pirotecnia. O armazém onde Patapoff ia descarregar as caixas ficava na longa Rua da Praia do Manduco. Quando chegaram perto, o condutor do automóvel onde seguiam Jin e Cândido parou. Ficaram a observar. Dali viam os carregadores a levarem as caixas para dentro do armazém. Os japoneses deveriam estar escondidos perto, a seguir com atenção os acontecimentos. Não atacariam naquela noite. Jin, que estava encostada a Cândido, agarrou no braço deste e disse:

– Nestes momentos agradeço sempre ao Céu. O Céu tem olhos. Ninguém poderia hoje segurar-nos, porque voamos como o vento da noite e os japoneses têm os pés pesados. Espero que tenham olhado com atenção e ficado com a ideia de que somos débeis e distraídos. Assim o nosso poder pode ter sido diminuído na sua imaginação.

Cândido pensava noutra coisa. Um polícia sikh, das tropas inglesas, que tinha conhecido em Xangai dissera-lhe, uma noite, que no medo não há lugar para sabedoria. Ninguém poderia ser sábio ao mesmo tempo que tinha medo. Ninguém poderia ter medo e ser, ao mesmo tempo, sábio. E ele sentira medo nessa noite. Esperaram até que Potapoff voltasse para a camioneta e esta partisse. Depois o condutor deu meia-volta e transportou Jin e Cândido até à casa dele.

Passadas algumas horas, Cândido olhou para o corpo nu de Jin. Ela estava descontraída e dormia na sua cama. Estava vulnerável, algo impensável numa mulher como ela, que deveria estar sempre atenta. Para estar assim, deveria confiar nele. Porque, se ele estivesse a fazer um jogo duplo, a favor dos japoneses, poderia matá-la ali, sem que ela se pudesse defender. Foi até à janela e, depois de a abrir, acendeu um cigarro e ficou ali a olhar para a escuridão. Muitas vezes gostava de estar ali, a apreciar o silêncio. E a pensar. Lembrou-se de uma frase do padre Afonso:

– O que não se diz não existe. Precisamos de falar sobre tudo. É uma pena que o silêncio vá desaparecendo, tal como a escuridão. Temos de ter sempre ruído e luz. Desde a Idade Média que o silêncio tem vindo a desaparecer. Poucas vezes estamos sós e estamos sempre cercados de ruídos. O silêncio é uma coisa rara. Nas cidades, cheias de luzes, a escuridão é um luxo. Por isso procurei-o. E encontrei-o. Só nos mosteiros a regra da convivência se baseia no silêncio. Os orientais também sabem isso. Apesar das diferenças, são tão puros como nós.

As palavras do padre ecoaram mais fortes naquele momento em que não escutava qualquer ruído. Era verdade: tudo o que de importante se faz, faz-se em silêncio. Falar é transformar grandes verdades em coisas demasiado simples. O padre dissera-lhe ainda:

– Como sabes, o homem que é sábio não fala. Equilibra o que ouve e cala. Medita sobre a complexidade das coisas e a falsidade das aparências. Tudo o que é importante forja-se em silêncio. No silêncio surgem os ecos da verdade. Nada é mais poderoso do que o silêncio.

Ouviu um galo cantar. O dia não estava longe de despertar. Pareceu ouvir a voz de uma cantora de jazz com quem tocara em Xangai:

“Sentiste os cabelos dela roçarem per ti
Quando a Lua desapareceu de vista”

Apeteceu-lhe ir buscar o saxofone e ficar ali a tocar, até que os sinos despertassem a cidade. Sentiu-se um pouco nostálgico. As cidades como Xangai tinham cada vez menos segredos, porque a luz eléctrica tinha banido muitos dos segredos da noite. Ao contrário de Macau. Aqui, entre as avenidas ainda havia um labirinto de passagens, becos e ruelas apertadas, entre casas misteriosas. Ali poderia nascer o sol mil vezes e quem se escondesse continuaria sem ser visto.

Muitas talvez tivessem passagens secretas que ligavam casas de seitas e grupos maçónicos que nunca tinham deixado de ter uma palavra a dizer na vida de Macau. Viviam-se tempos em que ninguém já sabia quem era o inimigo, ou onde estava, ou porque era o inimigo, ou quando atacaria. Estavam todos vulneráveis. Não era apenas Jin. Ou ele.

Nesse momento sentiu o corpo de Jin encostado ao seu.

– Não consegues dormir?
– Não. Estava a pensar. Baixei até ao círculo do Inferno e agora sei coisas que turvam a paz dos outros. Mas, cuidado, o Inferno está a subir para os níveis onde todos os outros estão.

Ela fez um sorriso e encostou-se mais a ele. Cândido novamente o desejo a conquistar-lhe o corpo. Jin disse:

– Não penses nisso. Concentra-te no que fazeres. Na forma como tocas. Gosto de te ouvir tocar.

Foi por isso que me apaixonei por ti. Ao ouvir-te tocar saxofone, e os sons que saem dele, percebi que o belo e o Bem são a mesma coisa.

