A grande dama do chá

 

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[dropcap]M[/dropcap]arina Kaplan e Cândido Vilaça estavam a olhar um para o outro como se estivessem hipnotizados. Entre eles intrometeu-se o fumo que trazia odores de ópio e tabaco.

O Bambu Vermelho estava repleto e, por isso mesmo, mais quente do que o habitual. Nem as ventoinhas que iam rodando lentamente no tecto conseguiam dissipar aquela temperatura que fazia surgir gotas de suor na testa dos jogadores e das raparigas que circulavam entre eles.

Aquela hora tardia Cândido gostava de estar ali a tentar imaginar o que era a vida de cada um daqueles homens, antes de devotarem o seu futuro ao jogo. Imaginava cenários que tanto pareciam reais como irreais. Marina agarrou no seu copo de vodka e levou-o aos belos lábios.

Na mesa, perto dela, estava uma máscara da ópera, que tinha trazido de Xangai e que lhe servia, de vez em quando, para recordar esses tempos que nunca mais regressariam. Tinha a certeza disso, apesar do que lhe dizia Cândido.

– És um sonhador, Cat. A velha Xangai morreu. Não ressuscitará. Vai-nos ser servida, ao longo dos anos, em capítulos cheios de memórias. Como um livro que iremos escrever, devagarinho.

Agarrou na máscara e passou os dedos pela face.

– Trouxe-a para nunca me esquecer dos anos que lá vivi. As máscaras dizem-nos muito sobre a vida. Todos as usamos, mesmo que não sejam estas. Por detrás da máscara da firmeza alguns ocultam as suas debilidades. Outros, por detrás da máscara da debilidade, escondem a sua força. Acho que tu és o segundo caso. Sempre foi assim e sempre assim será. Mas, às vezes pergunto-me, porque é que a máscara da força triunfa muitas vezes sobre a da debilidade? Repara nesta. Sabes porque a escolhi?

– Não.
– Gosto das misturas de cores. Tem vermelho, a cor da lealdade e da coragem. E púrpura, da bravura e da esperança. Tem o branco, da crueldade e da traição. E o ouro e a prata porque são usados nas cores dos deuses, porque o seu brilho produz efeitos sobrenaturais.
– Pensava que as tradições russas eram mais importantes para ti do que as chinesas.
– Agora ambas são importantes. O meu pai era cossaco, tal como o meu avô e o meu bisavô. Ia à igreja, aspirava o aroma balsâmico e a luz das velas. Foi aí que aprendi a dominar o fogo interior. Isso salvou-me a vida muitas vezes em Xangai. Quando fugi da Rússia não sabia o que ia encontrar. Julguei chegar ao paraíso. Mas era um paraíso negro.

Sorriu tristemente. Os seus olhos azuis claros, por momentos, pareceram escurecer até se tornarem negros.

– Todas cidades são cruéis. E Xangai foi a mais cruel de todas. Havia prazer e sexo em todo o lado. Dinheiro fácil e sem fim. Os gangsters guiavam o destino da cidade. E, para termos o filme perfeito, o jazz dava-lhe mistério e sedução. E tu, Cat, fazias parte dessa mentira muito bonita.

Mas, como sabes, o jazz é uma música muito decadente. Xangai não era uma cidade de pesadelos, apesar das mortes, da droga. Era de sonhos, de fantasia. Lembras-te das pistas de dança cheias de pessoas com roupa de noite? Todos podiam esquecer o passado e os seus pecados. Que eram os pecados de cada um ao pé dos de Xangai? Era um porto aberto. A todos. Também o foi para mim. Salvou-me.

– Porque fugiste da Rússia, Marina?
– Tinha 20 anos. Era uma jovem louca. Idealista. Acreditava na revolução, mas juntei-me aos socialistas-revolucionários. Andei a colocar bombas. Foi um erro que paguei caro. Para não ser morta, tive de fugir. E foi assim que cheguei a Xangai.
– E porque é que vieste para aqui, Marina? Só para fugires ao que se adivinhava em Xangai?
– Os chineses não têm ninguém a quem rezar. Onde é que eu me coloco? Não acredito na culpa, mas penso que há algo que nos é superior.