– Achas mesmo isso?
– Sinto-o. Da mesma forma que sei que os portugueses são ternamente ingénuos. Acreditam que escapam sempre aos problemas maiores. Mas uma salvação imposta nunca pode ser mais do que transitória. Todos estamos em perigo, não achas?

Cândido levantou-se e beijou-a nos lábios.

– E se esquecêssemos, por alguns minutos, o perigo?

Os olhos de Jin fecharam-se. E foi nesse momento que se começaram a ouvir os sinos que, aquela hora, despertavam Macau.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

16 Ago 2019

Dos hábitos

[dropcap]O[/dropcap] meu avô materno morreu com cerca de noventa anos. Gabou-se durante largas décadas de nunca ter ido ao médico e de nunca ter tomado um comprimido. Quando lhe apareceram cataratas nos olhos, não deu grande atenção à coisa, até ficar cego de um deles.

Deixou-se relutantemente operar ao outro olho para logo se lamentar de não ter operado ambos. Quando o ia visitar, vendo ele já muito mal, acenava-lhe de longe e gritava-lhe
vende-me um desses borregos, o mais gordinho?
para ele responder, irritado com o despeito dos citadinos

não estão para venda!

Detestava médicos, hospitais e tudo quanto na cidade por motivos vários o afastasse do campo e dos seus afazeres.

Tinha outra característica peculiar: fazer sexo todos os dias; coisa que, a determinada altura da sua provecta idade, a minha avó deixou de achar piada. Criando a necessidade o engenho, o meu avô passou a dizer à minha avó, sempre que iam para o quarto, à noite

Maria, é a última…

E, durante quase vinte anos, todos as noites foi a última.

Numa dessas noites, a minha avó, tentando de algum modo fugir ao prazer que para ela se tornara um suplício, caiu da cama. Fracturou o fémur. Escusado será dizer que a minha avó tinha tanto apreço por hospitais e cidades quanto o meu avô. Nisso, coincidiam em uníssono.

Magríssima e picuinhas com a comida, enquanto esteve no hospital comeu apenas as bolachas Maria que a minha mãe lhe levava. Era para ter estado três meses mas ao fim de mês e meio estava pronta para ir para casa. Ao que parece, não tinha sinal da osteoporose que costuma afligir as mulheres a partir de uma certa idade.

A minha mãe ofereceu-se para a ir buscar ao hospital e levá-la para casa. Ao contrário da satisfação que esperava ver na sua cara com a ideia de ir para casa, a minha avó, cochichando, perguntou-lhe

não posso ficar uma semaninha ou duas mais?

A minha mãe, estupefacta

mas mãe, porquê?

E a minha avó

ai filha, nunca estive tão descansada…

A minha avó, que nunca tirou férias (o campo não tira férias, filha, respondia, quando a minha mãe lhe perguntava porque não tiravam uns dias para passear), descobrira na inesperada hospitalização um sossego que nunca conhecera ou de que não se lembrava. Provavelmente, o mais parecido que teve a vida toda com férias. Não pôde ficar essa semana adicional. Não disse uma palavra durante a viagem. O meu avô, sempre todo emoção, recebeu-a em lágrimas.

Ainda hoje penso no que ele terá feito enquanto a minha avó esteve fora.

16 Ago 2019

O paradoxo sorites

[dropcap]S[/dropcap]e uma multidão de gente for subtraída de uma pessoa, quando é que deixa de ser uma multidão parar passar a ser um conjunto de pessoas, algumas pessoas, poucas pessoas, etc. Hoje estive numa praia onde estive quando tinha seis anos. Uma família a sul.

Alguém atira uma bola ao rio. A corrente leva a bola a uma velocidade estonteante. Era a mãe, o pai e o mano, sobrevivente a uma doença mortal. A bola é levada para a foz. Mal podia eu saber que era uma metáfora viva da vida. E estamos a ir todos na corrente do rio para o mar. Esta mesma praia é onde estou. Não está lá ninguém que eu conheça. Há o mesmo bar de praia de que me lembro. Era só madeira outrora. A madeira apodreceu. Hoje, é uma coisa moderna com pessoas que não sabem da bola nem do rio. O rio é sempre diferente. Quando a maré sobe, quando faz frio, quando chove, quando faz sol. O rio vai para o mar. É por isso que nasce. É para ir ter com o Atlântico. E esta multidão é o quê?

Os antigos cépticos tinham vários paradoxos. Quanto se perde de cabelo para se ser considerado careca? Quantos grãos de areia fazem uma praia?

Há uma multidão sem uma pessoa. Quantas pessoas fazem uma multidão? Quantas pessoas estão ausentes para se dizer que a praia está vazia? Nós estamos lá a olhar para a praia, quando é inverno e não há ninguém, só o nosso ponto de vista.

Mas há também uma multidão sem ti. Nada compensa a tua ausência. Nada. Olho para a praia cheia de gente e não estás lá, nem a bola, nem a maré a vazar em direcção ao rio.

Pediste-me que te espalhasse as cinzas onde olhavas o horizonte. Ainda não o fiz. Estás aqui connosco, mãe e eu. o que é uma multidão de gente sem ti?

Só eu dou por isso.

Há uma multidão sem uma pessoa que continua uma multidão mas é a abominação da desolação. Só tu enchias a praia. A praia vista sem ti e praia vista contigo é completamente diferente. Não há praia sem uma pessoa. A praia sem ti é uma lente sem objecto.

E quando a praia está no inverno estar e não estar, aparecer e desparecer é diferente de tudo. A vivência sem prendimento e com a entrega que a infância representava a vida que estava para ser e que foi. Agora não se está bem lá sem se perguntar se é ou não a última vez. A primeira até à última vez da visita é sempre só nós lá, num só sítio, até que nós a encerramos e fechamos para sempre.

Uma praia sem ti é diferente de uma praia contigo. Agora, estás lá, com todos os teus jornais, todos os teus dias, os almoços, a política, os amigos que também se foram, os teus filhos que estão velhos.

Há uma família que vai a uma praia pela primeira de todas as vezes da tua vida. A bola chutada vai para o rio, o rio leva-a para o Atlântico. Ninguém a salva. Ninguém nos salva.

O rio é diferente sempre todos os dias, maré que enche e maré que vaza.
Onde estás?
Quantas pessoas saem para fazer uma praia vazia?

Olho para todos os grãos de areia, para todas as gotas do rio que é diferente à superfície e no seu fundo. Não te encontro. Não vives já, mas continuas a existir, moreno, a beber vinho tinto, a falar política, a ter misericórdia pelos pobres.

Encontrava-te sempre sentado, a escutar rádio, a ler o jornal.
Encontro-te ainda sempre, porque não sairás de mim nunca.

16 Ago 2019

Catch, o Trumputin e o kitsch histórico

[dropcap]M[/dropcap]al abriu em Junho passado a cimeira do G20 em Osaka, logo Trump apareceu, no seu jeito de incontido prestidigitador, a pedir a Putin para não interferir nas eleições americanas de 2020. Um teatro assim, produzido debaixo da mesa dos matraquilhos, tem o humor ao nível dos irmãos metralha. Até porque toda a gente já aprendeu a reconhecer os desviços penianos do marionetista nos acenos da marioneta. O tosco domínio da imaginação faz lembrar aquele delicioso texto de Barthes sobre o facto de o catch (texto que em 1957 abria Mythologies; wrestling na tradução inglesa) não ser um desporto, mas antes um espectáculo.

Tal como o strip-tease, que sugere o apimentado palpite do sexo sem o ser, o wrestling sugere a avidez do desporto embora não passe de uma táctica espectacular ao serviço de um (tão perverso quanto) tácito empate. Aqui a manobra é a mesma: falar como se estivéssemos à mesa do café ou no FB a exercitar a imbecilidade natural, mas com o objectivo de dissuadir a ferida, de sacudir a mouche e de ludibriar as borbulhas às tabuadas.

Quando eu era criança, qualquer futuro era melhor do que tudo aquilo que se passava à minha volta. Logo que a revolução cruzou o país, o futuro parecia querer emergir das pedras da calçada como uma corça que não sabe bem em que direcção correr. Mais tarde, chegou o tempo dos cartazes que diziam – aliás gritavam – “Europa Connosco” e o futuro começou a cheirar a croissants, a rendimento mínimo mas também às enviesadas cartilhas do FMI. Nos alvores da década de oitenta, o futuro soube ainda sorrir por cima da agonia comunista e olhou com desusada esperança para a rosácea do federalismo.

Quando a última década do século passado se encontrou com o 11 de Setembro, o futuro libertou um cheiro amargo a paiol. Mas nada que fizesse temer um bom mortal lusitano, sobretudo se tivesse escutado a virilidade do Padre António Vieira a pregar que “uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal” (Sermão da Sexagésima, IX), adágio que prenunciou o afundamento (ou a crise, se se preferir) dos idos de 2008 a 2011.

Fosse como fosse, apesar dos Obamas, das utopias federalistas com que Kant tanto sonhou e do coração de ouro de Steve Jobs, o boom das tecnologias não foi capaz de acossar nacionalismos, migrações humilhadas e hackers qb. e foi por isso que o final da segunda década deste século acabou por trazer consigo, entre muitos outras, as encenações Trump, Brexit e Bolsonaro. Um verdadeiro tufão que teve – e continua a ter – como base um enorme fastio e o esgotamento das soluções políticas clássicas. Poucos conseguirão definir com clareza o tempo que estamos a viver – o sorriso de Xi Jinping parece levitar sobre essa perdição – e muitos chegam a arder nas palavras com que o tentam. Ou, dito de outro modo bem mais avisado, pois um padre impõe sempre o seu respeitinho – “O definir-se foi declarar a sua essência: o arder foi provar a definição” (Sermão do Mandato).