Cândido escutava-a. Deu uma pequena gargalhada antes de dizer:

-Sabes, a má sorte, sendo habitual, é suficientemente má. Mas, pior, é não ter sorte nenhuma.
– Tu és um homem curioso, Cat. Não admira que tenha estado apaixonada por ti. Mas não iria dar. Tu és o protagonista da paz quando não há paz. Só Jin poderia agora apaixonar-se por ti.

Fez uma pausa e aproximou a sua face da de Cândido.

– Porquê, Marina?
– Porque tu lhe dás essa sensação de paz. Algo que ela nunca conheceu.

Marina levantou-se, saiu do pequeno reservado onde estavam protegidos por uma cortina de linho e voltou, pouco depois, com um crucifixo que parecia russo, ortodoxo. E uma foto.

– Perguntaste-me se tinha trazido algo do passado. Trouxe. Esta foto de quando era uma jovem revolucionária.

Cândido olhou. Ali estava ela, rodeada de muitos jovens, rapazes e raparigas.

– Quase todos foram mortos. Alguns de forma horrível, em prisões onde nunca se vê a luz.
Depois passou a mão pelo crucifixo. Fixou-o, como se estivesse a ter uma visão.
– Tudo o que vem dos homens é tão efémero quanto a vida dos próprios homens. Antigamente as pessoas iam às igrejas para falar com Deus, que reinava no absoluto. Nesse infinito muito reconfortante vivia na luz, na sombra e no silêncio, e nos seus jogos. Tenho saudades de igrejas como as que conheci na Rússia.

– Acho que tudo é irreparável, Marina. Mas é isso que faz a grandeza e a miséria de um homem ou de uma mulher. Porque nunca sabemos em que partes da vida nos equivocamos.
– E é por isso que agora queres ser o que um herói nunca foste?

Cândido ia responder, mas, de repente, por entre as cortinas, surgiu a face de José Prazeres da Costa. Tinha os olhos vermelhos e um ar cansado. Marina levantou-se. Percebeu que ele queria falar com Cândido. Disse que ia ver como estava o Bambu Vermelho. E afastou-se sem ruído.

Prazeres da Costa sentou-se defronte de Cândido. Trazia, na mão, um copo de uísque. Parecia já ligeiramente tocado pelo excesso de bebida.

– O que se passa, José?
– É a Amélia. Quer que eu me decida. Não quer esperar mais. Quer deixar o marido e vir viver comigo. Diz que tenho dois dias para me decidir. Depois sai de casa.

Cândido esperou um pouco antes de responder.

– Acho que não tens fuga. Vais ter de te decidires. Ela está decidida. E tu, queres viver com ela?
– Quero. Mas queria ter tudo controlado. Ter dinheiro. E que ela não saísse de casa desta forma.

Tenho receio da forma como o marido reagirá.

– Terás de conviver com isso.

Prazeres da Costa suspirou. Depois bebeu o resto do uísque que tinha no copo.

– Eu sei. Mas era uma coisa com que não me queria preocupar.
– A vida é assim, José. Não a controlamos.

Prazeres da Costa parecia estranhamente envelhecido e descrente. Cândido já tinha visto homens assim, que procuravam consolo. A qualquer preço, mesmo que fossem jogadores. Ser lúcido, às vezes, é mais doloroso do que perceber que ninguém consegue controlar a sua vida.

A nossa imaginação inventa inimigos para ficar reconfortada. Mas isso não chega. Esse é o grande medo dos homens. Procuramos sempre o Céu. Descobrimos, depois, que é a antecâmara do Inferno. Voltou a encarar Prazeres da Costa. Disse:

– Tenho uma mensagem para o teu amigo japonês.
– Diz.
– É melhor escrever. É mais seguro.

Escreveu num papel: “Daqui a dois dias, à noite, no cais 16, descarga de encomendas vindas da China. Muito importante.” Prazeres da Costa agarrou no papel, meteu-o no bolso, e levantou-se. Deparou com Marina, a quem agradeceu por lhe ter apresentado o homem que lhe tinha emprestado o dinheiro para pagar as dívidas de jogo. Assim poderia criar novas dívidas. Saiu, cambaleante. Marina sentou-se e disse:

 

[CONTINUAÇÃO]

 

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