Quando há dias ouvi Trump a pedir a Putin para não se meter (onde já se meteu e atascou até ao pescoço), ocorreram-me aqueles cenários caóticos que, ao fim e ao cabo, fazem parte de um mundo arrumadinho (em que as regras entre senhorio e inquilinos estão escritas em contrato bem escondido num cofre sem quaisquer segredos). Desde os anos oitenta que retenho o que Kundera escreveu acerca do kitsch em A Insustentável Leveza do Ser (1984). Há coisas que a memória guarda, outras não. O primeiro de Maio soviético ou a música de fundo de um restaurante de luxo (suíço) eram exemplos romanescos que o autor dava para explicar essas simetrias açucaradas, onde tudo aparecia arrumadinho apenas na fachada: sem pó e sem grandes distracções.

O pior é se, um dia, este tipo de catch ou de wrestling, que é o trampolim do verdadeiro e perigoso kitsch, se transforma em pólvora e a desarrumação no Golfo Pérsico vence os tapumes, as paredes de água e as frases sensaboronas. Com as devidas diferenças, há qualquer coisa na boçalidade de Trump que evoca a tibiez de Arthur Chamberlain, recém-chegado de Munique em Setembro de 1938, quando levantava no ar o papel de um (ilusório) tratado de paz. Já Nietzsche avisara, em Para Além de Bem e Mal (1886, §262) que os “incuráveis medíocres” aparecem e subsistem aos “pontos de viragem da história” enquanto – compreenda-se a “ironia” – porta-vozes da “única moral que poderia ainda ter algum sentido”.

Esta prática de catch ou de wrestling é perigosa. Se é verdade que todas as actividades humanas, ao perderem a sua função mais imediata, se podem transformar em jogo, caso do uso da linguagem, da guerra, da caça ou do amor, não é menos verdade que um jogo não se força ou simula por muito tempo, pois, ao fim e ao cabo, depende sempre de regras muito claras e não da ventilação assistida aos irmãos metralha.

15 Ago 2019

O Brexit e a geofagia

[dropcap]U[/dropcap]ma crónica é uma Bola de Berlim, às vezes tem creme, outras não. Na Ilha do Farol o vendedor, trajado de branco como um enfermeiro, fazia ecoar praia fora o seu pregão: Bolinhas, Bolinhas!

Uma Bola de Berlim – com creme (é a gadelha) – parece o Boris Johnson, aquela que caiu na areia depois de alguém ter gritado Tubarão e o pânico assarapantar os veraneantes. Quando os mais atrevidos voltaram, um puto ranhoso topou a bola, felicitou-se e apanhou-a, devorando-a. Melhor: absorto pela sua sorte era-lhe indiferente que a areia se misturasse, ou antes, se sobrepusesse ao açúcar. Bola de Berlim crocante.

Averiguo no Google, que males causará ingerir areia, e descubro esta reportagem da moçambicana Anchieta Maquitela, de 2014, que pico pelo inédito e por justificar o ar prazenteiro do puto ranhoso:

«O consumo de areia virou moda em Maputo. As pessoas consomem areia na via pública, no interior dos “chapas” (…) a indústria de venda e consumo de areia está a ganhar terreno na província e cidade de Maputo (sic). Nas ruas, nas paragens e em frente das escolas, é comum a presença dos funis de papel branco cheios de areia.

Se antes comer areia era hábito entre as mulheres grávidas, para remediar a falta de ferro, agora virou moda e até homens consomem a areia.

Há três anos que Sitoe, por dia, acaba três a quatro funis: “No princípio, tive dificuldades, doía-me o estômago, tinha dificuldades de defecar, mas já estou viciado”. Por sua vez, para Alice Das Dores o vício começou aos 15 anos, tendo agora 22: “Esta areia tem um sabor incrível. Não sacia, mas traz um conforto à alma quando o desejo bate.”.

Diz Angélica Sitoe, 44 anos, vendedeira de lençóis no mercado Xipamanine: “A areia não tem gosto. Consumo por capricho”. Para Angélica, o que incentiva os jovens é o baixo preço, “Por mais que queira resistir não consigo. Sempre caio na tentação”.

A areia é extraída em Marracuene, a 30 quilómetros da capital. As mulheres pilam, seleccionam, põem nas bacias e vendem-na ao preço de 50 meticais. A seguir é submetida a um processo de transformação que passa pela adição de sal, incluindo a cozedura que dura entre duas e três horas. Logo a areia é peneirada para retirar a mais grossa. Para dar gosto, coloca-se sal de cozinha e segundo algumas fontes, sabão ou detergentes.»

Nunca dei conta, mas amanhã começam as aulas: vou perguntar aos meus alunos. E percebo melhor a alegria do puto e porque votaram os conservadores britânicos em Boris Johnson.
Continua a reportagem:

«No mercado, as vendedeiras de areia colocam o produto em recipientes abertos e manipulam-na sem luvas.

Teresa Francisco, mãe de dois filhos, vende areia no mercado  Xipamanine, arredores da capital: “É vantajoso comercializar areia porque é rentável, não apodrece, os ratos não consomem, e muito menos as crianças em casa”, explica.»

Confesso que este trecho me desconcerta. Se está na moda, não percebo a falta de sentido de oportunidade das crianças (serão abúlicas?) e como a Teresa Francisco não ocorre a poupança em tomates e feijão se as habituasse a consumi-la. Retomemos:

«Por sua vez, Rosa Moiane também vendedeira do mercado Xipamanine e mãe de dois filhos disse que faz este negócio desde 2011, e que com o dinheiro que ganha com a venda de areia sustenta os seus filhos e ajuda o seu marido que é guarda-nocturno e não recebe quase nada.

Contudo, Rosa reclama do aumento no custo do transporte e do número crescente de vendedeiras de areia na cidade.

“Dizem que este negócio mata e que devemos procurar fazer outros mas já experimentei vender tomate e cebola, e não deu certo”, concluiu.»

E, agora, a reportagem permite-nos aprender, pelo menos a mim, que nunca me tinha debruçado sobre estas práticas:

«A geofagia (comer terra) é uma prática culturalmente sancionada, e portanto não é considerada um distúrbio”.

Está documentado desde a pré-história, e a época dos faraós do Egipto. É um hábito com muitas variantes em sua prática e com diversos significados: nutricionais, psicológicos/psiquiátricos, terapêuticos, antropológicos, místico/religiosos e antropológicos.

“Na selva amazónica, por exemplo, por não ser fácil conseguir-se sal, grupos indígenas realizavam uma peregrinação anual em busca da terra salgada. No Peru e Escandinávia a argila é material comestível. Em algumas regiões de África a prática da geofagia está associada à crença de que durante o primeiro trimestre da gestação diminui as náuseas e estimula a secreção láctea quando o bebé nascer”, lê-se no documento.

A causa básica da geofagia é desconhecida, sendo que a deficiência de ferro no consumidor é a mais divulgada. Outros estudos relacionam a geofagia com a deficiência de zinco ou com as deficiências nutricionais múltiplas.

O problema coloca-se quando as pessoas consomem terra como se fosse moda, sem prestar atenção às condições nada higiénicas do processo de preparação.»

E, pronto, fim de citação, e afinal o Boris Johnson – que pelo contrário tem visíveis hábitos de higiene e daí a sua franja tão loura como o creme da mais estival Bola de Berlim – sempre teve razão: há saída para o Brexit e finalmente as praias do Reino Unido vão ser um sucesso digno de lambões.

O género humano consegue invariavelmente colocar-se um passo adiante das malditas circunstâncias, e eu, como um George Orwell de segunda, hei-de fazer o relato dessas comezainas dos súbditos de Sua Majestade.

Confesso até que estou disposto a propor a Boris um ”piqueno” negócio: cones de língua da sogra, com areia de Brighton tratada – polvilhada de sal, dentes de alho e salsa picados e uma colher de molho de soja. Embora sem descurar a vigilância quanto à restituição dos direitos aos meus amigos moçambicanos, pois, por muito que custe ao novel primeiro-ministro, esta solução não foi dele.

15 Ago 2019

À deriva e sem motor

[dropcap]À[/dropcap] deriva e sem motor” é como, nas notícias, descrevem o barco resgatado pela polícia marítima portuguesa ao largo de Lesbos (Grécia) estes dias. De cinquenta migrantes, metade são crianças. Pergunto-me se ainda se recordam de quando eram apenas pessoas.

A maioria das mulheres são afegãs. Não raras vezes, os maridos ficam para trás e enviam esposas e crianças primeiro. Os milhares de euros necessários para esta viagem deveriam garantir coletes salva-vidas e barcos de qualidade. Porém, os migrantes são apenas fontes de rendimento para facilitadores que recebem o seu quinhão sempre, independentemente de quem chega ou não vivo, ou onde. Normalmente, é escolhido um homem ao acaso para comandar cada barco. São-lhes dadas instruções e luzes que devem seguir. Cabem sempre mais do que deveriam, nos barcos, no mar, no campo. Entre noites frias e dias quentes, lutas entre afegãos, iranianos e africanos, nem o campo pode ser considerado seguro. O racismo existe também aqui. E o suicídio.

A esperança de sair do campo e chegar à última fase, a do país longínquo com o qual se sonha, no qual pensam poder tornar-se cidadãos, é o que mantém estas pessoas vivas. No entanto, nenhum voluntário se atreve a dizer-lhes que, muitas vezes, nesses países, ninguém quer recebê-los. De outro modo, o que lhes restaria?

Não nos vemos há muito tempo. Diz-me que se despediu no dia anterior. Dou-lhe os parabéns. Poderia dizer que me surpreende ouvir falar do seu próximo destino, mas não realmente. Fala-me da formação que teve recentemente na Estónia e sobre o que vai fazer durante seis meses no Uganda. Sentirão todos os alemães esta culpa, esta necessidade de compensar pelo passado do seu país? Qual é realmente a diferença entre campos de concentração e campos de refugiados?

Conversamos sobre as duas semanas a colaborar com uma ONG que providencia uma refeição quente, banhos, roupa interior limpa a mulheres e crianças refugiadas. Rapazes até aos dez anos, também. Fazem-se tantas viagens quanto possível logisticamente, em carrinhas de nove lugares, do campo para o edifício da organização.

Por vezes há risos e dança. A expressão inglesa mais popular, a forma de tratamento predilecta é Ma friend. Trocam-se histórias e costumes. Muitas destas esposas casaram aos quinze anos.

Avaliam-se maridos pelo número de filhos. Espanta-as que algumas das voluntárias, tendo passado os trinta e cinco, não tenham nem uma coisa nem outra. A minha amiga é loira de olhos azuis, fisicamente bem diferente de Carola Rakete. E o que importa isso? Há activistas mais focados na cor de pele de quem, reconhecendo o quão boa a sua vida é, decide abdicar de parte dela para ajudar os outros. Quem é salvo/ajudado, não quer saber de cores. Essas questões ficam para quem tem tempo a perder.

O turismo em Lesbos escasseia mas é ainda desesperadamente necessário, numa altura em que consciência cívica e lazer parecem dois pólos opostos. A praia ainda é paradisíaca. Nela, podemos fazer o mesmo que em quase qualquer outra. Lesbos só não se terá tornado uma Chernobyl, provavelmente, porque os campos de refugiados ficam longe da praia, de outro modo não teríamos já influencers de smartphone em riste, tirando selfies sobre um fundo de burcas e olhares tristes? Não duvido que esse dia chegue, em que lugares destes, já desabitados, se tornarão cenários de campanhas de moda, de anúncios, de vlogs. E como fica quem nasceu e cresceu em Lesbos? Ainda se lembrarão de quando a ilha era conhecida por Sapho?

“Durante três anos confiei no mar para me levar à segurança. Porém o mar traiu-me”, desabafa um residente do campo Moria, considerado o pior do mundo, à BBC, de lágrimas nos olhos. A seu lado, a menina de olhar impávido tem agora a cabeça na mesa e as mãos juntas. Estar no campo não significa ter paz mas sim alopecia, envelhecimento precoce, doenças de pele e respiratórias.

Uma das mulheres entrevistadas declara que ela e as suas crianças estão sempre preparadas para fugir a qualquer momento. Ficamos a saber que é preciso ir para a fila do pequeno-almoço às 3 da manhã, e à hora a que regressam à sua tenda, já é hora de almoço.

Duas horas é quanto estas pessoas têm, na sede da Shower Power, para trocar por um momento a sua vida actual por higiene, privacidade, água limpa, champô, roupas lavadas e cheirosas, enquanto alguém lhes toma conta das crianças e brinca com elas, faz tricô, lhes pinta as unhas ou entrança o cabelo. Duas horas para poder voltar a ser só uma pessoa, quem sabe das que cantam no chuveiro.

Entretanto, mais dois barcos sofreram um naufrágio na costa da Líbia: 70 mortos e 100 desaparecidos, no mínimo. Nem países nem ilhas nem campos parecem poder conter tantas vidas quantas as que os mares vão engolindo e velando. A ONU considera esta a pior tragédia até então. Mas quantas vidas mais se perderam, se perderão entretanto, nas notícias que nunca conseguiremos actualizar? As pessoas continuam a ser a derradeira fronteira umas das outras.
Enviado da minha vida privilegiada e segura.

15 Ago 2019

A infelicidade como uma das belas artes

[dropcap]T[/dropcap]inha-me prometido, a bem dos leitores e da minha própria saúde, fazer uma pausa nas crónicas menos luminosas e existenciais. Mas o universo encarrega-se de não nos deixar fugir ao que somos. Assim foi, e neste caso da pior maneira: perdemos David Berman, poeta e um dos maiores escritores de canções das últimas três décadas. Para mim e para muitos terá sido como perder um amigo próximo. Ainda mais porque todos andávamos maravilhados com o seu regresso, após uma década de ausência. O álbum Purple Mountains (do colectivo com o mesmo nome, veículo musical para as palavras de Berman) é uma obra-prima. Negra e luzidia, é certo; mas um regresso extraordinário, as marcas do antigo fundador dos Silver Jews a brilharem no fundo do mar. Só que a questão era essa: era para o fundo que Berman sempre quis que olhássemos.

Estupidamente ou não, entre os vários lamentos e extraordinários tributos que fizeram ao homem, não me saía da cabeça a história de Steven Bradbury. Para quem não conhece, eu conto: Bradbury foi um patinador no gelo, na modalidade de velocidade em pista curta, que venceu da forma mais improvável a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002. Depois de várias eliminatórias em que conseguiu ir sendo apurado de forma medíocre ou por desqualificação de concorrentes, Bradbury chegou à final – e vence-a porque os outros patinadores se envolveram numa queda colectiva, restando-lhe deslizar de forma serena até à meta.

Durante alguns dias lutei comigo próprio para tentar descobrir a razão desta imagem recorrente mas aparentemente tão distante do que estava a sentir. Percebi quando comecei a revisitar, de forma mais calma, a obra de Berman. Desde o princípio que as suas canções são sobre os patinadores que caíram naquela elipse gelada e sobre quem vence daquela maneira. Berman escrevia sobre a vida do ponto de vista do perdedor e sempre com a consciência de que mesmo quando se vence, é o acaso que é a lei. Sim, sim: Random Rules, uma das mais famosas canções dos Silver Jews.

Na minha opinião, Berman conta-se entre os grandes cronistas da infelicidade, uma arte nobre e difícil. Não o ser infeliz, nem a tristeza – isso são temas que atravessam desde há muito a música popular, de Hart a Porter, a Cohen ou Curtis. O que Berman descrevia era a própria infelicidade, algo diferente e mais profundo; e como outros grandes chegava a rir-se dela. Um pouco como o risus purus de Beckett ou o optimismo desesperado que Francis Bacon dizia colocar nas suas telas. Uma constatação da miséria mas também um humor de condenado na masmorra. Os versos de Berman são altamente citáveis e precisaria de duas crónicas para poder esgotar os melhores. Isso dá-lhe uma capacidade aforística que não é só mera catarse: é trabalho, vontade de criar a linha perfeita. Numa vida atormentada por dependências, abandonos amorosos, má relação com o pai e uma terrível depressão, era capaz de escrever coisas como “In 1984 I was hospitalized for approaching perfection”, o verso de abertura do já citado Random Rules.

Neste disco a luz negra foi mais longe enquanto que, por contraste, a estrutura musical e produção são mais acessíveis e complexas. As canções são demasiado perto do osso, sabemo-lo sempre. E mesmo assim cantamos com gosto o refrão contagioso que diz “All my happiness is gone”.

A morte de Berman tornou este Purple Mountains o mais belo dos testamentos musicais, só comparável ao último disco de Leonard Cohen. Mas haverá sempre a nuvem terrível do absurdo da vida e o desespero de um homem que depois de regressar resolve deixar este mundo. “The dead know what they’re doing when they leave this world behind”, assegura-nos no belíssimo Nights That Won’t Happen. Pois sim, mas quem me dera que isso servisse de consolo, David. Quem me dera.

14 Ago 2019

Boca de Incêncio

Santa Bárbara, Lisboa, 10 Agosto

 

[dropcap]T[/dropcap]ropeço em velho texto que se aplica e auto-confirma. «A única verdade que vos posso contar é a de não estar preso a esta ou aquela mentira. Cultivo tantas, como em jardim botânico de espécies em vias de propagação. A mentira é uma infestante. Arde nos interiores, dá cor aos litorais, esconde no seu bojo líquido as areias e as dunas. As mentiras têm desertos nos bolsos. Só se descobre uma notícia se ela se confessar. Gosto muito das minhas mentiras.

Algumas alimentam-se de moscas e obrigam-me a sair pela manhã para terem o que comer. Outras enchem-se com o ar verdadeiro das noites longas. Outras ainda sanguessugam imagens de televisão: anúncios, documentários e programas de culinária. Todas me escravizam com o trabalho de lhes oxigenar o sangue. Ando há tempos a roçar o abismo. Confesso que me protejo do mundo com a música que não sei tocar. Bebo demais e sei de menos. Não faço o suficiente para dizer que tenho uma vocação. Não escrevo diários e não me exponho, a não ser no disparate. Manipulo como animal de feira o lugar-comum. Sento-me nas frases como se estivesse cansado. E estou cansado nas coisas como se estivesse doente. Acham que sou engraçado e sei.

Sou um ignorante melancólico. Acham que me disponho aos outros e faço. Afinal cultivo o meu umbigo em uma preguiça infindável.»

Horta Seca, Lisboa, 11 Agosto

Cultivei, em tempos, no Expresso, uma leira de prosa onde procurava colher as palavras que actualidade atirava ao ar, ilustrada pelo mano Tiago [Manuel] (que ilustra algures a página com uma inédita destinada a «assessor de imprensa»). O nevoeiro pôs-me a folhear as páginas do dicionário perdido, para me garantir ao ouvido que o passado custa a deixar o ouvido. Arranquei umas da letra p, de pequeno possível.

«Pandemónio – Milton criou a palavra para dar nome à morada apalaçada de Satã, em Paraíso Perdido. Significa agora uma mistura confusa de pessoas ou coisas. À primeira vista, assemelha-se bastante ao nosso quotidiano. Também se aplica à uma associação de pessoas para praticar o mal ou promover desordens e balbúrdias. Moraremos no condomínio aberto do demónio tendo por vizinhos um gang, duas claques e três máfias?

«Pantanas – No singular é lamaçal, atascadeiro, um grande pântano. Mas ouvir, a propósito da vida ou do orçamento, das eleições e do país, que «isto está de pantanas» deve-se ao facto de estamos perdidos ou com o negócio a correr mal. Também pode ser, singularmente, um salto lateral em que as mãos tocam no chão enquanto o corpo executa meia-volta.

«Papagaio de pirata – Segundo a oralidade brasileira, dona e senhora de belas imagens, classifica o assessor político ou de imprensa que surge amiúde no enquadramento televisivo de um político (eleito ou em campanha), em geral logo atrás por sobre o ombro. Não confundir com emplastro.

«Percepcionar – O mundo anda perigoso, por isso nos gritam a cada minuto esta exigência de percepcionar as ameaças. Não chega o uso dos sentidos para as perceber ou uma qualquer capacidade para as compreender, temos que as percepcionar. Como a percepção também inclui nos seus sentidos o efeito mental de representar os objectos, muito provavelmente paira por aqui um aviso acerca de obstáculos no caminho. Ou serão buracos?

«Pindérico – No entendimento burlesco das coisas é alguém magnífico e excelente, de altíssima qualidade. Mas afinal resume-se a indivíduo pobre, mal vestido, sujo e magro, ainda que teime em fazer figura. Quantas candidaturas políticas, programas de televisão, romances e figuras públicas nos surgem assim, sonsos e ensossos?

«Player – «Este player pode play discos», ou seja, este jogador pode jogar discos. In Manual de Instruções de DVD.

«Poder – «Desligue o poder quando a unidade não é usada». E não se esqueça: «gire em torno do poder», que é como quem diz, em inglês, turn on the power. in Manual de Instruções do mesmo DVD.

«Populares – Eles acodem aos eventos no plural e logo deixam de ser povo, gente comum, pessoas simples, para se transfigurarem em anónimos ferozes, turbamulta de um só rosto brutal, cuspindo insultos. Nalguns casos trazem ao palco a ignorância em estado natural e, portanto, totalitário. Noutros desejam a violência cobarde, uma justiça feita pelas mesmas mãos que poderiam ter corajosa e solitariamente evitado a desgraça. Mais do que figurantes, são actores do circo mediático. E representam-nos bem.

«Praga – O homem vermelho de raiva soergueu-se na janela do automóvel em andamento e gritou: «Que tenhas um acidente!» Era uma praga, uma velha imprecação desejando males, no caso, a outro condutor mais lento, mais azelha ou apenas mais respeitador. As estatísticas mostram que, devido à velocidade ou à mentalidade, a morte nas estradas é um desastre, um flagelo, enfim, uma maldição das antigas. Não virão todas do Egipto, não serão ervas daninhas ou uma multidão de gafanhotos, mas elas andam por aí: são as lojas dos chineses, para uns, para outros a delinquência juvenil; para estes o futebol, para aqueles as seitas religiosas. Traz consigo o cheiro de outros tempos, este pedido com instância, esta súplica a uma entidade superior para que faça mal a alguém em nosso nome. Rogar uma praga é requerer um serviço com ponto de exclamação, reencaminhar em direcção concreta um mal que anda por aí à solta, indicar ao outro o caminho do inferno. A mais comum e prática talvez seja o básico «vai para o diabo!» Mas, além de o gritar, é preciso acreditar. Os irlandeses, povo de mar e literatura, não se limitavam a atirar frases do tipo «que tenhas uma morte horrível!» ou «que o diabo te asfixie!». Apanhadas as pedras que eram empilhadas em forma de fogueira, ajoelhavam-se e tratavam de inventar sofrimentos, terminando o ritual dizendo «até que estas pedras peguem fogo». Cada qual com sua praga, as pedras eram atiradas para longe. Imagino o sucesso que seria a venda de calhaus com maldição incluída… À falta disso, podemos sempre contar com o fogo das palavras. Roga-se apenas alguma criatividade. Na tradição judaica há imprecações sugestivas: «Que te caiam os dentes todos menos um, e que esse te doa!» De Espanha, vem boa imagem: «Que engulas um pavão e que todas as penas se transformem em lâminas de barbear!»

«Prestação – Na televisão, que é afinal a superfície do nosso mundo, os sumo-sacerdotes da opinião pública avaliam continuamente a prestação dos gestores públicos e semi-públicos, assessores e magistrados, políticos e eleitos, dos governadores e governantes, enfim, daqueles que deveriam estar obrigados a fornecer-nos explicações. As prestações dos avaliados como dos avaliadores raramente são prestáveis pelo que não saldam o crédito que lhes damos. A culpa é nossa.

«Pum! – Segundo o Morais, dicionário que merece tratamento por tu, é a voz para queda, explosão ou disparo de um tiro. Por detrás da onomatopeia nem por isso violenta para queda, explosão ou disparo, esconde-se ainda o traque, como todos sabemos, ventosidade anal acompanhada de ruído. Embora não encontre registo, nem no Novo Dicionário de Calão, do Afonso Praça, sei que em paragens a norte, se usa apenas «pu», o que lhe retira alguma percussão. Mais colorido é o uso infantil de «pusete». A geografia mexe muito com as palavras. Por exemplo, em francês, este som diz-se «prout», mas deve soltar-se de igual modo. Discreto.

«Punho – «Sonho com uma língua cujas palavras, como punhos, quebrassem queixos…» Cioran, Cahiers 1957-1972, Gallimard.

14 Ago 2019